Revista Iberoamericana de
Educación / Revista Ibero-americana de Educação vol. 85, núm. 2 [2021/03/15), pp.
119-139, isSn: 1022-6508 / isSne: 1681-5653 /
https://doi.org/10.35362/rie8523686 Organización de Estados
Iberoamericanos (OEI) / Organização de Estados Ibero-americanos (OEI) Artículo recibido / Artigo
recebido: 17/10/2019; aceptado / aceite: 18/02/2021 |
A cidadania na formação de
jovens do ensino médio na dimensão do cotidiano escolar de escolas de Novo
Hamburgo/Brasil 1
The
citizenship in the formation of high school students in the school routine
dimension at schools in Novo Hamburgo/Brazil
Janaina Andretta
Dieder 1 ; Dinora Tereza Zucchetti 1
; Elisandro Schultz Wittizorecki 2
; Gustavo Roese Sanfelice 1
1 Universidade
Feevale, Brasil; 2 Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil
Resumo
O estudo tem como objetivo analisar os desdobramentos da
cidadania no cotidiano escolar, entendendo a cidadania como prática
cotidiana. Caracteriza-se como qualitativo descritivo e interpretativo.
Foram selecionadas duas escolas de ensino médio, uma da rede de ensino pública
e uma da rede privada de uma cidade do Vale do Sinos/RS. A imersão no campo
empírico se constitui através de análise de documento (PPP), observações
registradas em diários de campo e entrevistas com um membro da equipe diretiva
e dois docentes de cada escola. Quanto às características das escolas, pode-se
afirmar que a escola pública possui uma cultura escolar já instituída na
sociedade/comunidade local, que implica em regras de convívio social bem
definidas e rígidas, necessárias - em sua perspectiva - para o que se espera
quanto à inserção no mundo do trabalho. Já na escola privada, a
reorganização do seu espaço e funcionamento ao flexibilizar regras busca
tornar o aluno mais autônomo. Na escola pública, a existência das regras é
muito mais no sentido de dever do que de convívio, o que acaba limitando a
cidadania plena. Na privada, há diálogo, construção, questionamentos e
autonomia dos alunos para se expressarem dentro da escola numa nítida busca
pelo protagonismo do aluno.
Palavras-chave: cidadão; escola; educação; ensino médio.
Abstract
This study aimed at analyzing the unfolding of
citizenship in the school routine, understanding the citizenship as a daily
practice. It is characterized as qualitative descriptive and
interpretative. Two high schools were selected: a public school and a private
school in a city located in Vale do Sinos/RS. The immersion in the empirical
field is performed through the document analysis (PPP), observations registered
in field journals and interviews conducted with a member of the management team
and two teachers from each school. Concerning the characteristics of the
schools, it can be affirmed that the public school has a school culture already
instituted in the society/local community, that implies well-defined and strict
social interaction rules, necessary – in its perspective – to what is expected
regarding the insertion in the job market. While in the private school,
the reorganization of its space and functioning when softening the
rules seek to make the students more autonomous and responsible for their
acts. It results from the investigation that, in the public school, the
existence of rules is much more in the sense of duty than of social
interaction, which limits the full citizenship. In the private school, there is
dialogue, construction, questioning and autonomy of students to express
themselves inside the school in a clear pursuit for their protagonism.
Keywords: citizen; school; education; high school.
1.
Introdução
O processo de consolidação do capitalismo reivindicou a
“escola pública, gratuita, leiga, universal e obrigatória da época moderna”,
situando as relações entre educação e a formação do cidadão às lógicas do
mercado e do trabalho, “ainda que nem sempre isto tenha significado preparar
tecnicamente para o trabalho, mas disciplinar, tornar obediente a normas e
hierarquias, adquirir hábitos e condutas próprias do mundo produtivo” (Silva,
1995, p. 132). Esses processos podem ser percebidos na escola ainda hoje, já
que “no interior da escola são conscientemente mobilizados preceitos e roteiros
de comportamento que terão como propósito o desenvolvimento de um ethos
civilizatório que é exterior ao próprio lugar público ocupado
pela escola” (Boto, 2018, p. 158).
Em vista disso, torna-se importante a discussão acerca
dos entrelaçamentos da cidadania e do cotidiano escolar, que é composto por
relações, regras, normas, tensões, saberes tácitos e outros explícitos. A
cidadania como prática cotidiana, isto é, uma “cidadania em construção” sugere
a “valorização da dimensão processual na qual o resultado final não se reporta
já a uma noção fixa de cidadania, ou a um modo preestabelecido de agir como ou
ser cidadão/cidadã”, mas sim uma problematização e construção da sua própria
cidadania (Menezes & Ferreira, 2014, p. 135). Portanto, a cidadania pode e
merece ser trabalhada na escola para além do espaço da sala de aula, das
disciplinas e conteúdos didáticos, abrangendo todo o cotidiano escolar, ou
seja, desde o momento em que o aluno entra nesse ambiente e seu convívio, o
recreio, os corredores, as relações sociais e afetivas, a organização do lugar
com suas regras e normas, e tudo que fizer parte desse contexto. Valorizando,
assim, as formas pelas quais a “cidadania é construída na prática pelos jovens
em seus mais variados aspectos do dia a dia e pensar como otimizar as condições
de exercício dessa cidadania para se ter uma sociedade cada vez mais
democrática” (Maia & Pereira, 2014, p. 629).
Em vista disso, este estudo buscou analisar os
desdobramentos da cidadania no cotidiano escolar em uma escola pública e em uma
escola privada de uma cidade do Vale do Sinos/RS2. Dentre os aspectos que compõem o cotidiano escolar observado,
foi utilizada a observação etnográfica sugerida por Mattos (2016), registrando:
o espaço físico utilizado; relação das pessoas com o espaço e entre si; toques
dos sujeitos uns nos outros; linguagem corporal e linguagem verbal;
relacionamento dos sujeitos entre si; tom de voz; vocabulário.
Os contextos estudados possuem características
diferentes, implicando diretamente no cotidiano escolar e nos desdobramentos da
cidadania. A escola pública utiliza a abordagem tradicional de ensino, no qual
o método se baseia “na exposição verbal da matéria e/ou demonstração”, dando
“ênfase nos exercícios, na repetição de conceitos ou fórmulas e na memorização”
que “visa disciplinar a mente e formar hábitos”, sendo que “predomina a
autoridade do professor que exige atitude receptiva dos alunos” (Leão, 1999, p.
192). Portanto, a escola segue um modelo conhecido e ainda predominante nas
escolas, organizado em forma de classes, onde os alunos sentam enfileirados, os
horários são pré-estabelecidos e rígidos, tanto para entrada, saída, recreio e
troca de períodos, as disciplinas são separadas, existem regras para diferentes
circunstâncias e movimentos do cotidiano escolar, as quais devem ser seguidas à
risca. Já a escola privada inseriu no ano de 2018 uma experiência centrada em
metodologias ativas e colaborativas em seu processo de ensino, sendo assim, não
existem mais turmas, os horários são flexíveis (não há mais sinal escolar), a
interdisciplinaridade é trabalhada em determinados momentos, e as regras são
flexíveis buscando o diálogo para a resolução dos conflitos.
2.
Metodologia
Este estudo caracteriza-se como qualitativo descritivo e
interpretativo. Silverman (2009) sinaliza que a pesquisa qualitativa tem
recursos para descrever como o fenômeno é localmente constituído. No caso deste
estudo, como se constituem os desdobramentos da cidadania na dimensão do
cotidiano escolar, tendo como contexto uma escola da rede de ensino pública e
uma de rede privada em uma cidade do Vale do Sinos.
Para tanto, foram selecionadas duas escolas de ensino
médio, uma da rede de ensino pública e uma da rede privada da cidade, tendo
como critério de escolha as escolas com maior número de alunos matriculados no
Ensino Médio no ano de 2018, presumindo-se, assim, que essas são as escolas
mais procuradas e com maior alcance quantitativo na formação dos alunos da
respectiva cidade, atuais/futuros cidadãos.
Para a coleta de dados foram utilizados documentos,
feitas observações descritas em diários de campo e realizadas entrevistas. Os
documentos analisados foram os Projetos Político-Pedagógicos (PPP) das escolas
participantes do estudo.
As observações nas escolas ocorreram duas vezes por
semana em cada escola, compreendendo os seguintes períodos em 2018: 13/03 à
13/06 na escola pública e 21/03 à 14/06 na escola privada. As entrevistas foram
realizadas com um membro da equipe diretiva e dois docentes de cada escola,
indicados por meio da ferramenta bola de neve que “utiliza cadeias de
referência” para que os “novos contatos” tenham “as características desejadas”
(Vinuto, 2014, p. 203), conforme tabelas abaixo:
Tabela 1.
Codificação das entrevistas
Função |
Pseudônimo |
Escola |
Data |
Tempo de
entrevista |
Supervisora |
Julia |
Pública |
12/07/2018 |
* |
Professora |
Eliza |
Pública |
10/07/2018 |
55min28seg |
Professora |
Celia |
Pública |
12/07/2018 |
42min09seg |
Diretora |
Lorena |
Privada |
9/07/2018 |
55min28seg |
Professor |
Leonel |
Privada |
9/07/2018 |
1hora03min59seg |
Professor |
Edvaldo |
Privada |
9/08/2018 |
37min08seg |
* Supervisora não quis que a entrevista fosse gravada, portanto as respostas foram
somente anotadas.
Fonte: elaborada pelos autores.
A presente pesquisa segue os parâmetros éticos conforme
Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, ciente sobre as obrigações
éticas, preservando o respeito às pessoas. Foi aprovada pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da Universidade Feevale, sob o número 81015617.1.0000.5348. Para a
análise e interpretação dos dados, utilizou-se a triangulação que, neste
estudo, ocorreu através da triangulação por fontes, teórica e reflexiva
(Cauduro, 2004).
3.
Resultados e discussão
A partir das observações realizadas nas duas escolas,
analisamos e interpretamos que os desdobramentos da cidadania (Menezes &
Ferreira, 2014; Maia & Pereira, 2014) na dimensão do cotidiano escolar
constituem-se de maneiras diferentes, apresentadas primeiramente no quadro 1.
Quadro 1. Síntese dos
elementos de análise
Elementos de observação do cotidiano
escolar |
Escola
pública |
Escola
Privada |
Metodologia de ensino |
Tradicional |
Ativa e colaborativa |
Recreio |
Horários rígidos |
Horários flexíveis |
Entrega de trabalhos |
Entregues na folha padrão da escola, somente para o professor no horário
de sua disciplina. |
Entregues em folhas de caderno para o professor ou secretário da escola
em qualquer horário (conforme combinações). |
Ar condicionado |
Ligado somente pelo monitor após o início da aula. |
Alunos e professores podem ligar e controlar temperatura. |
Sair da sala com mochila |
Proibido |
Permitido |
Limpeza da sala |
Obrigatório |
Não é cobrado |
Uso do celular |
Proibido (somente uso pedagógico permitido pelo docente). |
Guia do aluno: vedado o uso indevido; mas na prática os professores dizem
que é permitido e os alunos usam. |
Uso de equipamentos da escola |
Alunos só podem utilizar acompanhados pelo professor. |
Alunos podem utilizar e ficam à disposição. |
Idas aos banheiros e tomar água |
Alunos só podem sair com carteirinha do professor, um aluno por vez. |
Alunos podem sair a qualquer momento sem permissão. |
Atrasos na chegada |
Aluno só pode entrar com a presença dos pais. |
Entrada permitida com aluno sozinho. |
Consumo de bebidas e comidas em sala |
Proibido |
Permitido |
Uniforme |
Uso obrigatório |
Facultativo |
Fonte:
elaborado pelos autores.
A partir do quadro de síntese dos elementos que compõem o
cotidiano escolar, foram escolhidos alguns itens mais relevantes e
contraditórios que influenciam na cidadania para serem analisados
descritivamente e discutidos, sendo eles: uso do celular, consumo de bebidas e
comidas em sala de aula e presença do uniforme.
A partir da caracterização das escolas realizadas
anteriormente, compreendemos que as metodologias de ensino implicam em
diferenças nos desdobramentos da cidadania no cotidiano escolar dos contextos
pesquisados, já que a escola pública apresenta maior rigidez, enquanto que a
privada tem mais flexibilidade nos procedimentos. Sendo assim, constata-se na
escola pública uma cultura escolar já incorporada pelo coletivo. Seja pelo fato
de a escola seguir o padrão tradicional de ensino, já conhecido por todos
(professores, alunos, pais e comunidade escolar), que se constitui em um
“conjunto de dizeres e fazeres [...] pelas ações dos principais protagonistas
das disciplinas escolares, professores e alunos” (Pinto, 2014, p. 140); seja
pelo próprio funcionamento e organização da escola, que também segue esse
modelo, sendo “capaz de reunir processos idênticos que produzem consensos
envolvendo o sistema de significação do mundo e da realidade, regulando condutas
e organizando a vida social” (Malikoski & Kreutz, 2014, p. 248).
Malikoski e Kreutz (2014) contribuem com a ideia de que a
cultura escolar promove a organização do espaço escolar através de determinadas
regras e seus efeitos, percebida nas observações da escola pública durante o
cotidiano escolar, já que, de uma forma geral, os alunos já sabiam das regras,
das restrições, do funcionamento e da organização do contexto, sem questionar
muito sobre. Essa cultura escolar parte de um dado consenso sobre as funções da
instituição escola. A escola pública investigada partilhava dessa cultura já
arraigada na sociedade, constituindo uma cultura escolar particular na cidade,
onde pudemos acompanhar que todos se inculturavam ao ingressar nela, uma vez
que alguns alunos já eram conhecidos de outra escola e suas posturas na outra
instituição que estudavam, o caracterizavam como “bagunceiros”. Na escola em
que a pesquisa era realizada, os mesmos partilhavam dessa cultura já
instituída. Em contrapartida, observamos na escola privada certa dificuldade no
andamento das atividades e compreensão da proposta por parte dos alunos,
principalmente no começo, já que uma dada cultura escolar foi rompida com a
mudança das metodologias e da organização escolar, portanto, levará um tempo
até essa nova cultura escolar, embasada na autonomia do aluno através das
metodologias ativas e colaborativas, ser consolidada.
Dando sequência aos achados do estudo, passamos a olhar
para o cotidiano escolar na dimensão das regras de convívio social demarcadas
pelas instituições e sua relação com a cidadania, já que a partir da cultura
escolar e dessa imagem socialmente construída “a escola tende a abordar a
cidadania, quando muito, como mais um tema a ser ensinado, e não como o
exercício de atores concretos face às suas demandas no espaço público” (Leão
& Santos, 2018, p. 793). Ou seja, através dessa cultura arraigada no chão
da escola, a cidadania não é vista como uma construção cotidiana que pode e
deve ser trabalhada também na perspectiva dessas normas – ou melhor, da
construção coletiva delas. Vale lembrar que a escola é um local que traz uma
segunda socialização para os alunos, preparando-os para a vida social. Deste
modo, dentro do âmbito escolar “há o aprendizado dos preceitos que deverão
regular a sociabilidade”, já que a “vida dos adultos se dispõe a partir de
certos códigos; e esses códigos precisarão ser aprendidos”; sendo fundamental a
atenção também para os “possíveis fatores de resistência, de recusa, de
transgressão” (Boto, 2018, p. 157).
Ambas as escolas apresentam algumas diretrizes para o
convívio no âmbito escolar apresentado no PPP da escola pública (2017) e no
guia do aluno (2018) na privada3, apontando para uma distância entre os dois ambientes. A
escola pública tem como característica marcante as regras, cobranças e rigidez
das mesmas, sem muitos questionamentos, bem como constatou Candau (2002, p.
140) em seu estudo, no qual a escola “manifestava com força uma dinâmica de
normatização e rotinização que lhe dava uma acentuada rigidez e pouca
permeabilidade a aspectos relacionados à cultura social de referência, assim
como a interesses mais conjunturais e contextualizados que emergiam no seu
dia-a-dia”.
Em relação ao uso do celular, na escola pública “não é
permitida a utilização do celular e tão pouco recargar a bateria do telefone”
(PPP escola pública, 2017). A escola segue a Lei estadual 12.884, de janeiro de
2008: “caso utilizem o celular na sala de aula, sem fins pedagógicos, este será
recolhido pelo professor e só poderá ser entregue ao responsável legal pelo
aluno, no turno do mesmo, 24 horas após o seu recolhimento” (PPP escola
pública, 2017, p. 26). Durante as observações identificamos que, de forma geral,
os alunos não utilizavam o celular. Em determinados momentos usavam escondido
ou com permissão do docente para uso pedagógico. Por vezes, mesmo com a regra,
os professores tinham que pedir ou ordenar que guardassem o telefone. Nesse
sentido, vale ressaltar que a cultura escolar estabelecida nessa instituição é
“marcada pela lógica da transmissão de informações” e “do controle sobre o
fluxo comunicacional”, ou seja, o ensino tradicional, “não dialoga bem com essa
nova cultura, marcada pela horizontalidade, [...] que vem se instituindo em
torno das tecnologias digitais, a chamada cultura digital” (Bonilla &
Pretto, 2015, p. 501). Nesse sentido, destacamos que a “escola já não tem a
hegemonia na transmissão do conhecimento construído pela humanidade, pois novos
agentes concorrem na socialização das novas gerações”, tais como os aparatos
tecnológicos (Stecanela, 2016, p. 353). Essas “práticas em rede podem tirar os
professores da “zona de conforto”, pois exigem romper com algumas hierarquias,
tornando professores e alunos, colaborativamente, produtores de informações,
conhecimentos e culturas” (Bonilla & Pretto, 2015, p. 513).
Parece que na escola em questão existe esse receio, já
que segue o modelo tradicional, no qual o professor é a autoridade e “transmite
o conteúdo na forma de verdade a ser absorvida” (Leão, 1999, p. 192), portanto,
veem na proibição a solução. Em contrapartida, observamos que alguns – poucos –
professores utilizam essa ferramenta como aliada no processo educativo,
buscando romper essa concepção e se aproximar da realidade dos alunos, já que o
acesso e o uso desse instrumento de forma adequada também é uma forma de
exercer a cidadania.
No guia do aluno da escola privada está escrito que é
vedado o uso indevido de aparelhos eletrônicos em sala de aula. Quando
questionados, os docentes disseram que o uso era permitido. O guia não proíbe,
apenas restringe ao uso impróprio, mas não explicita qual seria esse uso. Nas
observações a utilização do celular ficou perceptível. Alguns professores não
se incomodavam com isso, outros pediam para guardar ou diziam que iriam
recolher e outros procuravam conscientizar os alunos sobre o uso, por meio do
diálogo, conversa e demonstrações de como isso poderia atrapalhar a atenção
deles (através de vídeos e textos). Nas entrevistas com os docentes, eles
relataram que a briga com o celular era uma das maiores questões e desafios
para se trabalhar, buscando um aluno que valorizasse a vida real e não a
virtual, para se tornar um cidadão com mais empatia, mais sensível, mais
humano. Conforme comenta o professor de biologia Edvaldo (9/08/2018):
Eles têm um desafio que nunca antes houve na história da
vida do planeta, que é aprender a interagir com o mundo onde a conectividade
virtual, o celular, a internet é uma realidade, desde o ano zero deles. Eles
não conheceram o mundo off-line, por
exemplo, eu acho isso absurdamente transformador na construção da visão de
mundo desse sujeito. Eles não conheceram, eles não tiveram determinadas
sensações e experiências que o mundo off-line
produz. E eu acho que isso resultou numa geração de pessoas ansiosas, que têm
dificuldade de pensar no depois, que querem as coisas para imediatamente, se
tem que pensar muito tempo sobre uma coisa eu já me desvio atenção, porque o
cérebro deles se acostumou a enxergar o mundo dessa forma, o Youtube,
a rede social, o Instagram, o feed
que não termina, o troço é todo feito pra pegar o jovem, pra pegar o sujeito. E
aí eles se acostumam com aquele comportamento. O cérebro deles constrói aquelas
sinapses ali, eles entendem que é assim que as pessoas interagem, o mundo é
isso aí mesmo, dia após dia reforça, ano após ano reforça. E aí eu caio de
paraquedas aqui e espero sensibilizá-los com questões ambientais e aí não
funciona bem assim, eu acho que esse lado que dificulta. Mas eu acho que o
saldo no fim das contas é positivo, assim, eu vejo que para a grande maioria
deles aquilo que eu coloco como uma informação às vezes chocante, essa
informação ressoa neles, como a que vai ter mais plástico que peixes no oceano.
O professor retrata a dificuldade de lecionar para essa
geração que nasceu inscrita e partilhando na/da cultura digital, mas também
reconhece que isso pertence ao cotidiano de seus alunos e que compreender e
aliar isso ao processo de ensino é trabalhoso e lento. Já que as “mudanças de
posturas e de concepções não são processos simples, nem tampouco podem
acontecer em um curto espaço de tempo”, onde a marca das redes é a velocidade,
em que os jovens acompanham e requerem essa velocidade, portanto, os alunos
“querem e pedem para a escola estar em rede, sejam elas as redes físicas ou as
redes sociais” (Bonilla & Pretto, 2015, p. 513) e, durante as observações,
percebeu-se o esforço por parte dos professores para que isso ocorresse. Além
disso, observou-se um empenho de grande parte dos docentes para conscientizar
os alunos no sentido de não negligenciar suas atividades cotidianas e o
“convívio social para estar permanentemente on-line” (Martins & Mogarro,
2010, p. 196). Bem como a busca pela sensibilização dos alunos em todos os
aspectos da vida, nesse caso relatado pelo professor Edvaldo, pelas questões
ambientais, uma vez que estar consciente e comprometido com esse tema também é
uma forma de desenvolver a cidadania (Giassi, Dajori, Machado, & Martins,
2016).
Em relação ao consumo de bebidas e comidas em sala, na
escola pública não é permitido em sala de aula que os alunos “masquem
chicletes, comam balas e afins ou lanche durante as aulas e nem chimarrão. É
permitido apenas o consumo de água”, como também é proibido “fazer festas ou
confraternizações com bebidas e comidas, ressalva quando combinado com a
direção” (PPP escola pública, ٢٠١٧, p. ٢٦). Presenciei momentos em que isso era permitido somente
na aula de sociologia de uma professora (a entrevistada Eliza), a qual
realizava debates e discussões com lanches fora da sala de aula.
No final do mês de março foi instalada uma máquina de
café (paga) na escola, que gerou algumas discussões, já que os alunos não
podiam consumir o café em sala. Em observação numa turma de terceiro ano,
algumas alunas contestaram que não tinha nada demais tomar café em sala, que
era como tomar água, uma necessidade básica, que não iria incomodar ninguém. A
docente Eliza (de sociologia, mencionada acima) argumentou que essas decisões
vinham da direção e os professores somente as seguiam. Ela teve que chamar a
atenção das alunas, para que elas não saíssem no intervalo entre as aulas para
comprar café. Houve um diálogo aberto entre alunos e docente sobre a questão e
a professora reafirmou que essa era uma decisão do coletivo e disse “sou
amplamente democrática, mas como não dá certo com alguns, que ficam ali matando
aula, não dá pra liberar. Em menos de três dias estragaram a máquina, alunos
chegaram atrasados na aula por causa disso também” (Diário de campo,
28/03/2018). Percebe-se essa postura da docente condizente com o que se propõe
para trabalhar a cidadania na escola, ou seja, por meio da discussão de algo
que aconteceu no cotidiano educacional (Maia & Pereira, 2014), pois ela
abriu mão de certa forma de “seus conteúdos” e debateu com os alunos sobre a
questão que estava gerando polêmica e divergência entre os discentes.
Em contrapartida, na escola privada, essas regras não se
encontram estabelecidas no guia do aluno e são flexibilizadas na convivência,
gerando maior proximidade entre alunos e professores. Pois além de haver
momentos de confraternização planejados (como na pública), tanto os alunos como
os professores trazem chimarrão para a sala e compartilham. Além disso, há café
disponível para ambos, que podem sair da sala para buscar e tomar. É importante
ressaltar que alunos e professores trazem suas xícaras, pois como foi relatado
pela diretora da escola privada na entrevista:
Estamos na campanha do copo zero, copo plástico, porque a
gente faz todo um trabalho em sala de aula, sobre resíduos, conscientização
nesse sentido, que é uma questão de cidadania porque é o futuro das novas
gerações e o nosso consequentemente também. Então é incoerente nós termos copos
plásticos disponíveis, por exemplo, hoje quem quer tomar café tem que trazer
sua caneca, trazer seu copo e a gente vai trabalhando com os alunos, se ele não
traz ele não toma café, por exemplo. E isso de uma forma muito tranquila, não é
que não vai ganhar, só que tem que trazer, se não trouxer... Então dessa
coerência entre o discurso e a prática, o que se diz e o que se faz em todos os
espaços. (Lorena, 9/07/2018).
A questão trazida pela diretora da escola, que abarca a
educação ambiental promovida, nesse caso, através da substituição de copos
plásticos pelas canecas reutilizáveis de cada aluno/professor, é uma temática
que deve ser considerada atualmente e no futuro na educação para a cidadania,
como propõe Martins e Mogarro (2010). Assim, trabalhar a educação ambiental na
escola para além do conteúdo teórico de uma disciplina específica, de forma
prática, consciente e coerente por todos que compõem esse cenário, contribui na
formação de cidadãos mais instruídos para encarar os desafios da sociedade
atual “cujo maior dilema gira na solução dos problemas ambientais, pois
envolvem aspectos econômicos, sociais, recursos naturais, éticos entre outros”
(Giassi et al., 2016, p. 31).
Pensando na constituição desse sujeito e sua formação
para a cidadania, outra questão que chama atenção pela diferença nas duas
escolas diz respeito ao uniforme. Na escola pública:
O uniforme completo é obrigatório desde o início das
aulas e também nas atividades no turno oposto. Caso o aluno não compareça
uniformizado e se recuse a fazer uso de um emprestado pela escola, o mesmo será
advertido e os responsáveis serão convocados a comparecer na escola para
conversar com o vice-diretor, pois no ato da matrícula, os responsáveis ficam
cientes quanto à obrigatoriedade do uniforme. (PPP escola pública, 2017, p.
23).
De acordo com o que foi observado, os alunos seguem essa
norma. Percebemos algumas resistências durante o inverno4, pois eles podem usar outros casacos por cima, mas é
exigida a camiseta da escola por baixo. Importante destacar aqui que o uso do
uniforme escolar, historicamente, tem papel regulador, já que é por meio dessa
vestimenta que os alunos absorvem “noções e normatizações sobre o poder, os
limites do dissenso, o permitido e o proibido, o pudor e a transgressão” (Beck,
2014, p. 142). Essas noções são cobradas e visíveis no cotidiano escolar
através das regras e normas que constituem o contexto. Dessa forma, o uniforme
se caracteriza como um dispositivo de controle, pelo qual “padronizam-se,
identificam-se e diferenciam-se os/as estudantes” (Beck, 2014, p. 137).
Além dessa obrigatoriedade, há controle e rigidez no
comprimento dos shorts das meninas. No dia 25 de abril, durante as observações
no turno da tarde, em uma turma do 1º ano, um aluno perguntou se estava
permitido as meninas virem de short de novo. Pelo que compreendemos, havia sido
proibido, pois o clima estava mais frio e, como nos últimos dias o calor tinha
voltado, as meninas disseram que o uso tinha sido liberado no dia anterior. A
professora que estava em sala naquele momento disse que “nunca pôde short”, que
era bermuda o permitido, que a vice-diretora (que segundo uma aluna age como
diretora porque manda em tudo) iria passar e medir, pois o short deveria estar,
no máximo, 4 dedos acima do joelho (Diário de campo, 25/04/2018). Nesse
momento, a professora diz “somos todos adultos, quero mais é que ela passe e
tire tudo da sala pra aprender” (Diário de campo, 25/04/2018). Ao final da
aula, a vice-diretora passou na sala mesmo. Disse que as alunas não poderiam
dobrar o short, senão iria cancelar a permissão do uso. Além disso, falou para
uma aluna ir à costureira e pedir para colocar mais um pedaço de tecido em seu
short. Entretanto, pelo que sabemos da comunidade escolar, os uniformes da
escola são todos produzidos em um mesmo local.
Diante disso, cabe ressaltar duas questões. A primeira
diz respeito à padronização dos alunos, pois com o uso do uniforme todos seguem
um mesmo padrão, uma uniformidade, como aborda Beck (2014), não podendo
destacar-se as identidades e alteridade desses jovens. O que poderia ser
interessante, por um lado, pois não há uma “concorrência” entre as
indumentárias, assim, preservando e garantindo a igualdade entre os alunos e
também criando uma identidade coletiva dos estudantes com sua instituição de
ensino (Beck, 2014); mas, por outro lado, torna-se complicado, pois a padronização
leva ao apagamento dessas identidades e diversidades, ou seja, “a liberdade de
expressão de tais sujeitos pelas suas vestimentas não compunham os propósitos
de tal ideário” - de igualdade (Beck, 2014, p. 143). Dessa forma, percebemos
aqui a cidadania construída através de “um conjunto de comportamentos” que
caracterizam o cidadão, isto é, aquele que segue tais premissas – no caso o uso
do uniforme – é considerado cidadão e aqueles que não apresentam tal conduta
são marginalizados “seja por falta de interesse, seja por falta de
possibilidade” (Ferreira & Castellani Filho, 2012, p. 138).
Além disso, pudemos acompanhar nessa escola que os alunos
possuem muito mais deveres, no sentido da normatização do
comportamento/enquadramento social, limitando a construção de cidadania, que
prevê também direitos a esses alunos e, principalmente, espaços de discussões
para esses discentes questionarem, terem autonomia e liberdade de se expressar
dentro da escola, tendo voz e vez nos processos decisórios, recuperando o
protagonismo desses sujeitos (Rifiotis, 2007). Conforme apontam Maia e Pereira
(2014, p. 619), a cidadania “não é um status a
ser conquistado por quem assimila e incorpora em sua prática certos padrões de
comportamento, mas sim uma forma de ser e estar no mundo que desde sempre
transparece na existência dos indivíduos”.
A segunda questão se refere ao controle do tamanho do short
utilizado pelas alunas. É certo que temos regras e é importante sabermos como é
indicado nos vestir em determinados lugares e/ou situações, entretanto, esse
controle excessivo evidencia o machismo ainda presente nessa instituição
escolar. Relembramos aqui um caso ocorrido no ano de 2016, numa escola privada
de Porto Alegre/RS, no qual alunas realizaram uma mobilização pelo uso de
shorts, criando uma petição online “Vai ter shortinho, sim”5. As alunas relataram situações de constrangimento: “tem
vários casos de meninas que já foram retiradas da sala de aula, e pediram que
elas vestissem uma calça de moletom ou que fossem para casa, porque com aquela
roupa não dava para ficar”6, situações semelhantes às presenciadas na escola
pública pesquisada. Nesse sentido, compartilhamos com o que elas pleiteiam na
petição: “que a instituição deixe no passado o machismo, a objetificação e
sexualização dos corpos das alunas e a mentalidade de que cabe às mulheres a
prevenção de assédios, abusos e estupros”7.
Em contrapartida, na escola privada, o uso do uniforme no
ensino médio é facultativo. Portanto, os alunos vestiam o que desejavam, alguns
usavam o uniforme, outros não, sem julgamentos entre eles e sempre com muito
respeito (independentemente, por exemplo, de as alunas virem ou não com shorts
curto – o que era proibido na escola pública). Pudemos observar que o uso
facultativo do uniforme permitia uma valorização das identidades e
diversidades, proporcionando sentimento de pertencimento por parte dos alunos.
A indumentária é um símbolo de comunicação que facilita na constituição dos
grupos no estabelecimento de relações sociais e na busca do pertencimento (Costa
& Pires, 2007).
Sem o uso obrigatório do uniforme, os estudantes podem se
vestir da maneira que querem e têm a oportunidade de mostrar suas identidades,
com mais liberdade de expressão (Costa & Pires, 2007). Nesse sentido, ao
longo do trabalho de campo observamos nas salas e nos corredores uma grande
diversidade de alunos, com perfis diferentes, que se vestiam e se expressavam
de formas diferentes. Nesse universo, fica muito claro que todos buscam se
respeitar e coexistem com as diferenças; e isso é a diversidade, como observa
Sodré (2006). Não ficou claro em nenhum momento discriminação ou exclusão de
forma evidente. Os estudantes se agrupam de acordo com suas afinidades, mas
mesmo nos grupos, os alunos são heterogêneos, não se percebe uma constante no perfil
e, quando necessário, interagem com os demais sem problemas e com respeito. O
professor de sociologia Leonel (9/07/2018) comenta:
Eu acho muito legal essa abertura que a escola dá para a
pluralidade assim. Eu já ouvi de muitos alunos que se sentem mais à vontade
aqui do que em outras escolas. [...] Sobre a sexualidade eu acho muito legal o
jeito que a [escola] aborda, principalmente o jeito que os colegas lidam entre
si assim. Claro que rolam coisas tristes, tipo comentários que rolam em
qualquer lugar, mas ao mesmo tempo eu vejo que eles têm liberdade. Eu vejo os
alunos muito à vontade e a gente têm alunos trans, alunos gays e tudo mais, eu
vejo na [escola] isso um ponto muito alto. Parece que aqui se concentra essa
galera que não se adaptou nessas escolas e eu acho isso fantástico.
Essa fala do professor diz respeito a uma realidade muito
interessante que acontece nessa escola: o entendimento do cotidiano dos jovens
como forma de desenvolver a cidadania, que auxilia na intervenção, atuação e
interação com os alunos, “a partir de suas realidades, de seus momentos de
convívio no ambiente escolar, de suas falas, de seus grupos e de suas
diferentes formas de interação”, compreendendo um pouco mais sobre a vida
destes alunos, para além da sala de aula (Costa & Pires, 2007, p. 52). Uma
vez que os alunos “convertem o espaço escolar em um lugar para encontrar os
amigos, sair de casa, construir suas identidades” (Stecanela, 2016, p. 354),
sendo um momento de constituição “das relações sociais com múltiplas mediações
e interesses, voltados para as necessidades pessoais e os vínculos sociais e
afetivos” (Costa & Pires, 2007, p. 63). Nesse sentido, interpretamos que na
escola privada
[...] a intervenção educativa que tenha a aprendizagem da
cidadania como objetivo é, ela própria, um projeto politicamente comprometido:
porque cria condições para a expressão e escuta da voz dos participantes,
capacitando-os enquanto atores ativos e valorizando a diversidade de formas em
que essa voz se pode expressar, porque encoraja a expressão de dissensões e
pluralismo, e porque afirma o direito dos alunos e dos professores a tomarem
decisões e exercerem poder sobre a suas próprias vidas na escola, reconhecendo
que, para além das oscilações das políticas educativas, a vivência e o aprofundamento
da democracia são tarefas inevitáveis no cotidiano escolar. (Menezes &
Ferreira, 2014, p. 144).
Portanto, o cotidiano do aluno, seu convívio no espaço
escolar e suas construções de vínculos sociais e afetivos também são elementos
que devem ser levados em conta na construção da cidadania, e não ignorados como
foram historicamente.
Através do
que acompanhamos ao longo do trabalho de campo, fica evidente a forte presença
de regras e normas da escola pública. A supervisora comentou que a implementação
de regras por vezes ainda é difícil, que hoje elas são aceitas, mas se demorou
uns três anos para firmá-las (Julia, 12/07/2018). Nesse sentido, Boto (2018, p.
157-158) contribui que a escola “cumpre missão civilizadora”, por isso tem a
necessidade de “formar hábitos que tornem bem comportada a meninice”, ensinando
“padrões de pudor, de vergonha e de autocontrole; os quais, por suposto,
deveriam regular o comportamento adulto”. A supervisora afirma que isso também
é uma questão de cidadania, bem como a professora de sociologia entrevistada,
que acrescenta:
É uma
instituição e vai ter regras e eles têm que trabalhar com isso, com essas
questões também porque na sociedade em que a gente vive tem regras, tem leis a
serem cumpridas, podem ser questionadas, mas tem que ser cumpridas, podem ser
mudadas. (Eliza, 10/07/2018).
A professora diz na entrevista o que até então não havia
sido dito: que as regras na escola “são colocadas em reunião com os pais, com a
comunidade escolar e alunos todo início de ano; então é de conhecimento, é de
participação, a comunidade escolar participa, concorda ou não concorda e é de
conhecimento de todos” (Eliza, 10/07/2018). Entretanto, nas observações isso
não foi constatado, visto que não estivemos na
escola em período integral e a inserção nela ocorreu após o início do ano
letivo. Apesar disso, pensamos que o diálogo, a problematização e o
questionamento sobre as regras são importantes para que os alunos compreendam, se conscientizem e tenham a
liberdade de se expressar e ter voz dentro da escola, para além de uma reunião,
construindo, assim, sua cidadania. Corroborando com isso, Leão e Santos (2018,
p. 792) apontam que, para os alunos, os espaços de participação representativa
em órgãos colegiados “assumiam um papel meramente formal para referendar
decisões já encaminhadas”, sendo que os estudantes “chamavam atenção para o
fato de que a participação e tudo que a envolvia (interação, negociação,
respeito às regras) deveriam ser vistos como um aspecto central do processo
educativo escolar”, ou seja, de formação e desenvolvimento da cidadania.
A docente
contribui dizendo que a escola apresenta “uma certa rigidez, uma certa
disciplina, no entanto é uma escola que é bastante elogiada na sua forma
organizada, a impressão que dá é que ela traz uma organização maior” (Eliza,
10/07/2018), e isso, de fato, pode ser facilmente observado ao entrar e
frequentar a escola. A professora acrescenta que “por incrível que pareça, os
nossos adolescentes eles querem alguns limites [...] é necessário que haja esse
direcionador” (Eliza, 10/07/2018). Aponta que é importante até mesmo quando uma
regra é questionada, pois
[...] isso é
cidadania também, é tu saber que grande parte da maioria da comunidade escolar
optou pelo uniforme, por exemplo, pelo rigor do horário, por sentido de
segurança, é mais seguro para o aluno estar de uniforme na rua hoje, é mais
seguro para o aluno esta questão da rigidez de horário, é mais produtivo para
as aulas, os alunos entram naquele horário e não tem interrupção nem nada. (Eliza,
10/07/2018).
De acordo com
Boto (2018, p. 157), a escola tem um rito, a partir de sua cultura escolar, e
tem também sua transgressão, pois “onde há norma, há resistência. Há conflito.
Há sempre os que buscarão burlar a regra. E há, ainda, os que desconhecem a
regra”, devendo a escola como rito “ensinar e recordar as normas e as regras de
vida coletiva, até para ensaiar com as gerações novas o rito da vida em
coletividades”. Para além disso, debater, discutir e construir cotidianamente e
coletivamente essas normas e regras. Conforme a fala da professora Eliza, a
rigidez com o uso do uniforme e horário de entrada e saída foi votada e
escolhida por todos (direção, professores, pais e alunos – de acordo com o
papel formal), por questões que extrapolam o estar na escola, mas também pela
segurança. Ponderando sobre a questão do uniforme, Beck (2014, p. 143) afirma
que ao longo da história o fator segurança retomava a obrigatoriedade do uso do
mesmo, pois, assim, “logo se promoveria a identificação dentro e fora das
escolas com os/as estudantes devidamente uniformizados”.
A docente
afirma: “Então é uma instituição com suas regras, bem como todas as
instituições que têm, bem como a nossa própria sociedade que tem leis [...]
tanto no sistema privado, como público, [...] isso também faz parte da
construção da cidadania” (Eliza, 10/07/2018). Além disso, a professora reitera
que quando o aluno é confrontado com a regra, com o limite, percebe “que na
verdade é um ensaio também dentro da construção desse cidadão, que vai ter que
seguir regras nessa sociedade e ao mesmo tempo é um espaço democrático, ele
pode questionar e ele pode entender ou não entender” (Eliza, 10/07/2018).
Durante as observações interpretamos que essa docente era uma das poucas que
abria espaços de discussões e questionamentos, o que nos leva a pensar que essa
deveria ser uma atitude adotada por todos os docentes.
A construção
de “normas de disciplinas e de organização da escola, com a participação direta
dos/as estudantes” é defendida pelas diretrizes nacionais para educação em
Direitos Humanos (Brasil, 2013, p. 48). Portanto, por um lado, temos uma escola
pública que tem como característica marcante as regras, assim como propõe essas
diretrizes, com a participação dos alunos e comunidade escolar (pelo relatado
nas entrevistas e encontrado no PPP). Por outro, temos uma escola privada com
maior flexibilização quanto às normas, diálogo e construção diária das mesmas.
Ambas funcionam dentro de suas organizações escolares e, pelo que parece,
suprem as necessidades de seus alunos e da comunidade escolar que integram.
Acreditamos que os extremismos não são saudáveis para a construção da
cidadania, por isso defendemos que na escola pública merecia haver um diálogo
mais aberto, provocando questionamento nos alunos, até mesmo na instituição das
regras, uma vez que é:
Preciso
acreditar que cada sujeito pode contribuir para construção das regras de
convívio coletivo e não simplesmente cumpri-las. [...] Deve ser um espaço de
encontro, de estímulo à sociabilidade, que permita vivenciar a construção
coletiva das normas, criando estratégias de acesso, pertencimento, permanência
e qualidade, pautadas no respeito ao outro e na inclusão de todos. (Costa &
Pires, 2007, p. 64).
Portanto, os
alunos também têm a capacidade e a vontade de contribuir nesses processos
decisórios, não apenas através da participação – formal – representativa em
órgãos colegiados, mas sendo reconhecidos como atores legítimos nas discussões
sobre os rumos da escola (Leão & Santos, 2018). Dentre as dificuldades para
se desenvolver a cidadania no âmbito escolar, Stecanela (2016, p. 353) aponta
para a “força das culturas que adentram a escola e desestabilizam práticas
distanciadas de diálogo”, como observado na escola pública. Além disso, os
alunos reivindicam que o ambiente escolar seja “um tempo e um espaço de
exercício de cidadania, através do qual acreditam ter o que dizer e com o que
contribuir para a escola se aproximar de suas expectativas” (Stecanela, 2016,
p. 353). Ainda que a formação cidadã e o fomento à autonomia dos alunos estejam
presentes nos princípios e nas formulações das propostas pedagógicas, se
verifica muitas resistências na efetivação de práticas pedagógicas e
organizacionais que os concretizem (Leão & Santos, 2018). Nesse sentido, vale
lembrar que educar para cidadania compreende o “cultivo de valores socialmente
acordados, não numa tentativa de homogeneizar os sujeitos aprendentes, mas de
resgatar características que são genuinamente humanas” (Trevisan, 2009, p.
107).
4.
Conclusão
Buscando
analisar os desdobramentos da cidadania na dimensão do cotidiano escolar
compreendemos a forte influência da cultura escolar, seja no sentido da
instituição escola em si, seja nos recintos analisados em específico. Em vista
disso, fica evidente que a escola pública partilha de uma cultura já instituída
na sociedade que caracteriza a escola, por meio da sua organização e do método
tradicional de ensino, como também possui certa cultura na cidade em que se
localiza, por meio de sua história e tradição na região. Em contrapartida, a
escola privada com a mudança para as metodologias ativas e colaborativas e
reorganização do seu espaço e funcionamento escolar, acabou por reconstruir
essa cultura, iniciando a formulação de outros arranjos, combinações e decisões.
Dessa forma, alunos, professores e comunidade estão aprendendo nesse processo.
O fator que
mais chamou atenção foram as regras de convívio social presentes no cotidiano
escolar, que são muito discrepantes entre os contextos estudados, já que na escola
pública apresentam-se bem definidas e rígidas e na escola privada apresentam-se
flexíveis. Na escola pública, pudemos acompanhar que a visão predominante é de
que as regras são necessárias porque no trabalho e na sociedade os alunos terão
que seguir regras, enquanto que na escola privada a lógica também segue essa
perspectiva, mas de uma maneira distinta, já que os alunos deverão ter
conhecimento e consciência das normas da sociedade e trabalho, sem ninguém vir
cobrá-las, projetando esse aluno mais autônomo e responsável por seus atos.
Na escola
pública, a existência dessas regras parece ocorrer muito mais no sentido de
dever do que de convívio, de obrigação de determinada conduta de comportamento
de acordo com as normativas e de enquadramento do comportamento social nesse
modelo estipulado, o que acaba limitando a cidadania plena. Na escola privada
há muito diálogo, construção, questionamentos e autonomia dos alunos para se
expressarem dentro da instituição, desenvolvendo o protagonismo do aluno, da construção
da escola, fomentando a possibilidade de se desenvolver socialmente e de ter
voz e vez na construção diária da escola e da sua formação.
Fica evidente
que ambas as formas de lidar com o cotidiano escolar, a partir de normas,
funcionam nos respectivos lugares, tornando-os organizados dentro de suas
estruturas. Entretanto, frisamos que ainda assim o diálogo com o aluno na
escola pública poderia ser mais estimulado e aberto para uma construção de
cidadania que encare os sujeitos com sua voz, alteridade e identidade. Na
escola privada, o novo modelo que flexibiliza normas e perspectiva o aluno como
autônomo, precisa ser melhor delineado para que todos os envolvidos (alunos,
professores, equipe diretiva e pais) possam compreender e contribuir, tomando como
ponto de partida a elaboração do PPP.
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1 O
presente trabalho contou com apoio financeiro da CAPES - Código de
financiamento 001 para sua realização.
2 Cujos critérios de seleção estão explícitos
na metodologia.
3
Importante ressaltar que a escola privada tem uma versão do PPP datada de 2007
em seu site. Considerando que a escola modificou toda sua metodologia e, por
orientação da direção, esse PPP deveria ser desconsiderado, já que o novo
estava em construção e não pôde ser fornecido, pois não é de domínio público.
Dessa forma, fomos orientados a utilizar o que consta no guia do aluno e também
no site.
4
No inverno, o Vale do Sinos/RS registra temperaturas próximas de zero grau.
5 Notícia: Alunas fazem mobilização pelo uso
de shorts em escola de Porto Alegre (25/02/2016). Disponível em: <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2016/02/alunas-fazem-mobilizacao-pelo-uso-do-shorts-em-escola-de-porto-alegre.html>. Acesso em: 1 out. 2018.
6
Fala de Marina Stein, estudante entrevistada pela reportagem.
7
Texto elaborado pelas meninas na petição online “Vai ter shortinho, sim”.
Como citar (APA): Dieder, J.A., Zucchetti,
D.T., Wittizorecki, E.S. & Sanfelice, G.R. (2021). A cidadania na formação de jovens do ensino médio na dimensão do
cotidiano escolar de escolas de Novo Hamburgo/Brasil. Revista Iberoamericana de Educación, 85(2),119-139.
https://doi.org/10.35362/rie8523686 |