https://doi.org/10.35362/rie8514057 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653

Revista Iberoamericana de Educación (2021), vol. 85 núm. 1, pp. 205-225 - OEI

recibido / recebido: 29/09/2020; aceptado / aceite: 09/12/2020

 

Planificar (n)o ensino à distância: opções pedagógico-curriculares para o 1.º Ciclo

Pedro Duarte 1 ; Ana Isabel Moreira 2

1 Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto (ESE), Portugal; 2Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM), Portugal

Resumo. 2020 está a ser marcado por uma situação de pandemia que implicou a reorganização de múltiplas atividades sociais, nomeadamente dos processos educativos. Perante este cenário extraordinário, em Portugal, os estabelecimentos de ensino foram encerrados e a atividade pedagógica continuou na modalidade de ensino à distância. Professores e demais agentes educativos tiveram que, com celeridade, reestruturar as dinâmicas já planeadas para a promoção de aprendizagens junto dos estudantes. Com base nesses pressupostos, as editoras de manuais escolares criaram diferentes materiais didáticos digitais que facilitassem aquela ação profissional docente, destacando-se as planificações para as várias semanas de aulas dali em diante. Na verdade, a influência de tais organizações nas práticas pedagógicas é, atualmente, inegável. Assim, neste trabalho, tomou-se como corpus empírico um conjunto de 16 planos de aula semanais, atendendo às suas potencialidades pedagógico-curriculares no ensino à distância do 1.º Ciclo do Ensino Básico, disponibilizados por duas editoras portuguesas, aos quais foi possível aceder gratuitamente, por meio digital. Em parte, estes recursos vão sugerindo um trabalho pedagógico algo divergente de uma ideia de currículo integrado, marcado pela passividade na aprendizagem e pela depreciação da avaliação. Mas, numa situação praticamente inédita, os mesmos testemunham mais uma solução (tecnológica) relevante para aquela etapa formativa.

Palavras-chave: 1.º Ciclo do Ensino Básico; currículo; planificação; ensino à distância.

Planificar la enseñanza a distancia: opciones pedagógico-curriculares para la Primaria

Resumen. El año 2020 se está caracterizando por una situación de pandemia que ha supuesto la reorganización de múltiples actividades sociales, incluidos los procesos educativos. En Portugal se cerraron los establecimientos educativos y se continuó la actividad pedagógica en forma de enseñanza a distancia. Los maestros y otros agentes educativos habían de reestructurar la dinámica ya prevista para la promoción del aprendizaje entre los estudiantes. Los editores de libros de texto crearon diferentes materiales didácticos digitales que facilitarían esa acción docente, destacando los planes para las varias semanas de clases. De hecho, la influencia de esas organizaciones en las prácticas educativas es innegable hoy en día. Así, en este artículo se tomó como corpus empírico un conjunto de 16 planes de lecciones semanales, dado su potencial pedagógico-curricular en la enseñanza a distancia de Educación Primaria, puesto a disposición por dos editoriales portuguesas, a las que se podía acceder, gratuitamente, por medios digitales. En parte, estos recursos sugieren un trabajo pedagógico algo diferente de una idea de currículum integrado, marcado por la pasividad en el aprendizaje y la depreciación de la evaluación. Pero, en una situación prácticamente sin precedentes, son testigos de otra solución (tecnológica) relevante a esa etapa formativa.

Palabras clave: Educación Primaria; currículum; planificación; enseñanza a distancia.

Planning distance learning: pedagogical-curricular options for the 1st Cycle

Abstract. The year 2020 is being marked by a pandemic situation, which brought the reorganization of multiple social activities, namely the educational processes. In Portugal, schools and other educational establishments were closed, and the pedagogical activity continued in a distance learning modality. Teachers and further educational agents had to restructure the already planned dynamics for the promotion of the student’s learning. The publishers of school textbooks created different digital didactic materials that could facilitate the professional action of teachers, with highlights to the plans for the various coming weeks of classes. In fact, the influence of such organizations in the pedagogical practices is, nowadays, undeniable. Thus, the empirical corpus taken here was a set of 16 weekly class plans, with focus on their pedagogical and curricular potentialities for distance learning in the 1st cycle of Basic Education, which were made available by two Portuguese publishers, and to which it was possible to access digitally, for free. Partly, these resources suggest a pedagogical work somewhat divergent from an idea of integrated curriculum, marked by the passivity in learning and by the depreciation of the evaluation. However, in a virtually unprecedented situation, the same are a testimony of another relevant (technological) solution for that formative stage.

Keywords: 1st cycle of Basic Education; curriculum; planning; distance learning.

1.    Introdução

Em qualquer circunstância é expectável que os contextos educativos sejam capazes de se adaptar, e corresponder, às exigências sociais surgidas. Sejam elas de cariz mais formativo, e voltadas para a relevância dos conteúdos ou para as potencialidades das competências ou, ainda, para a necessidade das emoções, sejam elas provenientes de uma dimensão mais prática e, por exemplo, inerentes ao uso desenvolto das tecnologias dentro e fora da sala de aula.

O ano de 2020, ainda em curso, trouxe dessas demandas, com a particularidade de tal ter acontecido de um momento para o outro. Sem aviso, sem preparação, sem margem para se contornar o ‘obstáculo’. De facto, escolas, professores, alunos, editoras, encarregados de educação tiveram, em todo o mundo e por razão da pandemia declarada pela Organização Mundial de Saúde1, de se adaptar a um processo de ensino e de aprendizagem que haveria, agora, de sobretudo se adjetivar como ‘tecnológico’, ‘digital’, ‘à distância’, …

Nesta conjuntura internacional, mas com foco nas dinâmicas específicas do 1.º ciclo do Ensino Básico português, o artigo nas próximas páginas desenvolvido pretende dar conta de certas características de materiais pedagógico-curriculares (em exclusivo, planificações semanais) que, como resposta quase imediata ao cenário implantado, as editoras nacionais conceberam e colocaram à disposição dos diferentes agentes educativos. O intuito não é, longe disso, adotar um tom avaliativo. Antes é fazer uma súmula reflexiva, cruzando esses dados empíricos e as perspetivas conceptuais corroboradas, das estratégias e recursos didáticos mais ou menos considerados, das opções digitais privilegiadas, das dimensões curriculares integradas ou esquecidas, do papel atribuído a professores e alunos envolvidos e das aprendizagens mais ou menos potenciadas.

Tal objetivo geral decorrerá de uma questão investigativa mais concreta: que conceção pedagógico-curricular se evidenciou pelas planificações semanais (do 1.º Ciclo do Ensino Básico) desenhadas editorialmente para o ensino à distância?

A eventual resposta à mesma, e que adiante se apresentará, não deixa, em momento algum, de reconhecer a complexidade de uma ação que, por parte das diversas instituições envolvidas no âmbito da Educação, se teve de pautar pela celeridade do que é ‘para ontem’, pela adaptabilidade ao imprevisível, pela necessidade de ‘chegar a todos e a cada um’.

2. Apontamentos conceptuais

2.1 Desenvolvimento curricular: do formal ao experienciado

Como tem sido amplamente sustentado por múltiplos autores (Diogo, 2010; Moreira & Duarte, 2019a; Pérez Gómez & Gimeno Sacristán, 2008; Viana & Peralta, 2020), o currículo, ainda que seja um conceito marcado por certa elasticidade conceptual (Gimeno Sacristán, 2015), é um elemento estruturante nas experiências de educação formal.

Considerando o foco e a extensão do presente texto, apontam-se, entre os diferentes contributos deste campo de estudos, três elementos especialmente relevantes e que serão aprofundados nos parágrafos seguintes: i) a relação entre o currículo e a seleção e organização do conhecimento escolar; ii) as dinâmicas de desenho e desenvolvimento curricular; iii) o(s) processo(s) de planificação curricular e sua relação com a aprendizagem.

Partindo das conceções de, por exemplo, Paraskeva (2011) ou Young (2016), o currículo surge implicitamente associado ao conhecimento escolar. Por sua vez, Roldão (2020, p. 76) liga-o a “um determinado corpus de conhecimento”. Talvez de uma forma mais extensiva, numa perspetiva um pouco diferente, sobressai uma aparente sobreposição entre currículo e conteúdos escolares (Gobby, 2017). Efetivamente, parece emergir, em algumas circunstâncias e de modo mais claro, uma justaposição entre o conceito ‘currículo’ e o conceito ‘programa’, confirmando-se, então, a intrínseca ligação entre aquele primeiro e a definição das disciplinas (escolares) e vinculando-se o mesmo a um processo de seleção cultural limitada (Gimeno Sacristán, 2015).

Importa destacar que o conhecimento escolar a que o início do parágrafo anterior alude não se circunscreve aos saberes de conteúdo. Quando se incorpora uma dimensão cultural no currículo, o mesmo torna-se suscetível a outras influências, nomeadamente axiológicas e ontológicas, inevitáveis em qualquer projeto e ação educativos (Dias de Carvalho, 2002). A par do indicado, pode relacionar-se o currículo com um entendimento amplo das aprendizagens escolares (Diogo, 2010; Pérez Gómez & Gimeno Sacristán 2008), pelo que, sem desconsiderar os conhecimentos específicos de cada área de estudos, deverão ser igualmente tomados em atenção saberes comportamentais, atitudinais, ético-morais, entre outros.

Contudo, ressalva-se que, até pelos enquadramentos conceptuais mais clássicos, o currículo não se limita à seleção do que deve ser ensinado. Na realidade, a história deste campo de estudos possibilita compreender que, de forma complementar àquela decisão, o currículo interage, muito proximamente, com o modo como esse conhecimento é organizado (Clemente Linuesa, 2012; Doll Jr., 1989; Gobby, 2017; Viana & Peralta, 2020). A este propósito, e recuperando alguns outros contributos, os sistemas educativos ocidentais têm consolidado, e por isso legitimado, estruturas de organização curricular assentes no pensamento moderno, através das quais a experiência escolar - que, no seu essencial, é similar para as diferentes crianças - é entendida como uma sucessão de etapas pré-definidas e enformada em disciplinas que, genericamente, são pouco comunicantes entre si (Aoki, 2004; Torres Santomé, 2015).

Os dois aspetos acima referidos – seleção e organização de saberes –, quando concebidos de modo isolado, subscrevem entendimentos mais formais do currículo, circunscrevendo-o a uma ideia de produto (Kelly, 2004) ou de currículo como plano (Aoki, 2004). Tais enquadramentos privilegiam uma conceção que se restringe ao pré-estabelecido por alguém, por exemplo, aos documentos oficiais. Como explicitam Pérez Gómez e Gimeno Sacristán (2008), essas correntes teóricas originam uma dissonância e uma artificial separação entre o currículo e a ação pedagógica e/ou a experiência escolar.

Atualmente, e asseverado por vários autores (Clemente Linuesa, 2012; Diogo, 2010; Doll Jr., 1989; Gobby, 2017; Moreira & Duarte, 2019a; Paraskeva, 2011; Viana & Peralta, 2020), o conceito de currículo não pode ser dissociado das práticas pedagógicas, das experiências efetivas de cada estudante e, inevitavelmente, daquelas que são, de facto, as suas aprendizagens. Nesse sentido, a reflexão em torno do currículo:

tem de contemplar não só a prática de ensino dos professores, mas também todas as condições do ambiente de aprendizagem, […]: relações sociais na sala de aula e na escola, utilização de manuais escolares, efeitos resultantes das estratégias de avaliação, etc. (Gimeno Sacristán, 2015, p. 982).

Com efeito, o desenvolvimento dos processos de ensino e de aprendizagem assume especial relevância, no âmbito em análise, não sendo possível ignorar o modo como cada um, pela sua experiência educativa, também vivencia o currículo (Aoki, 2004). Este aspeto adquire particular destaque ao considerar-se cada ato docente ou cada ação praticada pelos estudantes, por si só e independentemente dos seus propósitos, como resultado de conceções filosóficas e pedagógicas (Dias de Carvalho, 2002) que marcam e influenciam a aprendizagem (Pérez Gómez & Gimeno Sacristán, 2008). Por outras palavras, nenhuma ação didatico-pedagógica contribui somente para a aprendizagem de determinado conteúdo, uma vez que as estratégias escolhidas ou os recursos mobilizados promovem, de modo implícito, porventura oculto, aprendizagens de outra natureza (como o individualismo ou a cooperação, por exemplo).

Ao introduzir a vivência escolar, e real, dos estudantes naquilo que é o currículo, concomitantemente tem de reconhecer-se, em relação ao mesmo, a influência de múltiplos agentes e não apenas o papel dos decisores do currículo oficial. Desta forma, e dialogando de novo com Aoki (2004), torna-se insuficiente associar os docentes à mera ideia de implementação curricular, pois tal perspetiva, desde logo de hierarquização do processo, favorece sobretudo um entendimento de subalternização daqueles face a decisões tomadas por outros. Num sentido distinto, e recuperando os trabalhos de autores vários (Clemente Linuesa, 2012; Gimeno Sacristán, 2015; Gobby, 2017; Moreira & Duarte, 2019a), sublinha-se que os agentes educativos locais, em particular os professores, têm de ser encarados como profissionais fundamentais para as dinâmicas de desenvolvimento curricular, uma vez que a sua decisão (individual e/ou coletiva) assume um inegável contributo na definição de modos de ensinar e, ainda, nas reais aprendizagens dos alunos.

A par do referido, constata-se, também, a influência de outras estruturas sociais, como as organizações profissionais e científicas ou as instituições locais, nesses processos de desenvolvimento curricular. Para o presente trabalho será necessário aclarar, pelo menos em parte, o papel mais concreto das editoras (de livros didáticos). As mesmas constroem artefactos educativos que podem ser apelidados de currículo apresentado (Diogo, 2010). Efetivamente, esses ‘produtos’ criados assumem-se, por vezes, como os eixos de mediação mais relevantes entre os docentes e o currículo prescrito/oficial, sendo incontornável a sua interferência na conceptualização de currículo que estes agentes educativos vão perfilhando e, por inerência, no desenrolar da sua atividade profissional (Pérez Gómez & Gimeno Sacristán, 2008).

Nesta linha de pensamento, Apple (1989) explicou que os recursos idealizados e concretizados pelos editores (como os livros didáticos) instituem-se como uma construção cultural e curricular francamente importante, porque, com recorrência, os professores, e outros agentes sociais, conferem-lhes maior relevância e legitimidade quando comparados com aqueles que são desenvolvidos ou por instituições de ensino superior ou por organizações políticas. Convergindo com esta ideia, Gimeno Sacristán (2013) explicita que, no seu entender, as práticas pedagógicas se encontram, na contemporaneidade, alicerçadas na programação/organização sugerida pelo manual escolar, que não só estabelece os elementos culturais a serem estudados, como orienta as estratégias didáticas e disponibiliza os recursos pedagógicos que consubstanciam a experiência escolar.

O apresentado no parágrafo anterior induz um outro aspeto a apontar: uma relação cada vez mais estreita entre a ação editorial (para um país, no geral) e as decisões curriculares tomadas por cada professor ou coletivo de profissionais (às vezes, pouco diferenciadas de contexto para contexto, a nível local). E dada a proliferação de outros materiais construídos pelas editoras de manuais escolares, que em muito ultrapassam o simples livro didático e já incluem sugestões de planificações, recursos digitais, fichas de avaliação modelo, … , será difícil não subscrever aquela ideia.

Pese embora o lugar (entretanto) ocupado por tais constructos culturais, o processo de planificação curricular continua a deter uma notória relevância nas realidades escolares (Clemente Linuesa, 2012; Doll Jr., 1989; Kelly, 2004; Moreira & Duarte, 2019a; Pérez Gómez & Gimeno Sacristán, 2008; Viana & Peralta, 2020). De acordo com os textos dos diversos autores mencionados atrás, é possível associá-lo a um processo de reflexão sobre a docência e, em certa medida, a uma previsão não-determinista, singular e flexível (de uma aula ou de uma unidade didática) que, entre outros elementos, implica pensar sobre:

a) o que ensinar e o que aprender, naquele período de tempo, para se promover uma efetiva interação e articulação dos saberes e das tarefas;

b) as ações do(s) professor(es) e dos alunos, assim como as suas justificações pedagógicas e axiológicas;

c) as condições (temporais, locais, de orientação da sala, ...) e os recursos necessários que convergem com as estratégias delineadas;

d) a concretização da avaliação das (e para as) aprendizagens e a reflexão sobre as suas implicações educativas e éticas.

2.2 O 1.º Ciclo do Ensino Básico: breves notas

O 1.º Ciclo do Ensino Básico, em Portugal, tem uma função social e pedagógica muito particular, sendo caracterizado por especificidades curriculares, profissionais e organizacionais que são marcas distintivas deste nível de ensino. A este propósito, Moreira e Duarte (2019b, p. 17) afirmam que:

não é possível negar a relevância educativa e social deste nível de ensino e dos seus docentes, uma vez que, durante muitos anos, o 1.º Ciclo se afirmou como estruturante (quase exclusivo) na difusão da cultura e da aprendizagem […]. [Associou-se a] uma função social de suma importância, conferindo a todos a possibilidade de aprender e desenvolver as suas competências elementares, a partir das quais todos os conhecimentos e capacidades subsequentes se sustentarão.

Face ao citado, compreende-se aquela como uma etapa matricial para a formação dos indivíduos. Tal como explicitado na Lei de Bases do Sistema Educativo (português), o 1.º Ciclo, ao longo dos quatro anos que o compõem – do 1.º ano (6 anos de idade) ao 4.º ano (9/10 anos de idade) –, assume um propósito pedagógico assente num entendimento globalizante da aprendizagem e do saber. Esclarece-se, ainda, e dado o recente enquadramento normativo nacional (Decreto-Lei n.º 55/2018), que o nível de ensino em causa contempla 9 componentes curriculares comuns a todos os estudantes, independentemente da instituição educativa frequentada: Português (7 horas semanais), Matemática (7 horas semanais), Estudo do Meio (3 horas semanais), Educação Artística e Educação Física (num total de 5 horas semanais), Apoio ao Estudo (de 1 a 3 horas semanais), Inglês (apenas para o 3.º e 4.º anos, 2 horas semanais), Cidadania e Desenvolvimento (transversal) e, por último, Tecnologia de Informação e Comunicação (transversal).

Atentando nas características mencionadas acima, torna-se plausível associar àquele ciclo primeiro uma conceção mais generalista da ação do professor, que interage com um conjunto diversificado de saberes disciplinares, e, por conseguinte, um entendimento mais articulado, e até integrado, do currículo (Alonso, 2002; Roldão, 2001; Rosales López, 2012). Na realidade, não sendo possível assumir a ideia de currículo integrado como uma estrutura curricular universalmente adequada (Aoki, 2004), as suas potencialidades são reconhecidas, e encontram-se já amplamente sustentadas. Ao mesmo tempo, será redutor restringi-lo aos níveis iniciais de ensino (em Portugal ou em qualquer outro país do mundo), mas não deixa de ser em relação a essa etapa formativa que existe uma história e uma prática de integração mais consolidada.

Na sequência daquela última ideia, podem elencar-se, desde logo partindo de contributos investigativos concretos (Alonso, 2002; Torres Santomé, 2015), duas razões justificativas do significativo impacto de um currículo integrado no 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Para começar, a ideia de integração tende a contrariar uma matriz curricular estruturada em torno da disciplinarização do conhecimento e da aprendizagem, valorizando, num outro sentido, uma abordagem pedagógica que potencia uma perceção mais global do saber, enquanto opção interativa para compreender a realidade e nela agir. Depois, o currículo integrado pressupõe, ainda, uma relação próxima com a vida do estudante, assumindo-se uma lógica, distante da uniformidade e da homogeneização curricular, de valorização de cada aluno na construção e desenvolvimento do currículo. Esta última asserção é particularmente pertinente no 1.º Ciclo, visto que, como referem investigadores também focados nesse nível de ensino, a experiência ali vivenciada não poderá desconsiderar a necessidade, tanto pelas suas esfericidades curriculares, como pela idade dos indivíduos, de se desenvolver um trabalho de proximidade com o contexto e as famílias dos estudantes (Moreira & Duarte, 2019b; Rosales López, 2012). A centralidade, que não se sustenta num ponto de vista individualista, residirá, assim, no aluno e nas suas interações sociais.

Os aspetos brevemente esclarecidos não são os únicos que caracterizam o nível de ensino contemplado para esta pesquisa. Com efeito, há um conjunto de outras marcas diferenciadoras a ter em conta, nomeadamente, as dimensões organizacionais das escolas do 1.º Ciclo, os seus propósitos formativos mais distintivos, as especificidades didáticas e os recursos requeridos, a relação pedagógica estabelecida ou, até, a proximidade afetiva entre os agentes. Não obstante as mesmas, mas fazendo sobressair as intenções principais do presente texto, o apresentado possibilita compreender como tal ciclo inicial se distingue dos restantes níveis de ensino no que concerne à dimensão curricular.

3     Metodologia

A nível metodológico, e tendo em conta os propósitos subjacentes a esta investigação, optou-se por um estudo de características exploratórias e interpretativas (Flick, 2015), facilmente associado a uma abordagem de tipo qualitativo.

Depois, e corroborando a ideia de que “a maioria das pesquisas qualitativas recorre a um desenho de estudo de caso” (McMillan & Schumacher, 2014, p. 423), a escolha recaiu sobre tal método. Neste caso, um estudo de casos múltiplos (Yin, 2018), particularmente pela possibilidade de assim se compreender, com maior complexidade, uma determinada dimensão da vida real, no âmbito educativo. Como casos representativos, para responder à questão de partida – que conceção pedagógico-curricular se evidenciou pelas planificações semanais (do 1.º Ciclo do Ensino Básico) desenhadas editorialmente para o ensino à distância? –, selecionaram-se planificações de aulas do 1.º Ciclo do Ensino Básico (em específico, de cada ano de escolaridade), definidas para duas semanas3 do período de ensino à distância, em Portugal, disponibilizadas gratuitamente (e, por isso, de fácil consulta) nas plataformas digitais de dois grupos editoriais nacionais representativos da diversidade deste meio.

Considerando que “os estudos de caso são ecléticos no tipo de dados utilizados” (Cohen et al., 2018, p. 387), aqueles documentos específicos, as planificações elaboradas pelos autores de manuais escolares que colaboram com as empresas incluídas na pesquisa, emergiram como acessíveis e ilustrativos das opções curriculares, pedagógicas e didáticas presentes nas propostas editoriais desenhadas para o ensino à distância.

No sentido de garantir a necessária confidencialidade dos vários dados mobilizados (McMillan & Schumacher, 2014), a análise do conteúdo (Bardin, 2011) das planificações assumiu contornos investigativos peculiares, também para se conferir certo sentido aos elementos ali integrados ou dali apartados.

Por outras palavras, a “validade convergente” (Cohen et al., 2018, p. 381) deste estudo é assegurada pela triangulação das leituras analíticas dos documentos concretizadas pelos dois autores. Cada um deles, individualmente, fez a sua análise prévia de cada uma das planificações selecionadas e, apenas depois, se partilharam pontos de vista, tendo sido somente considerados para o desenvolvimento do estudo os elementos (de âmbito curricular ou didático, de organização e formatação) apontados por ambos. De alguma forma, aquilo que se procurou concretizar terá sido a “triangulação de observações-chave, a fim de apoiar interpretações” ou, até mesmo, “interpretações alternativas” (Stake, 2005, p. 460).

De ressalvar, ainda, que, para essa interpretação suficientemente esclarecida dos dados coligidos, se procedeu ao seu cruzamento constante com a fundamentação conceptual base.

4. Análise e discussão dos dados

4.1 Caso a caso: uma leitura parcelar dos dados

Pelas especificidades das planificações analisadas – com traços distintivos nas propostas de cada uma das editoras consideradas – e, ainda, porque não se pretende seguir uma ideia de comparação das mesmas, optou-se pela análise descritiva e interpretativa isolada das características transversais aos planos delineados para os vários anos de escolaridade (Editora A e Editora B); depois, far-se-á uma mais abrangente integração desses tais dados alcançados.

De certa forma, discutem-se assim as tendências pedagógico-curriculares que se detetaram naqueles materiais sugeridos para o ensino à distância no 1.º Ciclo do Ensino Básico e eventuais consequências formativas daí decorrentes.

Editora A4

Em uma ou duas folhas A4, na vertical, para cada dia da semana, as planificações percebem-se, desde logo, mais distanciadas de um currículo integrado, particularmente pela fragmentação do mesmo em áreas do saber. Por isso, numa quase disciplinarização do 1.º Ciclo, apresentam-se sugestões concretas para a Matemática, o Português, o Estudo do Meio e, ainda, as Artes, a Educação Física e a Cidadania. Se, por um lado, assim se distinguem claramente os momentos, as atividades e os recursos que se vinculam a cada componente curricular, o que poderá orientar a ação autónoma dos alunos e a intervenção de encarregados de educação mais alheados das dinâmicas escolares, por outro perfilha-se uma escolha que tende a afastar aqueles mesmos estudantes de práticas promotoras de um saber globalizante e integrado, aspeto que Alonso (2002) ou Roldão (2001) afirmam como particularmente relevante no nível de ensino em análise.

De facto, complementando a perspetiva subjacente ao último ponto referido acima, nota-se que a articulação curricular não se assumiu como um aspeto de realce nas planificações, até quando, sem grandes subterfúgios, a mesma era viável. Quando, por exemplo, para o Estudo do Meio o plano incluiu o estudo da poluição, para o Português dessa mesma semana, a proposta podia contemplar, entre tantas outras possibilidades, a elaboração de um cartaz sobre a temática do meio ambiente e sua proteção. Todavia, essa proposta orientou-se, antes, para a publicitação, naquele formato, de um qualquer festival de música a acontecer em breve.

Porventura, aquela limitação identificada poderá também decorrer de uma centralidade nos vários recursos e materiais físicos e digitais disponibilizados pela editora para cada ano de escolaridade. Esta é uma opção facilmente justificada, de valorização e divulgação dos produtos próprios, mas que tem, por conseguinte, de implicar, numa outra forma de ensino (neste caso, à distância), as características dos mesmos (inicialmente pensados sobretudo para a sala de aula). Pese embora esta circunstância, importa ressalvar a tentativa de incluir naquelas planificações, pontualmente, outros recursos aos quais os estudantes, no geral, facilmente teriam acesso. Desde o #EstudoEmCasa5 até aos lenços e molduras como unidades de área, aos jornais e revistas para a leitura ou à balança para medir a massa de objetos vários. Curiosamente, uma espécie de trabalho laboratorial, ou seja, as experiências (sobre a água, o ar, a luz, …) que podiam ter o ambiente doméstico como laboratório ideal, foi, não raras vezes, substituído pela sugestão de visualização de vídeos ilustrativos das mesmas e da realização de exercícios escritos sobre “a conclusão da[s] experiência[s]”.

Em parte, as decisões editoriais tiveram de ser tomadas de uma semana para a outra, sem grande oportunidade para esboços ou ensaios depois melhorados, mas talvez o currículo real tenha assim ficado mais restrito nas suas potencialidades formativas. De certo modo, com base na ideia de que os alunos nem sempre seriam capazes de trabalhar autonomamente, acrescida das sessões síncronas em menor tempo e tantas vezes insuficientes para tudo, ter-se-ão limitado as experiências de aprendizagem dos estudantes (Pérez Gómez & Gimeno Sacristán, 2008), nomeadamente pela diminuta diversidade de materiais e estratégias pedagógicas mobilizados.

Essa diminuição do potencial do processo educativo, no que diz respeito ao desenvolvimento de competências de trabalho colaborativo, de convivência interpessoal ou de manuseamento de materiais vários, ainda se constatou nas planificações pela menção exclusiva, embora telegráfica, aos conteúdos a serem abordados em cada aula, de acordo com a área curricular respetiva. Previamente aos mesmos, em jeito de cabeçalho e para todo o ‘dia de aulas’, elencaram-se os recursos necessários. Em lugar algum daqueles documentos se indicaram possíveis competências a desenvolver, e cuja relevância é apontada por autores já antes mencionados (Gobby, 2017; Diogo, 2010), parecendo que o maior destaque se direcionou para ‘o que (ficar a) saber’.

Ainda sobre os conteúdos explicitados nos planos de aula, bem como sobre os materiais mais específicos, aponta-se um outro aspeto, também ele revelador de uma diminuta abordagem das componentes curriculares ligadas às Artes, à Educação Física e à Cidadania. Com efeito, as referências às suas aulas, ao longo da semana, são menores, para além de a elas se associarem indicações genéricas como “vários conteúdos” ou, apenas, “materiais de pintura”. Acresce o facto de, uma e outra vez, as mesmas tarefas e/ou atividades, naqueles âmbitos, serem sugeridas para anos de escolaridade distintos. Na verdade, as temáticas abordadas não precisam, obrigatoriamente, de ser distintas no 1.º ou no 4.º ano, contudo, e porque os alunos vivenciam momentos distintos do seu processo formativo (Moreira & Duarte, 2019b; Rosales López, 2012), talvez se tornasse mais profícuo, para a sua aprendizagem, a experimentação de práticas diferentes e promotoras de competências progressivamente mais elaboradas.

Atentando nas planificações da editora A, ambos os investigadores, aquando da leitura interpretativa das mesmas, perceberam um outro tópico curricular aparentemente pouco destacado – a avaliação. Ao longo do 3.º período letivo, rapidamente se reconheceu que o ensino à distância não beneficiava a continuidade do diálogo e da interação entre professores e alunos, o que, por consequência, condicionou a recolha sistematizada de dados e o juízo de valor sobre eles. Talvez por isso, os responsáveis pelos planos de aula para esse ensino à distância tenham optado, neste caso, não pela proposta de processos estruturados de avaliação, mas antes pela indicação de sugestões mais genéricas, como “feedback sobre os trabalhos realizados”. Inevitavelmente, as contingências que exigiram dinâmicas de ensino e de aprendizagem bem distantes do que qualquer sujeito previu no início do ano letivo 2019/2020 mitigaram, em relação à avaliação, as potencialidades de reflexão sobre as práticas pedagógicas e a aprendizagem dos estudantes (Kelly, 2004; Moreira & Duarte, 2019a).

No que concerne à estruturação e/ou organização formal das planificações em discussão – aspetos já brevemente aludidos no início desta análise – algumas outras notas podem ser, agora, referidas com maior pormenor.

Crê-se que para uma perceção mais imediata e intuitiva, por parte de professores, alunos e, até, encarregados de educação, a escolha recaiu sobre uma estrutura/lógica de planificação sempre igual, semana após semana. De forma muito sintética e, por vezes, difusa, aliás como acima explicitado, clarificaram-se, de cima para baixo, os recursos necessários, os conteúdos em estudo e as atividades propostas, por área curricular, para aquele dia da semana. E se para um dia se sugeriram tarefas de Matemática e Cidadania, para o outro apresentaram-se opções para Português e Educação Física. E assim por diante, com combinações várias, até sexta-feira.

Todavia, esta que, à partida, é uma característica relevante das planificações em causa, também porque definidora de um trabalho não excessivo e sistemático, poderia ser ocasionadora de uma situação menos favorável. Ou seja, a sua repetida linearidade – apresentação de recursos e conteúdos; indicação de exercícios gerais para aprendizagem de (novos) conhecimentos; sugestão de exercícios de consolidação desses saberes – poderia originar uma certa rotina diária, ao fim de alguns dias tomada como monótona e pouco motivadora pelos estudantes.

No final, em relação à editora A, é possível salientar, ainda, a assunção ampla da ideia de ensino digital, particularmente pela requerida utilização diária de recursos disponíveis pela via online (internet ou plataforma própria); a predominância de uma experiência de aprendizagem mais individual e menos interativa com os outros (colegas, professores, familiares, …); pontuais laivos de um ensino reprodutor (Gimeno Sacristán, 2015), quando, por exemplo, se aponta o “treino da leitura” ou a “cópia para o caderno diário”.

Não são estas várias características analisadas, de modo ponderado, adjetivadas como positivas ou negativas. Não têm de o ser, pois a sua leitura tinha subjacentes outros propósitos. Mais exploratórios e, por isso, mais amplos. Além disso, perante um plano de aula (pré-feito), cada docente pode adaptá-lo à sua realidade, aos seus alunos, às suas intenções, assumindo aquele seu papel de real construtor curricular (Diogo, 2010; Gobby, 2017).

Editora B

Também no que diz respeito às planificações da editora B analisadas, novamente de apresentação vertical, a fragmentação curricular foi um elemento facilmente notado. Assim, os planos dividiram-se para as componentes curriculares de Português, Matemática, Estudo do Meio, Expressões Artística e Física e Educação para a Cidadania (esta última, apenas para os 3.º e 4.º anos). De ressalvar, ainda, a inclusão do Apoio ao Estudo, para todo o nível de ensino, e cujas sugestões rapidamente se resumem à expressão “realiza os exercícios …”.

As indicações presentes nos planos de aula elaborados, pese embora sem uma explícita relação com o currículo prescrito e/ou determinados propósitos educativos (não havendo qualquer referência específica a conteúdos ou competências a serem trabalhados em cada dia e/ou semana), parecem não corroborar uma certa tendência ocidental de diminuição dos elementos culturais a explorar em contexto escolar (Gimeno Sacristán, 2015; Paraskeva, 2011). Não se constatou, com efeito, uma maior clarificação das atividades/tarefas (em número e em pormenor) no espaço destinado às componentes curriculares de Português e Matemática, apesar de não ser clara a razão de se excluir a Educação para a Cidadania dos dois anos de escolaridade iniciais.

Ainda assim, talvez pudesse ter sido mais desenvolvida uma conceção, depois plasmada nos documentos, realmente integradora do processo de ensino e de aprendizagem no 1.º Ciclo do Ensino Básico. De facto, percebeu-se, por vezes, uma tentativa de articulação curricular, mas esta restringiu-se à exploração de um mesmo tema ao longo de toda a semana e a partir de contributos de uma e outra componente curricular. Por exemplo, o meio ambiente ligou-se às atividades económicas ou a poluição foi associada à reciclagem. Eventualmente numa outra ocasião, não apenas pela necessidade de responder a uma ‘emergência educativa’ do momento, poder-se-iam alcançar outros patamares e desenhar planos de aula pelos quais os vários saberes (da leitura e da escrita, da matemática, da história e das ciências, das artes plásticas e físicas, da ética e da estética, …) se integrassem e articulassem com outra clarividência, aproximando-se da perspetiva de, por exemplo, Roldão (2020) ou Torres Santomé (2015).

Aparentemente, um dos principais focos de atenção dos autores destas planificações orientou-se para a apresentação pormenorizada de todos os materiais necessários, para a semana, em geral, e para cada dia, numa listagem mais concreta. Portanto, discriminaram-se, logo à partida e também “para os encarregados de educação”, os recursos mais genéricos, como o computador, a internet ou o manual e o caderno de atividades e, depois, para cada componente curricular, os recursos mais específicos, digitais ou não (desta ou daquela página; este ou aquele link, um ou outro vídeo). Mais uma vez, e como seria expectável, privilegiaram-se os materiais produzidos pela própria editora, em formato papel ou virtual, destacando-se uma repetida proposta para a visualização de vídeos informativos disponíveis na respetiva plataforma digital (sobre a água, as medidas e os volumes, a escrita, os direitos das crianças, …). E assim, com este último apontamento, conferindo contornos ‘culturais’ muito próprios à experiência de aprendizagem dos alunos (Gimeno Sacristán, 2013, 2015).

Ainda no que concerne aos recursos incluídos nos planos diários, o já referido #EstudoEmCasa também ocupou, ali, o seu lugar, sendo sugerido aos alunos que, pelo menos uma vez por semana, e em relação às diferentes áreas curriculares, assistissem à aula “emitida pela televisão” e, se assim o entendessem, realizassem os exercícios propostos e disponibilizados no site do programa televisivo. Além disso, a par destas opções ‘físicas’, constatou-se, do 1.º ao 4.º ano, a alusão a situações de interação com adultos (familiares ou outros) para certa dinâmica de aprendizagem a ser experimentada pelos mais novos: “conversa com um adulto sobre o vídeo”, “pede a um adulto …”, “adapta as atividades … com os teus familiares”, entre outras indicações. De alguma forma, relativamente a este aspeto concreto, é inequívoco que as crianças com um mais frágil apoio nas tarefas escolares, por parte dos seus encarregados de educação, terão sido aquelas que menos puderam usufruir das amplas potencialidades formativas de tais opções mais relacionais.

No que diz respeito às atividades planificadas, reconheceu-se uma prevalência dos trabalhos individuais, vulgarmente associados a fichas ou exercícios do manual, porventura favoráveis, nas circunstâncias em causa, à atuação mais independente dos alunos. Contudo, aqueles não foram os únicos a serem selecionados e apresentados. Ou seja, as tarefas de ‘papel e lápis’, algumas vezes, substituíram-se por indicações para “batimentos [ligados a determinado som ou palavra]”, “dramatizações de diálogos”, “deslocações [de modos variados]”, “debates em família”, “recortes”, “visitas virtuais”, … Salienta-se, no entanto, que estas propostas apareceram com maior recorrência associadas às áreas curriculares das ‘Expressões’ ou da ‘Cidadania’ e, também, aos dois primeiros anos de escolaridade.

Novamente, a avaliação emergiu como um elemento pouco valorizado nas planificações desenhadas. De facto, no 1.º Ciclo, a avaliação assente na interação entre os estudantes e os professores implica, pois, um processo contínuo de consciencialização, por ambas as partes, do que está (e como está) a ser aprendido (Kelly, 2004; Pérez Gómez & Gimeno Sacristán, 2008). A especificidade do ensino à distância condicionou, em muito, essa dinâmica avaliativa, o que, de modo inevitável, também se foi refletindo nas planificações sugeridas pelos distintos grupos editoriais nacionais. Como tal, neste caso, a mesma traduziu-se, aqui ou ali, numa menção genérica a uma “ficha/teste de avaliação trimestral [de Português, Matemática ou Estudo do Meio]”. Em parte, uma opção caracterizada por certo formalismo, mas, depois, pouco ou nada explorada.

A estrutura/composição das planificações da editora B adquiriu contornos muito próprios: com uma leitura de orientação vertical (aspeto desde logo mencionado), para as componentes curriculares já apontadas, elencaram-se, em cada dia da semana, as atividades/tarefas e respetivos recursos necessários. Previamente, mais uma vez como generalidades para aquela semana de trabalho, indicaram-se sempre os materiais mais gerais e acima clarificados. Também nesta proposta editorial, a lógica ‘sempre igual’ para os diferentes dias, apesar de favorecer a ação autónoma e organizada dos alunos, poderá, ainda, ter ocasionado uma certa rotina de repetição, ao fim de algum tempo menos instigadora para estudantes mais jovens. De apontar, apenas, que essa lógica se verteu num inicial enquadramento do assunto a ser estudado (por exemplo, a partir da observação de uma ilustração ou de um diálogo com outrem), na proposta de exercícios para a aplicação de novos conhecimentos em estudo (no manual ou pela via digital) e, por fim, na indicação de tarefas de consolidação (no caderno de atividades ou pela via digital). A mesma foi sobretudo notada para as componentes curriculares de Português, Matemática e Estudo do Meio.

Por fim, é possível referir que, nas planificações selecionadas, pareceu evidenciar-se uma conceção de aprendizagem individual, mais vezes aludida, mesmo quando, em determinados momentos, se induzem experiências formativas que podem envolver outros intervenientes. Todavia, de modo mais repetido, são os alunos que, por si só, devem ler ou fazer os exercícios de escrita ou resolver os problemas matemáticos ou pintar e desenhar, na sua folha, no seu caderno, no seu manual escolar. Por sua vez, e “caso existam dificuldades de acesso à internet”, a disponibilização de alguns dos materiais indicados (no plano) no seu formato editável poderá tomar-se como um apontamento favorável para contrariar aquelas que seriam, eventualmente, situações de certa injustiça curricular.

Tal como já havia acontecido para a editora A, não se sublinharam características ‘boas ou más’ das planificações para o ensino à distância disponibilizadas por esta editora B em estudo. De modo similar àquela decisão investigativa anterior, apenas se analisaram, também com base em princípios conceptuais perfilhados, os elementos curriculares e pedagógicos ali incluídos, num sentido reflexivo e, quem sabe, sugestivo para circunstâncias, no futuro, similares.

4.2 Dados integrados: as principais tendências pedagógico-curriculares

Com base na análise parcelar concretizada anteriormente, podem elencar-se quatro elementos conceptuais que, de modo implícito, parecem ter enquadrado e orientado os artefactos pedagógicos produzidos pelas editoras. Nesse sentido, sublinham-se a/o:

a) Conceção moderna de currículo. Uma ideia de especialização do saber e, por esse motivo, da sua segmentação, quando uma lógica de integração cultural é substituída por uma planificação na qual se fragmentam as diferentes componentes curriculares (o Português, o Estudo do Meio, a Educação Física, a Cidadania, …). Essa característica traduz, pelo menos em parte, a crítica de certos autores supracitados (Paraskeva, 2011; Torres Santomé, 2015), pois sobressai uma visão tecnológica do currículo quando aquela mesma divisão é perpetuada ciclicamente ao longo das semanas e se privilegiam processos rotineiros, quase mecanismos rígidos, como por exemplo uma certa canonização de ‘aulas’ com uma estrutura clássica: motivação, desenvolvimento, consolidação.

b) Enclausuramento cultural. Os sabres aprendidos na escola são, por definição, resultado de uma cultura escolarizada (Gimeno Sacristán, 2015). Essa escolarização da cultura parece ser intensificada quando, nos planos de aula, os recursos pedagógicos que surgem como elementos indispensáveis para a recolha e interpretação de informação se circunscrevem às produções da editora ou àqueles outros que se construíram especificamente para o #EstudoEmCasa. A experiência escolar dos alunos torna-se, assim, resultado de uma seleção cultural que se intensifica pelo enclausurar das suas interações sobretudo com aqueles recursos mencionados.

c) Entendimento individualista e reprodutivo da aprendizagem. Não negligenciando o contexto global que ocasionou os documentos analisados, o processo de aprendizagem proposto afasta-se das considerações de Aoki (2004), pois desenhado maioritariamente de forma individual(ista), condicionando a possibilidade de as crianças agirem com autonomia e poder de decisão. Em distintas tarefas propostas, os estudantes precisam de adotar uma atitude passiva e quase isolada, para verem vídeos, resolverem operações numéricas, desenharem, … E, assim, são encarados, preferencialmente, como consumidores de cultura e não tanto como potenciais construtores da mesma.

d) Distanciamento da avaliação face à prática pedagógica. As referências e/ou as estratégias educativas vinculadas ao processo de avaliação de/e para as aprendizagens apresentam-se com residual significado. Emerge uma conceção curricular e pedagógica pela qual a ‘instrução’ é artificialmente separada dos processos de avaliação que, no geral, surgem em momentos posteriores ao ensino e com um carácter sobretudo de verificação. Distanciando-se das conceções de, entre outros, Diogo (2010) ou Kelly (2004), a avaliação não se revela, então, como um elemento, constante e interativo, indissociável da prática pedagógica e, mais ainda, da experiência formativa de cada estudante.

Mais uma vez, ressalva-se o reconhecimento de que a conjuntura criada em torno de uma situação sanitária quase inédita no país terá exigido um conjunto de opções praticamente imediatas e, por isso, pouco premeditadas. Também neste âmbito educativo. Os aspetos considerados acima, face a essa contingência tão específica e tão nova, só podem ser tomados como meras observações que, acima de tudo, permitem pensar (mais e, porventura, melhor) sobre o 1.º Ciclo do Ensino Básico, em Portugal.

5. Considerações finais

O intuito principal deste trabalho sustentou-se naquela pergunta já enunciada no principiar do texto: que conceção pedagógico-curricular se evidenciou pelas planificações semanais (do 1.º Ciclo do Ensino Básico) desenhadas editorialmente para o ensino à distância?

Após a análise dos dados recolhidos, constata-se que, de forma geral, não existem conceções pedagógico-curriculares totalmente unânimes ou uniformizadas, antes se reconhecendo uma certa diversidade conceptual que enquadra as sugestões subscritas pelas editoras, por sua vez traduzida em propostas com traços distintivos.

Pese embora esse facto, foi possível perceber que vai tendo maior adesão, neste caso junto de organizações específicas ligadas ao domínio da educação, uma perspetiva sobre a planificação e a prática pedagógica que tende a recuperar os enquadramentos curriculares mais clássicos e que se associam à ideia de engenharia curricular ou de um currículo tecnocrático (Gimeno Sacristán, 2015). Essa tendência reflete-se, por exemplo, no desenho de um plano (de aula) estruturado em torno de pilares como a segmentação do saber, a repetição de estruturas horárias e de estratégias pedagógicas, a recorrente passividade dos agentes educativos, em particular dos alunos, e, ainda, a deslocação da avaliação para um enquadramento ‘parapedagógico’.

Assim se torna mais claro, tal como tem notado Paraskeva (2011), como o desenvolvimento dos estudos curriculares não correspondeu, desde logo, a uma reestruturação das perspetivas sobre currículo, ação profissional dos professores ou agência dos estudantes como elemento indissociável da experiência escolar. Por tal, e depois deste ponto de partida, outras investigações – talvez assentes na metodologia de investigação-ação ou mais próximas do currículo em ação (Diogo, 2010) – facilitem uma maior interação entre os conceitos provenientes daquela área do saber e o que realmente é concretizado por cada um dos agentes educativos no seu contexto.

Ainda a propósito deste trabalho que aqui tem o seu ponto final, é (quase) impossível não retomar o entusiasmo conceptual e prático, de Alonso (2002) ou de Torres Santomé (2015), decorrente da ideia de currículo integrado. Na realidade, e pela conceção de Moreira e Duarte (2019b), um referencial particularmente pertinente nos níveis iniciais de ensino. Contrariar essa característica curricular parece, de facto, coincidir com um certo processo de desvirtuação e de descaracterização do 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Por fim, importa referir que, nomeadamente em Portugal, ficou patente um real envolvimento de diferentes instituições e agentes educativos na procura de soluções que promovessem aprendizagens significativas numa situação de ensino à distância, por sua vez distante de práticas e decisões habituais e já rotineiras. No entanto, não deixa de ser notório que tal conjuntura social e de saúde pública induziu, naturalmente, uma ação pedagógica de maior dependência face às tecnologias digitais, mas, e em oposição às potencialidades destes recursos, de um também maior isolamento (didático).

Referências

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Cómo citar (APA):

 

Duarte, P. & Moreira, A. I. (2021). Planificar (n)o ensino à distância: opções pedagógico-curriculares para o 1.º Ciclo. Revista Ibero-Americana de Educação, 85(1), 205-225. https://doi.org/10.35362/rie8514057

 

 


Notas

1 A 11 de março de 2020, e tomando em atenção a evolução da situação a nível mundial, a Organização Mundial de Saúde declarou a Covid-19 como uma pandemia, tendo solicitado aos vários países “uma ação urgente e agressiva”.

2Todas as citações diretas foram traduzidas para português pelos autores do artigo.

3 As semanas escolhidas remetem para o último mês do 3.º período, já numa fase avançada do processo de ensino à distância. Além disso, evitaram-se aquelas que se destinavam quase em exclusivo a momentos de avaliação ou que incluíam mais do que um feriado nacional. Assim, consideraram-se as semanas de 1 a 5 de junho e de 15 a 19 de junho (ano de 2020).

4 A denominação atribuída às duas editoras (A e B) foi totalmente aleatória e cumpre, acima de tudo, o intuito de garantir o anonimato das mesmas.

5 Programa televisivo que resultou de uma parceria entre o Ministério da Educação português e o canal de televisão pública RTP, para responder à suspensão da atividade letiva presencial (em virtude da situação sanitária ocasionada pela Covid-19) e permitir que os alunos do Ensino Básico acompanhassem a lecionação de conteúdos curriculares organizados para os diferentes anos de escolaridade. Este Estudo em Casa surgiu, então, como um complemento do ensino à distância instituído como obrigatório em todo o país.