https://doi.org/10.35362/rie8514057 -
ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653
Revista
Iberoamericana de Educación (2021), vol. 85 núm. 1, pp.
205-225 - OEI
recibido
/ recebido: 29/09/2020; aceptado / aceite: 09/12/2020
Planificar (n)o ensino à distância: opções
pedagógico-curriculares para o 1.º Ciclo
Pedro Duarte 1 ; Ana Isabel Moreira 2
1 Escola
Superior de Educação do Politécnico do Porto (ESE), Portugal; 2Centro de Investigação Transdisciplinar
“Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM), Portugal
Resumo.
2020
está a ser marcado por uma situação de pandemia que implicou a reorganização de
múltiplas atividades sociais, nomeadamente dos processos educativos. Perante
este cenário extraordinário, em Portugal, os estabelecimentos de ensino foram
encerrados e a atividade pedagógica continuou na modalidade de ensino à
distância. Professores e demais agentes educativos tiveram que, com celeridade,
reestruturar as dinâmicas já planeadas para a promoção de aprendizagens junto
dos estudantes. Com base nesses pressupostos, as editoras de manuais escolares
criaram diferentes materiais didáticos digitais que facilitassem aquela ação
profissional docente, destacando-se as planificações para as várias semanas de
aulas dali em diante. Na verdade, a influência de tais organizações nas
práticas pedagógicas é, atualmente, inegável. Assim, neste trabalho, tomou-se
como corpus empírico um conjunto de 16 planos de aula semanais, atendendo às
suas potencialidades pedagógico-curriculares no ensino à distância do 1.º Ciclo
do Ensino Básico, disponibilizados por duas editoras portuguesas, aos quais foi
possível aceder gratuitamente, por meio digital. Em parte, estes recursos vão
sugerindo um trabalho pedagógico algo divergente de uma ideia de currículo
integrado, marcado pela passividade na aprendizagem e pela depreciação da
avaliação. Mas, numa situação praticamente inédita, os mesmos testemunham mais
uma solução (tecnológica) relevante para aquela etapa formativa.
Palavras-chave: 1.º Ciclo do Ensino Básico; currículo;
planificação; ensino à distância.
Planificar la enseñanza a distancia: opciones
pedagógico-curriculares para la Primaria
Resumen.
El
año 2020 se está caracterizando por una situación de pandemia que ha supuesto
la reorganización de múltiples actividades sociales, incluidos los procesos
educativos. En Portugal se cerraron los establecimientos educativos y se
continuó la actividad pedagógica en forma de enseñanza a distancia. Los
maestros y otros agentes educativos habían de reestructurar la dinámica ya
prevista para la promoción del aprendizaje entre los estudiantes. Los editores
de libros de texto crearon diferentes materiales didácticos digitales que
facilitarían esa acción docente, destacando los planes para las varias semanas
de clases. De hecho, la influencia de esas organizaciones en las prácticas
educativas es innegable hoy en día. Así, en este artículo se tomó como corpus
empírico un conjunto de 16 planes de lecciones semanales, dado su potencial
pedagógico-curricular en la enseñanza a distancia de Educación Primaria, puesto
a disposición por dos editoriales portuguesas, a las que se podía acceder,
gratuitamente, por medios digitales. En parte, estos recursos sugieren un
trabajo pedagógico algo diferente de una idea de currículum integrado, marcado
por la pasividad en el aprendizaje y la depreciación de la evaluación. Pero, en
una situación prácticamente sin precedentes, son testigos de otra solución
(tecnológica) relevante a esa etapa formativa.
Palabras clave: Educación
Primaria; currículum; planificación; enseñanza a distancia.
Planning
distance learning: pedagogical-curricular options for the 1st Cycle
Abstract. The year 2020 is being marked by a pandemic situation, which brought
the reorganization of multiple social activities, namely the educational
processes. In Portugal, schools and other educational establishments were
closed, and the pedagogical activity continued in a distance learning modality.
Teachers and further educational agents had to restructure the already planned
dynamics for the promotion of the student’s learning. The publishers of school
textbooks created different digital didactic materials that could facilitate
the professional action of teachers, with highlights to the plans for the
various coming weeks of classes. In fact, the influence of such organizations
in the pedagogical practices is, nowadays, undeniable. Thus, the empirical
corpus taken here was a set of 16 weekly class plans, with focus on their
pedagogical and curricular potentialities for distance learning in the 1st
cycle of Basic Education, which were made available by two Portuguese
publishers, and to which it was possible to access digitally, for free. Partly,
these resources suggest a pedagogical work somewhat divergent from an idea of
integrated curriculum, marked by the passivity in learning and by the
depreciation of the evaluation. However, in a virtually unprecedented
situation, the same are a testimony of another relevant (technological)
solution for that formative stage.
Keywords: 1st cycle of Basic Education; curriculum; planning;
distance learning.
1. Introdução
Em
qualquer circunstância é expectável que os contextos educativos sejam capazes
de se adaptar, e corresponder, às exigências sociais surgidas. Sejam elas de
cariz mais formativo, e voltadas para a relevância dos conteúdos ou para as
potencialidades das competências ou, ainda, para a necessidade das emoções,
sejam elas provenientes de uma dimensão mais prática e, por exemplo, inerentes
ao uso desenvolto das tecnologias dentro e fora da sala de aula.
O
ano de 2020, ainda em curso, trouxe dessas demandas, com a particularidade de
tal ter acontecido de um momento para o outro. Sem aviso, sem preparação, sem
margem para se contornar o ‘obstáculo’. De facto, escolas, professores, alunos,
editoras, encarregados de educação tiveram, em todo o mundo e por razão da
pandemia declarada pela Organização Mundial de Saúde1, de se adaptar
a um processo de ensino e de aprendizagem que haveria, agora, de sobretudo se
adjetivar como ‘tecnológico’, ‘digital’, ‘à distância’, …
Nesta conjuntura internacional, mas com
foco nas dinâmicas específicas do 1.º ciclo do Ensino Básico português, o
artigo nas próximas páginas desenvolvido pretende dar conta de certas
características de materiais pedagógico-curriculares (em exclusivo,
planificações semanais) que, como resposta quase imediata ao cenário
implantado, as editoras nacionais conceberam e colocaram à disposição dos
diferentes agentes educativos. O intuito não é, longe disso, adotar um tom
avaliativo. Antes é fazer uma súmula reflexiva, cruzando esses dados empíricos
e as perspetivas conceptuais corroboradas, das estratégias e recursos didáticos
mais ou menos considerados, das opções digitais privilegiadas, das dimensões
curriculares integradas ou esquecidas, do papel atribuído a professores e
alunos envolvidos e das aprendizagens mais ou menos potenciadas.
Tal objetivo geral decorrerá de uma
questão investigativa mais concreta: que conceção pedagógico-curricular se evidenciou pelas planificações
semanais (do 1.º Ciclo do Ensino Básico) desenhadas editorialmente para o
ensino à distância?
A eventual resposta à mesma, e que
adiante se apresentará, não deixa, em momento algum, de reconhecer a
complexidade de uma ação que, por parte das diversas instituições envolvidas no
âmbito da Educação, se teve de pautar pela celeridade do que é ‘para ontem’,
pela adaptabilidade ao imprevisível, pela necessidade de ‘chegar a todos e a
cada um’.
2. Apontamentos
conceptuais
2.1
Desenvolvimento
curricular: do formal ao experienciado
Como tem sido amplamente sustentado por
múltiplos autores (Diogo, 2010; Moreira & Duarte, 2019a; Pérez Gómez &
Gimeno Sacristán, 2008; Viana & Peralta, 2020), o currículo, ainda que seja
um conceito marcado por certa elasticidade conceptual (Gimeno Sacristán, 2015),
é um elemento estruturante nas experiências de educação formal.
Considerando o foco e a extensão do
presente texto, apontam-se, entre os diferentes contributos deste campo de
estudos, três elementos especialmente relevantes e que serão aprofundados nos
parágrafos seguintes: i) a relação entre o currículo e a seleção e organização
do conhecimento escolar; ii) as dinâmicas de desenho e desenvolvimento
curricular; iii) o(s) processo(s) de planificação curricular e sua relação com
a aprendizagem.
Partindo das conceções de, por exemplo,
Paraskeva (2011) ou Young (2016), o currículo surge implicitamente associado ao
conhecimento escolar. Por sua vez, Roldão (2020, p. 76) liga-o a “um
determinado corpus de conhecimento”. Talvez de uma forma mais extensiva, numa
perspetiva um pouco diferente, sobressai uma aparente sobreposição entre
currículo e conteúdos escolares (Gobby, 2017). Efetivamente, parece emergir, em
algumas circunstâncias e de modo mais claro, uma justaposição entre o conceito
‘currículo’ e o conceito ‘programa’, confirmando-se, então, a intrínseca
ligação entre aquele primeiro e a definição das disciplinas (escolares) e
vinculando-se o mesmo a um processo de seleção cultural limitada (Gimeno
Sacristán, 2015).
Importa destacar que o conhecimento
escolar a que o início do parágrafo anterior alude não se circunscreve aos
saberes de conteúdo. Quando se incorpora uma dimensão cultural no currículo, o
mesmo torna-se suscetível a outras influências, nomeadamente axiológicas e
ontológicas, inevitáveis em qualquer projeto e ação educativos (Dias de
Carvalho, 2002). A par do indicado, pode relacionar-se o currículo com um
entendimento amplo das aprendizagens escolares (Diogo, 2010; Pérez Gómez &
Gimeno Sacristán 2008), pelo que, sem desconsiderar os conhecimentos
específicos de cada área de estudos, deverão ser igualmente tomados em atenção
saberes comportamentais, atitudinais, ético-morais, entre outros.
Contudo, ressalva-se que, até pelos
enquadramentos conceptuais mais clássicos, o currículo não se limita à seleção
do que deve ser ensinado. Na realidade, a história deste campo de estudos
possibilita compreender que, de forma complementar àquela decisão, o currículo
interage, muito proximamente, com o modo como esse conhecimento é organizado
(Clemente Linuesa, 2012; Doll Jr., 1989; Gobby, 2017; Viana & Peralta,
2020). A este propósito, e recuperando alguns outros contributos, os sistemas
educativos ocidentais têm consolidado, e por isso legitimado, estruturas de
organização curricular assentes no pensamento moderno, através das quais a
experiência escolar - que, no seu essencial, é similar para as diferentes
crianças - é entendida como uma sucessão de etapas pré-definidas e enformada em
disciplinas que, genericamente, são pouco comunicantes entre si (Aoki, 2004;
Torres Santomé, 2015).
Os dois aspetos acima referidos –
seleção e organização de saberes –, quando concebidos de modo isolado,
subscrevem entendimentos mais formais do currículo, circunscrevendo-o a uma
ideia de produto (Kelly, 2004) ou de currículo como plano (Aoki, 2004).
Tais enquadramentos privilegiam uma conceção que se restringe ao
pré-estabelecido por alguém, por exemplo, aos documentos oficiais. Como
explicitam Pérez Gómez e Gimeno Sacristán (2008), essas correntes teóricas
originam uma dissonância e uma artificial separação entre o currículo e a ação
pedagógica e/ou a experiência escolar.
Atualmente, e asseverado por vários
autores (Clemente Linuesa, 2012; Diogo, 2010; Doll Jr., 1989; Gobby, 2017;
Moreira & Duarte, 2019a; Paraskeva, 2011; Viana & Peralta, 2020), o
conceito de currículo não pode ser dissociado das práticas pedagógicas, das
experiências efetivas de cada estudante e, inevitavelmente, daquelas que são,
de facto, as suas aprendizagens. Nesse sentido, a reflexão em torno do
currículo:
tem de contemplar não só a prática de
ensino dos professores, mas também todas as condições do ambiente de
aprendizagem, […]: relações sociais na sala de aula e na escola, utilização de
manuais escolares, efeitos resultantes das estratégias de avaliação, etc.
(Gimeno Sacristán, 2015, p. 982).
Com efeito, o desenvolvimento dos processos
de ensino e de aprendizagem assume especial relevância, no âmbito em análise,
não sendo possível ignorar o modo como cada um, pela sua experiência educativa,
também vivencia o currículo (Aoki, 2004). Este aspeto adquire particular
destaque ao considerar-se cada ato docente ou cada ação praticada pelos
estudantes, por si só e independentemente dos seus propósitos, como resultado
de conceções filosóficas e pedagógicas (Dias de Carvalho, 2002) que marcam e
influenciam a aprendizagem (Pérez Gómez & Gimeno Sacristán, 2008). Por
outras palavras, nenhuma ação didatico-pedagógica contribui somente para a
aprendizagem de determinado conteúdo, uma vez que as estratégias escolhidas ou
os recursos mobilizados promovem, de modo implícito, porventura oculto, aprendizagens
de outra natureza (como o individualismo ou a cooperação, por exemplo).
Ao introduzir a vivência escolar, e
real, dos estudantes naquilo que é o currículo, concomitantemente tem de
reconhecer-se, em relação ao mesmo, a influência de múltiplos agentes e não
apenas o papel dos decisores do currículo oficial. Desta forma, e dialogando de
novo com Aoki (2004), torna-se insuficiente associar os docentes à mera ideia
de implementação
curricular, pois tal perspetiva, desde logo de hierarquização do processo,
favorece sobretudo um entendimento de subalternização daqueles face a decisões
tomadas por outros. Num sentido distinto, e recuperando os trabalhos de autores
vários (Clemente Linuesa, 2012; Gimeno Sacristán, 2015; Gobby, 2017; Moreira
& Duarte, 2019a), sublinha-se que os agentes educativos locais, em
particular os professores, têm de ser encarados como profissionais fundamentais
para as dinâmicas de desenvolvimento curricular, uma vez que a sua decisão
(individual e/ou coletiva) assume um inegável contributo na definição de modos
de ensinar e, ainda, nas reais aprendizagens dos alunos.
A par do referido, constata-se, também,
a influência de outras estruturas sociais, como as organizações profissionais e
científicas ou as instituições locais, nesses processos de desenvolvimento
curricular. Para o presente trabalho será necessário aclarar, pelo menos em
parte, o papel mais concreto das editoras (de livros didáticos). As mesmas
constroem artefactos educativos que podem ser apelidados de currículo apresentado (Diogo,
2010). Efetivamente, esses ‘produtos’ criados assumem-se, por vezes, como os
eixos de mediação mais relevantes entre os docentes e o currículo
prescrito/oficial, sendo incontornável a sua interferência na conceptualização
de currículo que estes agentes educativos vão perfilhando e, por inerência, no
desenrolar da sua atividade profissional (Pérez Gómez & Gimeno Sacristán,
2008).
Nesta linha de pensamento, Apple (1989)
explicou que os recursos idealizados e concretizados pelos editores (como os
livros didáticos) instituem-se como uma construção cultural e curricular
francamente importante, porque, com recorrência, os professores, e outros
agentes sociais, conferem-lhes maior relevância e legitimidade quando
comparados com aqueles que são desenvolvidos ou por instituições de ensino
superior ou por organizações políticas. Convergindo com esta ideia, Gimeno
Sacristán (2013) explicita que, no seu entender, as práticas pedagógicas se
encontram, na contemporaneidade, alicerçadas na programação/organização
sugerida pelo manual escolar, que não só estabelece os elementos culturais a
serem estudados, como orienta as estratégias didáticas e disponibiliza os
recursos pedagógicos que consubstanciam a experiência escolar.
O apresentado no parágrafo anterior induz
um outro aspeto a apontar: uma relação cada vez mais estreita entre a ação
editorial (para um país, no geral) e as decisões curriculares tomadas por cada
professor ou coletivo de profissionais (às vezes, pouco diferenciadas de
contexto para contexto, a nível local). E dada a proliferação de outros
materiais construídos pelas editoras de manuais escolares, que em muito
ultrapassam o simples livro didático e já incluem sugestões de planificações,
recursos digitais, fichas de avaliação modelo, … , será difícil não subscrever
aquela ideia.
Pese embora o lugar (entretanto)
ocupado por tais constructos culturais, o processo de planificação curricular
continua a deter uma notória relevância nas realidades escolares (Clemente
Linuesa, 2012; Doll Jr., 1989; Kelly, 2004; Moreira & Duarte, 2019a; Pérez
Gómez & Gimeno Sacristán, 2008; Viana & Peralta, 2020). De acordo com
os textos dos diversos autores mencionados atrás, é possível associá-lo a um
processo de reflexão sobre a docência e, em certa medida, a uma previsão
não-determinista, singular e flexível (de uma aula ou de uma unidade didática)
que, entre outros elementos, implica pensar sobre:
a) o
que ensinar e o que aprender, naquele período de tempo, para se promover uma
efetiva interação e articulação dos saberes e das tarefas;
b)
as ações do(s) professor(es) e dos
alunos, assim como as suas justificações pedagógicas e axiológicas;
c)
as condições (temporais, locais, de
orientação da sala, ...) e os recursos necessários que convergem com as
estratégias delineadas;
d)
a concretização da avaliação das (e
para as) aprendizagens e a reflexão sobre as suas implicações educativas e
éticas.
2.2
O 1.º Ciclo do Ensino
Básico: breves notas
O 1.º Ciclo do Ensino Básico, em
Portugal, tem uma função social e pedagógica muito particular, sendo
caracterizado por especificidades curriculares, profissionais e organizacionais
que são marcas distintivas deste nível de ensino. A este propósito, Moreira e
Duarte (2019b, p. 17) afirmam que:
não é possível negar a relevância educativa
e social deste nível de ensino e dos seus docentes, uma vez que, durante muitos
anos, o 1.º Ciclo se afirmou como estruturante (quase exclusivo) na difusão da
cultura e da aprendizagem […]. [Associou-se a] uma função social de suma
importância, conferindo a todos a possibilidade de aprender e desenvolver as
suas competências elementares, a partir das quais todos os conhecimentos e
capacidades subsequentes se sustentarão.
Face ao citado, compreende-se aquela
como uma etapa matricial para a formação dos indivíduos. Tal como explicitado
na Lei de Bases do Sistema Educativo (português), o 1.º Ciclo, ao longo dos
quatro anos que o compõem – do 1.º ano (6 anos de idade) ao 4.º ano (9/10 anos
de idade) –, assume um propósito pedagógico assente num entendimento
globalizante da aprendizagem e do saber. Esclarece-se, ainda, e dado o recente
enquadramento normativo nacional (Decreto-Lei n.º 55/2018), que o nível de
ensino em causa contempla 9 componentes curriculares comuns a todos os
estudantes, independentemente da instituição educativa frequentada: Português
(7 horas semanais), Matemática (7 horas semanais), Estudo do Meio (3 horas
semanais), Educação Artística e Educação Física (num total de 5 horas
semanais), Apoio ao Estudo (de 1 a 3 horas semanais), Inglês (apenas para o 3.º
e 4.º anos, 2 horas semanais), Cidadania e Desenvolvimento (transversal) e, por
último, Tecnologia de Informação e Comunicação (transversal).
Atentando nas características
mencionadas acima, torna-se plausível associar àquele ciclo primeiro uma
conceção mais generalista da ação do professor, que interage com um conjunto
diversificado de saberes disciplinares, e, por conseguinte, um entendimento
mais articulado, e até integrado, do currículo (Alonso, 2002; Roldão, 2001;
Rosales López, 2012). Na realidade, não sendo possível assumir a ideia de currículo integrado
como uma estrutura curricular universalmente adequada (Aoki, 2004), as suas
potencialidades são reconhecidas, e encontram-se já amplamente sustentadas. Ao
mesmo tempo, será redutor restringi-lo aos níveis iniciais de ensino (em
Portugal ou em qualquer outro país do mundo), mas não deixa de ser em relação a
essa etapa formativa que existe uma história e uma prática de integração mais
consolidada.
Na sequência daquela última ideia,
podem elencar-se, desde logo partindo de contributos investigativos concretos
(Alonso, 2002; Torres Santomé, 2015), duas razões justificativas do
significativo impacto de um currículo integrado no 1.º Ciclo
do Ensino Básico.
Para começar, a ideia de integração
tende a contrariar uma matriz curricular estruturada em torno da
disciplinarização do conhecimento e da aprendizagem, valorizando, num outro
sentido, uma abordagem pedagógica que potencia uma perceção mais global do
saber, enquanto opção interativa para compreender a realidade e nela agir.
Depois, o currículo
integrado pressupõe, ainda, uma relação próxima
com a vida do estudante, assumindo-se uma lógica, distante da uniformidade e da
homogeneização curricular, de valorização de cada aluno na construção e
desenvolvimento do currículo. Esta última asserção é particularmente pertinente
no 1.º Ciclo, visto que, como referem investigadores também focados nesse nível
de ensino, a experiência ali vivenciada não poderá desconsiderar a necessidade,
tanto pelas suas esfericidades curriculares, como pela idade dos indivíduos, de
se desenvolver um trabalho de proximidade com o contexto e as famílias dos
estudantes (Moreira & Duarte, 2019b; Rosales López, 2012). A centralidade,
que não se sustenta num ponto de vista individualista, residirá, assim, no
aluno e nas suas interações sociais.
Os aspetos brevemente esclarecidos não
são os únicos que caracterizam o nível de ensino contemplado para esta
pesquisa. Com efeito, há um conjunto de outras marcas diferenciadoras a ter em
conta, nomeadamente, as dimensões organizacionais das escolas do 1.º Ciclo, os
seus propósitos formativos mais distintivos, as especificidades didáticas e os
recursos requeridos, a relação pedagógica estabelecida ou, até, a proximidade
afetiva entre os agentes. Não obstante as mesmas, mas fazendo sobressair as
intenções principais do presente texto, o apresentado possibilita compreender
como tal ciclo inicial se distingue dos restantes níveis de ensino no que
concerne à dimensão curricular.
3
Metodologia
A nível metodológico, e tendo em conta
os propósitos subjacentes a esta investigação, optou-se por um estudo de
características exploratórias e interpretativas (Flick, 2015), facilmente
associado a uma abordagem de tipo qualitativo.
Depois, e corroborando a ideia de que
“a maioria das pesquisas qualitativas recorre a um desenho de estudo de caso”
(McMillan & Schumacher, 2014, p. 423), a escolha recaiu sobre tal método.
Neste caso, um estudo de casos múltiplos (Yin, 2018), particularmente pela possibilidade
de assim se compreender, com maior complexidade, uma determinada dimensão da
vida real, no âmbito educativo. Como casos representativos, para responder à
questão de partida – que conceção pedagógico-curricular se evidenciou pelas planificações
semanais (do 1.º Ciclo do Ensino Básico) desenhadas editorialmente para o
ensino à distância? –,
selecionaram-se planificações de aulas do 1.º Ciclo do Ensino Básico (em
específico, de cada ano de escolaridade), definidas para duas semanas3 do período de ensino
à distância, em Portugal, disponibilizadas gratuitamente (e, por isso, de fácil
consulta) nas plataformas digitais de dois grupos editoriais nacionais
representativos da diversidade deste meio.
Considerando que “os estudos de caso
são ecléticos no tipo de dados utilizados” (Cohen et al., 2018, p.
387), aqueles documentos específicos, as planificações elaboradas pelos autores
de manuais escolares que colaboram com as empresas incluídas na pesquisa,
emergiram como acessíveis e ilustrativos das opções curriculares, pedagógicas e
didáticas presentes nas propostas editoriais desenhadas para o ensino à
distância.
No sentido de garantir a necessária
confidencialidade dos vários dados mobilizados (McMillan & Schumacher,
2014), a análise do conteúdo (Bardin, 2011) das planificações assumiu contornos
investigativos peculiares, também para se conferir certo sentido aos elementos
ali integrados ou dali apartados.
Por outras palavras, a “validade
convergente” (Cohen et al., 2018, p. 381) deste estudo é
assegurada pela triangulação das leituras analíticas dos documentos
concretizadas pelos dois autores. Cada um deles, individualmente, fez a sua
análise prévia de cada uma das planificações selecionadas e, apenas depois, se
partilharam pontos de vista, tendo sido somente considerados para o
desenvolvimento do estudo os elementos (de âmbito curricular ou didático, de
organização e formatação) apontados por ambos. De alguma forma, aquilo que se
procurou concretizar terá sido a “triangulação de observações-chave, a fim de
apoiar interpretações” ou, até mesmo, “interpretações alternativas” (Stake,
2005, p. 460).
De ressalvar, ainda, que, para essa
interpretação suficientemente esclarecida dos dados coligidos, se procedeu ao
seu cruzamento constante com a fundamentação conceptual base.
4. Análise e
discussão dos dados
4.1
Caso a caso: uma leitura
parcelar dos dados
Pelas especificidades das planificações
analisadas – com traços distintivos nas propostas de cada uma das editoras
consideradas – e, ainda, porque não se pretende seguir uma ideia de comparação
das mesmas, optou-se pela análise descritiva e interpretativa isolada das
características transversais aos planos delineados para os vários anos de
escolaridade (Editora A e Editora B); depois, far-se-á uma mais abrangente integração
desses tais dados alcançados.
De certa forma, discutem-se assim as
tendências pedagógico-curriculares que se detetaram naqueles materiais
sugeridos para o ensino à distância no 1.º Ciclo do Ensino Básico e eventuais
consequências formativas daí decorrentes.
Editora
A4
Em uma ou duas folhas A4, na vertical,
para cada dia da semana, as planificações percebem-se, desde logo, mais distanciadas
de um currículo integrado, particularmente pela fragmentação do mesmo em áreas
do saber. Por isso, numa quase disciplinarização do 1.º Ciclo, apresentam-se
sugestões concretas para a Matemática, o Português, o Estudo do Meio e, ainda,
as Artes, a Educação Física e a Cidadania. Se, por um lado, assim se distinguem
claramente os momentos, as atividades e os recursos que se vinculam a cada
componente curricular, o que poderá orientar a ação autónoma dos alunos e a
intervenção de encarregados de educação mais alheados das dinâmicas escolares,
por outro perfilha-se uma escolha que tende a afastar aqueles mesmos estudantes
de práticas promotoras de um saber globalizante e integrado, aspeto que Alonso
(2002) ou Roldão (2001) afirmam como particularmente relevante no nível de
ensino em análise.
De facto, complementando a perspetiva
subjacente ao último ponto referido acima, nota-se que a articulação curricular
não se assumiu como um aspeto de realce nas planificações, até quando, sem
grandes subterfúgios, a mesma era viável. Quando, por exemplo, para o Estudo do
Meio o plano incluiu o estudo da poluição, para o Português dessa mesma semana,
a proposta podia contemplar, entre tantas outras possibilidades, a elaboração
de um cartaz sobre a temática do meio ambiente e sua proteção. Todavia, essa
proposta orientou-se, antes, para a publicitação, naquele formato, de um
qualquer festival de música a acontecer em breve.
Porventura, aquela limitação
identificada poderá também decorrer de uma centralidade nos vários recursos e
materiais físicos e digitais disponibilizados pela editora para cada ano de
escolaridade. Esta é uma opção facilmente justificada, de valorização e
divulgação dos produtos próprios, mas que tem, por conseguinte, de implicar,
numa outra forma de ensino (neste caso, à distância), as características dos
mesmos (inicialmente pensados sobretudo para a sala de aula). Pese embora esta
circunstância, importa ressalvar a tentativa de incluir naquelas planificações,
pontualmente, outros recursos aos quais os estudantes, no geral, facilmente
teriam acesso. Desde o #EstudoEmCasa5
até aos lenços e molduras como unidades de área, aos jornais e revistas para a
leitura ou à balança para medir a massa de objetos vários. Curiosamente, uma
espécie de trabalho laboratorial, ou seja, as experiências (sobre a água, o ar,
a luz, …) que podiam ter o ambiente doméstico como laboratório ideal, foi, não
raras vezes, substituído pela sugestão de visualização de vídeos ilustrativos
das mesmas e da realização de exercícios escritos sobre “a conclusão da[s]
experiência[s]”.
Em parte, as decisões editoriais
tiveram de ser tomadas de uma semana para a outra, sem grande oportunidade para
esboços ou ensaios depois melhorados, mas talvez o currículo real tenha assim
ficado mais restrito nas suas potencialidades formativas. De certo modo, com
base na ideia de que os alunos nem sempre seriam capazes de trabalhar
autonomamente, acrescida das sessões síncronas em menor tempo e tantas vezes
insuficientes para tudo, ter-se-ão limitado as experiências de aprendizagem dos
estudantes (Pérez Gómez & Gimeno Sacristán, 2008), nomeadamente pela
diminuta diversidade de materiais e estratégias pedagógicas mobilizados.
Essa diminuição do potencial do
processo educativo, no que diz respeito ao desenvolvimento de competências de
trabalho colaborativo, de convivência interpessoal ou de manuseamento de
materiais vários, ainda se constatou nas planificações pela menção exclusiva,
embora telegráfica, aos conteúdos a serem abordados em cada aula, de acordo com
a área curricular respetiva. Previamente aos mesmos, em jeito de cabeçalho e
para todo o ‘dia de aulas’, elencaram-se os recursos necessários. Em lugar
algum daqueles documentos se indicaram possíveis competências a desenvolver, e
cuja relevância é apontada por autores já antes mencionados (Gobby, 2017;
Diogo, 2010), parecendo que o maior destaque se direcionou para ‘o que (ficar
a) saber’.
Ainda sobre os conteúdos explicitados
nos planos de aula, bem como sobre os materiais mais específicos, aponta-se um
outro aspeto, também ele revelador de uma diminuta abordagem das componentes
curriculares ligadas às Artes, à Educação Física e à Cidadania. Com efeito, as
referências às suas aulas, ao longo da semana, são menores, para além de a elas
se associarem indicações genéricas como “vários conteúdos” ou, apenas,
“materiais de pintura”. Acresce o facto de, uma e outra vez, as mesmas tarefas
e/ou atividades, naqueles âmbitos, serem sugeridas para anos de escolaridade
distintos. Na verdade, as temáticas abordadas não precisam, obrigatoriamente,
de ser distintas no 1.º ou no 4.º ano, contudo, e porque os alunos vivenciam
momentos distintos do seu processo formativo (Moreira & Duarte, 2019b;
Rosales López, 2012), talvez se tornasse mais profícuo, para a sua aprendizagem,
a experimentação de práticas diferentes e promotoras de competências
progressivamente mais elaboradas.
Atentando nas planificações da editora
A, ambos os investigadores, aquando da leitura interpretativa das mesmas,
perceberam um outro tópico curricular aparentemente pouco destacado – a
avaliação. Ao longo do 3.º período letivo, rapidamente se reconheceu que o
ensino à distância não beneficiava a continuidade do diálogo e da interação
entre professores e alunos, o que, por consequência, condicionou a recolha
sistematizada de dados e o juízo de valor sobre eles. Talvez por isso, os
responsáveis pelos planos de aula para esse ensino à distância tenham optado,
neste caso, não pela proposta de processos estruturados de avaliação, mas antes
pela indicação de sugestões mais genéricas, como “feedback sobre os trabalhos
realizados”. Inevitavelmente, as contingências que exigiram dinâmicas de ensino
e de aprendizagem bem distantes do que qualquer sujeito previu no início do ano
letivo 2019/2020 mitigaram, em relação à avaliação, as potencialidades de
reflexão sobre as práticas pedagógicas e a aprendizagem dos estudantes (Kelly,
2004; Moreira & Duarte, 2019a).
No que concerne à estruturação e/ou
organização formal das planificações em discussão – aspetos já brevemente
aludidos no início desta análise – algumas outras notas podem ser, agora,
referidas com maior pormenor.
Crê-se que para uma perceção mais
imediata e intuitiva, por parte de professores, alunos e, até, encarregados de
educação, a escolha recaiu sobre uma estrutura/lógica de planificação sempre
igual, semana após semana. De forma muito sintética e, por vezes, difusa, aliás
como acima explicitado, clarificaram-se, de cima para baixo, os recursos
necessários, os conteúdos em estudo e as atividades propostas, por área
curricular, para aquele dia da semana. E se para um dia se sugeriram tarefas de
Matemática e Cidadania, para o outro apresentaram-se opções para Português e
Educação Física. E assim por diante, com combinações várias, até sexta-feira.
Todavia, esta que, à partida, é uma
característica relevante das planificações em causa, também porque definidora
de um trabalho não excessivo e sistemático, poderia ser ocasionadora de uma
situação menos favorável. Ou seja, a sua repetida linearidade – apresentação de
recursos e conteúdos; indicação de exercícios gerais para aprendizagem de
(novos) conhecimentos; sugestão de exercícios de consolidação desses saberes –
poderia originar uma certa rotina diária, ao fim de alguns dias tomada como
monótona e pouco motivadora pelos estudantes.
No final, em relação à editora A, é
possível salientar, ainda, a assunção ampla da ideia de ensino digital,
particularmente pela requerida utilização diária de recursos disponíveis pela
via online
(internet ou plataforma própria); a predominância de uma experiência de
aprendizagem mais individual e menos interativa com os outros (colegas,
professores, familiares, …); pontuais laivos de um ensino reprodutor (Gimeno
Sacristán, 2015), quando, por exemplo, se aponta o “treino da leitura” ou a
“cópia para o caderno diário”.
Não são estas várias características
analisadas, de modo ponderado, adjetivadas como positivas ou negativas. Não têm
de o ser, pois a sua leitura tinha subjacentes outros propósitos. Mais
exploratórios e, por isso, mais amplos. Além disso, perante um plano de aula
(pré-feito), cada docente pode adaptá-lo à sua realidade, aos seus alunos, às
suas intenções, assumindo aquele seu papel de real construtor curricular
(Diogo, 2010; Gobby, 2017).
Editora B
Também no que diz respeito às
planificações da editora B analisadas, novamente de apresentação vertical, a
fragmentação curricular foi um elemento facilmente notado. Assim, os planos
dividiram-se para as componentes curriculares de Português, Matemática, Estudo
do Meio, Expressões Artística e Física e Educação para a Cidadania (esta
última, apenas para os 3.º e 4.º anos). De ressalvar, ainda, a inclusão do
Apoio ao Estudo, para todo o nível de ensino, e cujas sugestões rapidamente se
resumem à expressão “realiza os exercícios …”.
As indicações presentes nos planos de
aula elaborados, pese embora sem uma explícita relação com o currículo
prescrito e/ou determinados propósitos educativos (não havendo qualquer
referência específica a conteúdos ou competências a serem trabalhados em cada
dia e/ou semana), parecem não corroborar uma certa tendência ocidental de
diminuição dos elementos culturais a explorar em contexto escolar (Gimeno
Sacristán, 2015; Paraskeva, 2011). Não se constatou, com efeito, uma maior
clarificação das atividades/tarefas (em número e em pormenor) no espaço
destinado às componentes curriculares de Português e Matemática, apesar de não
ser clara a razão de se excluir a Educação para a Cidadania dos dois anos de
escolaridade iniciais.
Ainda assim, talvez pudesse ter sido
mais desenvolvida uma conceção, depois plasmada nos documentos, realmente
integradora do processo de ensino e de aprendizagem no 1.º Ciclo do Ensino
Básico. De facto, percebeu-se, por vezes, uma tentativa de articulação
curricular, mas esta restringiu-se à exploração de um mesmo tema ao longo de
toda a semana e a partir de contributos de uma e outra componente curricular.
Por exemplo, o meio ambiente ligou-se às atividades económicas ou a poluição
foi associada à reciclagem. Eventualmente numa outra ocasião, não apenas pela
necessidade de responder a uma ‘emergência educativa’ do momento, poder-se-iam
alcançar outros patamares e desenhar planos de aula pelos quais os vários
saberes (da leitura e da escrita, da matemática, da história e das ciências,
das artes plásticas e físicas, da ética e da estética, …) se integrassem e
articulassem com outra clarividência, aproximando-se da perspetiva de, por
exemplo, Roldão (2020) ou Torres Santomé (2015).
Aparentemente, um dos principais focos
de atenção dos autores destas planificações orientou-se para a apresentação
pormenorizada de todos os materiais necessários, para a semana, em geral, e
para cada dia, numa listagem mais concreta. Portanto, discriminaram-se, logo à
partida e também “para os encarregados de educação”, os recursos mais
genéricos, como o computador, a internet ou o manual e o caderno de atividades
e, depois, para cada componente curricular, os recursos mais específicos,
digitais ou não (desta ou daquela página; este ou aquele link, um ou outro
vídeo). Mais uma vez, e como seria expectável, privilegiaram-se os materiais
produzidos pela própria editora, em formato papel ou virtual, destacando-se uma
repetida proposta para a visualização de vídeos informativos disponíveis na
respetiva plataforma digital (sobre a água, as medidas e os volumes, a escrita,
os direitos das crianças, …). E assim, com este último apontamento, conferindo
contornos ‘culturais’ muito próprios à experiência de aprendizagem dos alunos
(Gimeno Sacristán, 2013, 2015).
Ainda no que concerne aos recursos
incluídos nos planos diários, o já referido #EstudoEmCasa
também ocupou, ali, o seu lugar, sendo sugerido aos alunos que, pelo menos uma
vez por semana, e em relação às diferentes áreas curriculares, assistissem à
aula “emitida pela televisão” e, se assim o entendessem, realizassem os
exercícios propostos e disponibilizados no site do programa
televisivo. Além disso, a par destas opções ‘físicas’, constatou-se, do 1.º ao
4.º ano, a alusão a situações de interação com adultos (familiares ou outros)
para certa dinâmica de aprendizagem a ser experimentada pelos mais novos:
“conversa com um adulto sobre o vídeo”, “pede a um adulto …”, “adapta as
atividades … com os teus familiares”, entre outras indicações. De alguma forma,
relativamente a este aspeto concreto, é inequívoco que as crianças com um mais
frágil apoio nas tarefas escolares, por parte dos seus encarregados de
educação, terão sido aquelas que menos puderam usufruir das amplas
potencialidades formativas de tais opções mais relacionais.
No que diz respeito às atividades
planificadas, reconheceu-se uma prevalência dos trabalhos individuais,
vulgarmente associados a fichas ou exercícios do manual, porventura favoráveis,
nas circunstâncias em causa, à atuação mais independente dos alunos. Contudo,
aqueles não foram os únicos a serem selecionados e apresentados. Ou seja, as
tarefas de ‘papel e lápis’, algumas vezes, substituíram-se por indicações para
“batimentos [ligados a determinado som ou palavra]”, “dramatizações de
diálogos”, “deslocações [de modos variados]”, “debates em família”, “recortes”,
“visitas virtuais”, … Salienta-se, no entanto, que estas propostas apareceram
com maior recorrência associadas às áreas curriculares das ‘Expressões’ ou da
‘Cidadania’ e, também, aos dois primeiros anos de escolaridade.
Novamente, a avaliação emergiu como um
elemento pouco valorizado nas planificações desenhadas. De facto, no 1.º Ciclo,
a avaliação assente na interação entre os estudantes e os professores implica,
pois, um processo contínuo de consciencialização, por ambas as partes, do que
está (e como está) a ser aprendido (Kelly, 2004; Pérez Gómez & Gimeno
Sacristán, 2008). A especificidade do ensino à distância condicionou, em muito,
essa dinâmica avaliativa, o que, de modo inevitável, também se foi refletindo
nas planificações sugeridas pelos distintos grupos editoriais nacionais. Como
tal, neste caso, a mesma traduziu-se, aqui ou ali, numa menção genérica a uma
“ficha/teste de avaliação trimestral [de Português, Matemática ou Estudo do
Meio]”. Em parte, uma opção caracterizada por certo formalismo, mas, depois,
pouco ou nada explorada.
A estrutura/composição das
planificações da editora B adquiriu contornos muito próprios: com uma leitura
de orientação vertical (aspeto desde logo mencionado), para as componentes
curriculares já apontadas, elencaram-se, em cada dia da semana, as
atividades/tarefas e respetivos recursos necessários. Previamente, mais uma vez
como generalidades para aquela semana de trabalho, indicaram-se sempre os
materiais mais gerais e acima clarificados. Também nesta proposta editorial, a
lógica ‘sempre igual’ para os diferentes dias, apesar de favorecer a ação
autónoma e organizada dos alunos, poderá, ainda, ter ocasionado uma certa
rotina de repetição, ao fim de algum tempo menos instigadora para estudantes
mais jovens. De apontar, apenas, que essa lógica se verteu num inicial
enquadramento do assunto a ser estudado (por exemplo, a partir da observação de
uma ilustração ou de um diálogo com outrem), na proposta de exercícios para a
aplicação de novos conhecimentos em estudo (no manual ou pela via digital) e,
por fim, na indicação de tarefas de consolidação (no caderno de atividades ou
pela via digital). A mesma foi sobretudo notada para as componentes
curriculares de Português, Matemática e Estudo do Meio.
Por fim, é possível referir que, nas
planificações selecionadas, pareceu evidenciar-se uma conceção de aprendizagem
individual, mais vezes aludida, mesmo quando, em determinados momentos, se
induzem experiências formativas que podem envolver outros intervenientes.
Todavia, de modo mais repetido, são os alunos que, por si só, devem ler ou
fazer os exercícios de escrita ou resolver os problemas matemáticos ou pintar e
desenhar, na sua folha, no seu caderno, no seu manual escolar. Por sua vez, e
“caso existam dificuldades de acesso à internet”, a disponibilização de alguns
dos materiais indicados (no plano) no seu formato editável poderá tomar-se como
um apontamento favorável para contrariar aquelas que seriam, eventualmente,
situações de certa injustiça curricular.
Tal como já havia acontecido para a
editora A, não se sublinharam características ‘boas ou más’ das planificações
para o ensino à distância disponibilizadas por esta editora B em estudo. De
modo similar àquela decisão investigativa anterior, apenas se analisaram,
também com base em princípios conceptuais perfilhados, os elementos
curriculares e pedagógicos ali incluídos, num sentido reflexivo e, quem sabe, sugestivo
para circunstâncias, no futuro, similares.
4.2
Dados integrados: as
principais tendências pedagógico-curriculares
Com base na análise parcelar
concretizada anteriormente, podem elencar-se quatro elementos conceptuais que,
de modo implícito, parecem ter enquadrado e orientado os artefactos pedagógicos
produzidos pelas editoras. Nesse sentido, sublinham-se a/o:
a) Conceção
moderna de currículo. Uma ideia de
especialização do saber e, por esse motivo, da sua segmentação, quando uma
lógica de integração cultural é substituída por uma planificação na qual se
fragmentam as diferentes componentes curriculares (o Português, o Estudo do
Meio, a Educação Física, a Cidadania, …). Essa característica traduz, pelo
menos em parte, a crítica de certos autores supracitados (Paraskeva, 2011;
Torres Santomé, 2015), pois sobressai uma visão tecnológica do currículo quando
aquela mesma divisão é perpetuada ciclicamente ao longo das semanas e se
privilegiam processos rotineiros, quase mecanismos rígidos, como por exemplo uma
certa canonização de ‘aulas’ com uma estrutura clássica: motivação,
desenvolvimento, consolidação.
b)
Enclausuramento cultural. Os sabres
aprendidos na escola são, por definição, resultado de uma cultura escolarizada (Gimeno
Sacristán, 2015). Essa escolarização da cultura parece ser intensificada
quando, nos planos de aula, os recursos pedagógicos que surgem como elementos
indispensáveis para a recolha e interpretação de informação se circunscrevem às
produções da editora ou àqueles outros que se construíram especificamente para
o #EstudoEmCasa.
A experiência escolar dos alunos torna-se, assim, resultado de uma seleção
cultural que se intensifica pelo enclausurar das suas interações sobretudo com
aqueles recursos mencionados.
c) Entendimento
individualista e reprodutivo da aprendizagem. Não
negligenciando o contexto global que ocasionou os documentos analisados, o
processo de aprendizagem proposto afasta-se das considerações de Aoki (2004),
pois desenhado maioritariamente de forma individual(ista), condicionando a
possibilidade de as crianças agirem com autonomia e poder de decisão. Em
distintas tarefas propostas, os estudantes precisam de adotar uma atitude
passiva e quase isolada, para verem vídeos, resolverem operações numéricas,
desenharem, … E, assim, são encarados, preferencialmente, como consumidores de
cultura e não tanto como potenciais construtores da mesma.
d)
Distanciamento da avaliação face à
prática pedagógica. As
referências e/ou as estratégias educativas vinculadas ao processo de avaliação
de/e para as aprendizagens apresentam-se com residual significado. Emerge uma
conceção curricular e pedagógica pela qual a ‘instrução’ é artificialmente
separada dos processos de avaliação que, no geral, surgem em momentos
posteriores ao ensino e com um carácter sobretudo de verificação.
Distanciando-se das conceções de, entre outros, Diogo (2010) ou Kelly (2004), a
avaliação não se revela, então, como um elemento, constante e interativo,
indissociável da prática pedagógica e, mais ainda, da experiência formativa de
cada estudante.
Mais uma vez, ressalva-se o
reconhecimento de que a conjuntura criada em torno de uma situação sanitária
quase inédita no país terá exigido um conjunto de opções praticamente imediatas
e, por isso, pouco premeditadas. Também neste âmbito educativo. Os aspetos
considerados acima, face a essa contingência tão específica e tão nova, só
podem ser tomados como meras observações que, acima de tudo, permitem pensar
(mais e, porventura, melhor) sobre o 1.º Ciclo do Ensino Básico, em Portugal.
5. Considerações
finais
O intuito principal deste trabalho
sustentou-se naquela pergunta já enunciada no principiar do texto: que conceção pedagógico-curricular se evidenciou
pelas planificações semanais (do 1.º Ciclo do Ensino Básico) desenhadas editorialmente
para o ensino à distância?
Após a análise dos dados recolhidos,
constata-se que, de forma geral, não existem conceções pedagógico-curriculares
totalmente unânimes ou uniformizadas, antes se reconhecendo uma certa
diversidade conceptual que enquadra as sugestões subscritas pelas editoras, por
sua vez traduzida em propostas com traços distintivos.
Pese embora esse facto, foi possível
perceber que vai tendo maior adesão, neste caso junto de organizações
específicas ligadas ao domínio da educação, uma perspetiva sobre a planificação
e a prática pedagógica que tende a recuperar os enquadramentos curriculares
mais clássicos e que se associam à ideia de engenharia curricular
ou de um currículo
tecnocrático (Gimeno Sacristán, 2015). Essa
tendência reflete-se, por exemplo, no desenho de um plano (de aula) estruturado
em torno de pilares como a segmentação do saber, a repetição de estruturas
horárias e de estratégias pedagógicas, a recorrente passividade dos agentes
educativos, em particular dos alunos, e, ainda, a deslocação da avaliação para
um enquadramento ‘parapedagógico’.
Assim se torna mais claro, tal como tem
notado Paraskeva (2011), como o desenvolvimento dos estudos curriculares não
correspondeu, desde logo, a uma reestruturação das perspetivas sobre currículo,
ação profissional dos professores ou agência dos estudantes como elemento
indissociável da experiência escolar. Por tal, e depois deste ponto de partida,
outras investigações – talvez assentes na metodologia de investigação-ação ou
mais próximas do currículo em ação (Diogo, 2010)
– facilitem uma maior interação entre os conceitos provenientes daquela área do
saber e o que realmente é concretizado por cada um dos agentes educativos no
seu contexto.
Ainda a propósito deste trabalho que
aqui tem o seu ponto final, é (quase) impossível não retomar o entusiasmo
conceptual e prático, de Alonso (2002) ou de Torres Santomé (2015), decorrente
da ideia de currículo
integrado. Na realidade, e pela conceção de
Moreira e Duarte (2019b), um referencial particularmente pertinente nos níveis
iniciais de ensino. Contrariar essa característica curricular parece, de facto,
coincidir com um certo processo de desvirtuação e de descaracterização do 1.º
Ciclo do Ensino Básico.
Por fim, importa referir que,
nomeadamente em Portugal, ficou patente um real envolvimento de diferentes
instituições e agentes educativos na procura de soluções que promovessem
aprendizagens significativas numa situação de ensino à distância, por sua vez
distante de práticas e decisões habituais e já rotineiras. No entanto, não
deixa de ser notório que tal conjuntura social e de saúde pública induziu,
naturalmente, uma ação pedagógica de maior dependência face às tecnologias
digitais, mas, e em oposição às potencialidades destes recursos, de um também
maior isolamento (didático).
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Cómo
citar (APA):
Duarte, P. & Moreira, A. I. (2021).
Planificar (n)o ensino à distância: opções pedagógico-curriculares para o 1.º
Ciclo. Revista Ibero-Americana de Educação, 85(1), 205-225. https://doi.org/10.35362/rie8514057
Notas
1 A 11 de março
de 2020, e tomando em atenção a evolução da situação a nível mundial, a
Organização Mundial de Saúde declarou a Covid-19 como uma pandemia, tendo
solicitado aos vários países “uma ação urgente e agressiva”.
2Todas as
citações diretas foram traduzidas para português pelos autores do artigo.
3 As semanas
escolhidas remetem para o último mês do 3.º período, já numa fase avançada do
processo de ensino à distância. Além disso, evitaram-se aquelas que se destinavam
quase em exclusivo a momentos de avaliação ou que incluíam mais do que um
feriado nacional. Assim, consideraram-se as semanas de 1 a 5 de junho e de 15 a
19 de junho (ano de 2020).
4 A denominação
atribuída às duas editoras (A e B) foi totalmente aleatória e cumpre, acima de
tudo, o intuito de garantir o anonimato das mesmas.
5 Programa
televisivo que resultou de uma parceria entre o Ministério da Educação
português e o canal de televisão pública RTP, para responder à suspensão da
atividade letiva presencial (em virtude da situação sanitária ocasionada pela
Covid-19) e permitir que os alunos do Ensino Básico acompanhassem a lecionação
de conteúdos curriculares organizados para os diferentes anos de escolaridade.
Este Estudo em Casa surgiu, então, como um complemento do ensino à distância
instituído como obrigatório em todo o país.