Revista Iberoamericana de Educación [(2021), vol. 87 núm. 1, pp. 115-134] - OEI

https://doi.org/10.35362/rie8714579 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653

recibido / recebido: 00/00/2021; aceptado / aceite: 00/00/2021

Estamos sendo invadidos: discutindo sobre os conceitos científicos relacionados à pandemia de COVID-19 através da elaboração de memes

Jefferson Silva Costa (1)  

Tereza Cristina Cavalcanti de Albuquerque (2)  

(1) Secretaria de Educação de Pernambuco, Brasil; (2) Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Brasil

Resumo. No processo de ensino e aprendizagem em Ciências, a linguagem multimodal é essencial, e o gênero multimodal meme evidencia esta linguagem híbrida, nas interações comunicativas dos estudantes. Para valorizar este tipo de prática social, como um recurso em metodologias inovadoras, a presente pesquisa objetivou investigar como a elaboração de memes possibilita a identificação dos conhecimentos prévios dos estudantes sobre a pandemia da COVID-19, através do uso de linguagem multimodal. Nesta pesquisa qualitativa, os dados foram construídos em aulas da disciplina Biologia com a participação de 136 estudantes do ensino médio. Como resultados, os estudantes elaboraram 221 memes envolvendo a linguagem multimodal. Estes memes, foram analisados e categorizados considerando seu objetivo comunicacional: memes de informação (n=62), memes de crítica social (n=77) e memes de entretenimento (n=82). Os conhecimentos prévios dos estudantes abrangeram temáticas como a necessidade de adotar medidas profiláticas para evitar o contágio, as mutações do vírus, o ensino remoto, e a compreensão sobre a importância do processo de vacinação com críticas diretas ao governo brasileiro. O protagonismo dos estudantes na elaboração de memes sobre a pandemia de COVID-19 evidenciou sua capacidade criativa, de comunicação e de reflexão crítica através da elaboração de textos multimodais.

Palavras-chave: multimodalidade; ensino médio; cultura digital; metodologias inovadoras.

Estamos siendo invadidos: discutiendo sobre los conceptos científicos relacionados con la pandemia de COVID-19 a través de la elaboración de memes

Resumen. En el proceso de enseñanza y aprendizaje de las Ciencias, la comunicación multimodal es imprescindible, y el meme destaca el discurso híbrido en las interacciones comunicativas de los estudiantes. Para valorar este tipo de práctica social, como recurso en metodologías innovadoras, la presente investigación tuvo como objetivo investigar cómo la creación de memes permite identificar los conocimientos previos de los estudiantes sobre la pandemia de la COVID-19, a través del uso del discurso multimodal. En esta investigación cualitativa, se crearon los datos en las clases de la asignatura de Biología con la participación de 136 alumnos de enseñanza secundaria. Como resultado, los alumnos elaboraron 221 memes utilizando el discurso multimodal. Se analizaron dichos memes y se clasificaron teniendo en cuenta su propósito comunicativo: memes de información (n=62), de crítica social (n=77) y de entretenimiento (n=82). Los conocimientos previos de los estudiantes abarcaban temas como la necesidad de adoptar medidas preventivas para evitar el contagio, las mutaciones del virus, la enseñanza remota y la comprensión de la importancia del proceso de vacunación con críticas directas al gobierno brasileño. El protagonismo de los estudiantes en la elaboración de memes sobre la pandemia COVID-19 evidenció su capacidad creativa, comunicativa y reflexión crítica a través de la elaboración de textos multimodales.

Palabras clave: multimodalidad; enseñanza media; bachillerato; cultura digital; metodologías innovadoras.

We are being invaded: discussing scientific concepts related to COVID-19 pandemic through the development of memes

Abstract. In the teaching and learning process in Science, multimodal language is essential, and the multimodal meme genre shows this hybrid language in students’ communicative interactions. In order to value this type of social practice as a resource in innovative methodologies, this research aimed to investigate how the development of memes enables the identification of students’ prior knowledge about the COVID-19 pandemic, through the use of multimodal language. In this qualitative research, data were constructed in Biology classes with the participation of 136 high school student. As a result, students created 221 memes involving the multimodal language. These memes were analyzed and categorized considering their communicational purpose: information memes (n=62), social criticism memes (n=77) and entertainment memes (n=82). The students’ prior knowledge covered issues such as the need to adopt prophylactic measures to avoid contagion, virus mutations, remote teaching, and understanding of the importance of the vaccination process with direct criticism of the Brazilian government. The protagonism of students in the elaboration of memes about the COVID-19 pandemic evidenced their creative capacity, communication and critical reflection through the elaboration of multimodal texts.

Keywords: multimodality; high school; digital culture; innovative methodologies.

1.  Introdução

Aprender Ciências equivale a aprender novas linguagens. Cada área do conhecimento possui termos, expressões e representações que foram construídas historicamente e que são empregadas nos processos de ensino e aprendizagem. À medida em que aprofundam os seus estudos, os usuários reconhecem esta linguagem e as suas particularidades, e passam a emprega-la, sendo possível, assim, perceber o domínio de conhecimentos que possuem sobre os conceitos, os fenômenos, os procedimentos e os saberes relacionados às distintas áreas da Ciência, observando a linguagem que utilizam. Esta linguagem, fruto de um longo processo científico e social, se atualiza a partir das novas descobertas do seu campo de conhecimento e de novas formas de representação permitidas pela evolução tecnológica.

Em sala de aula, o domínio da linguagem científica é um dos objetivos da Educação em Ciências, e o docente busca utilizar signos que contenham um significado claro, objetivo e menos propenso à dúvidas. Sobretudo em se constatando o caráter abstrato de vários conteúdos desta área, há a preferência de representar o que há a pretensão de ensinar, e a escolha sobre como realizar esta representação é primordial. E cada vez mais, os docentes têm empregado a representação multimodal. A linguagem multimodal emprega mais de um modo semiótico de forma integrada em seu texto ou discurso, como por exemplo: o modo verbal escrito e o modo visual, constituindo assim, um todo significativo (Kress e van Leeuwen, 2006).

Portanto, em se tratando do texto multimodal em que a linguagem visual e a linguagem verbal interagem, é preciso considerar ambas as linguagens com a mesma importância, sem priorizar uma em detrimento à outra, superando a concepção de que uma “explica” e/ou “ilustra” a outra. Ambas as linguagens têm sua importância e, juntas, são mais potentes (Albuquerque, 2018).

Com o advento das mídias sociais, textos multimodais novos e dinâmicos, tornam-se mais atrativos e, por conta disso, são acessados cotidianamente por grande número de usuários. Exemplos destes textos são os memes, posts e webtoons, que divulgados nas redes sociais tratam dos temas mais diversos e controversos, e além de terem em comum o uso da multimodalidade, também tratam de temas da atualidade. Entre estes temas, alguns envolvem conhecimentos científicos, como é caso da pandemia da COVID-19, que é uma doença respiratória causada pelo vírus Sars-Cov-2 conhecido popularmente por novo coronavírus (Andersen, Rambaut, Lipkin, Holmes & Garry, 2020).

Os gêneros multimodais presentes na Internet, como os memes1, são criados e disseminados por usuários das redes sociais que, apesar de não serem considerados especialistas nos assuntos tratados, com criatividade divulgam ideias a respeito, por meio de conhecimentos básicos, relacionando-os a uma imagem e construindo um texto verbal com um viés de humor. Facilmente os memes são difundidos por conta de seu forte viés humorístico, no entanto, há também um viés provocativo que pode provocar reflexões críticas sobre os temas tratados.. Fora da sala de aula, os memes fazem parte da comunicação cotidiana entre as pessoas, especialmente entre as mais jovens. Para cada notícia que surge, novos memes são criados. Os memes são meios multimodais de comunicação, provenientes da internet e apresentam sempre um tema contemporâneo. Há inúmeros memes criados sobre a pandemia da COVID-19, no entanto, os memes não estão presentes em sala de aula quando os docentes tratam deste conteúdo. Mas por quê?

Quando em Ensino de Ciências discute-se sobre metodologias inovadoras, usualmente, as propostas de inovação apresentam elementos diversificados como experimentos com materiais de baixo custo, jogos e encenações, mas continuam com o foco na ação docente, enquanto aos estudantes resta desenvolver as ações guiadas pelo professor: os passos que devem seguir e o que devem aprender. No presente artigo, busca-se apresentar uma possibilidade de inovação, baseada no protagonismo dos estudantes, através da construção de textos digitais multimodais: os memes. Por conta disto, foi proposto que dentro do estudo da disciplina Biologia, os estudantes do ensino médio tratassem sobre um tema bastante atual, que apresenta elementos científicos e sociais em seu bojo: a pandemia da COVID-19. O objetivo do estudo foi, portanto, investigar como a elaboração de memes possibilita a identificação dos conhecimentos prévios dos estudantes sobre a pandemia da COVID-19, através do uso da linguagem multimodal. Como objetivos específicos: (1) identificar os objetivos comunicacionais dos memes elaborados; (2) avaliar a aproximação com os saberes científicos e possíveis erros (3) identificar as interações multimodais estabelecidas.

2.  A pandemia de COVID-19 e o contexto educacional

Desde fevereiro de 2020, quando o primeiro caso da COVID-19 foi notificado no Brasil (Palácio & Takenami, 2020), a pandemia tornou-se assunto muito presente no cotidiano dos brasileiros. A partir desse momento, passou a ser amplamente divulgada, especialmente nas redes sociais, a necessidade do distanciamento social e do uso de máscaras para conter o avanço do novo coronavírus. Todavia, Bezerra, Silva, Soares e Silva (2020) destacam que muitas dessas práticas têm sido controversas no país, especialmente em função dos impactos que as medidas restritivas ocasionam no cotidiano da população.

No contexto de sala de aula, a pandemia da COVID-19 pode propiciar amplas discussões sobre conhecimentos científicos que, eventualmente, podem ser ignorados nas mídias sociais, as quais os estudantes possuem fácil acesso. Um estudo de Basch, Hillyer e Jaime (2020) observou que menos de 10% dos vídeos veiculados entre março e abril de 2020 com a hashtag “#coronavírus”, na rede social Tik Tok, mencionavam transmissão, sintomatologia e mecanismos de prevenção da COVID-19. Esse dado é ainda mais preocupante ao considerarmos que a plataforma de vídeos Tik Tok é muito popular entre jovens com idade de 13 a 24 anos, faixa etária que abarca estudantes de ensino básico/superior no Brasil.

Neste sentido, apesar de reconhecermos a importância das redes sociais para o processo de disseminação das práticas que podem conter o avanço do novo coronavírus, conforme elucidam Latgé, Araújo e Júnior (2020), é crucial compreender, também, que a ampla possibilidade de divulgação de informações, oferecida pelas mídias digitais, é uma questão de duas óticas: se por um lado oportuniza informações baseadas em dados científicos sobre a doença, por outro possibilita a divulgação de informações equivocadas e abre espaço para as fake news, que dificultam o trabalho de controle da pandemia (Basch et al., 2020; Latgé et al., 2020; Palácio & Takenami, 2020).

Tão logo, é crucial que os professores incorporem temáticas relacionadas a pandemia da COVID-19 no contexto educacional e, por consequência, promovam um debate sobre a importância da adoção das medidas preventivas. Além disso, por se tratar de uma doença infectocontagiosa, é possível despertar o interesse dos estudantes para diversos conhecimentos científicos a partir da curiosidade sobre um tema tão atual.

A este respeito, Oliveira, Candito, Guerra e Chitolina (2020) desenvolveram uma proposta educativa no processo de ensino remoto, cujo tema gerador era o novo coronavírus. Os autores destacaram a importância de realizar a contextualização dos conteúdos científicos para despertar o interesse do sujeito educando, salientando o engajamento dos estudantes na realização das atividades propostas. Para além disso, Palácio e Takenami (2020) argumentam que o maior obstáculo para promover o processo de sensibilização para adoção das medidas preventivas reside na forma como as práticas educativas sobre temas relacionados a saúde se constituem no Brasil, uma vez que estas “ainda se encontram fortemente marcadas por concepções tradicionais e verticalizadas, e têm se revelado de forma pontual e fragmentada” (p.11).

Portanto, é crucial que o processo de Educação em Ciências comece a se inteirar dos assuntos do cotidiano dos estudantes, especialmente quando relacionados às questões de saúde pública, como é o caso da pandemia da COVID-19. Este processo, na concepção de Costa e Carneiro-Leão (2020), pode oportunizar uma nova forma de educar em saúde, indo além das práticas normalizadoras comuns e que têm logrado pouco êxito na atualidade. Entretanto, não basta apenas haver contextualizações diversas. É preciso conceder protagonismo ao estudante para que ele possa se expressar e, por consequência, participar ativamente do processo de construção do conhecimento. Lucena (2018) salienta que para superar a verticalização, quando se trata de temáticas da área da saúde, é necessário adotar práticas inovadoras, subsidiadas por metodologias ativas de aprendizagem, dialógicas e promotoras de autonomia e empoderamento do educando.

Este processo voltado à horizontalidade, em termos de pandemia da COVID-19, pode proporcionar reflexões sociais importantes que precisam ser abordadas em sala de aula, como é o caso do que Valla (2006) denomina “culpabilização da vítima” (p. 53). Para o pesquisador, este processo consiste em atribuir errôneamente a culpa direta, pelo adoecimento da população, ao agente patogênico e indireta ao próprio sujeito, individualizando um problema de saúde pública, como é o caso da pandemia do novo coronavírus.

Diante da emergência global, ocasionada pela pandemia da COVID-19, é crucial o desenvolvimento de estratégias inovadoras para trabalhar essa temática no ambiente escolar, sobretudo em tempos de ensino remoto. A construção de memes por estudantes surge neste contexto, especialmente porque, segundo Dynel (2021), através dos memes os sujeitos expressam opiniões sérias a respeito de questões sociais e políticas da atualidade, conforme será abordado.

3.  Os memes invadindo a sala de aula

A cultura digital2 que envolve a sociedade atual, possui uma linguagem em constante transformação. Na comunicação através de diferentes meios digitais, as palavras são abreviadas e o emprego de imagens através de emojis, figurinhas, memes e outros, é uma prática constante das pessoas de diferentes gerações, mas principalmente dos adolescentes e jovens em idade escolar. São estes novos textos, chamados de gêneros textuais digitais, que estão transformando a linguagem, como afirma o pesquisador Marcuschi (2005): “Esses gêneros que emergiram no último século no contexto das mais diversas mídias, criam formas comunicativas próprias com um certo hibridismo que desafia as relações entre oralidade e escrita” (p.21).

Um destes gêneros híbridos são os memes. No contexto da sala de aula, o uso de memes é uma possibilidade de inovação e de interação com a cultura digital dos estudantes, pois como “um dos principais elementos da cultura digital” (Martino & Grohman, 2017, p.94) os memes tem presença constante na comunicação entre seus pares e por conta disto, sua leitura, sua interpretação e sua elaboração são dominadas por grande parte deles. Estabelecer uma proximidade com a linguagem empregada pelos estudantes sem, contudo, perder o rigor e o respeito à cientificidade é um caminho metodológico atraente para mediar os estudos sobre a pandemia da COVID-19, possibilitando uma aprendizagem significativa dos conteúdos de Ciências Naturais.

Na figura 1, é possível observar memes que foram veiculados no ano de 2020 no Brasil. Ambos tratam sobre a pandemia da COVID-19. Com viés de humor, chamam a atenção para os sintomas e para a importância do distanciamento social.

Figura 1. Exemplos de memes sobre a epidemia da Covid-19 que circularam no Brasil em 2020.

Fonte: Museu de Memes, UFF (2020).

Algumas das características definidoras dos memes são atrativas aos estudantes e podem gerar maior engajamento nas situações de aprendizagem, não apenas sobre os conteúdos das Ciências Naturais, mas sobre os conteúdos das demais áreas de conhecimento. Dentre as características apresentadas em diferentes estudos desenvolvidos no Brasil, principalmente a partir do ano de 2010 (Carvalho, 2020; Martino & Grohman, 2017; Silva, 2019) são evidenciadas: (1) replicação, (2) eventicidade, (3) instantaneidade, (4) facilidade de criação, (5) ausência de autoria, (6) predomínio do uso de imagens combinadas com palavras, (7) paródia e (8) sátira.

O cientista britânico Richard Dawkins cunhou o termo meme no livro O Gene Egoísta, conceituando-o como replicador cultural. Antes da existência das redes sociais virtuais, que é atualmente o principal espaço de replicação dos memes, alguns textos já eram assim considerados, como, por exemplo, as mensagens de e-mail que se replicavam com pequenas modificações, conhecidas no Brasil como “correntes”. O meme, assim como o gene, seria um replicador, o responsável pela perpetuação da cultura, da mesma forma que o gene é o perpetuador da vida (Dawkins, 2007). Sobre esta analogia entre meme e gene, Leal-Toledo (2013) destaca que quando Dawkins relacionou o meme ao gene ele estava “querendo mostrar que o importante do gene não era ser uma molécula de DNA, mas que ele é um replicador, ou seja, algo que faz cópias de si mesmo” (p.186). E assim, o autor propõe que a cultura humana seria copiada e repassada com as transformações que sofreriam para sobreviver e chegar às gerações futuras, como destacam os autores Martino e Grohmann (2017, p.96): “os memes também dependem de uma constante mudança e adaptação para garantirem sua permanência na cultura”.

A eventicidade é destaca pelas pesquisadoras Marina Lara e Marina Mendonça ao definirem os memes como:

Enunciados que podem ser compostos por materialidades verbais, visuais ou verbo-visuais, os quais veiculam humor e ressignificam imagens, acontecimentos, estereótipos e frases para que essa finalidade seja atingida. Assim, é um gênero do discurso que produz humor ligado à sua eventicidade: sua arquitetônica está sempre relacionada a um acontecimento da vida, majoritariamente atual, para a produção de sentido (Lara & Mendonça, 2020, p.189).

Isto significa que a elaboração do meme está sempre relacionada ao evento mais atual e por isto, é rapidamente propagado, antes que um novo evento o supere em importância como novidade, refletindo a característica desse recurso em expressar opiniões sobre temas da atualidade (Dynel, 2021). Ao surgir novo evento, novos memes surgirão. Um exemplo disso pode ser observado nos memes publicados sobre a política nacional brasileira a respeito da vacinação contra a COVID-193, na figura 2.

Figura 2. Exemplos de memes sobre a vacinação contra Covid-19 no Brasil

Fonte: Museu de Memes, UFF (2020).

A eventicidade, neste sentido, está intimamente relacionada às características de instantaneidade, facilidade de criação e ausência de autoria. As autoras Lara e Mendonça (2020) discutem que a reação instantânea para a elaboração de meme ocorre porque isto é fundamental para que o leitor alcance facilmente o seu significado, tendo em vista que a notícia ao qual está relacionado deve estar entre os assuntos em destaque na mídia. Como os memes, em sua maioria, são criados a partir de imagens já amplamente conhecidas, a fácil elaboração colabora para que ele seja rapidamente produzido e propagado, o que, por sua vez, não valoriza a identificação da autoria. Neste processo, para o elaborador de memes é mais importante observar o alcance ou a repercussão que o meme criado pode ter em pouco tempo, do que indicar a sua autoria. Ou seja, a rapidez de produção e propagação é mais valorizada que a autoria:

Em um cenário de produção majoritariamente colaborativa, a discussão sobre autoria dos enunciados digitais torna-se, arriscamos dizer, irrelevante. Vê-se cada vez mais uma valorização, nesse contexto, da instantaneidade, do compartilhamento e da produção de sentidos imediata, quesitos que se “descolam” do conceito de autoria (pensando em um sujeito que produz um enunciado e é reconhecido/responsabilizado por isso). (Lara e Mendonça, 2020, p.191).

A questão da “produção majoritariamente colaborativa”, discutida acima por Lara e Mendonça (2020), salienta que, como a elaboração do meme é a partir de imagens largamente difundidas na Internet, a autoria do novo meme precisaria considerar o primeiro autor, que muitas vezes não é facilmente identificado. No Brasil, os memes viralizam tão rápido que, muitas vezes, o público primeiro o recebe e depois vai pesquisar a notícia de referência.

Os autores Martino e Grohman (2017) consideram que na elaboração de memes há o predomínio do uso de imagens e palavras uma vez que eles “são imagens, dos mais variados tipos, as quais são geralmente acrescentadas palavras que auxiliam a compor uma determinada mensagem” (p.97). Os autores destacam ainda o meme como símbolo multimodal e salientam a sua capacidade de ser replicado para comunicar diferentes ideias. Na sociedade brasileira temos como exemplo o meme da personagem Nazaré Tedesco4, que é constantemente replicado com a utilização de uma mesma imagem base e nela são inseridos diferentes dizeres, relacionados aos temas mais atuais, como na figura 3 abaixo:

Figura 3. Exemplos de memes da personagem Nazaré Tedesco

Fonte: Museu do Memes, UFF (2020).

Como o meme se apresenta de forma predominantemente multimodal, a sua leitura requer a atenção aos signos visuais e verbais. Em uma análise sobre a composição dos memes, as pesquisadoras Lara e Mendonça (2020) descrevem as sutilezas presentes neste texto multimodal:

A forma composicional estável de um meme revela-se por meio de uma imagem, em forma quadrangular ou retangular (podendo ser seccionada), com texto verbal sobreposto (em português ou em outra língua), organizado de forma binária na parte superior e inferior da imagem (sendo nesta que ocorre, geralmente, o enunciado de ruptura que produz humor). Há também a possibilidade de o texto verbal estar presente somente numa dessas duas partes da imagem. O estilo do meme também é constituído, muitas vezes, por citação e paródia, isto é, em diálogo com outros textos e outras imagens, podendo citá-los de forma direta ou indireta, ressignificando-os em um novo acontecimento. Em relação ao componente verbal que constitui esse gênero, temos um estilo, de maneira geral, mais próximo da oralidade, o que confere informalidade ao enunciado. (Lara & Mendonça, 2020, p.191)

Logo, a produção de memes com rapidez, em resposta a um evento quase instantaneamente é uma forma de valorizar a escrita multimodal que há tanto tempo foi estigmatizada na escolarização. Sem hierarquização. Em um meme, a união entre o verbal e o visual é quase uma regra e quando isto acontece, a supressão de um destes modos prejudicaria a compreensão da ideia que se quer comunicar: os modos se complementam

Em sala de aula o docente usualmente emprega a linguagem oral, as imagens do livro didático e o texto verbal escrito em suas páginas, emprega gestos na explicação, escreve ou desenha no quadro. O docente, neste contexto, parece empregar “naturalmente” uma linguagem multimodal. A sua ação envolve uma linguagem multimodal por excelência, mas não se deve considerar o emprego desta linguagem como uma ação natural. Pelo contrário, esta linguagem empregada através de diferentes meios semióticos pode ser estudada, revista, adaptada, ampliada e melhorada para que os objetivos de comunicação sejam atingidos com a menor “flutuação de significados” possível, quando se trata da Educação em Ciências.

Diversos autores (Bautista, Ciannella & Struchiner, 2020; Carvalho, 2020; Dynel, 2021; Felcher & Folmer, 2018; Lara & Mendonça, 2020; Silva, 2019) destacam que a paródia e a sátira são duas características marcantes dos memes. Os eventos ou sujeitos sociais são satirizados através da acentuação das particularidades próprias ou por comparações com outros. A sátira tem um caráter que é irônico, denunciador e sutil, não sendo simplesmente cômico. A paródia, por outro lado, provoca um efeito mais cômico, mas que também leva à reflexão crítica.

Neste sentido, pensar sobre o uso e produção de memes em sala de aula para discutir um tema atual como a pandemia da COVID-19, resgata a importância das imagens na comunicação. Este recurso pode ser explorado também para tratar sobre outros conteúdos em sala de aula. O presente estudo ao analisar os memes elaborados por estudantes evidencia uma prática educativa que coloca estes estudantes como protagonistas, pois em colaboração com os colegas, foram desafiados a refletir criticamente sobre qual mensagem sobre a COVID-19 veiculariam e quais elementos verbais e visuais seriam os mais adequados.

4.   étodos e materiais

A abordagem metodológica desta pesquisa pode ser compreendida como de cunho qualitativo, visto que o desenvolvimento das atividades, a construção dos dados empíricos e as análises dos dados ocorreram para avaliar o processo de elaboração dos memes como uma proposta de prática de ensino inovadora, fornecendo protagonismo aos sujeitos da pesquisa, conforme os pressupostos apontados por Godoy (1995): métodos pautados na interação e no protagonismo dos sujeitos da pesquisa; análises constituídas por processos interpretativos pautados em uma teoria ou técnica específica; e a pesquisa é emergente, posto que não pode ser completamente pré-definida, requerendo dos pesquisadores a adaptabilidade para questões que possam aparecer durante o seu desenvolvimento.

O estudo foi desenvolvido com 136 estudantes de quatro turmas de primeiro ano do ensino médio da rede pública estadual de Pernambuco, Brasil, nos meses de abril e maio de 2021. A prática de ensino, a partir da qual foram construídos os dados empíricos desta pesquisa, ocorreu dentro do cronograma da disciplina de Biologia5.

Na aula introdutória, sobre aspectos biológicos da pandemia da COVID-19, foi proposto pelo docente6 a construção de um espaço de diálogo dividido em quatro situações, a fim de se obter os conhecimentos prévios dos estudantes: 1º) questionamento oral aos estudantes sobre quais as principais mensagens veiculadas nas redes sociais sobre COVID-19; 2º) reflexão sobre se havia informações importantes a respeito da COVID-19, mas com o uso de humor ou sátira; 3º) questionamento sobre o que são os memes e suas características; 4º) apresentação de alguns exemplares de memes sobre temas diversos, exceto COVID-19, para debate com as turmas.

Na sequência, o docente solicitou aos estudantes que formassem grupos de até cinco componentes e cada grupo deveria elaborar, no mínimo, cinco memes. Alguns estudantes optaram por fazer a construção de forma individual. Neste processo de construção de memes os estudantes atuaram com autonomia para escolher quais temas relacionados à COVID-19 seriam tratados e se utilizariam ou não as plataformas de criação de memes existentes na internet.

Os memes elaborados pelos estudantes foram enviados aos pesquisadores para a análise. O processo de análise dos memes empregou a técnica de análise de conteúdo, proposta por Bardin (2006). Os pressupostos da análise de conteúdo sugerem três etapas para o tratamento dos dados de uma pesquisa: (1) análise inicial exploratória para definição dos documentos que serão analisados e para a construção de hipóteses; (2) análise dos documentos e definição das categorias em que cada dado será classificado e (3) estudo reflexivo dos dados que produz as interpretações inferenciais.

Além disso, Bardin (2006, p. 147) sugere que a “a maioria dos procedimentos de análise organiza-se em redor de um processo de categorização”, especialmente em se tratando da análise de conteúdo. Dessa forma, os memes elaborados pelos estudantes foram categorizados pelos pesquisadores em três grupos de acordo com o seu objetivo comunicacional principal: memes de informação, memes de entretenimento (Gonçalves, 2016) e memes de crítica social. Como memes de informação, foram classificados aqueles cujo objetivo foi apresentar informações relacionadas à pandemia da COVID-19 como: a utilização do álcool em gel, da máscara, do respeito ao isolamento social e da importância de evitar aglomerações. Os memes classificados como de entretenimento foram aqueles que enfatizaram o humor, o emprego de trocadilhos e situações cômicas relacionadas à pandemia. Estas duas categorias foram propostas por Gonçalves (2016)7 e empregadas no presente estudo.

A categoria de crítica social emergiu a partir da análise inicial exploratória dos dados (Bardin, 2011) pois a crítica social se fez muito presente entre os memes construídos pelos estudantes. Neste sentido, na categoria de crítica social foram classificados os memes que satirizavam a demora no processo de vacinação no Brasil, as ações do governo brasileiro e da população perante a pandemia assim como seus impactos na proliferação do vírus e no prolongamento das medidas restritivas.

Posteriormente, o docente retornou para debater com as turmas sobre as categorias em que os memes foram classificados. As três categorias de análise e os exemplares de memes categorizados foram apresentados e explicados aos estudantes e eles selecionaram8 os seis memes mais representativos de cada uma das três categorias, totalizando 18 memes.

A análise do conteúdo dos 18 memes selecionados pelos estudantes e apresentados neste estudo considerou os seguintes aspectos: a informação principal sobre a pandemia da COVID-19 comunicada através dos memes; a integração entre as linguagens verbal e visual; a aproximação com conhecimentos científicos sobre a COVID-19 e possíveis erros conceituais; características da construção de memes evidenciadas (eventicidade, sátira, entre outras) e reflexões críticas sobre a pandemia.

5. Resultados e discussões

Os estudantes elaboraram o total de 227 memes sobre a pandemia da COVID-19 e temas relacionados. Foram observados três tipos de composição: memes compostos por imagem e texto verbal (n=199), memes com texto verbal e imagens em movimento (n=22) e memes com texto verbal sem imagens (n=6). Como um dos objetivos deste estudo foi analisar a interação multimodal estabelecida na composição dos memes, foram retirados da amostra estes seis memes sem imagens. Então, como amostra deste estudo foram analisados 221 memes. Os memes foram analisados e agrupados em três categorias: memes de informação, memes de entretenimento (Gonçalves, 2016) e memes de crítica social. A seguir, será apresentada a análise dos 18 memes escolhidos pelos estudantes, sendo seis em cada uma das três categorias.

5.1 Categoria memes de informação

Os memes de informação elaborados pelos estudantes (n=62) e apresentados no quadro 1 discutem sobre as medidas necessárias para evitar o contágio da Covid-19: o uso de máscaras e álcool em gel (M1, M4 e M6), a defesa da vacina em contraposição ao medicamento Cloroquina (M2), a importância de manter o isolamento social mesmo após a vacinação (M3). Ao mesmo tempo que informa, estes memes trazem o viés satírico ao ironizar a declaração do presidente do Brasil9 de que a pandemia era uma “gripezinha” (M1) considerando este sujeito no meme como o impostor, ou seja, aquele que finge fazer parte do grupo e defender as mesmas ideias, mas não o faz.

Observando a composição multimodal dos memes desta categoria, identifica-se que todos, exceto o M4, foram construídos por quadrantes de imagens menores sinalizando um processo de narratividade (Kress & van Leeuwen, 2006): uma história sendo contada ao integrar as imagens e as palavras. Em cada um dos memes, percebe-se que só as palavras ou só as imagens não conseguiriam informar o que se quer (até mesmo no M2, apresenta a palavra “cloroquina” no rótulo da imagem do medicamento). Os pesquisadores Bautista et al. (2020) reforçam esta característica multimodal dos memes.

O meme M1 mostra um diálogo entre os personagens do jogo eletrônico Among Us, bastante popular entre os jovens, reforçando a importância da utilização de memes no processo de ensino, pois aproxima conceitos científicos ao universo vivenciado pelos estudantes.

Quadro 1. Exemplares da categoria Memes de Informação

ID

Meme

ID

Meme

M1

M4

M2

M5

M3

M6

Fonte: elaboração dos estudantes.

No que se refere à proximidade dos conceitos científicos, os memes elaborados com o objetivo de informação, evidenciam que os conhecimentos prévios dos estudantes estão alinhados com as informações disseminadas pela mídia para o controle da pandemia da COVID-19. O meme M1, por exemplo, salienta que não é admissível denominar a COVID-19 como gripezinha e esta informação é reforçada pelo elevado quantitativo de óbitos em decorrência da pandemia no Brasil, conforme salientam Palácio e Takenami (2020). No meme M2 o personagem apresenta reação negativa ao uso da medicação cloroquina, informação que combate inclusive os memes que circulam no Brasil com informações inverídicas sobre a eficácia deste medicamento em um suposto tratamento precoce para COVID-19 e foram difundidas durante a pandemia inclusive pelo governo federal brasileiro (Barcelos et al, 2021; Calil, 2021).

Na análise do meme M5 observa-se que os estudantes optaram por utilizar dois personagens vilões de novelas brasileiras distintas. Os personagens Félix10 e a personagem Nazaré Tedesco, representam um diálogo a respeito do teste positivo para covid-19. O que chama a atenção neste meme é a sinalização de distanciamento por parte da participante feminina, inclusive com a inserção da máscara e dos óculos na figura, pois este comportamento é a orientação adequada quando alguém próximo testa positivo (Palácio & Takenami, 2020; Nadanovsky, 2021). Contudo, é preciso refletir sobre como esse distanciamento excessivo pode vir a se tornar o que Valla (2006) denominou de “culpabilização da vítima”, ou seja, a pessoa deixa de ser compreendida como vítima do vírus e passa a ser evitada e responsabilizada erroneamente pelo próprio adoecimento.

A análise dos memes de informação elaborados pelos estudantes reitera a aplicabilidade deste gênero digital para a identificação dos conhecimentos prévios que os estudantes possuem sobre a pandemia da COVID-19 e, junto a isto, o desenvolvimento da habilidade de construir textos multimodais. As informações contidas nestes seis exemplares mostram que, em sua maioria, as informações estão condizentes com as fontes e dados científicos e podem até mesmo auxiliar na desconstrução de possíveis distorções do conhecimento científico veiculadas por outros memes recorrentes no cotidiano destes estudantes que, apesar de serem expressas em forma de humor, podem disseminar atitudes danosas, conforme já apontado por Bautista et al. (2020). Por outro lado, cabe ao docente problematizar, com as turmas, posturas preconceituosas como a culpabilização da vítima (M5) e a ausência de indicações sobre o uso de água e sabão para higienizar as mãos e objetos, sendo indicado apenas o álcool em gel para este procedimento (M1, M4 e M6), pois são recursos mais acessíveis.

5.2Categoria Memes de Entretenimento

Nos memes construídos pelos estudantes e categorizados como de entretenimento (n=82) é possível notar nos exemplares exibidos no quadro 2, que a sátira é o ponto forte (Bautista et al., 2021; Carvalho, 2020; Felcher & Folmer, 2018; Lara & Mendonça, 2020; Martino & Grohmnn, 2017; Silva, 2019), havendo pouca preocupação em informar ou realizar crítica social (apenas no M12 observa-se o viés de crítica social).

Nos memes M7 e M8 foram atribuídas características humanas ao vírus da COVID-19, o que sinaliza uma possível compreensão de intencionalidade do agente etiológico em causar mortes, como se fosse um organismo consciente. Este recurso, é muito comum em memes (Dynel, 2021), todavia, é importante a intervenção docente para salientar que na perspectiva biológica os vírus são agentes infecciosos que não possuem discernimento.

Na análise do meme M7 é notória a utilização da metalinguagem: um meme sobre fazer meme. Este recurso constrói o significado de que os brasileiros não estão levando o vírus Sars-Cov-2 a sério, e por isso fazem memes, satirizam a doença provocada. No meme M8, protagonizado pelo personagem Félix (apelidado como Bicha Má na internet brasileira), o processo de estabelecimento de sentidos é a tentativa de fazer humor com a possibilidade de voltar ao passado, sequestrar o vírus e evitar a pandemia. Em ambos os casos (M7 e M8) podemos notar que o vírus é retratado com imagens baseadas na sua representação científica, largamente empregada na Internet.

Quadro 2. Exemplares da categoria memes de entretenimento

ID

Meme

ID

Meme

M7

M10

M8

M11

M9

M12

Fonte: elaboração dos estudantes.

Os memes M9, M10, M11 e M12, satirizam situações em que o sujeito utiliza as normas de prevenção ao contágio para evitar situações adversas (M9, M11), satirizam obras de arte mundialmente conhecidas introduzindo elementos relacionados à pandemia e dizeres diversos na replicação do meme (M10) e satirizam a situação de brasileiros que são obrigados a trabalhar durante a pandemia, sugerindo que a infecção com o Coronavírus seria uma possibilidade de folga no trabalho (M12).

De uma forma geral, os memes de entretenimento usam fortemente a sátira, imagens replicadas e interação entre imagens e palavras na construção do todo significativo (Kress e van Leeuwen, 2006) e apesar da conotação de humor e de pouca divulgação de informações científicas, não empregam em sua composição elementos que possam induzir o leitor ao erro e conceitos equivocados. Há a preocupação da sátira, mas com o cuidado de manter a salvo as medidas de prevenção tão necessárias no contexto brasileira, ou seja, os estudantes que optaram pelo viés mais satírico do que informativo ou crítico para a elaboração destes memes, demonstraram que a sátira não precisa ser baseada na veiculação de dados errôneos. É preciso ter responsabilidade e respeito aos ensinamentos e descobertas da Ciência até mesmo para fazer criações humorísticas.

5.3Categoria memes de crítica social

Os estudantes elaboraram 77 memes de crítica social. Os dois primeiros exemplares M13 e M14 (quadro 3), fazem críticas diretas ao atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. No primeiro, o atual chefe do executivo brasileiro é apresentado como um empecilho para os brasileiros se vacinarem, reforçando a importância da educação no processo de sensibilização para a cobrança de mais vacinas. Já o segundo faz referência a um pronunciamento público do mandatário, nas redes de rádio e televisão nacionais, em meados de março de 202011, ao qual ele se referia à pandemia de COVID-19 como “gripezinha”. No meme, é possível observar uma associação entre o quantitativo de óbitos no Brasil, na época de sua construção, e o discurso do presidente Bolsonaro (mesma citação representada no M1).

Para Calil (2021) o discurso de “gripezinha” constitui parte de uma estratégia política do governo Bolsonaro para incentivar a denominada “imunidade de rebanho”, que contraria por completo as orientações de todas os principais órgãos de saúde do mundo.

Essa forma de conduzir a pandemia no Brasil é reiterada no meme M15, quando há uma sátira em relação as expectativas de casos da COVID-19 em território nacional. Neste meme, é possível observar uma associação entre o verbal, o sistema de cores utilizado, às setas e a expressão facial do boneco: no campo da “expectativa” o boneco encontra-se com a expressão facial de confiança na diminuição de casos, representada pela seta descendente; no campo da “realidade” o boneco encontra-se com uma expressão de constrangimento pela elevação do quantitativo de casos, representado pela seta ascendente. As cores de fundo, no entanto, levam o leitor a impressões contrárias às intenções do meme, pois o azul é comumente relacionado à situações boas e a cor vermelha é relacionada à situações críticas, perigosas. Neste sentido, há um erro na composição deste meme.

Nos memes M16 e M17 os estudantes usaram novamente imagens da personagem Nazaré Tedesco. No M16 os estudantes criticam o demorado processo de vacinação no Brasil, reflexão presente também no M13. O meme M17 representa uma crítica à dificuldade da utilização correta da máscara pelos brasileiros, que é uma das principais formas de evitar o contágio (Palácio e Takenami, 2020). A situação sinalizada pelo meme levanta reflexões a respeito da importância de sensibilizar a população sobre o uso correto da máscara. Segundo Dynel (2021), memes relacionados à má utilização da máscara são muitos comuns nas redes sociais, especialmente porque a maioria da população não é habituada ao uso do equipamento.

Quadro 3. Exemplares da categoria memes de crítica social.

ID

Meme

ID

Meme

M13

M16

M14

M17

M15

M18

Fonte: elaboração dos estudantes.

No M18 a crítica está relacionada ao trabalho docente nos diferentes níveis, em que professores e professoras foram obrigados a assumirem as aulas remotas como “palhaços” no sentido pejorativo, sem qualificação para isto, porque a vacina não foi distribuída com a rapidez necessária. Sendo exigido que estes profissionais usem todos os recursos necessários (até se vestir de palhaço) para motivar os estudantes nas aulas à distância.

Nos memes de crítica social elaborados pelos estudantes observa-se a relação estabelecida entre as decisões do presidente do Brasil e o agravamento da epidemia no país. Este tipo de reflexão é importante para demonstrar que o gênero meme pode suscitar nos leitores a compreensão de que o desrespeito aos conhecimentos científicos, por parte dos governantes, pode gerar consequências graves para a população. Ou seja, política e Ciência estão intrinsecamente envolvidas, e a divulgação de informações corretas sobre a Covid-19 colabora para que a população possa tomar as decisões mais acertadas nestes dois campos.

5.4Algumas reflexões

Neste estudo foi observado que muitos dos memes analisados (M4, M5, M6, M8, M9, M14, M16, M17) são replicações de memes brasileiros com a substituição do texto e inserção de elementos gráficos (máscara, álcool em gel) e outras adaptações para relacioná-los à pandemia da COVID-19. Este processo característico da construção deste gênero digital já foi apontado por diversos autores (Dynel, 2021; Bautista et al, 2020; Lara & Mendonça, 2020; Leal-Toledo, 2013; Martino & Grohmnn, 2017; Silva, 2019), o que destaca a versatilidade desse recurso para o processo de ensino, especialmente porque é de fácil elaboração, utiliza recursos da comunicação usual dos estudantes e trata de temas sempre atuais, o que Lara e Mendonça (2020) chamam de eventicidade. A replicação pode ser constatada fortemente nos memes M6 e M16: ambos são constituídos pela mesma imagem base, contudo, o recurso verbal mudou o tom, fazendo com que fossem classificados em categorias distintas na análise.

Outro importante destaque são os memes elaborados pelos estudantes que indicaram as dificuldades que o Brasil possui, desde o começo da pandemia, em promover medidas de isolamento social eficazes (Calil, 2021; Palácio & Takenami, 2020; Latgé et al., 2020;), o que tem levado o país ao destaque internacional em número de mortes e infectados na pandemia. Porém, é importante salientar que existem vários obstáculos para a prática do isolamento social no país: ausência de saneamento básico em residências periféricas, impossibilidade de ficar em casa por conta do trabalho, dificuldade de comprar máscaras adequadas, dentre outras questões (Bezerra et al., 2020). Assim sendo, o emprego do uso de memes foi imprescindível para possibilitar a discussão sobre as questões sociais relacionadas à pandemia no contexto de sala de aula, sobretudo associada à interpretação e elaboração de memes pelos estudantes, ressaltando o seu protagonismo.

6.  Considerações finais

Ao longo desse estudo foi apresentado um conjunto de reflexões sobre a importância de inserir a elaboração de memes por estudantes no processo de ensino e aprendizagem, especialmente no contexto da Educação em Ciências, respondendo ao problema da existência de poucas práticas inovadoras com protagonismo dos estudantes. O estudo sobre as características constitutivas deste gênero digital e sua inserção no contexto comunicacional dos jovens motivou a efetivação desta proposta metodológica tendo como conteúdo específico a pandemia da COVID-19. Em tempos de pandemia esta proposta tornou-se ainda mais significativa, especialmente porque é através dos memes que muitos discursos sobre temas atuais, incluindo a COVID-19, são veiculados nas mídias sociais.

A elaboração de memes possibilitou identificar a amplitude de conhecimentos que os estudantes dominam sobre a pandemia da COVID-19, desde a necessidade de adotar medidas profiláticas para evitar o contágio, as mutações do vírus, o ensino remoto, e a compreensão sobre a importância do processo de vacinação, até as reflexões sobre os impactos sociais que os diferentes agentes sociais (como o governo brasileiro) provocam.

A presente pesquisa também evidenciou que a partir da identificação dos conhecimentos prévios dos estudantes, é importante a ação docente para aprofundar algumas questões como, por exemplo, a discussão sobre o cuidado em não transformar o isolamento de pessoas contaminadas com COVID-19 em preconceito, incorrendo no processo de culpabilização da vítima, e a compreensão de lavar as mãos com água e sabão como um dos principais mecanismos de evitar a proliferação do vírus.

Os 136 estudantes elaboraram 221 memes envolvendo as linguagens verbal e visual de forma integrada. O total de memes foi analisado e categorizado a partir de seu objetivo comunicacional da seguinte forma: 62 memes de informação, 82 memes de crítica social e 77 memes de entretenimento. Destaca-se, assim, que é possível tratar temáticas sérias, com base em dados científicos relacionados a COVID-19, através da utilização de memes, em que a tônica é a sátira. Não houve grande disparidade entre a quantidade dos três tipos de memes elaborados, mas a tônica da crítica social foi a mais presente, evidenciando a criticidade do público jovem sobre este tema que coaduna aspectos científicos, políticos e sociais e cujas ações podem custar vidas humanas.

Nos exemplares apresentados não houve a identificação de informações incorretas relacionadas à COVID-19, no entanto, foi identificada uma limitação: a ausência de memes que abordassem um hábito de higiene básico e muito recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde): lavagem das mãos com água e sabão, destacando apenas o uso do álcool em gel. Isso pode sinalizar a subestimação deste hábito importante de profilaxia à infecção e, por consequência, de controle da pandemia. Esse entendimento pode ser desconstruído no contexto de sala de aula, com a ação docente de esclarecimento que o álcool só deve ser utilizado na ausência de água e sabão, bem como na explicação sobre a constituição da membrana lipídica do vírus da COVID-19.

Na composição dos 221 memes foram empregadas construções multimodais. Palavras e imagens estiveram juntas compondo um significado coeso, em que a ausência de um destes entes poderia provocar a perda de significado do meme, ou seja, a mensagem não seria comunicada sem esta interação multimodal. Como uma das características mais marcantes deste gênero digital advindo da internet, a presença do visual e do verbal foi valorizada pelos estudantes em memes atrativos e que exerceram diferentes objetivos comunicativos como informar, entreter e criticar.

Oportunizar aos estudantes o protagonismo na elaboração de memes sobre a pandemia COVID-19 contribuiu para evidenciar a importância de valorizar a cultura digital da qual fazem parte, estabelecendo as conexões necessárias com os saberes escolares através da criatividade e da reflexão crítica na construção de textos multimodais.

Referências

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1 Há diferentes definições para memes, que serão apresentadas adiante. A origem do termo tem sido remetida ao estudo desenvolvido por Richard Dawkins intitulado O gene egoísta (2007).

2 A cultura digital, segundo Bortolazzo (2016) mantém uma relação intrínseca com “a comunicação dominada pelas tecnologias digitais” (p.12) que é constituída pela interação cotidiana entre as pessoas, as informações e as máquinas. É cultura porque “nos envolve como a atmosfera, algo no qual participamos como produtores, consumidores, disseminadores e que, por isso, tem integrado a vida cotidiana, invadido as casas e interferido nas relações que estabelecemos com o mundo, tanto material quanto simbólico, que nos rodeia” (Bortolazzo, 2016, p.12).

3 No dia 17 de dezembro de 2020, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro visitou a cidade de Porto Seguro (BA), para anunciar ações do governo sobre variados temas e ao tratar sobre a vacinação “o presidente fez alegações, sem nenhum fundamento ou base científica, dizendo que não havia garantia de que a vacina da Pfizer/BioNtech não transformaria quem a tomasse em “um jacaré”. A declaração foi feita no mês com maior número de mortes por Covid-19 no Brasil, desde setembro de 2020”. No mesmo dia, surgiram vários memes nas mídias nacionais e internacionais que podem ser acessados em: https://www.museudememes.com.br/sermons/se-tomar-a-vacina-vai-virar-jacare/.

4 A personagem Nazaré Tedesco foi uma vilã, interpretada pela atriz Renata Sorah, na novela Senhora do Destino, do autor brasileiro Agnaldo Silva, veiculada originalmente no ano de 2004 pela Rede Globo de Televisão.

5 Os encontros desenvolvidos dentro da programação da disciplina de Biologia ocorreram utilizando a plataforma de reunião virtual Google Meet e a entrega dos trabalhos solicitados aos estudantes ocorreu através do Google Classroom.

6 O docente da turma é um dos pesquisadores, autor deste artigo.

7 Em seu estudo, Gonçalves (2016) analisou os memes veiculados em sites que divulgam conteúdos relacionados à aprendizagem matemática e identificou três tipos de memes: de informação, de entretenimento e de desafio. Este último, por ser próprio dos conteúdos da Matemática não se adequaram ao presente estudo, sendo substituído pela tipificação: memes de crítica social.

8 Para minimizar o viés de tendência dos pesquisadores, seguindo os pressupostos do estudo de Dynel (2021).

9 O Discurso do Presidente Jair Bolsonaro de 24 de março de 2020, no qual ele denomina a COVID-19 como “gripezinha”, pode ser lido na íntegra em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/24/leia-o-pronunciamento-do-presidente-jair-bolsonaro-na-integra.htm.

10 A personagem Félix foi um vilão, interpretada pelo ator Matheus Solano, na novela “Amor à Vida”, do autor brasileiro Walcyr Carrasco, veiculada originalmente no ano de 2014 pela Rede Globo de Televisão.

11 O discurso pode ser lido na íntegra em: https://bit.ly/3ALdgOM.

Como citar em (APA):

Costa, J. e De Albuquerque, T. C. (2021). Estamos sendo invadidos: discutindo sobre os conceitos científicos relacionados à pandemia de COVID-19 atravésda elaboração de memes. Revista Ibero-americana de Educação, 87(1), 115-134. https://doi.org/10.35362/rie8714579