Revista Iberoamericana de Educación (2022), vol. 90 núm. 1, pp. 77-95 - OEI

https://doi.org/10.35362/rie9015440 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653

recibido / recebido: 16/10/2022; aceptado / aceite: 18/10/2022

Como apoiar e como abandonar os professores na batalha pelo sucesso educativo. A experiência de Portugal entre 1995 e 2020 *

Nuno Crato

Professor catedrático jubilado, Cemapre, ISEG, Universidade de Lisboa, Portugal

Resumo. Entre os anos finais do século XX e as duas primeiras décadas do século XXI, a educação em Portugal sofreu várias mudanças. Como resultado, a situação melhorou quase continuamente até 2015. Foi nesse ano que Portugal obteve os seus melhores resultados de sempre nas comparações internacionais PISA e TIMSS. Sofreu alguns reveses a partir de 2016, conforme revelaram os resultados PISA de 2018 e TIMSS de 2019. Este artigo analisa os principais fatores dessa evolução, destacando a capacitação dos professores para o bom desempenho das suas tarefas.

Palavras-chave: políticas educativas; avaliação educativa; curriculum; formação de professores; história da educação. PISA; TIMSS.

Cómo apoyar y cómo abandonar a los profesores en la batalla por el éxito educativo. La experiencia de Portugal entre 1995 y 2020

Resumen. Durante los últimos años del siglo XX y las dos primeras décadas del siglo XXI, la educación en Portugal sufrió varios cambios. Como resultado, su situación fue mejorando casi continuamente hasta el 2015. Siendo ese año en el que Portugal obtuvo los mejores resultados de su historia en las comparaciones internacionales PISA y TIMSS. Luego, sufrió algunos retrocesos a partir de 2016, como revelan los resultados de PISA 2018 y TIMSS 2019. En este artículo se analizan los principales factores de esta evolución, destacando la capacitación de los profesores para el buen desempeño de sus tareas.

Palabras clave: políticas educativas; evaluación educativa; currículo, formación del profesorado; historia de la educación; PISA; TIMSS.

How to support and how to abandon teachers in the battle for educational success. The experience of Portugal between 1995 and 2020

Abstract. Between the final years of the 20th century and the first two decades of the 21st century, education in Portugal underwent several changes. As a result, the situation improved almost continuously until 2015. That was the year when Portugal achieved its best results ever in the international PISA and TIMSS comparisons. It suffered some setbacks from 2016 onwards, as revealed by the 2018 PISA and 2019 TIMSS results. This article analyses the main factors of this evolution, highlighting the training of teachers to perform their tasks well
Keywords: educational policies; educational assessment; curriculum; teacher training; history of education; PISA; TIMSS.

1. O contexto português

A educação de um país é sempre o produto de muitas décadas de evolução. Se é verdade que medidas concertadas e enérgicas podem mudar um país em uma ou duas décadas, como se verificou no pós-guerra no leste asiático, é sempre difícil compreender a evolução de um sistema educativo sem recuar muito tempo. Portugal não é exceção.

De acordo com o Censo da população do Reino de Portugal no 1.º de Dezembro de 1900, apenas 26% dos portugueses com 7 anos ou mais estavam então alfabetizados. Este número desce para 22% se incluir apenas os adultos entre 50 e 54 anos de idade. O progresso para a constituição de uma sociedade letrada em Portugal foi muito lento. Entre 1900 e 1930, a percentagem de portugueses alfabetizados com 7 ou mais anos de idade passou de 26% para 38%, subindo 12 pontos percentuais. Entre 1930 e 1960, a percentagem de portugueses alfabetizados das mesmas idades subiu para 70%, o que corresponde a um aumento de 32 pontos percentuais (Candeias & Simoes, 1999).

Estes dados são o resultado de um sistema escolar muito limitado. Só em 1956, a escolaridade obrigatória foi alargada de três para quatro anos, e apenas para rapazes. Em 1960, a expansão incluiu também raparigas. Em 1964, a escolaridade obrigatória subiu para seis anos. Em 1986, foi estendida ao nono ano e, em 2012, ao décimo segundo ano.

Os avanços alcançados nas últimas décadas do século XX são extraordinários. Com a melhoria geral das condições económicas a partir da década de 1960, a euforia de um baby boom, a instauração da democracia, a entrada na Comunidade Europeia e a chegada dos fundos estruturais europeus, a escolarização foi ampliada e o país mudou radicalmente. Em 2001, a percentagem de alfabetizados subiu para 91% (FFMS, 2022).

Todos estes êxitos foram essencialmente quantitativos. Não permitiram, contudo, elevar os jovens a níveis razoáveis de educação e preparação para a vida moderna (Crato, 2020; 2021). O país debateu este tema longamente. Articulistas e analistas dividiram-se. De um lado, políticos no poder e professores das escolas e departamentos de educação defenderam a política então seguida. De outro lado, intelectuais e académicos de outras áreas criticaram o que entendiam ser um ensino laxista influenciado por uma visão romântica da educação. 1

O debate era essencialmente ideológico, ou mesmo filosófico, muito limitado empiricamente e um pouco estéril. Mas as coisas mudaram.

2. O choque TIMSS e PISA

Em 1996 e 1997 chegaram as notícias do estudo TIMSS 2 de 1995 e verificou-se que os estudantes portugueses estavam na cauda dos participantes. Apenas dois países tinham registado resultados piores. Seguiu-se um debate. Como é natural, houve quem visse aí confirmadas as suas intuições. E, como sempre, houve quem desvalorizasse os dados, dizendo que não estávamos em competição com outros países, que não éramos melhores nem piores, que as avaliações eram “redutoras” (Crato, 2006a). O governo desvalorizou os resultados e tomou uma decisão típica de organismos que se pretendem furtar às avaliações: decidiu não voltar a participar no TIMSS.

Entretanto, a OCDE, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, decidira organizar um outro estudo internacional de larga escala, o PISA 3 , e a maioria dos países europeus tinha decidido aderir a esse estudo. O governo português também aderiu; de boa vontade ou contrariado, pouco importa.

Os dados do primeiro PISA chegaram em fins de 2001 e de novo os resultados dos estudantes portugueses foram muito insatisfatórios. Não restavam dúvidas de que a educação não tinha atingido um patamar de qualidade razoável. Era muito difícil manter as coisas tal como estavam.

Entretanto, com o aumento da pressão pública e com ameaças judiciais sérias, o governo decidiu, finalmente, ceder numa batalha que se arrastava há anos. Jornalistas e diversas associações pretendiam conhecer os resultados médios das escolas nos exames de fim de Secundário, os únicos na altura existentes. O governo opunha-se. Mas na nova situação política foi obrigado a ceder, e os resultados de 2001 foram tornados públicos.

Tornou-se então claro que as escolas tinham um papel decisivo na formação dos estudantes. Em zonas ricas ou de classe média, havia escolas que tinham bons resultados e escolas que tinham maus resultados. Em zonas desfavorecidas, havia escolas que tinham maus resultados e escolas que atingiam bons resultados.

A opinião pública pôde então tirar duas conclusões: os maus resultados escolares não são uma fatalidade, e nem todas as escolas fazem um trabalho da mesma qualidade.

Entretanto, com novo governo, foram instituídos exames finais de 9.º ano, na altura o ano de conclusão da escolaridade obrigatória. Os resultados posteriores desses exames vieram a confirmar a mesma ideia: nem todas as escolas fazem um trabalho com a mesma qualidade.

Tudo isto aumentou a pressão pública sobre as escolas e os professores para promoverem a boa educação dos seus estudantes. Ao contrário do que muita gente pensa, sustento que esta pressão não é negativa – é positiva e traduz um empenho das famílias e da sociedade.

Entretanto, os resultados do PISA 2003 melhoraram um pouco, mas os de 2006 estagnaram, o que introduziu mais pressão sobre os resultados. Um novo governo iniciou os exames de 9.º ano, destacou a matemática como prioritária e instituiu um plano de ação (MEC, 2006). Apoiou também um plano de apoio à leitura 4 . Se é verdade que ambos os planos tinham limitações, também é verdade que foram um passo em frente, sobretudo na atenção aos resultados nessas disciplinas fundamentais.

Em paralelo, mudou-se o sistema de escolha dos manuais escolares 5 , até então nas mãos apenas de cada escola. Foram criadas comissões de avaliação e certificação centradas na qualidade científica do seu conteúdo, e os manuais melhoraram significativamente.

Em 2009, um novo governo decidiu estruturar melhor o currículo e criou metas de aprendizagem, uma espécie de lista organizada dos objetivos (learning outcomes). Tudo isto aumentou a pressão sobre os resultados e facilitou a sua medida.

É notável que todos estes progressos tenham sido alcançados por governos de diferentes partidos. No período de 2001 a 2011, seis ministros prosseguiram essencialmente na mesma direção: maior atenção aos resultados de aprendizagem. Esses ministros foram chamados ao cargo por diferentes partidos. No meio de divergências, por vezes muito acesas, o caminho geral apontou sempre na mesma direção.

A Figura 1 mostra que os melhores resultados de sempre foram obtidos em 2015 graças a uma política de mais de uma década de atenção aos resultados e de melhoria do currículo e da avaliação. Quando essa política foi revertida, os resultados sofreram.

Figura 1. Evolução dos resultados portugueses desde o início até ao último inquérito PISA.

Fonte: baseado em dados da OCDE obtidos em NCES (2022).

3. A política educativa prosseguida entre 2011 e 2015 e a reviravolta de 2016

Em 2011, com um novo governo, este esforço de atenção ao currículo, à avaliação e aos resultados prosseguiu de forma intencional e bem consciente. Enquanto anteriormente as diversas políticas estavam ainda envolvidas numa roupagem de cariz romântico e construtivista, mesmo que contradissessem essa roupagem, a nova política era consciente e explícita. Anteriormente, por exemplo, podia dizer-se que “para evitar a memorização repetitiva e promover uma aprendizagem significativa é importante que os alunos enfrentem situações de aprendizagem com problemas de matemática aplicados a situações reais”. A nova equipa passou a dizer, por exemplo, “a memória é uma componente importante da aprendizagem da matemática que ajuda a desenvolver a compreensão mais profunda dos conceitos, compreensão que deve ser reforçada pela solução de problemas, entre outros aqueles que aplicam a matemática a situações reais.” O resultado é aparentemente o mesmo, e pode ser o mesmo: incentivar os professores a indicar aos alunos alguns problemas de matemática com aplicações reais, o que é sem dúvida positivo.

Mas a primeira formulação tem vários riscos: que se despreze a memória, que se despreze a necessidade de praticar os conceitos com problemas mais imediatos e sem aplicações, que se salte dos conceitos para problemas mais avançados sem dar aos alunos a possibilidade de consolidar os conhecimentos, que se propague a ideia de que problemas abstratos não promovem uma aprendizagem significativa, ou seja, uma aprendizagem em que os novos conceitos se relacionem com conhecimentos anteriores (Ausubel, 1963). Finalmente, o risco é tornar a aprendizagem da matemática, ou de qualquer outra disciplina, numa coleção de problemas aplicados que levem os alunos a desenvolver abordagens dispersas, sem apreender a estrutura dos conceitos abstratos.

Na próxima seção desenvolveremos melhor estes e outros problemas que foram enfrentados durante o mandato de 2011 a 2015. Apesar da tremenda crise económica e financeira, no mesmo período registaram-se vários outros progressos importantes, nomeadamente a introdução do Inglês como disciplina obrigatória ao longo de sete anos de escolaridade consecutivos, a extensão da escolaridade obrigatória de nove para 12 anos e a redução do abandono escolar de 25% para 13,7%.

Em 2016 inicia-se uma reviravolta pelas mãos de um novo governo, suportado por uma aliança inaudita em Portugal: socialistas, comunistas e esquerda radical. As primeiras medidas do novo governo acabaram com parte significativa da avaliação que se tinha promovido: foram abolidas as provas finais do 4.º e 6.º ano de escolaridade e a prova de acesso à docência para os candidatos a professor. Em seguida, foram promovidas as chamadas “Aprendizagens Essenciais”, muito criticadas por serem uma diluição dos objetivos cognitivos e por serem uma listagem desconexa de tópicos. Essa decisão desvalorizou os programas e metas anteriores, que entretanto se mantiveram, mas com carácter assessório. Todas as comunicações oficiais e oficiosas da nova equipa e dos responsáveis ministeriais foram críticas em relação à política de exigência e rigor anteriormente seguida, que foi estigmatizada como sendo uma política elitista. O golpe final no currículo foi dado e oficializado 5 em 2021, com a abolição de todos os programas e metas que tivessem sido abordados nas ditas “Aprendizagens Essenciais”.

Esta reviravolta num longo processo que se tinha iniciado no princípio do século por variados governos de vários partidos e orientações tem diversas vertentes, nomeadamente a extinção de grande número de escolas privadas com contratos de associação e o reforço de uma série de posições reclamadas pelos sindicatos mais radicais. Num momento de divergência entre o governo e os sindicatos a propósito das remunerações da função pública, o ministro veio a lume prometendo “lutar radicalmente pelos direitos dos professores” (Lusa, 2017).

Assiste-se então a um movimento duplo. Por um lado, há a um retorno a políticas pedagógicas de natureza construtivista sem fundamento na ciência moderna nem na experiência do ensino. Por outro lado, defendem-se posições ideológicas favoráveis à concentração do ensino numa escola pública muito uniformizada em termos de contratação e de políticas salariais, sem uma avaliação que potencialmente contrarie essa uniformidade e, por isso, promotoras de um corporativismo docente desligado do prioritário, que é a boa formação dos jovens. Por tudo isso, diria que se trata de um retrocesso ideológico-corporativista que fez regressar o país a um passado velho de cerca de 20 anos.

4. Políticas educativas de 2016 rompem com progresso de décadas

Não é objetivo deste artigo criticar o governo que sucedeu, mas é necessário caracterizá-lo e caracterizá-lo sobretudo nos aspetos pedagógicos. Essa demarcação é essencial para podermos perceber como se avançou e como se recuou.

É igualmente necessário clarificar os distintos momentos, de forma que não se assista a um fenómeno semelhante ao que se passou com a Finlândia. Nas primeiras edições do estudo PISA, esse país obteve resultados excelentes e muito destacados dos resultados médios europeus. Seguiu-se um interesse muito grande pela escola finlandesa, que originou um autêntico turismo educativo, com visitas sucessivas a escolas desse país e com várias obras elogiando os resultados finlandeses. Mas, quando se iniciou essa reação, cerca de 2006, tinham os resultados dos jovens finlandeses no PISA começado a recuar. Esse recuo foi sistemático a partir desse ano. Estudo após estudo, a Finlândia tem vindo apresentando resultados piores. É o resultado de um sistema muito menos organizado e estruturado do que aquele que levou esse país aos excelentes resultados do princípio do século. Em conclusão, os entusiastas da Finlândia creem que as políticas que hoje observam são as mesmas que levaram esse país a ter bons resultados nas primeiras edições do PISA. Louva-se então o sistema finlandês atual, causador de um retrocesso significativo, em vez de estudar a política anterior, que levou ao sucesso desse país.

É importante que o mesmo não suceda com Portugal. Muitos analistas, professores e organizações educativas manifestaram recentemente um grande interesse por Portugal. Mas Portugal começou a decair nos resultados internacionais depois da viragem de política educativa. É importante que se estudem as políticas anteriores, que conseguiram um progresso importante para o nosso país e que não se acredite que foram as políticas atuais que conseguiram esse sucesso. Portugal não é hoje o país que foi até 2015, ano em que obteve os melhores resultados internacionais de sempre. É por isso que se torna importante contrastar as diferentes políticas.

Para fixar ideias, podemos sintetizar de forma muito geral a evolução da educação em Portugal nos últimos 50 anos com a seguinte divisão:

Período autoritário – Até à revolução democrática de 1974: Ensino extremamente centralizado e uniforme, com desigualdades sociais muito marcadas

Período romântico – De 1974 até ao princípio do século XXI: Euforia social, massificação do ensino básico (elementar e médio), difusão de ideias românticas e construtivistas

Período pragmático – De 2002 a 2015: Atenção aos resultados, melhoria significativa do currículo e da avaliação

Período do conhecimento – De 2011 a 2015: Poderíamos considerar este período apenas uma fase do período anterior, mas destaco-o aqui pois foi uma fase que rompeu conscientemente com a ideia de um currículo construtivista baseado em competências e deu primazia a um currículo baseado no conhecimento, estruturado, ambicioso e centrado nas disciplinas essenciais e a uma avaliação sistemática e frequente dos alunos.

Período ideológico-corporativo – De 2016 à atualidade (2022): Rutura completa com os 15 anos anteriores, menosprezando a estrutura, o rigor e a ambição curricular, removendo as diversas formas de avaliação externa, promovendo os interesses corporativos dos professores em detrimento de uma política de progresso dos alunos.

5. Porque melhorou a educação em Portugal

As reformas lançadas entre os anos letivos 2011-2012 e 2014-2015 visaram conscientemente a obtenção de uma aprendizagem de qualidade. Basearam-se num corpo docente experimentado e capacitado, que são condição básica de qualquer progresso educativo (Hanushek et al., 2019). E cumpriram um plano claro. Seguindo de perto uma sistematização que já tive oportunidade de fazer (Crato, 2020), e alerto o leitor para alguma repetição, podemos agrupá-los em algumas áreas essenciais.

5.1 Um currículo exigente e bem estruturado

Tudo começa pelo currículo (Crato, 2019), como deixámos claro e repetimos nos debates sobre a reforma educacional. O currículo define os objetivos de aprendizagem, e estes constituem o ponto de partida para qualquer sistema educativo. Em Portugal, o currículo é definido centralmente e aprovado pelo ministro. Para instituir os novos padrões e programas, criámos grupos de especialistas de cada disciplina.

5.2 Currículo baseado no conhecimento e não em competências

O conhecimento vem em primeiro lugar. Mesmo quando enfatizamos as capacidades, as chamadas competências, atitudes ou objetivos cívicos, a escola perde seu propósito se não transmitir conhecimento. Embora sejamos defensores do pensamento crítico, da aprendizagem ativa e da aplicação do conhecimento, por exemplo, não devemos esquecer que o conhecimento é a base da participação cívica, do pensamento crítico e da ação. É preciso ser-se claro: sem uma base de conhecimento substancial, os alunos não podem obter uma apreciação de qualquer assunto, desenvolver capacidades avançadas, progredir em qualquer carreira ou alcançar um alto nível de conhecimento e capacidades em qualquer assunto (Crato, 2022). Quando enfatizamos as capacidades e competências (skills), podemos estar perdendo a base de conhecimento, esquecendo que as capacidades são principalmente associadas a um domínio (domain-based). As capacidades genéricas são difíceis de desenvolver e a sua transferência é muito limitada.

A discussão da prioridade ao conhecimento versus competências no desenho do currículo é uma discussão antiga (Crato, 2006a; 2006b). Uma das fontes de confusão é o próprio conceito de competências. Por vezes, esse conceito é muito vasto, englobando conhecimentos, capacidades de aplicação, atitudes e outras componentes do currículo geral. Quando assim é, a discussão torna-se estéril, pois significa que competências engloba tudo e o conceito não ajuda a estabelecer prioridades.

Mais recentemente, competências têm sido entendidas como capacidades, mais especificamente, capacidades de aplicação do conhecimento 7 . Certamente que conhecimento e capacidades são indissociáveis. Mas não basta dizer isso. O que é importante é perceber como deve ser desenhado o currículo. Com base nos conhecimentos ou nas capacidades?

Postas as questões neste pé, torna-se claro que o conhecimento deve estar na base, pelo menos no ensino geral e básico, uma vez que no ensino profissional ou vocacional, dirigido diretamente à preparação das capacidades de desempenho imediato de uma profissão técnica, o problema assume configurações um pouco diferentes.

Só tendo o conhecimento por base se pode estruturar o ensino de forma conexa, sistemática e progressiva. Se o ensino for organizado com base nas capacidades de aplicação, as matérias tornam-se desconexas e o progresso dos alunos é muito dificultado, para não dizer impedido. Organizando o ensino com base no conhecimento, a aprendizagem torna-se cumulativa, relacionando novos conhecimentos com conhecimentos anteriores e promovendo uma visão coerente das matérias. Organizando o ensino com base em aplicações, a aprendizagem torna-se desconexa, apela à memorização e não à compreensão e não fornece aos jovens instrumentos de raciocínio crítico e independente.

5.3 Conhecimento disciplinar

Sem conhecimentos sólidos e específicos de cada área, os alunos não conseguem apreciar nenhuma disciplina, não entendem a estrutura de nenhuma área de conhecimento. A matemática não é uma coleção de truques, assim como a escrita não é uma coleção de regras e a literatura não é uma coleção de frases gramaticalmente corretas. Isso significa que os alunos precisam adquirir conhecimentos aprofundados em várias áreas. A amplitude não pode e não deve ser alcançada promovendo um conhecimento desestruturado. Da mesma forma, a multidisciplinaridade só se pode construir com base na disciplinaridade. As disciplinas são a forma que a humanidade descobriu para apreender o mundo de forma racional.

5.4 Prioridade ao conhecimento básico

Uma criança analfabeta sempre terá uma tremenda limitação se não adquirir fluência na leitura. Uma criança com deficiências matemáticas ficará sempre limitada se não desenvolver capacidades aritméticas básicas, capacidades elementares de análise de gráficos de dados e capacidades rudimentares de lógica formal (CESE, 2017).

A primeira decisão a tomar ao desenvolver um currículo mais exigente e mais bem estruturado é definir prioridades. E a prioridade era e é focar a escola em assuntos centrais e conhecimentos básicos. Isso significa que alocámos mais tempo para matemática e alfabetização desde o início do ensino básico, e organizámos melhor os currículos dessas matérias fundacionais. De imediato, expandimos essa prioridade para outras disciplinas centrais, como história, geografia, ciências e inglês.

5.5 Ter o currículo como referência

Ao reorganizarmos o currículo, decidimos fazer o oposto de uma revisão completa dos documentos curriculares anteriores: fizemos mudanças incrementais, mas todas na mesma direção. Assim, em vez de reescrever os programas, começámos a organizá-los introduzindo novas metas curriculares 8 , com múltiplos propósitos pedagógicos:

Esclarecer os tópicos básicos que os alunos devem dominar.

Estabelecer os níveis desejados de realização para cada tópico.

Ser mais exigente no conteúdo de cada disciplina básica.

Organizar os tópicos de forma mais bem estruturada e claramente progressiva.

Ao mesmo tempo, essas metas pretendiam ser claras para todos os envolvidos:

Os professores entenderiam melhor quais objetivos os alunos devem alcançar.

Os pais poderiam ajudar melhor seus filhos e verificar como eles progridem.

Os autores de livros didáticos 9 saberiam melhor o que se espera deles.

5.6 Promover uma avaliação frequente e confiável

Sabe-se que a avaliação deve ser alinhada com os documentos curriculares OECD/UNESCO (2003) e que reveste várias formas, servindo propósitos múltiplos (Morris, 2011; Roediger et al., 2011):

Testes nacionais padronizados de alto impacto (high stakes), nomeadamente exames que podem determinar a repetição ou continuação de estudos; são implantados por geralmente no final de um ciclo educacional (ensino fundamental inferior e superior, ensino fundamental e médio).

Testes padronizados nacionais de baixo impacto (low stakes), que funcionam como inquéritos do progresso educativo, sem impacto no progresso dos alunos, nas escolas ou nos professores.

Testes elaborados por centros escolares.

Testes de classe desenhados por cada professor.

Sabe-se também que a avaliação formativa tem um impacto altamente positivo no progresso dos alunos (Wiliam, 2018) e que a avaliação externa ajuda o sistema educativo de um país a progredir (Bergbauer et al., 2021). A história da educação em Portugal nem sempre esteve em consonância com estes princípios.

No início da revolução democrática de 1974, sucessivos governos aboliram muitos dos testes nacionais e tentaram outros tipos de avaliação. Somente no final do século 20 um governo socialista criou uma nova direção-geral encarregada de organizar um quadro de provas mais modernas para os exames finais do ensino secundário (ME, 1997). O mesmo governo introduziu as chamadas “provas de aferição”, provas estandardizadas de baixo impacto, que foram aplicados a uma amostra e, posteriormente, a toda a população escolar em determinados anos de escolaridade.

Em Portugal, o sistema forneceu algumas informações sobre o desempenho dos alunos. Mas, em poucos anos, essas provas de aferição ficaram desacreditadas aos olhos do público. O facto de não terem impacto sobre os alunos, professores ou escolas foi determinante desse descrédito. Ao mesmo tempo, muitos líderes de opinião e algumas sociedades científicas, como a Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM), criticaram a flutuação no nível de dificuldade de alguns exames. Na verdade, os resultados médios dos exames mostraram flutuações da ordem de 50% de um ano para outro. Assim aconteceu com a matemática em 2008, uma mudança difícil de atribuir ao desempenho dos alunos, deixando espaço para a explicação de que as mudanças foram devido a um mau desenho das provas ou mesmo a uma redução deliberada da sua dificuldade.

Esta situação levou o governo a introduzir uma reforma. Uma lei de 2013 criou um novo instituto de avaliação, o Instituto de Avaliação Educativa (IAVE), com a missão de organizar todas as avaliações externas dos alunos, tanto de alto como de baixo impacto 10 . Essa lei enfatizou um resultado bem conhecido da psicologia cognitiva, segundo o qual avaliação reforça a recuperação da informação, de forma a ajudar a reinterpretar e consolidar o conhecimento (Roediger & Karpicke, 2006; McDaniel & Callender, 2008). Este decreto-lei de 2013 pode ser uma das poucas peças legislativas que cita diretamente os resultados da psicologia cognitiva.

5.7 Dedicar esforços especiais a reduzir o abandono escolar e promover o sucesso escolar

A aplicação de um currículo exigente e de uma avaliação estandardizada tem sido objeto de muita controvérsia nas últimas décadas. Alguns alegaram que esses dois fatores reproduzem a desigualdade social e prejudicam jovens de meios desfavorecidos. Defendemos o contrário: uma educação séria e uma avaliação confiável, que segue padrões nacionais ou, pelo menos, regionais, é a única maneira de ajudar os alunos de meios desfavorecidos a preparar-se para uma vida ativa, produtiva e independente.

A própria OCDE (2016) o reconheceu e se referiu a Portugal como um exemplo de que se pode simultaneamente apoiar os alunos mais avançados e ajudar aqueles com mais dificuldades:

Macao (China) and Portugal were able to ‘move everyone up’ in science, mathematics and reading performance over the past decade by increasing the number of top performers while simultaneously reducing the number of students who do not achieve the baseline level of skills. Their experiences demonstrate that education systems can nurture top performers and assist struggling students simultaneously (OECD, 2016, p.266).

Penso que adotámos uma abordagem moderada e eficaz. Além de lutar para conseguir elevados padrões académicos, concebemos uma série de medidas para ajudar os alunos menos bem preparados a melhorar e, ao mesmo tempo, permitir que os mais avançados avancem. Essas medidas foram estabelecidas por um decreto-lei de 2012 e complementado por legislação regulatória que tornou obrigatório o apoio a alunos com dificuldades académicas (MEC, 2012).

5.8 Oferecer incentivos para as escolas

Com um orçamento muito limitado e a pressão do FMI e da CE para cortar ainda mais os gastos, os incentivos tinham também de ser muito limitados. Talvez isso acabasse por ser positivo, já que a compensação económica, tal como oferecida em outros países, parece ser muito limitada e é, no mínimo, altamente controversa. Em contrapartida, os incentivos oferecidos foram ligados às melhorias dos resultados dos alunos e constituídos por recursos dirigidos a essas melhorias.

Além de incentivos morais, tais como prêmios e reconhecimentos públicos derivados da divulgação dos resultados escolares, os incentivos concentraram-se no aumento dos chamados créditos horários de escola. Esses créditos constituem um acréscimo no corpo docente, financiando a contratação de professores adicionais com fins específicos.

A partir de 2012, desenvolvemos um sistema estatístico complexo para definir os critérios de atribuição de crédito docentes concedidos às escolas, e ficou claro que esses recursos adicionais poderiam melhorar o desempenho dos alunos.

O sistema levou em consideração as avaliações internas e externas dos alunos, bem como a taxas de repetência e abandono. As escolas ganhavam crédito por:

Melhorar os resultados dos alunos nas avaliações internas.

Melhorar os resultados dos alunos nas avaliações externas.

Obter bons resultados dos alunos nas avaliações externas.

Reduzir as taxas de repetência e abandono.

E esses créditos eram penalizados por:

Atribuir notas mais altas nas avaliações internas do que as obtidas nas avaliações externas padronizadas.

Além disso, o cálculo dos créditos considerava o desempenho da escola no passado recente, e poderia ser ajustado se o histórico mudasse.

A principal crítica que foi feita a este sistema é que ele premiava as escolas que melhoravam e punia aquelas que não melhoravam. Em minha opinião, essa “crítica” é, afinal, um elogio ao sistema. Os recursos devem ser usados essencialmente em benefício da melhoria dos resultados dos estudantes e não para satisfazer interesses corporativos.

5.9 Autonomia das escolas

Este sistema de incentivos só poderia funcionar aumentando a autonomia das escolas. O lema entre 2011 e 2015 era o oposto do que muitos governos sustentam: nós queríamos liberdade nos processos, mas avaliação externa dos alunos; outros governos anteriores querem ditar as práticas pedagógicas e evitar a avaliação. Em consequência, controlam os processos em vez de medir os resultados.

O aumento de autonomia permitiu que os centros organizassem livremente a carga horária dos professores, alterassem a afetação de professores e horários e organizassem as disciplinas por curso ou por ciclo. Mais importante, permitiu que as escolas usassem livremente os seus recursos para pôr em prática as medidas de combate ao insucesso e de promoção do progresso escolar.

5.10 Ofertas paralelas e itinerários de formação profissional

Outra importante reforma foi uma mudança gradual no sistema de formação profissional. Depois da revolução democrática, os diferentes percursos de formação profissional foram suspensos, mas foram lentamente restabelecidos com a criação, em 1983, das vias de formação técnica e com a criação de escolas secundárias com formação profissional, em 1989. No entanto, o sistema de formação profissional era muito desigual e nem sempre tendeu a fornecer aos alunos a formação necessária para exercer uma profissão

Para muitos centros privados, a formação profissional é um empreendimento totalmente dependente de subsídios públicos. Para muitas escolas semiprivadas municipais, desempenhava um papel político na contratação de professores e técnicos. Em muitos casos, não era colocado o foco na formação dos alunos: os cursos oferecidos dependiam mais dos recursos existentes e contratações possíveis ou desejadas do que das necessidades dos jovens ou do mercado de trabalho.

Em 2012, a escolaridade obrigatória foi ampliada de 9 para 12 anos de escolaridade. Em consequência, a formação profissional para jovens pôde passar e fazer parte do ensino obrigatório, e assim aconteceu.

As nossas mudanças foram essencialmente orientadas em duas direções:

Dividir os roteiros de formação profissional em duas modalidades: uma voltada para estudantes que naturalmente optassem por uma formação menos académica, que os preparasse para uma profissão técnica, e outra destinada a estudantes com dificuldades escolares e risco de abandono, que necessitavam, temporariamente ou não, de atividades mais práticas e aplicadas.

Sem esta divisão, a formação profissional estaria sempre associada à ideia de uma segunda escolha 11 .

Associar a indústria à formação profissional. Esta associação foi concebida de forma bastante original. As empresas foram chamadas a colaborar desde o início na conceção dos cursos e na sua realização, desde o começo dos cursos até à sua fase final.

Embora as empresas não fossem remuneradas pela sua contribuição para a formação dos alunos, elas aderiram de bom grado aos programas. Nesse sentido, observamos não apenas uma contribuição generosa com o futuro do país, mas também uma defesa dos interesses empresariais. Enquanto contribuíam para colmatar as necessidades do mercado de trabalho, estavam preparando capital humano para a sua área de atividade. Essa também foi uma tendência surpreendente. As empresas fizeram um forte investimento na formação profissional e aportaram recursos humanos, treino de professores e recursos materiais, tais como acesso a ferramentas e maquinaria fabril. Muitas vezes, contribuíram para o transporte e alimentação dos alunos. Logo no primeiro ano, cerca de 5 000 empresas participaram do programa. No segundo, 12 000.

6. Um balanço de sucessos e retrocessos

A única avaliação externa e minimamente fiável que neste momento possuímos para verificar a evolução do sistema educativo português são os estudos internacionais. Vimos já os resultados obtidos nos estudos PISA. Recapitulemos os resultados dos estudos TIMSS, pois estes são ainda mais elucidativos. Partindo de uma posição muito baixa em 1985, Portugal conseguiu um progresso gigantesco e, em 2011, quando retornou ao TIMSS, os resultados foram razoáveis. Entre 2011 e 2015, Portugal conseguiu um avanço tal que ultrapassou países considerados modelo, como foi o caso da Finlândia.

Com a reversão das políticas reverteu-se o progresso. Portugal desceu de novo para valores inferiores aos de 2011.

Os resultados do TIMSS são particularmente instrutivos, pois permitem avaliar dois períodos que correspondem a duas políticas distintas (Crato, 2022). Os estudantes que entraram na escola em setembro de 2011 souberam imediatamente que a política educativa seria mais ambiciosa. Nesse ano letivo, aumentou o número de horas mínimas dedicadas ao Português e à Matemática. Foi público que se trabalhava para novas metas dessas duas disciplinas, e em 2013 essas novas metas foram aprovadas. Construíram-se novos manuais e foi instituída uma prova final estandardizada para o 4.º ano, que constitui o último ano escolar deste primeiro ciclo de escolaridade. Esses alunos foram avaliados pelo TIMSS em abril de 2015, sabendo professores, pais e alunos, que haveria uma prova final dentro de meses.

Os resultados dos alunos portugueses em matemática do 4.º ano subiram notavelmente até 2015 devido a uma política educativa centrada no currículo e nos resultados dos alunos. Quando essa política mudou em favor de uma abordagem geral de competências, os resultados diminuíram. É notável que, em 2015, os estudantes portugueses tenham conseguido uma classificação superior à dos seus colegas finlandeses, sendo que a Finlândia é habitualmente considerada um exemplo de grande qualidade educativa (Figura 2).

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Figura 2. Resultados dos alunos portugueses em matemática do 4.º

Nota: O gráfico mostra todos os anos em que ambos os países participaram do TIMSS.

Fonte: Dados de Institute of Education Sciences (IES), https://nces.ed.gov/surveys/international/ide/

Por contraste, os alunos que entraram em setembro de 2015 souberam logo em dezembro desse ano que a política educativa iria mudar e que o novo governo colocava entre as suas prioridades a reversão das políticas de exigência curricular e de avaliação. Em 2019, quando estes alunos foram avaliados no TIMSS, tinham passado por quatro anos de política menos exigente, professores e pais tinham assistido à desvalorização pública das metas e do currículo pelo governo e pelas autoridades educativas e todos sabiam que não iriam existir provas finais, pois elas tinham sido abolidas em janeiro de 2016.

O que se passou constitui aquilo que economistas e sociólogos chamam experiência natural: sem qualquer desígnio experimental, a situação mudou nos dois períodos e isso permite testar a eficácia das duas políticas. Se a situação mudasse por motivos científicos, fazendo uma experiência social, não teria sido diferente: uma política de exigência melhora os resultados e uma política laxista piora os resultados.

Vale a pena ainda distinguir os resultados por níveis de desempenho. Defende-se por vezes que um maior rigor só pode ser obtido aumentando as desigualdades e, por isso, o rigor e a exigência educativa teriam um efeito perverso.

As tabelas 1 e 2 mostram o que se passou ao longo dos últimos anos. À medida que a média dos resultados subia, descia também a percentagem de estudantes com baixo desempenho, os chamados “low performers” (terminologia da OCDE, que promove o PISA e da IEA, que promove o TIMSS). Essa melhoria da situação dos estudantes com mais dificuldades é particularmente visível entre 2012 e 2015, para o PISA, e entre 2011 e 2015, para o TIMSS.

Por contraste, uma política menos rigorosa e menos ambiciosa, tal como foi praticada de seguida, acabou por promover o contrário do que tinha pregado. A percentagem de estudantes com um desempenho abaixo do mínimo desejável subiu nas duas avaliações. É caso para lembrar o célebre aforismo: as políticas devem ser avaliadas pelos seus efeitos e não pelas suas intenções.

Tabela 1. Percentagem de estudantes mais bem classificados e menos bem classificados nos três domínios principais do estudo PISA nas últimas quatro edições deste estudo.

PISA – Portugal

 

2009

2011

2015

2018

Science: High-performers

4.2

4.5

7.4

5.6

Low-performers

16.5

19.0

17.4

20.2

Maths: High-performers

9.6

10.6

11.4

11.6

Low-performers

23.7

24.9

23.8

23.3

Reading: High-performers

4.8

5.8

7.5

7.3

Low-performers

17.6

18.8

17.2

19.6

Nota: High performers > 4; Low Performers < Level 2

Fonte: Construída com base nos dados PISA obtidos em https://nces.ed.gov/surveys/international/ide/

Tabela 2. Percentagem de estudantes mais bem classificados e menos bem classificados em matemática no 4.º ano de escolaridade no estudo PISA em todas as edições deste estudo deste século em que Portugal participou.

TIMSS, Matemática 4.º ano – Portugal

 

2011

2015

2019

High Performers

8

12

9

Low Performers

20

18

26

Nota: High performers = level 4; Low Performers ≤ Level 1

Fonte: Construída com base nos dados TIMSS obtidos em https://nces.ed.gov/surveys/international/ide/

7. Um currículo exigente e uma avaliação externa fiável ajuda os professores

As políticas educativas devem centrar-se nos professores ou nos alunos? É um velho debate, mas difícil de situar nos termos próprios.

Como insistimos já há alguns anos (Crato ٢٠٠٦a), ensino centrado no aluno tem uma origem 12 e um conteúdo bastante precisos em pedagogia (Rosário & Almeida, 2005). Trata-se da versão moderna de um preceito de Rousseau e de outros, que recomenda deixar desenvolver o jovem sem a «interferência tiranizante do indivíduo adulto», para citar o pensador português Da Silva (1939). O desenvolvimento livre do educando, seguindo apenas os seus interesses e gostos, desembocaria no adulto livre e formado.

Muitos dos que hoje falam em «ensino centrado no aluno» repudiam esta visão extrema. Mas todos devemos ser confrontados com a origem e significado desta expressão, de forma a termos cuidado com o seu uso e, sobretudo, de forma a podermos dialogar com consciência do significado das ideias.

Atualmente, o ensino centrado no aluno, quando se trata de um conceito consciente e não apenas de uma expressão aliciante, é frequentemente entendido como ensino virado para o aluno. Mas, como se reconhecerá imediatamente, tal ditame pouco adianta a qualquer debate. Haveria de ser virado para quem?!

Não obstante, muitas vezes, na realidade, o ensino centrado no aluno torna-se num ensino centrado no professor, no sentido de constituir um conjunto de práticas desligadas do currículo, que não beneficiam a aprendizagem organizada dos alunos, libertam o professor da pressão do currículo e da avaliação, e promovem apenas o laxismo de alguns.

Se remontarmos à definição original, faz menos sentido defender o ensino centrado no aluno do que o ensino centrado no professor, conceito que, mais uma vez nos termos originais, significa apenas ensino dirigido pelo professor, em função de um currículo e de aulas com objetivos pedagógicos claros (learning outcomes).

A experiência portuguesa revela uma abnegação extraordinária dos professores e uma grande resiliência e dedicação aos alunos. Foi precisamente nos anos difíceis da troika, entre 2011 e 2014 que os professores, tal como outros profissionais, mais sofreram materialmente. Foram anos de contenção económica, com alguma redução salarial, com ameaças de desemprego, com algumas folgas de horário reduzidas. E foi precisamente durante esses anos que os professores portugueses conseguiram que os seus alunos obtivessem os melhores resultados de sempre nas avaliações internacionais. Esses melhores resultados nas avaliações PISA e TIMSS revelam que os alunos atingiram patamares mais elevados durante esses anos do que durante outros mais folgados económica e socialmente. E progrediram apoiados num currículo exigente e numa avaliação externa. Graças aos professores.

Se queremos um ensino centrado no progresso dos alunos e não em interesses corporativos dos professores, mesmo que sejam interesses legítimos, necessitamos de várias componentes, mas sobretudo de dois: um currículo claro, traduzido em metas de aprendizagens claras, e uma avaliação externa com significado sentido pelos alunos.

Os bons professores sentem-se apoiados pelo currículo e pela avaliação. O currículo estruturado ajuda-os a concentrar-se no que melhor sabem e melhor devem fazer: ensinar, transmitir conhecimentos, desenvolver capacidades, promover atitudes e valores nos seus alunos. Uma avaliação externa reforça a sua autoridade no seu esforço de exigência com os alunos.

Um currículo não é fácil de estabelecer. Necessita do trabalho de equipas de especialistas, com experiência no ensino e contacto com realidades internacionais, com conhecimento profundo das matérias e com alguma familiaridade com a teoria do desenvolvimento curricular. Exigir tudo isto a um professor isolado ou de um pequeno grupo de professores é muito pouco realista e afasta os professores das suas funções.

Em seguida, para traduzir uma matéria curricular e torná-la operacional, são necessários bons manuais escolares. Fazê-los também não é fácil. Requer equipas de autores, de técnicos, de gráficos e de produtores, de forma a criar manuais depois expostos à crítica pública, experimentados em muitas turmas e muitas escolas e, consequentemente, aperfeiçoados. Exigi-lo a um professor isolado ou a equipas de professores de uma escola é de novo irrealista e afasta os professores das suas funções.

Tudo isto parece elementar, mas tem sido posto em causa, explicitamente ou implicitamente, por teorias que subvalorizam o currículo e os materiais de apoio (Marsden, 2001). Uma versão mais moderna desta subvalorização é o predomínio da multidisciplinaridade e da flexibilidade curricular adaptada aos interesses locais.

Ora a multidisciplinaridade só se pode construir com base na disciplinaridade que é, como atrás defendemos, essencial à estruturação da aprendizagem dos alunos. De outra forma, o ensino torna-se num conjunto desconexo de prática e experiências, na realidade enfadonhas e promotoras de um ensino dirigido à memória e não à compreensão.

Igualmente, a flexibilidade curricular faz sentido na base de um currículo e de uma avaliação, e como forma de aprofundar matérias e promover o contacto dos alunos com outras realidades. Nesse sentido, a criatividade dos professores será fundamental. Mas é uma criatividade enquadrada curricularmente e apoiada por uma avaliação das matérias fundamentais.

Não sendo assim, a flexibilidade curricular apela a interesses corporativos e ao laxismo. E não centra o professor na sua atividade fundamental. O professor não está ajudado no seu esforço de exigência junto dos alunos. Estes sentem que as metas são flexíveis, que nenhuma avaliação externa verificará as suas falhas.

A associação entre o currículo e a avaliação incentiva-nos todos a melhorar; na feliz expressão inglesa, it brings out the best in ourselves. A sua omissão, incentiva muitos a esquecer o progresso, it brings out the worst in ourselves.

8. Conclusões

A experiência portuguesa das últimas duas décadas corrobora algumas das conclusões fundamentais de diversos estudos empíricos e teóricos da realidade educativa.

A experiência portuguesa mostra, sobretudo, a importância de dar atenção sistemática e continuada aos resultados escolares dos alunos (learning outcomes). Isto significa, em particular, duas coisas: um currículo bem estruturado, ambicioso e exigente, e uma avaliação fiável, frequente e variada.

Um currículo bem estruturado segue vários princípios. Primeiro, tem de se concentrar nas matérias fundamentais. Ou seja, a leitura e a matemática, logo em seguida a história e a geografia, as ciências e as artes. Segundo, o currículo deve estabelecer prioridades e sequências, ter alguma flexibilidade, mas possuir um caminho central em torno do qual a aprendizagem se desenvolve. Terceiro, o currículo deve estar baseado no conhecimento, a única forma de o estruturar e de ajudar os jovens a progredir para além da simples memorização, em direção a uma compreensão profunda dos conceitos e uma assimilação da estrutura de pensamento das diversas disciplinas. Finalmente, o currículo deve ser claro e sintetizado em metas curriculares, de forma que permita estruturar os diversos componentes do ensino em seu torno: manuais e outros materiais de apoio, sistemas de tutoria públicos e privados, clareza para encarregados de educação e uma avaliação balizada por metas curriculares.

Uma avaliação fiável segue também vários princípios. É um sistema complexo. Inclui a avaliação formativa, destinada ao reforço da aprendizagem, e promovida pelos professores, pelos próprios alunos, pelos seus pares, ou pelos seus familiares. Inclui também a avaliação interna, feita por professores ou por escolas, e com alguma consequência no futuro académico imediato dos alunos. Estes podem ser aconselhados a rever certas matérias, a frequentar classes especiais ou, em última análise, a repetir um ano escolar. A retenção deve ser ao máximo evitada, mas promovendo o domínio das matérias e não de forma artificial ou simplesmente administrativa. A avaliação interna deve ser complementada com avaliação externa, também ela com algum impacto sobre o futuro académico imediato dos alunos.

Mas mais do que isso, a avaliação externa, estandardizada e corporizada em exames, tem-se mostrado decisiva para o progresso dos sistemas educativos, da mesma forma que a avaliação interna se tem mostrado essencial para o progresso dos alunos de uma turma ou uma escola. As duas aferições devem estar alinhadas. Na ausência de uma avaliação externa estandardizada é praticamente impossível acertar nacional ou regionalmente o nível de exigência desejado.

Estes princípios podem e devem ser apoiados com uma atenção especial aos jovens com mais dificuldades, com o incentivo a professores e escolas para melhorarem os seus resultados, com o reforço da autonomia das escolas e com a criação de vias práticas de ensino profissionalizante.

O currículo e a avaliação são os pilares essenciais de qualquer sistema educativo. Estranhamente, são frequentemente esquecidos e subalternizados por debates corporativos ou pelo fascínio com a inovação tecnológica. Mas de nada serve evitar a realidade e centrar os debates em questões acessórias. Quando os dois pilares centrais falham, todo o sistema fica prejudicado. O currículo e a avaliação são as grandes bases de apoio aos professores no seu esforço de educação dos nossos jovens.

Referências

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1 O autor deste artigo participou ativamente nesse debate a través de artigos, conferências e livros. Ver, nomeadamente, Crato (2006a; 2006b; 2011).

2 Trends in Mathematical and Science Studies, um estudo internacional promovido pela IEA, International Association for the Evaluation of Educational Achievement, de quatro em quatro anos, incidindo sobre matemática e ciências no 4.º e 8.º anos de escolaridade.

3 PISA é o acrónimo de Programme for International Student Assessment, que avalia os estudantes de 15 anos de três em três anos e que tem como domínios fundamentais a leitura, a matemática e as ciências.

4 Plano Nacional de Leitura, https://www.pnl2027.gov.pt/np4/home

6 Despacho n.º 6605-A/2021, https://bit.ly/3RUR90A

7 No Brasil fala-se mais propriamente em “habilidades”, entendidas como capacidades adquiridas, por contraste com capacidades, que serão inatas ou quase inatas. Mas em Portugal a ideia de habilidades está associada a espetáculos lúdicos e muitas vezes prefere-se a designação “capacidades”.

9 Como explica a diretora da editora de manuais escolares de Singapura, com livros didáticos de qualidade “os professores podem concentrar-se na aprendizagem dos alunos. Dessa forma, ao invés de preparar materiais, preparam boas unidades didáticas”. Joy Tan, comunicação apresentada na conferência Second Textbook Cambridge Summit, Reykjavik, junho de 2019.

11 A mesma divisão, ou mesmo com mais de dois itinerários de formação, existe em países com sistema de formação profissional mais desenvolvida, como a Alemanha, Suíça e Áustria. Infelizmente, em 2016 e por razões ideológicas, essa divisão foi abolida. Os alunos incluídos na modalidade vocacional retornaram à anterior formação modular desorganizada e não estruturada, sem cursos académicos obrigatórios (os chamados CEF [Cursos de Educação e Formação] e outros).

12 A expressão foi sobretudo difundida a partir da publicação de Rugg (1928), embora modernamente o seu conteúdo tenha variado.

* O autor cumpre o dever de informar que foi ministro de educação e ciência entre 2011 e 2015, período incluído na análise.

* O autor cumpre o dever de informar que foi ministro de educação e ciência entre 2011 e 2015, período incluído na análise.

Como citar em APA:

Crato, N. (2022). Como apoiar e como abandonar os professores na batalha pelo sucesso educativo. A experiência de Portugal entre 1995 e 2020. Revista Iberoamericana de Educación, 90(1), 77-95. https://doi.org/10.35362/rie9015440