Revista Iberoamericana de Educación (2023), vol. 91 núm. 1, pp. 9-20 - OEI

https://doi.org/10.35362/rie9115726 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653

recibido / recebido: 12/03/2023; aceptado / aceite: 15/03/2023

Educação em contextos rurais na Ibero-América: caminhos, perspectivas e desafios

Daniele Cristina de Souza 1

Luiz Paulo Ribeiro 2

1 Universidade Federal do Triângulo Mineiro(UFTM), Brasil; 2 Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG), Brasil

Resumo. Abordar o rural e a educação voltada a ele coloca uma série de desafios, sobretudo, se a preocupação é expandir uma leitura para além do Brasil. Entramos em um campo de produção de conhecimento interdisciplinar que exige de nosso olhar especializado na educação um esforço compreensivo de problemáticas, temáticas e construções teóricas que não são priorizados na área, mas que são fundantes na/da nossa prática social. Esta edição especial da Revista Ibero-Americana de Educação traz investigações, relatos e reflexões sobre a Educação em Contextos Rurais da Ibero-América demonstrando a pluralidade de práticas diante das diferenças contextuais e desafios e potencialidades comuns para construir uma educação que represente e seja produzida com, de a para os povos do campo ibero-americanos. Este artigo tem como fazer uma introdução a este monográfico, apresentando discussões iniciais e potencializando a leitura aos interessandos em (re)conhecer a educação rural e do campo na Ibero-américa.

Palavras-chave: educação rural; educação do campo; escolas rurais

Educación en contextos rurales en Iberoamérica: camino, perspectivas e desafíos

Resumen. Abordar lo rural y la educación dirigida al plantea genera una serie de desafíos, especialmente si la preocupación es expandir una lectura más allá de Brasil. Entramos en un campo de producción de conocimiento interdisciplinario que requiere desde nuestra visión especializada en educación un esfuerzo integral de problemas, temas y construcciones teóricas que no son priorizadas en el área, pero que son fundamentos en/desde nuestra práctica social. Esta edición especial de la Revista Iberoamericana de Educación trae investigaciones, informes y reflexiones sobre la Educación en Contextos Rurales de Iberoamérica, demostrando la pluralidad de prácticas frente a las diferencias contextuales y los desafíos y potencialidades comunes para construir una educación que represente y se produzca en los pueblos del ámbito iberoamericano. El texto pretende hacer una introducción a este monográfico, presentando discusiones iniciales y potenciando la lectura a los interesados en (re)conocer la educación rural y del campo en Iberoamérica.

Palabras clave: educación rural; educación en el campo; escuelas rurales.

Education in rural contexts in Ibero-America: paths, perspectives and challenges

Abstract. Addressing the rural and education aimed at it poses a number of challenges, especially if the concern is to expand a reading beyond Brazil. We enter a field of production of interdisciplinary knowledge that requires from our specialized view in education a comprehensive effort of problems, themes and theoretical constructions that are not prioritized in the area, but that are foundations in/from our social practice. This special edition of the Ibero-American Journal of Education brings investigations, reports and reflections on Education in Rural Contexts of Ibero-America demonstrating the plurality of practices in the face of contextual differences and common challenges and potentialities to build an education that represents and is produced with, from a to the peoples of the Ibero-American field. This paper aims to make an introduction to this special edition, presenting initial discussions and enhancing the reading to the interested in (re)knowing rural and rural education in Ibero-America.

Keywords: rural education; field education; rural schools

1. Introdução

A realização do debate em torno da Educação em Contextos Rurais pressupõe um reconhecimento da existência de especificidades territoriais que trazem implicações nos processos de formação humana. Isso pode ser visto, por exemplo, quando analisamos o direito à educação na Iberoamérica, considerando como ele é viabilizado, ou não, para os diferentes sujeitos vinculados aos contextos rurais. Questões como o acesso, a permanência, a infraestrutura das escolas e a qualidade educacional ganham destaque e mostram que a desigualdade social impacta de maneira mais intensa nesses cenários, principalmente os vinculados à América Latina. O cenário da Pandemia da Covid-19 mostrou, ainda mais, a segregação social. Focar em outras dimensões da temática também traz à tona as sociabilidades diversas e seu impacto no processo educativo. O que se relaciona aos modos de produção de vida muitas das vezes desconhecidos, desvalorizados, ou que se almejam apagar. Adicional, temos um cenário de diferentes representações sociais em disputa que desvelam o imaginário sobre qual educação os sujeitos que ali produzem o território podem, têm, ou devem ter. Sem esquecer da pergunta: qual educação os sujeitos querem, desejam?

Afirmar que os sujeitos produzem o território e que esta construção é feita em disputa (Fernandes, 2006, 2012) não é algo banal, pressupõe reconhecer autoria e participação necessária dos povos na construção da vida nos espaços que ocupam. Este é um ponto de partida para a compreensão de educação que almejamos. Exige um olhar histórico sobre as relações sociais que se estabelecem nos diferentes contextos e aponta a necessidade de uma formação humana que permita a superação da exploração rumo a autonomia na construção do presente e do futuro. E como o destaque ao rural surge? Porque, em tese, podemos assumir que é válido pensar nessa concepção educacional para todos os sujeitos.

No caso específico brasileiro, temos um deslocamento conceitual que procura sair do “rural” para se caracterizar e configurar o “campo”. Algo que não é compartilhado pela Ibero América e, no próprio país, nem sempre está presente nos espaços do Estado e mesmo por perspectivas na produção acadêmica sobre a temática. Dessa forma, cabe ressaltar que o deslocamento não é apenas semântico, é, sobretudo, político. Nasce do movimento histórico de movimentos sociais, sindicais e de diversas instituições sociais que estabelecem uma leitura de realidade do Brasil em relação à ocupação e uso da terra, das políticas educacionais existentes, dos dados sobre a educação formal e apontam na direção de que o que existe carrega uma concepção de educação e desenvolvimento do país que não representa e não condiz com o que os povos do campo precisam e almejam. Ao contrário, a educação existente no Brasil até a década de 1990, chamada de educação rural, contribuía para a intensificação da exploração e exclusão sociais, sendo pautada no apagamento da diversidade social e de modos de vida voltados à construção de alternativas à hegemonia capitalista. Assim, há o movimento político e social de construção da Educação do Campo para superar a Educação Rural.

O processo de superação do paradigma educativo da Educação Rural para o da Educação do Campo tem muitas frentes de luta e trabalho no Brasil. Pensar o financiamento público e decretos estruturantes para as escolas do campo são formas de garantir mudanças, mas estas devem acontecer tacitamente, implicando câmbios de currículo, calendário escolar, práticas pedagógicas, livros didáticos e a formação inicial e continuada de professores para atuar nessas escolas.

Essa problematização inicial tem a ver com a nossa atuação e nossa história como professores universitários de duas universidades públicas brasileiras – a Universidade Federal do Triângulo Mineiro e a Universidade Federal de Minas Gerais – que oferecem e recebem alunos e alunas campesinos para se formarem como professores de escolas do campo no Brasil. Essas são questões que se apresentam de partida na construção de cursos de graduação específicos para formação de educadores para atuar no campo, ou nas escolas que recebem sujeitos reconhecidamente do campo. Assim, falamos do lugar das Licenciaturas em Educação do Campo.

A Licenciatura em Educação do Campo surge como uma política pública de cunho afirmativo e caracteriza-se como um curso superior orientado pela formação em alternância de tempos e espaços formativos entre a universidade e a comunidade de origem dos estudantes. Assim, a formação visa a relação teoria e prática, cujo compromisso formativo reconhece demandas sociais locais e globais, propondo, ou realizando, intervenções nas comunidades. O objetivo e forma de organização desse curso busca dar conta da falta histórica de professores para atuarem no campo. É também uma forma distinta de organização para a formação inicial de professores que pretende viabilizar que o estudante consiga compatibilizar seu modo de vida vinculado ao campo e a sua ida à universidade, instituição que, geralmente, encontra-se distante de sua localidade.

Embora possa parecer simples, não é trivial a dinâmica do curso e ter esses sujeitos como alunos e alunas. Ao longo da nossa vivência como professores, identificamos que eles têm uma prática social específica, relações sociais e questões que os/as atravessam para além da individualidade. Destarte, a presença de um curso de formação pautado na alternância de tempos e espaços formativos viabiliza o Ensino Superior a um perfil de pessoas que geralmente não acessa a Universidade. Isso fez e faz com que os espaços universitários se se questionem e se movimentem, não somente sobre suas práticas e políticas, mas também passem a ter mais elementos para entender sobre como o rural constitui-se no nosso país – Brasil – e em outros países.

Sujeitos do campo. Escolas do Campo. Projetos Desenvolvimentistas. É neste entremeado de tensões que se coloca a questão principal: o que é e como formar professores para atuar nos contextos rurais ibero-americanos? Partimos de um pressuposto de que a não garantia do acesso à educação e da permanência nela potencializa ainda mais as desigualdades postas. Por isso, ter uma educação no/do/com/para os povos do campo passa, a nosso ver, essencialmente, por uma formação de professores com princípios que privilegiem o protagonismo desses povos, o projeto de sociedade dos movimentos sociais e sindicais campesinos e uma escola de direitos. Isso diz também de um extenso rastro de lutas por políticas de formação de professores que privilegiem os princípios aqui elencados. Esse é um retrato do que acontece no Brasil. Nos demais países da Ibero-América há diferentes formas de lidar com a educação rural e com a formação de professores para atuar nestas escolas.

Com essa percepção é que nos propusemos a promover esta reflexão sobre a Educação em Contextos Rurais na Ibero-América. Assim, o principal objetivo deste dossiê foi a construção de um espaço para a socialização de conhecimentos que permita fomentar a análise e o debate sobre a educação nos contextos rurais, em seus desafios, demandas, políticas, propostas didático-pedagógicas e perspectivas teóricas na atualidade, considerando os diferentes territórios e populações da Ibero-América, principalmente num cenário pós-pandêmico.

2. O Rural e a Escola Rural Ibero-americanos

Apesar do consenso sobre a existência de uma realidade que possa ser denominada como rural, há divergências sobre o conteúdo dessa categoria (Arcila e Silva, 2013). Dessa forma, abordar o rural e a educação voltada a ele coloca uma série de desafios, sobretudo, se a preocupação é expandir uma leitura para além do Brasil. Entramos em um campo de produção de conhecimento interdisciplinar que exige de nosso olhar especializado na educação um esforço compreensivo de problemáticas, temáticas e construções teóricas que não são priorizados em nossa área, mas que são fundantes na/da nossa prática social.

A exemplo do que Pérez (2004) problematiza, a própria dinâmica histórica do rural e de sua relação com o urbano vem se transformando nas últimas décadas e configura-se de maneira distinta nos países da América Latina e da Europa. Sendo assim, demarcar o que seja contexto rural na Iberoamérica pode variar de acordo com critérios e compreensões das configurações dos países e isso gera desafios para o estabelecimento de comparações entre eles. Realidade que precisa ser aprofundada.

Tal como Caballero (2023) expõe, na maioria das vezes essa demarcação parte de critérios estatísticos vinculados à densidade populacional, mas que se diferem muito no seu quantitativo entre os países. Por exemplo, para ser rural, Portugal considera um local com dez mil pessoas; Chile e Nicaragua, por sua vez, consideram mil pessoas. Na América Latina outros critérios são considerados, tal como o tipo de atividades desenvolvidas (atividades primárias), o número de casas contíguas, a presença, ou não, de serviços públicos, entre outros. Se por um lado essas leituras demarcam o rural local, dificultam entendimentos regionais e globais sobre o assunto.

Igualmente, Arcila e Silva (2013) apontam que o tamanho reduzido dos povoados, a baixa densidade demográfica e o predomínio da agricultura na estrutura produtiva são alguns dos aspectos geralmente utilizados para representar e delimitar o rural. No entanto, também se reconhecem as múltiplas atividades associadas a este espaço (além das agropecuárias) e as conexões e intercâmbios entre o rural e o urbano. Para os autores, isso gera distintas formas de interpretar essa realidade, mas considera que nenhuma dessas formas envolve as noções sobre o rural construídas pelas próprias populações que vivem nesses contextos. Dessa forma, as Ciências Sociais precisam avançar com seus marcos teóricos, objetos e formas de produção de conhecimento.

Há outros critérios possíveis que também são utilizados para demarcar o rural, mas que ainda baseiam-se principalmente numa visão dicotômica entre o rural e o urbano, sendo eles: (i) o administrativo que considera o rural a partir da divisão política de um Estado e que se encontra fora das capitais distritais, provinciais ou municipais; (ii) o funcional que considera como rural as unidades administrativas que não cumprem funções de serviços sociais como ruas e equipamentos básicos de infraestrutura, serviços públicos e outros; (iii) o econômico que define como rural os centros populacionais que necessitam de um desenvolvimento de atividades produtivas secundárias e terciárias; (iv) e o critério legal que estabelece o rural a partir das disposições legais em vigor, sem considerar densidade populacional, ou outra variável (Arcila e Silva, 2013). Nesse contexto, a leitura que possuímos é que a construção dos critérios para delimitar o que seja rural, mais do que um instrumento técnico é um instrumento político que se transforma e que contribui para a construção de determinadas visões e políticas públicas que não necessariamente contemplem a complexidade e demandas das diversas realidades e seus sujeitos.

No campo da pesquisa, o pesquisador assume, predominantemente, os critérios espaço-demográficos, mais por questões metodológicas decorrentes da falta de informação sobre o rural do que por questões epistemológicas, reduzindo assim o rural ao tamanho da população (Arcila e Silva, 2013). Portanto, é relevante compreender que a categoria rural é uma construção social e histórica sobre a realidade e que se expressa com visões diversas que impactam na configuração do conhecimento produzido, de ações educacionais e políticas sociais de maneira geral.

Nesse sentido, uma breve reflexão sobre os modelos interpretativos do rural, sintetizados por Arcila e Silva (2013), é relevante. Sendo eles: (a) a dicotomia rural e urbano e seu correlato atraso-progresso; (b) o continuum rural-urbano; (c) a desruralização e a persistência do rural; (d) a fusão rural-urbano; (e) o reencontro com a vida rural; e (f) a nova ruralidade. Apesar da perspectiva dicotômica ser considerada superada na leitura da realidade, Arcila e Silva (2013) problematizam que ainda se faz presente nas próprias definições do que seja o rural como uma oposição ao urbano, repleto de visões que o entende como inculto e atrasado.

Na medida em que os limites socioeconômicos vão se desfazendo com a expansão das tecnologias de comunicação, aponta-se para a inadequação da dicotomia rural e urbano, e olha-se para o rural como continuum a partir de uma escala derivada do grau de difusão dos modos de vida urbano. Essa visão, apesar de avançar, também se dá em contraposição ao urbano.

Com relação à desruralização e à defesa do desaparecimento do rural, são argumentadas pelo esvaziamento das populações nos espaços rurais com a perda de seus saberes e práticas e da sua participação em atividades distintas da agricultura. Em oposição a essa compreensão, alguns autores defendem a persistência, mas sem negar os impactos da globalização nas sociedades rurais, considerando que permanecem juntos o moderno e os modos milenares de produção dos campesinos e indígenas, a exemplo do que ocorre na América Latina. Para os autores, isso exige uma superação da oposição rural e urbano e o reconhecimento de que os camponeses não são sujeitos passivos dos estilos urbanos, apesar de haver convivência com os modos de vida.

Nesse limiar, surge a proposição da fusão rural-urbano que reconhece as mudanças geradas pela modernização, a expansão das comunicações e o movimento migratório, colocando em foco as interações urbano-rural em oposição a busca por encontrar critérios para demarcar esses espaços e seus modos de vida. São destacados tanto os fluxos populacionais do rural para o urbano, como do urbano para o rural, apontando a diversificação das formas de vida, de bens e serviços e, muitas vezes, o reconhecimento de modos híbridos de se viver.

A concepção sobre o reencontro com o rural, por sua vez, visa destacar os processos de renascimento e recomposição social das sociedades rurais frente as transformações da sociedade. Assim, aportam-se nas especificidades das identidades rurais, em relação as urbanas, mesmo que se reconheça sua integração no cenário globalizado. Há um tensionamento em relação às representações sobre o rural, em direção a caracterizá-las a partir do espírito comunitário dos modos de vida, do foco na natureza, da qualidade de vida e da tranquilidade, em substituição aquelas que ligam o rural a pobreza, a falta de desenvolvimento pessoal, ao isolamento social e ao atraso. Em geral, é uma perspectiva assumida por quem defende modos de vida mais sustentáveis, muitas vezes vinculados à defesa de um retorno ao rural. No entanto, Arcila e Silva (2013) estabelecem uma importante questão, a valorização do rural não implica necessariamente numa valorização das comunidades rurais e, por vezes, essa perspectiva pode produzir um novo objeto de consumo capitalista, tal como no turismo rural.

O conceito de Nova ruralidade tem tomado força na América Latina, visando enfrentar a insuficiência do conceito tradicional de rural. Como características da nova ruralidade são apontadas a superação da dicotomia rural e urbano, a diversidade de expressões de quem sejam os seus sujeitos (tais como campensinos, ribeirinhos, pescadores, artesãos, empresários agrícolas, pessoas dedicadas a serviços rurais), o foco na multifuncionalidade dos territórios e o reconhecimento da pluratividade para a preservação das economias rurais, a ênfase no manejo e conservação dos recursos naturais e o reconhecimento dos serviços ambientais como forma de dinamizar a economia rural e a valorização do rural. No entanto, os autores destacam debates sobre sua consistência e seu foco de análise, sendo uma perspectiva analítica latina e mesmo podendo estar sendo esvaziada quando seu sentido passa a referir-se a qualquer elemento novo sobre o rural, ou algo que não era observado por leituras anteriores.

Frente a existência da diversidade de modelos interpretativos, Arcila e Silva (2013) promovem reflexões que igualmente consideramos em nossa prática de formação de professores do campo, tanto para delimitar quem são os sujeitos dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo, quanto para delimitar o espaço de formação profissional e atuação futura. Como esses modelos nos impactam? De partida, um dos impactos sentidos tem a ver com o próprio zoneamento rural e urbano feito pelas cidades com a construção de conceitos oficiais em torno do rural e que contribuem para delimitar o que seja uma escola do campo.

De acordo com a Decreto Nº 7.352, de 4 de novembro de 2010 que dispõe sobre a Política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA no Brasil, “Escola do campo: aquela situada em área rural, conforme definida pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou aquela situada em área urbana, desde que atenda predominantemente a populações do campo”. Eis que temos tantos outros desafios para demarcar o que o IBGE define como rural. Conforme Pera e Bueno (2016) trazem, o IBGE define seu setor censitário como urbano ou rural de acordo com a posição em relação ao perímetro urbano delimitado na legislação urbanística do município. No entanto, nem todos os munícipios possuem tal legislação. Enfim, o que queremos delinear é que a esse debate unem-se outros que desdobram o caracterizar dos sujeitos que são atendidos nas escolas localizadas na área urbana, mas que são reconhecidos como população do campo.

Em suma, o que podemos vislumbrar desse debate é que há diversos relevos, vegetações e formas históricas de ocupar e produzir nos espaços rurais espanhóis, portugueses e latino-americanos. Assim, podemos, de forma simples e direta, dizer de rurais, no plural. A pluralidade expressa-se nos modos de pensar, sentir e agir dos sujeitos, famílias e comunidades que materializam suas vidas nesses espaços, produzindo identidades, subjetividades e socialidades a partir de referenciais que têm como ponto comum e estruturante em nossa concepção a relação com a terra. Não podemos deixar de lado o quanto esse elemento está imbricado temporalmente em muitas tensões: terra ocupada, terra explorada, terra expropriada, terra produtiva, terra colonizada, terra-vida.

É por pensar assim que consideramos que a terra é um elemento-espaço-território em disputa na Ibero-América. Isso se liga diretamente ao movimento histórico de ocupação dos territórios, com as desigualdades decorrentes da luta intensa de forças que são desiguais (Kay, 2019). Liga-se também aos projetos de desenvolvimento que são direcionados às áreas não urbanas que, por sua vez, estão intimamente ligadas aos projetos de sociedade, de campo, de educação e, especialmente, de escola. Este último elemento torna-se importante porque consideramos que a forma como vemos o campo e os seus sujeitos direciona a práticas, currículos e didáticas para as escolas rurais e do campo.

Para além desse reconhecimento, Caballero (2023) aponta uma importante característica que a escola assume nos contextos rurais. Pela própria ausência de serviços em geral, e pela centralidade e obrigatoriedade do Estado com a educação, ela tem uma grande autoridade na comunidade por ser uma das instituições mais estáveis e, em alguns casos, a única. Muitas das vezes é a única forma de vincular a comunidade ao Estado e mesmo uma forma de ter acesso a ele pelas aprendizagens que propicia.

3. Desafios históricos, diversidades de sujeitos e recortes analíticos

Historicamente, o contexto rural desnuda-se como um cenário de exclusão e precarização da educação aos diferentes povos campesinos, especialmente na América Latina, assim como a falta de participação social na construção das políticas, suas teorias e práticas (Cabellero, 2023, Juárez, 2017, Pérez, 2004). Isso instiga a pensar, quais propostas e respostas os diferentes países têm construído nas últimas décadas para a sua educação? Qual educação é realizada? Na atualidade, cabe também a análise sobre a realidade educacional frente ao enfrentamento da Pandemia da Covid-19 que atinge de maneira severa as escolas rurais.

Nessa perspectiva, partimos para uma mirada analítica sobre a educação rural na Ibero-América e identificamos que há predominância de produções acadêmicas numa perspectiva historiográfica, englobando prioritariamente alguns dos países desse território, tais como o México, Brasil, Bolívia, Argentina, Colômbia, República Dominicana, Chile, Peru e Espanha (Werle, 2011, Civera & Lionetti, 2010; Pérez & López, 2009). Por sua vez, Juárez (2017) foca no cenário da última década, apresentando as dimensões da educação realizada no rural da Ibero-América, analisando o contexto do México, El Salvador, Espanha, Chile. Juárez et al. (2020) atualizam o olhar, principalmente sob a América Latina, tratando dos contextos do Brasil, Chile, Colômbia, Honduras, México, Paraguai, Bolívia, Peru, República Dominicana, Argentina, Cuba, Chile, Costa Rica, El Salvador, Venezuela e Espanha.

Galván (2020) argumenta que a temática da educação rural foi marginal na maioria dos países do território analisado. No entanto, realizando a análise desde o México, Colômbia e Peru, aponta que a temática tem recebido maior atenção, havendo enfoque em questões que até então ficavam obscuras. Assim, apesar de identificar uma diversidade de vertentes e abordagens investigativas nos três países, aponta em comum o foco nas dimensões da escola rural, suas políticas, seus sujeitos, suas práticas e seus sentidos em diferentes contextos culturais.

Galván e Cadavid (2021) afirmam que a temática da educação rural tem ganhado força nas investigações na Ibero-América. Para as autoras, as pesquisas têm uma tendência propositiva, pois elas possuem um interesse renovado no sentido de contribuir para melhoria da educação das diferentes populações rurais, atentas aos seus modos de vida e aos seus direitos fundamentais.

Amaya (2022), de forma representativa, aborda a diversidade étnica dos diferentes países da América Latina e cita a existência de pedagogias alternativas, próprias de povos originários, ou provenientes de movimentos sociais populares, como é representativo no Chile, Argentina, México, Brasil e em países das Antilhas. O autor, considerando a realidade campesina atravessada pelo modelo econômico capitalista, entende que estratégias comunitárias e/ou populares para a educação dos povos é uma tendência na América Latina, defendendo-as como um caminho para se viabilizar uma educação que contemple os interesses e valores das comunidades, na qual se materialize como uma educação libertadora, no sentido freireano.

No Brasil, esse cenário é representativo, constituindo movimentos e perspectivas específicas que caracterizam a Educação Indígena, a Educação Quilombola e a Educação do Campo. Apesar de todos os seus sujeitos comporem legalmente a categoria “população do campo”, há caminhos distintos e que se intercruzam, mas que se expressam em formatos e legislações específicas para o atendimento educacional. Essa realidade tão diversa nos instiga a um constante diálogo e esforço analítico para compreensão das especificidades dos contextos rurais, mas também pensarmos nos desafios em comum para que possamos construir uma sociedade mais justa e digna socioambientalmente.

4. Por fim, um dossiê

A construção deste dossiê, sem sombra de dúvidas, foi um processo de muita aprendizagem e reconhecimento de uma pluralidade de ações em Educação em contextos rurais na Ibero-América. Foram recebidos e avaliados 64 (sessenta e quatro) textos de diferentes países e com temáticas bastante diversas, dos quais dez passaram a constituir o dossiê.

Inicialmente, identificamos algumas tendências nos trabalhos enviados, desde aquelas que não formularam o debate em torno da educação rural/campo e que se vincularam à temática pelos sujeitos da educação serem ou estarem em contextos rurais, àquelas que fizeram um resgate histórico da configuração do direito à educação das populações rurais, ou mesmo análises relacionadas à configuração local, regional, nacional e/ou internacional de diferentes fenômenos, ou dimensões, da área educacional.

Além da qualidade epistêmica e acadêmica, almejamos um dossiê que fosse representativo dos diferentes países de origem das produções submetidas, assim como do conjunto de temáticas que foram propostas. Algo fundamental é que visamos uma explicitação direta ao debate em torno da educação em contextos rurais e que permitisse, por um lado, generalizações ou análises mais amplas para além de aspectos pontuais dos territórios.

Nessa lógica, ao final, produções relacionadas ao cenário educacional da pandemia da Covid-19, às políticas educacionais, à formação de professores, à educação indígena e à escola rural são as principais. Em seu conjunto, apontam desafios da prática social que é atravessada pelo predomínio da visão dicotômica do rural e urbano e pela ausência de direitos para as populações do campo. Cenário que expressa inexistência ou precarização de políticas sociais para os contextos rurais, mas também esforços de profissionais da educação para construção de estratégias que contemplem as demandas cotidianas da escola e sua comunidade.

Assim, entre os artigos, temos produções que contrastam experiências entre dois países. Um relaciona as práticas pedagógicas de educação rural no Brasil e na Espanha e, a partir de especificidades históricas e aproximações entre os países, apontam-se a centralidade da escola, a importância de intercâmbios e construção de redes para fortalecer o movimento por uma escola do campo de qualidade (Martins, et al., 2023). Hoffman-Martins et al. (2023), por sua vez, apresentam iniciativas de professores de escolas rurais da Argentina e do Brasil na manutenção das aulas no início da pandemia e destacam a ausência de políticas públicas para os territórios rurais, sobretudo nesse período, pontuando como fundamental a participação dos povos do campo em sua construção.

Ainda sobre a pandemia do Covid-19, o texto de Romero et al. (2023) foca especificamente nas escolas rurais com jornada estendida, localizadas na província de Entre Rios, na Argentina. Os dois textos que abordam o contexto pandêmico reforçam o que se tem dito sobre a pandemia e as escolas em contextos rurais: a pandemia trouxe à tona dificuldades que já existiam, principalmente no que diz respeito ao acesso às Tecnologias de Informação e Comunicação. Por sua vez, trata de como a pandemia do Covid-19 representou, em escala global, e em específico nas escolas rurais, uma perda significativa de oportunidades educativas. O que temos visto é que a educação rural no período pandêmico contou, em grande parte, com professores e interessados para que fosse possível alcançar seus objetivos e ser mantida. Sem esses sujeitos, diversas crianças, adolescentes e jovens rurais teriam ficado, mais uma vez, sem acesso à educação.

Noutro texto sobre o contexto brasileiro, chamamos a atenção para o que foi apresentado por Sá et al. (2023) que demonstram como está o acesso e a permanência de alunos e alunas com deficiência em escolas do campo no Brasil. Os autores mostram uma realidade por vezes silenciada e trazem no seu escopo a necessidade de atenção à educação especial e inclusiva também nas escolas do campo.

A importância de políticas públicas, ou um projeto específico para a educação rural, também se destaca no México. Com relação à formação de professores, isso fica evidente quando conhecemos a realidade mexicana a partir de Cano et al. (2023). Os autores apresentam, através de uma pesquisa documental, os desafios para a formação de docentes da educação básica em territórios rurais mexicanos. Eles reconhecem a necessidade do avanço da concepção de educação rural presente nas políticas públicas do país que são limitadas ao critério demográfico, prevalecendo ainda uma visão negativa do que seja a escola rural e a docência.

Outros dois textos complementam a contextualização sobre as políticas públicas do México: Martínez (2023) analisa se há políticas públicas específicas para escolas rurais multisseriadas, apontando-nos a fragilidade das escolas e o predomínio da ausência do Estado. Abellán (2023) analisa as ações do Conselho Nacional de Fomento Educativo (CONAFE) no Estado de Chihuahua, no marco da equidade social, a partir de narrativas de educadoras de diferentes níveis de ensino da educação básica.

O artigo de Montes e Tineo (2023) problematiza a participação dos povos indígenas na constituição da política pública de educação rural, principalmente no que diz respeito à educação intercultural bilíngue. Apesar de, desde 2015, o Peru ter reconhecido a existência de 24 línguas nativas no país, ainda há desafios para a implementação e reconhecimento do ensino quéchua-espanhol. Diferentemente, no cenário brasileiro, embora a educação do campo componha um grupo de modalidades educacionais com especificidades, não são enquadradas sob a mesma proposta a educação do campo e a educação indígena. Como podemos notar, no Peru – e no restante da América Latina – também se enquadra como educação rural aquela destinada aos povos indígenas e originários.

No âmbito da análise de estratégias e projetos educativos voltados para o contexto rural que podem apontar alguns caminhos exitosos, o texto de Bermejo et al. (2023) traz uma análise sobre o Liceu Científico Dr. Miguel Canela Lázar que se utiliza do método STEAM (Science, Technology, Engineering, Arts, Mathematics), de forma específica no âmbito rural para a educação secundária. Os autores analisam a configuração e as práticas do Liceu e traçam uma comparação entre resultados dos estudantes a avaliações externas com outros Liceus da província Hermanas Miraba. Assim, apontam que o Liceu Dr. Miguel Canela Lázar tem atingido resultados satisfatórios e se destaca entre os centros de formação na República Dominicana.

Por último, temos o texto de Díez-Gutiérrez (2023) que, analisando a situação local espanhola, apresenta uma questão central da educação em contextos rurais na Ibero-América: o valor do rural para os sujeitos e comunidades que desenvolvem suas vidas no campo e o papel da escola frente a tais questões. A problematização parte do predomínio do imaginário social do campo como atrasado e sem possibilidades de desenvolvimento, o que faz com que jovens rurais espanhóis partam de suas comunidades buscando novas possibilidades de vida.

A partir dos aspectos destacados até então em relação aos artigos que compõe o dossiê, podemos identificar que há uma estreita relação entre a proposta educacional e a política econômica, social e cultural vigente, que a educação em contextos rurais é resultado de um projeto de campo, de educação e de sociedade. Não deixando de dizer que é política o desinvestimento nas escolas rurais, assim como é política a decisão de fechar escolas, de “deixar” os jovens partirem do campo e de implementar no campo uma escola com princípios e práticas que não valorizam os sujeitos e comunidades campesinas na Ibero-América.

Nesse sentido, reafirmamos a importância de nos posicionar em defesa de uma educação rural/educação do campo/educação em contextos e territórios rurais que paute a vida, o trabalho, a valorização do campo e suas comunidades

Por fim, seguimos em luta e em esperança por uma Educação do Campo! Nessa busca sabemos que muitas ações são necessárias e daí confirmamos a importância da formação de professores que paute tais questões, que faça e seja feita com/de/para os sujeitos e comunidades rurais, protagonistas do processo escolar e da transformação e valorização de seus territórios.

Referências

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Cómo citar en APA:

De Souza, D. C. & Ribeiro, L. P. (2023). Educação em contextos rurais na Iberoamérica: caminhos, perspectivas e desafios. Revista Iberoamericana de Educación, 91(1), 9-20. https://doi.org/10.35362/rie9115726