Revista Iberoamericana de Educación (2023), vol. 93 núm. 1, pp. 111-125 - OEI

https://doi.org/10.35362/rie9315890 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653

recibido / recebido: 02/06/2023; aceptado / aceite: 09/09/2023

Desafios para a inclusão de alunos imigrantes em uma escola pública de Manaus-AM, Brasil

Rosa Patrícia Farias 1 https://orcid.org/0000-0002-4428-512X

Carlo Henrique Golin 2 https://orcid.org/0000-0002-1858-6068

Edgar Aparecido da Costa 2 https://orcid.org/0000-0002-0043-2642

1 Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Brasil; Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil 2

Resumo. O artigo apresenta uma discussão teórica sobre as situações vivenciadas por estudantes imigrantes da Venezuela e do Haiti em uma escola pública de Manaus (Brasil). O objetivo geral foi debater sobre as potencialidades e dificuldades enfrentadas por eles no cotidiano escolar. Para a análise dessa problemática, formulamos as seguintes questões: a) Como se deu a inclusão desses estudantes imigrantes em uma realidade completamente diferente da sua? b) Como superar alguns desafios, tais como as dificuldades linguísticas, o isolamento e o bullying ? c) Como a equipe pedagógica atuou para minimizar os problemas de adaptação desses alunos? Para investigar, nós utilizamos elementos qualitativos e descritivos e, como procedimento, optamos por uma revisão bibliográfica sobre interculturalidade e sobre os direitos dos imigrantes à educação no Brasil. Além disso, refletimos sobre as experiências vividas e registradas através da observação na referida escola pública. Concluiu-se que, apesar de obstáculos como a dificuldade no uso da língua portuguesa, a diferença de costumes e a ausência de uma política de serviços específica, os imigrantes venezuelanos e haitianos se integram e participam da vida escolar, ainda que de modo parcial.

Palavras-chave: inclusão; imigrantes; alunos; escola.

Desafíos para la inclusión de estudiantes inmigrantes en una escuela pública de Manaus-AM, Brasil

Resumen. El artículo presenta una discusión teórica en la que se reflexiona sobre las situaciones vividas por estudiantes inmigrantes de Venezuela y Haití en una escuela pública en Manaos (Brasil). El objetivo general fue debatir las potencialidades y las dificultades enfrentadas por estos en su cotidiano escolar. Para analizar esta problemática nos formulamos las siguientes preguntas: a) ¿cómo se produjo la inclusión de estos estudiantes inmigrantes en una realidad completamente diferente a la suya?; b) ¿cómo superar desafíos, como las dificultades lingüísticas, el aislamiento y el bullying?; y, c) ¿cómo actuó el equipo pedagógico para minimizar los problemas de adaptación de estos estudiantes? Para indagar utilizamos elementos de índole cualitativos y descriptivos y, como procedimiento, optamos por una revisión bibliográfica sobre la interculturalidad y sobre los derechos de los inmigrantes a la educación en Brasil. Asimismo, se reflexionó sobre las experiencias vividas y registradas a través de la observación en dicha escuela pública. Se concluyó que, a pesar de los obstáculos, como las dificultades en el uso del idioma portugués, sus costumbres diferentes y la ausencia de una política de servicios específica, los inmigrantes venezolanos y haitianos se integran y participan de la vida escolar, aunque sea parcialmente.

Palabras clave: inclusión; inmigrantes; estudiantes; escuela.

Challenges for the inclusion of immigrant students in a public school in Manaus-AM, Brazil

Abstract. This article presents theoretical discussion and reflections on situations experienced in a public school by different immigrant students. Thus, the general objective was to debate the potentialities and difficulties faced by immigrant students in their daily school lives, enrolled in Elementary School II, at a State School located in Manaus (AM), in the Northern region of Brazil. The problem that inspired this work is observed in the following questions: a) how did the inclusion of these immigrant students occur in a reality completely different from theirs? b) how to overcome challenges, such as language difficulties, isolation and bullying? c) how did the pedagogical team act to minimize these students’ adaptation problems? It uses elements of qualitative and descriptive research and, as procedures, we opted for bibliographical research on interculturality and the rights of immigrants to education in Brazil. Also, reflections on the experience lived and recorded using the technique of participant observation in a public school were used. It was observed that despite obstacles, such as difficulties in using the Portuguese language, different customs and the absence of a specific service policy, Venezuelan and Haitian immigrants participate in school life, even partially. School inclusion must be thought of and implemented in a broad way and attentive to new territorial dynamics.

Keywords: inclusion; immigrants; students; school.

1. Introdução

Na história recente da cidade de Manaus, capital do estado do Amazonas (AM), na região Norte do Brasil, um fato chamou muita atenção e causou significativa mudança na ordem política, econômica e social, notadamente a partir de 2016: a imigração em massa de haitianos e de venezuelanos. As famílias que participaram desse movimento migratório enfrentaram muitas dificuldades em solo manauara. Os adultos tinham preocupações como encontrar um local para morar e um emprego, além do aprendizado de uma nova língua. As crianças e os adolescentes, distantes de seu lar e de seu ciclo de amizade, tiveram que continuar seus estudos em um novo país, o que trouxe à tona situações adversas, como a diferença linguística e a dificuldade de entrosamento com pessoas falantes em outra língua, o que dificulta a comunicação.

A partir dessas observações empíricas, se levantam os seguintes questionamentos orientadores: a) Como se deu a inclusão desses alunos imigrantes em uma realidade completamente diferente da sua? b) Como superar desafios, como a dificuldade linguística, o isolamento e o bullying? c) Como a equipe pedagógica atuou sem capacitação específica sobre o tema? 

O tema se mostra relevante, pois é pouco estudado. Muito se tem falado sobre inclusão escolar, adentrando na questão de cotas para a comunidade negra, do pobre, do deficiente, mas pouco se fala do aluno imigrante em escolas públicas de Manaus. Sob o enfoque educacional, esse tema ainda não foi explorado como deveria. O reflexo disso é a pouca literatura existente, apenas por conta dos recentes trabalhos de Evaristo e Silva (2021) e Silva (2021). Grande parte das pesquisas realizadas sobre os imigrantes em Manaus enfatiza seu êxodo até o Brasil e os arranjos feitos para garantir-lhes o básico para a sobrevivência (Silva, 2015; Silva, 2016; Taniguchi & Paiva, 2019). Neste sentido, este trabalho surgiu da necessidade de um olhar mais atento às carências dos alunos imigrantes, que muitas vezes passam “despercebidos” pelo dinamismo e rotina escolar. 

Portanto, o objetivo geral do presente artigo é discutir as potencialidades e dificuldades enfrentadas pelos alunos imigrantes no cotidiano escolar, matriculados no Ensino Fundamental II, de uma Escola Estadual localizada em Manaus-AM. Sua escolha se deu por estar nas proximidades da rodoviária municipal e dos abrigos para imigrantes criados pelas autoridades manauaras. É válido supor que essa proximidade geográfica tenha influenciado os pais venezuelanos e haitianos a matricularem seus filhos na referida escola. 

Cabe destacar que o nome da escola não foi utilizado por respeito aos elementos éticos da pesquisa. Partiu-se de uma breve pesquisa bibliográfica sobre imigrantes matriculados em escolas públicas brasileiras para, em seguida, produzir as reflexões sobre a presença dos alunos estrangeiros com base nas técnicas da pesquisa participante. Utilizou-se de diário de campo para fazer as anotações das situações observadas e de conversas informais motivadas pelas experiências junto a alunos e professores da escola.

O estudo se mostra relevante por discutir a socialização e adaptação do aluno imigrante, sendo impossível desconsiderar a presença cada vez mais expressiva nas salas de aula desses sujeitos na região do estudo. Assim, este trabalho foi organizado em mais três seções além desta. Na primeira procura-se fazer uma abordagem histórica do fenômeno migratório mais recente na cidade de Manaus. Em seguida é apresentada uma breve discussão sobre o direito à educação pelos imigrantes estrangeiros no Brasil e, por fim, são trazidas as reflexões sobre a presença de alunos venezuelanos e haitianos na escola escolhida para análise.

2. Síntese histórica e conceitual da imigração em Manaus - AM

Em várias partes do mundo e em diversas épocas da história indivíduos abandonaram seus países e buscaram outro lugar para recomeçar suas vidas, motivados por catástrofes naturais ou por males causados pelo próprio homem, como as crises sociais, econômicas e políticas. Segundo Fernandes (2015), a migração internacional não é algo fácil de se analisar. No caso brasileiro, a migração envolve a compreensão desde a chegada dos primeiros imigrantes até os dias atuais. São múltiplas escalas territoriais e culturais (Europa, África, Ásia). Mais recentemente, são incrementadas questões relacionadas aos movimentos pendulares e particulares das regiões de fronteira. 

A imigração haitiana para o Brasil se intensificou a partir do início de 2010, após o terremoto em janeiro do mesmo ano, agravando ainda mais as condições de vida em um país com inúmeras carências socioeconômicas (Idoeta, 2018). Segundo Martins (2018), os fatores que serviram como causadores da emigração de muitos haitianos de seu país, são: a) construção e a consolidação das redes de violência, muitas vezes legitimada pelo Estado (francês, haitiano, americano), que gerou desigualdade pela violência do trabalho escravo e tráfico negreiro; b) concentração de serviços públicos e de base em determinadas regiões do país e, portanto, de difícil acesso à maioria; c) uma estrutura social “[...] marcada por extensas fragilidades, dentre elas a concentração de poder e riqueza entre uma elite militar historicamente definida” (Martins, 2018, p. 73).

Silva (2015) afirma que, na Região Norte do Brasil, as cidades que mais concentraram haitianos foram Porto Velho (RO) e Manaus (AM). Os que optaram por Manaus abrigaram-se em diferentes bairros da cidade. Em geral são casas ou quartos alugados, onde vivem várias pessoas, como uma forma de dividir os custos do aluguel1. Segundo Teixeira (2021), alguns trabalhavam de maneira informal vendendo água, banana frita e cocada nas proximidades do centro da cidade. No início do ano 2012 continuavam a chegar centenas de haitianos à Manaus, vindos principalmente por Tabatinga, na tríplice fronteira entre o Brasil, Peru e Colômbia, e em menor intensidade pelo Acre.

A imigração venezuelana ocorreu de forma intensa no ano de 2016, oriunda de uma forte crise política e econômica que atingiu a Venezuela, ocasionando uma expressiva fuga da população procurando asilo no Brasil. Estudos apontam que essa grande emigração venezuelana ocorreu com a ascensão do sucessor de Hugo Chávez, que ficou no poder de 1999 a 2013, o socialista Nicolás Maduro, mergulhando o país em uma crise sem precedentes. Desde então, a Venezuela tem vivenciado o início de uma guerra civil onde a inflação, a pobreza, a violência e o racionamento sufocam a população (Bastos & Obregón, 2018).

A proximidade geográfica e a relativa facilidade em cruzar a fronteira com o país vizinho motivou milhares de venezuelanos a tentar a sorte em terras brasileiras. A chegada de venezuelanos foi, majoritariamente, realizada pelo estado de Roraima, no extremo norte do país (Simões et al., 2017). Em 2016, entraram pelo ponto de migração terrestre na fronteira com a Amazônia 56.800 venezuelanos e retornaram 47.108, o que permite uma aproximação em torno de 9.700 venezuelanos que ficaram em terras brasileiras (Silva, 2017). Esses imigrantes instalaram-se no próprio terminal Rodoviário de Manaus, na zona Centro-Oeste da cidade, por onde chegavam em sua maioria.

Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur, 2022), atualmente Manaus é a primeira opção de cidade brasileira para permanência de 80,7% das pessoas refugiadas e migrantes venezuelanas instaladas na capital amazonense. Essas pessoas chegam ao Brasil através da fronteira entre Santa Elena de Uairén, na Venezuela, e Pacaraima, no estado de Roraima e muitas delas seguem para a cidade de Manaus2.

Sobre as condições de trabalho da população venezuelana, Taniguchi e Paiva (2019) afirmam que sua inserção no mercado de trabalho tem sido uma missão árdua mesmo para os que possuem titulação de nível superior. Os que possuem menor grau de instrução enfrentam ainda mais dificuldades. Suas ocupações laborais têm se resumido a vender água, lanche e brinquedos nas ruas manauaras, que não é suficiente para o pagamento de aluguel ou alimentação adequada. Essa última situação é amenizada com doações de sopas por parte de instituições religiosas e/ou por medidas extremas, como a busca nos lixos no entorno das feiras populares da cidade.

Com o passar do tempo, vários imigrantes conseguiram empregos e passaram a alugar casas. A partir disso iniciaram a procura por matrícula de seus filhos em escolas manauaras. Essa nova realidade gera mudanças no contexto da educação escolar, incluindo a presença daquele intitulado de diferente, o estranho no ninho. Uma condição de internacionalização forçada da educação básica.

É preciso favorecer e possibilitar a interação, a integração e/ou a convivência das pessoas de culturas diferentes. Isso implica no respeito pela diversidade sociocultural, sem desconsiderar a presença dos possíveis conflitos indesejáveis, algo não sistemático, ocasionais e de certa forma “natural”, sendo que pode ser resolvido por meio do diálogo sobre o tema. Por isso, a necessidade de um olhar mais atento e complexo do professor sobre as questões interculturais cada vez mais presente na educação formal (Golin, 2017).

Sobre o aspecto da interculturalidade, Walsh (2001) destaca a importância de não se confundir com a multiculturalidade e pluriculturalidade, pois a primeira adentra nas complexas relações entre grupos humanos, suas práticas e conhecimentos diversos, reconhecendo as diferenças existentes, sejam elas sociais, econômicas, políticas. Ou seja, a educação intercultural possibilita a construção de pontes entre pessoas e grupos culturais diferentes, sem a necessidade de criar uma nova identidade. Com isso, a promoção dessa perspectiva educacional pode facilitar na internacionalização de propostas curriculares, em especial que respeitem e integrem os sujeitos migrantes.

Nesse contexto, é necessário pensar na condição do migrante, sendo que a Organização Internacional de Migração (OIM) define um migrante como qualquer pessoa que está se movimentando, ou que já se movimentou, através de uma fronteira internacional ou dentro de um Estado, saindo do seu lugar habitual de residência. Ela sugere quatro linhas, a saber: 1) da situação jurídica da pessoa; 2) se o deslocamento foi voluntário ou involuntário; 3) quais foram os motivos para esse deslocamento; 4) a duração da sua estadia.

De acordo com os dados do Acnur (2019), os países latino-americanos estão recebendo a maioria dos venezuelanos, como a Colômbia (1,3 milhão), Peru (768 mil), Chile (288 mil), Brasil (168 mil) e Argentina (130 mil). Tais dados demonstram que o Brasil tem sido cada vez mais procurado por povos de países fronteiriços em busca de melhores condições de vida.

Em 2012, foram concedidos 1.200 vistos a haitianos, mas estima-se que tenham entrado pelo Amazonas mais de 4 mil (Coutinho & Marcelino, 2016). Em 2014, o número de imigrantes advindos do Haiti continuou aumentando e apenas nos primeiros dois meses entraram pelo Acre em torno de 15 mil haitianos (Costa, 2016).

Embora os motivos que uniram haitianos e venezuelanos sob o status de imigrante em terras brasileiras tenham causas distintas, no geral as dificuldades enfrentadas por aqueles que escolhem outro país para viver são as mesmas: a falta de acolhida, o desconhecimento do idioma, o desemprego, a falta de moradia, o preconceito e a xenofobia (Damasceno & Sucupira, 2015). É fato notório que ao chegar às terras manauaras, haitianos e venezuelanos habitaram em abrigos fornecidos pelas autoridades e entidades locais e muitos conseguiram empregos que não exigiam muita qualificação. Por vezes, essas condições de trabalho divergiam totalmente dos seus países de origem.

Conforme iam adquirindo algum dinheiro em trabalhos informais e estabelecendo residência (na maioria alugadas), as famílias imigrantes começaram a buscar por escolas para matricular seus filhos na cidade de Manaus (AM).

3. O direito à educação dos imigrantes no Brasil: um breve olhar para Manaus/AM

A legislação brasileira determina que os estrangeiros têm o mesmo direito de acesso à educação que as pessoas nascidas no Brasil. De acordo com o Art. 5º da Constituição brasileira, “[...] todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]” (Brasil,1988).

Apesar do amparo legal, alguns alunos enfrentam dificuldades no momento de ter sua matrícula efetivada. Em Manaus, por exemplo, um dos primeiros empecilhos enfrentados pelos alunos imigrantes é a falta de documentação para efetuar a matrícula. Contudo, segundo representantes da Secretaria de Estado de Educação e Qualidade do Ensino (SEDUC), não ficam fora da escola por esse motivo, conforme informação veiculada no Portal G1 AM (2018, p. s/n):

Os imigrantes que apresentam documentação escolar, são inseridos na rede pública de ensino, de acordo com a Tabela de Equivalência do Ministério da Educação (MEC). Todavia, na maioria dos casos, eles não apresentam documentação que comprove a escolaridade. Nessas situações, passam por um teste de classificação, que é um exame para definir o grau de ensino em que se encontram, com todos os componentes da Base Nacional Comum Curricular. O teste está previsto no Art. 24, inciso 2 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei 9.394/1996.

Conforme Ratier et al. (2010), apesar das dificuldades, os pais fazem questão que os alunos estudem e tenham um futuro melhor que o deles, até porque muitos não tiveram acesso à educação formal nos países de origem. Para esses autores, no contexto temporal de sua obra, o acesso à educação foi um dos principais fatores que trouxeram alguns venezuelanos ao Brasil. Alguns entrevistados chegaram a dizer que as perspectivas de educação nos seus países são precárias.

A escola, por ser o principal ponto de contato da criança estrangeira com o novo país, tem um papel privilegiado na sua inserção na cultura local. Isso porque todo imigrante passa pelo que os especialistas chamam de estresse de aculturação. Nesse momento, atividades simples do dia a dia, como pedir uma comida e cumprimentar as pessoas, precisam ser reaprendidas. Esse processo pode levar a vários resultados de acordo com a personalidade e o tipo de cultura do imigrante e a recepção dada a ele pelos nativos (Dantas, 2017).

Deve-se levar em consideração o estado emocional dessa criança/adolescente no processo de migração. Para Bezerra (2016, p. 38):

Frutos do deslocamento, as crianças imigrantes têm sua mente posta em movimento. Sentimentos, ideias, comportamentos que têm o curso modificado de forma tão abrupta [...]. Experiências traumáticas que irrompem o psiquismo, o luto das perdas que deprime e angustia, as marcas da violência silenciada que fazem o corpo. É evidente a demanda por fortalezas que surjam a proteger o psiquismo. E é notório, também, que metáforas não faltam para associar às intempéries vividas pela mente humana – infantil –, daqueles que experienciam a imigração forçada. A sofrida realidade da saúde mental desses pequenos, contudo, não cabe ser romanceada. 

Por outro lado, devido aos inúmeros eventos que ocorrem normalmente em um ano escolar (reuniões, semanas de provas, provas externas, festividades, semana de jogos, culminâncias de projetos), nem sempre há a possibilidade de um bom acolhimento, de uma boa conversa e de uma avaliação inicial com esse aluno recém-chegado. É importante frisar que os alunos procuram a escola e nem sempre são matriculados no início do ano letivo. Muitas vezes a matrícula acontece no decorrer do ano letivo, o que pode dificultar sua adaptação. Sobre a inserção do aluno imigrante nas escolas públicas brasileiras, Roldão e Souza (2020) salientam que há desafios decorrentes dos fluxos migratórios e que, por isso, crianças e adolescentes se juntam aos pais (fase de reunião familiar) e enfrentam uma nova realidade que envolve o ambiente escolar que, na maioria das vezes, não está preparado para receber esses alunos imigrantes. Portanto, intervenções educativas fazem-se necessárias com o objetivo de promover o encontro entre o imigrante e a sociedade receptora, nesse caso, a escola. 

Tal afirmação corrobora com as ideias defendidas por Araújo (2008) para quem a escola possui um papel importante na promoção de uma cidadania ativa, que considere as diferentes necessidades educativas dos cidadãos, seja flexível e desenvolva a riqueza do seu capital cultural múltiplo. A escola é um local importante para os imigrantes, pois será o espaço em que eles terão a oportunidade de integração na sociedade de acolhimento, sendo um instrumento de mobilidade social e agregador de competências interculturais.

Araújo (2008) sinaliza para a importância de a escola adotar mecanismos propositivos de uma abordagem multicultural baseada no entendimento de que a interculturalidade é promotora da coesão social. Moreira e Candau (2003)discorrem que, apesar do papel fundamental da escola nesse processo de acolhida, ela não tem como lidar de modo exitoso com essa realidade. Os autores reconhecem a dificuldade histórica da escola lidar com questões relacionadas à pluralidade e à diferença, mas entendem a urgência de enfrentamento do comodismo tendente à padronização e homogeneização da cultura, do aprendizado e das práticas sociais.

Nesse sentido, a própria internacionalização do currículo pode ser um elemento importante para promover uma formação conectada às questões globais, incluindo competências que visem uma melhor compreensão das sociedades. Para tal, é necessária a promoção de ações pedagógicas que discuta as diversidades, as interações, as fricções culturais, as diversas situações onde quer que o estudante esteja, seja fora ou dentro do Brasil, isto é, estando na condição de nativo ou de estrangeiro. Assim, a escola amplia o seu papel regional e/ou nacional, adentrando na universalidade do conhecimento, formando o cidadão para que conheça o mundo, sobretudo os diferentes usos e adaptações linguístico-culturais (Leask, 2021).

No campo da escolarização, Marshall (1967) enfatiza a educação como base integrante da cidadania, sendo a instrução formal uma condição para entender e alcançar os demais direitos, políticos e civis. Educação e cidadania estão relacionadas e, ao garantir o direito à educação, o Estado também garante às crianças as exigências e a natureza da cidadania, cujo objetivo é moldar o adulto em perspectiva.

A cidade de Manaus é um desses territórios da presença de estrangeiros nas escolas brasileiras, no contexto das migrações, principalmente, de haitianos e venezuelanos, para as maiores cidades da Amazônia (Evaristo & Silva, 2021). Os dados da presença de alunos estrangeiros nas escolas públicas de Manaus mostram-se numa dinâmica crescente entre 2017 e 2022, com crescimento de mais de 1.500% (Figura 1).

Observa-se que as fontes apresentam divergências dos dados, muito provavelmente por alguma falha na sua transmissão das escolas municipais e estaduais para o INEP, ou por divergência de metodologias adotadas para o registro pelo órgão federal. Isso remete a questionar se todos migrantes são registrados como tais. Será que alguns não utilizam o endereço de um parente residente há mais tempo na cidade e, assim, desaparecem das estatísticas migratórias? Casos como esse são frequentes nas cidades fronteiriças e poderiam ser reproduzidos em Manaus.

Figura 1 - Número de alunos imigrantes matriculados nas escolas públicas de Manaus/AM: 2017-2022

Fonte: *MEC/INEP/Censo Escolar 2022; **Secretaria Municipal de Educação, Manaus (AM), visto em Silva (2021, p. 93). Org. os autores, 2023.

Os imigrantes venezuelanos são a imensa maioria em Manaus. Com base nas informações da Secretaria Municipal de Educação de Manaus (SEMED), Silva (2021) observou que dos 5.234 alunos estrangeiros matriculados na rede municipal manaura, 4.951, ou seja, 94,59% eram venezuelanos. Os haitianos perfaziam o segundo maior contingente de alunos com 135 matriculados (2,58%). Há registros de mais 24 nacionalidades, com representantes de todos os continentes, à exceção da Oceania. Nelas, quantitativamente predominam os vizinhos fronteiriços amazônicos: Colômbia (46), Peru (31) e Bolívia (21).

Em análise aos dados da SEMED de Manaus, observou-se a presença de alunos estrangeiros, em todos os sete distritos escolares, inclusive na área rural que incluem as escolas ribeirinhas. Ficou evidenciado em 2020, que 73,84% (367) das escolas públicas municipais tiveram, pelo menos, um aluno estrangeiro matriculado.

A presença desses estrangeiros implica numa série de criatividades dos governos estadual e municipal para atender aos alunos por conta das diferenças de língua. Para Evaristo e Silva (2021, p. 86), a dificuldade dos professores ocorre pela formação de “[...] uma sala de aula multilíngue e heterodoxa, para a qual terá de desenvolver currículos, materiais, práticas e metodologias adequadas”.

Com vistas a mergulhar nesse universo complexo, a seção seguinte apresenta as reflexões a partir das observações, entre 2018 e 2022, em uma escola da rede estadual de Manaus que recebe alunos estrangeiros. Trabalhou-se com cenas do cotidiano escolar captadas pela observação participante e anotadas em diário de campo. Esses procedimentos foram suficientes para apresentar elementos da internacionalização presente na Educação Básica sob o olhar da interculturalidade.

4. A experiência com alunos haitianos e venezuelanos em uma escola de Manaus-AM

Na escola em estudo, sempre que um aluno imigrante é matriculado tem-se a preocupação, por parte dos funcionários da Secretaria, em consultar os professores sobre qual turma seria melhor para o aluno recém-chegado. São levados em consideração a quantidade de alunos nas turmas (o grupo escolar entende que com menos alunos, mais chance de ajudar o aluno imigrante); a presença de outros alunos imigrantes para facilitar o entrosamento e; professores com maior domínio linguístico que ministram aulas para a possível turma. Devido a uma questão estrutural da escola, havia, em 2019, duas salas pequenas que comportavam, no máximo, 20 alunos. Naquele ano, a unidade optou por agrupar os alunos venezuelanos nessas duas salas por acreditar que, com o número reduzido de alunos nas mesmas seria mais fácil, por parte dos professores, identificar as dificuldades dos alunos imigrantes e tentar amenizá-las. Segundo o corpo pedagógico da escola a aposta funcionou e os seis alunos se integraram às turmas. Acreditaram que, por isso, os discentes acabaram superando a timidez, tiveram maior integração com os colegas e superaram as demais dificuldades que porventura enfrentariam caso estivessem nas outras salas cuja capacidade chegava a quase 50 alunos.

As estratégias adotadas, por mais simples que pareçam, dentro das limitações do sistema público brasileiro de Educação, ajudam o aluno a sentir-se acolhido e notado, conforme apontado por Moreira e Candau (2003). Nessa direção, Oliveira (2016) chama atenção para o fato de que, apesar de haver uma facilidade para efetivar a matrícula de uma criança imigrante, não se tem um sistema público de ensino - municipal e estadual - preparado para receber esses estudantes, nem mesmo um planejamento pedagógico com esse fim. O que se tem é uma visão etnocêntrica na qual o diferente é que tem que se adaptar de forma irrestrita à cultura de chegada, no caso a brasileira. Portanto, não há o intercâmbio e a valorização de elementos socioculturais, enquanto oportunidade de trocas de aprendizagem, numa via de mão dupla (Grosso, 2007), desejadas pela internacionalização do ensino.

Vale destacar que, apesar das questões xenofóbicas e de bullying, coexistem estratégias de acolhimento mesmo sem contar com uma política efetiva de apoio aos alunos imigrantes. Em algumas ocasiões foram registradas atitudes de alunos nativos se apressando em dar as boas-vindas, sobretudo se apresentarem, convidando para sentarem-se próximos e ajudando nas atividades. Este ato espontâneo pode minimizar, mas não consegue impedir a barreira linguística, algo que se apresenta de forma natural e cria as primeiras dificuldades internas na sala de aula para alguém que chega a um novo país.

É importante dizer que mesmo sendo alunos fronteiriços, a diferença de idiomas persiste, pois somente o Brasil é falante da língua portuguesa na América do Sul. Além da língua portuguesa como língua materna, nas escolas é ensinada a língua inglesa, por ser o segundo idioma estrangeiro mais popular no mundo. Em contrapartida, é notória a predominância da língua espanhola como idioma oficial desses países vizinhos, questão que favorece o afastamento formal das instituições educativas, se considerarmos a negligência dessa língua no Brasil (Grosso, 2007).

Grande parte das pessoas acredita que não há muitas diferenças entre a língua portuguesa e a espanhola (mais comum nos países vizinhos do Brasil – o que inclui os venezuelanos), mas isso não é verdade. É preciso ter cuidado para que não haja uma aculturação velada (Grosso, 2007). Na escola estudada não foi observada nenhuma prática voltada para o melhor aproveitamento, valorização e/ou integração da língua portuguesa com outras línguas. Grosso (2007) reforça que o conceito de língua de acolhimento aproxima-se de um conceito de segunda língua, aprendida por necessidade de sobrevivência e interação afetiva. 

É possível acreditar que um projeto, nesse sentido, permitiria aos alunos imigrantes se sentirem mais integrados. Essa concepção é corroborada em Roldão e Souza (2020) quando apontam que os alunos migrantes chegam ao novo território trazendo conhecimentos prévios e desiguais da escrita, leitura e percepções acerca da língua portuguesa. A existência de um projeto escolar de acolhimento do estrangeiro pode ajudar o professor a tornar o ensino da língua portuguesa num instrumento para a convivência e cotidiano desses alunos.

No caso haitiano, a questão é ainda mais delicada. Os dois alunos haitianos matriculados na referida escola vieram para o Brasil sabendo a língua crioula e um pouco da francesa. Tiveram que aprender a língua portuguesa por necessidade e até o fechamento deste texto (dezembro de 2022) ainda apresentavam uma fala com bastante sotaque. A relação entre nativo e imigrante deve ser de cautela e cooperação mútua para que nenhuma língua seja adotada como mais importante que a outra (Grosso, 2010).

Para Araújo (2008), a presença do aluno imigrante deve ser vista como uma oportunidade de aprendizagem na escola, o que gerará a aquisição de competências sociais de gestão da diversidade cultural e social. Propõe que, “para isso, a escola e os docentes têm o dever de valorizar, aceitar e aproveitar saberes, valores, interesses e competências que os alunos trazem” (Araújo, 2008, p. 67), sendo que todo o conhecimento trazido pelo imigrante pode ser uma ferramenta de aprendizagem e integração à nova sociedade. Em outras palavras, o que é desejável num processo de internacionalização do ensino.

As ações institucionais adotadas como estratégia de enfrentamento do problema que se formou com a presença de estrangeiros nas escolas manauaras demonstram um olhar direcionado para a preparação dos alunos e docentes brasileiros. Silva (2021) relata a parceria entre Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e a Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de Manaus (SEMED) no projeto “Manaus Internacional Integrando Culturas por meio da língua espanhola”, iniciado em 2018. A proposta foi ensinar a língua espanhola para os alunos brasileiros para ajudar na integração com os estrangeiros. Não se pode negar a importância do projeto que incluiu eventos de trocas de experiências culturais. Por outro lado, o projeto não tinha o foco no aprendizado prático da língua portuguesa para permitir a inserção social e cultural do aluno estrangeiro.

Cabe destacar que a SEMED lançou, em fevereiro de 2020, o projeto-piloto “Programa Ampliando Horizontes In Loco”, na Escola Municipal Waldir Garcia, na zona Centro-Sul da cidade, destinado a professores e técnicos daquela unidade de ensino que contava com 224 alunos, sendo 50 estrangeiros e, destes, 20 venezuelanos (Santos, 2020). O esforço piloto ainda não tinha apresentado seus efeitos em 2021. Na pesquisa de Silva (2021) junto a 19 professores de língua portuguesa da rede municipal observou-se que mais da metade dos entrevistados não teve formação para ensino de português aos estrangeiros e a grande maioria considera que não recebeu orientações e suportes da SEMED.

Como as capacitações voltadas para a realidade do aluno imigrante ainda não produziram os efeitos desejados, os arranjos feitos para facilitar a vida escolar desses discentes depende da boa vontade dos docentes. Há que se ressaltar as diversas iniciativas de escolas e de professores. No caso observado é possível destacar três intervenções exitosas. A primeira foi uma iniciativa de usar os conhecimentos oriundos dos próprios alunos venezuelanos durante as aulas de história. Relatos e observações desta realidade demonstraram que, em algumas oportunidades, como no conteúdo ministrado sobre comunismo e socialismo, era solicitado que os discentes imigrantes relatassem como suas vidas foram afetadas. A participação trouxe, pelo menos, dois pontos interessantes: a) ver os alunos imigrantes falando sobre seu país e sua história; b) ver alunos brasileiros atentos aos relatos. Esse duplo aspecto abre oportunidade de diálogo e escuta, bem como oportuniza ouvir a história de quem viveu em outro país, podendo ser diferente do que é descrito nos livros. 

A segunda intervenção retrata um momento em que os professores estavam tentando demonstrar a facilidade que um habitante da África tem em aprender novas línguas, já que há países fronteiriços que falam línguas diferentes. Naquele ínterim foi questionada uma aluna haitiana sobre seus conhecimentos linguísticos (os docentes sabiam que, no mínimo, ela falava duas línguas). Além de muito esforçada, a aluna é muito tímida e não costuma falar muito. A turma passou a vê-la com outros olhos quando ela relatou que no Haiti falava-se o crioulo em casa e o francês na escola e que agora também falava português. Percebeu-se que a reação dos nativos foi de surpresa e admiração, sobretudo pelo domínio de mais de duas línguas. 

O terceiro caso se refere a uma professora de Língua Inglesa da escola que desenvolveu um projeto junto à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM), conhecido como Programa Ciência na Escola. O tema era Manual prático de vocábulos espanhol-português. Como alunos estrangeiros não podem participar como bolsistas, a professora achou uma boa ideia chamar alguns alunos venezuelanos para ajudar a traduzir termos utilizados no cotidiano escolar, o que desencadeou na participação efetiva, entusiasmada e responsável por parte daqueles alunos. Inclusive, ao término do projeto, cada aluno venezuelano ganhou um exemplar do manual. Questionados sobre como se sentiram ao participar do projeto, disseram ter ficado felizes por serem incluídos e contribuir com seus conhecimentos.

Atitudes como essa favorecem o entrosamento e fortalecem os laços entre alunos imigrantes e nativos. Como aponta Olga Pombo, professora da Universidade de Lisboa, em Portugal, “[...] realizar práticas de inserção permite o conhecimento mútuo e contribui para a integração” (Ratier et al., 2010, p. 4). Olhando em retrospecto, reconhece-se que esse conhecimento poderia ter sido mais bem aproveitado, seja em feiras culturais, roda de conversas ou trabalhos sobre a vida e a cultura nos países desses alunos. São atitudes que contribuem com a aquisição de conhecimento e desestimula ideias de xenofobia e bullying.

Além da convivência com a língua portuguesa e com pessoas de diferentes costumes, a avaliação, enquanto instrumento de verificação do conhecimento, é um sério problema para imigrantes, sobretudo aqueles que estão no processo inicial de adaptação na escola brasileira. Trata-se de um tema que divide professores, pedagogos, psicólogos e demais estudiosos até os dias atuais, sem nenhum consenso. Apesar das discussões, não é exagero afirmar que, no fim, as avaliações servem para classificar e rotular os alunos. Para Gatti (2003) e Luckesi (2011) o ato de avaliar é um julgamento de valor, em que o aluno é diagnosticado utilizando-se um padrão pré-determinado pelo professor em aprendizagens e capacidades diversas consideradas necessárias ao desenvolvimento do discente.

A questão do aluno imigrante já é desafiadora em si. Todo ano, quando chega o período das provas internas da escola, as dificuldades ficam evidentes. Com pouco tempo no Brasil e o mínimo de domínio sobre a língua portuguesa, os alunos não se sentem seguros para realizá-las. As perguntas frequentes são: “O que significa essa expressão?”, “O que devo fazer nessa questão?”, “Posso escrever as respostas em espanhol?” Infelizmente, para o sistema de educação atual, o importante é o número de alunos aprovados no final do ano e a solução temporária encontrada tem sido aceitar a escrita chamada na comunidade escolar de portunhol e até fazer avaliações orais.

Gatti (2003) pondera que a avaliação deve ter um caráter formativo e orientada para o desenvolvimento do aluno em sua totalidade. Não pode ter um caráter eletivo de aprovação ou reprovação e, tampouco, ser promovida com base no autoritarismo. Na mesma direção, Luckesi (2011) alega que a avaliação educacional só deixará de ser autoritária quando assumir seu verdadeiro papel para o crescimento do aluno, tendo como preocupação a sua transformação social. Nos dizeres de Hadji (2011, p. 34), “[...] a avaliação não é uma medida pelo simples fato de que o avaliador não é um instrumento, e porque o que é avaliado não é um objeto no sentido imediato do termo”. Dessa forma, a nota concebida não tem nenhum sentido.

A Prova Brasil e o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) são avaliações para diagnóstico, em larga escala, desenvolvidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP/MEC) e tem o objetivo de avaliar a qualidade do ensino oferecido pelo sistema educacional brasileiro a partir de testes padronizados e questionários socioeconômicos. Nos testes aplicados nos quintos e nonos anos do ensino fundamental, os estudantes respondem a itens (questões) de língua portuguesa, com foco em leitura; e matemática, com foco na resolução de problemas. No questionário socioeconômico, os estudantes fornecem informações sobre fatores de contexto que podem estar associados ao desempenho. 

Em 2019, na época de aplicação do SAEB, houve duas situações envolvendo alunos imigrantes e suas dificuldades com essas provas externas. A primeira se deu quando os alunos receberam (alguns meses antes da realização da avaliação) um caderno com atividades de fixação dos conteúdos que seriam exigidos na prova. Alguns professores atribuíam notas para essas atividades, como forma de otimização do tempo e de incentivo para a participação dos alunos na prova. No dia da realização de uma dessas atividades de língua portuguesa, havia uma tirinha da turma da Mônica, com os personagens Mônica e Cebolinha (lembrando que esse personagem troca a letra “r” pelo “l”). A tirinha era humorística e a razão do humor que guiaria para a opção correta passava pelo fato de o personagem trocar as letras. Não demorou muito até que os três alunos venezuelanos dessa turma questionassem a professora dizendo que não tinham entendido o sentido da tirinha. O fato deixou a docente desconcertada e sem saber o que fazer, pois como falante e leitora da língua portuguesa, ela havia entendido a charge, mas não poderia ajudar porque teria que dar a resposta.

A segunda situação foi registrada na prova de língua portuguesa do Saeb de 2019. Havia uma charge humorística envolvendo palavras com “ch” e “xis”. Há uma grande diferença entre o uso do “ch” em português e em espanhol (che). Além disso, em espanhol não se usa pechinchar e sim cicatear, regatear, por exemplo. O episódio da charge ocorreu assim: “Personagem A: - Está tudo errado, menina! Pechinchar não é com XIS e sim com CÊ AGÁ. Pra aprender, escreva aí o verbo pechinchar duzentas vezes. Personagem B - Ah, fessora, deixa por cem, vá?!”. Naturalmente os alunos não compreenderam e pediram ajuda, mas como era uma prova externa e havia um aplicador, não se podia interagir com eles, apenas observar e lamentar. 

Portanto, acompanhado estes fatos, parece pertinente a citação de Luckesi (2003, p. 47) quando afirma que “[...] a sala de aula é o lugar onde, em termos de avaliação, deveria predominar o diagnóstico como recurso de acompanhamento e reorientação da aprendizagem, em vez de predominarem os exames como recursos classificatórios”. Resumindo, é necessário ter o cuidado para que esse tipo de dificuldade, no decorrer da vida escolar dos alunos imigrantes, não contribua para o desânimo e a evasão escolar. Por outro lado, que as potencialidades narradas, como o intercâmbio e a colaboração coletiva, possam ser cada vez mais incentivadas.

5. Considerações finais

A escola escolhida para análise começou a receber os primeiros alunos filhos de haitianos e venezuelanos a partir de 2016, após forte imigração desses grupos em Manaus. A presença desses alunos imigrantes se tornou tão massiva que era impossível ignorá-los. Inclusive, este fato trouxe oportunidades (potencialidades) de intercâmbios, mas sobretudo trouxe dificuldades no trato escolar, algo que é acentuado naturalmente por ser criança/adolescente em formação, por não falar a língua local, não conhecer os costumes, não conhecer os colegas, pelo medo de ser ignorado ou excluído.

Depois da família, a escola é uma das entidades que mais contribuem no processo de integração social da criança/adolescente. E esse fato confere uma grande responsabilidade para educadores e gestores. Além disso, apesar da insuficiência de políticas públicas educacionais que amparem esses alunos estrangeiros, algumas pequenas medidas foram implementadas na escola estudada para facilitar a recepção, a inclusão, o acompanhamento e o modo de avaliar esses alunos. Foram atitudes derivadas, exclusivamente, da vontade dos discentes, familiares e até ex-alunos imigrantes. Também, só foram possíveis graças à ação conjunta entre observação cotidiana de situações-problema e soluções que partiram dos professores, bem como dos próprios alunos imigrantes. 

Sabe-se que a implementação de mudanças para esse público exige tempo, esforço e interesse da comunidade escolar e que essas transformações são graduais, assim como a plenitude do objetivo de acolher, cuidar, acompanhar e avaliar o aluno imigrante está longe de ser uma realidade. Mas o fato de ter um olhar diferenciado e algumas ações de apoio já são os primeiros passos para acolher e tratar com dignidade aquele que vem de outro país, esperançoso em dias melhores no país que foi acolhido, no caso o Brasil.

Referências

Acnur – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (2019). Nota de orientación sobre consideraciones de protección internacional para los venezolanos. Actualización I, Genebra. https://tinyurl.com/y679oea3.

Acnur – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (2022). Diagnósticos para a promoção da autonomia e integração local de pessoas refugiadas e migrantes venezuelanas em Manaus: pesquisa de perfil socioeconômico e laboral. Brasil.

Araújo, S. A. (2008). Contributos para uma educação para a cidadania: professores e alunos em contexto intercultural (Vol. ١٧). Observatório da Imigração, ACIDI, IP.

Bastos, J. P. B. & Obregón, M. F. Q. (2018). Venezuela em crise: o que mudou com Maduro. Revista de Derecho y Câmbio Social, 15(52), 1-16.

Bezerra, C. B. (2016). Distantes do berço: impactos psicológicos da imigração na infância. 2016 (Doctoral dissertation, Dissertação em Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina).

Brasil, S. F. do (1988). Constituição da república federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico.

Costa, G. (2016). Memória da chegada de imigrantes haitianos a Manaus, 2010-2014: presença da Pastoral do Migrante. São Paulo: CEM.

Coutinho, S. R. & Marcelino, B. A. M. (2016). Migração, religião e políticas públicas: o caso dos haitianos. Reflexão, 41(2), 225-233.

Damasceno, R. & Sucupira, G. (2015). Entre o sonho brasileiro e o dantesco: a migração haitiana na Amazônia brasileira. EXAMÃPAKU (revista descontinuada), 8(2), 14-25.

Dantas, S. (2017). Saúde mental, interculturalidade e imigração. Revista USP, (114), 55-70.

Evaristo, J. & da Silva, A. J. (2021). PLNM para a educação básica: o estado da arte do caso Manaus. Revista Diálogos, 9(3).

Fernandes, D. (2015). O Brasil e a migração internacional no século XXI: notas introdutórias. In: Prado, J. P.; Coelho, R. (org.). Migrações e Trabalho. Brasília: Ministério Público do Trabalho (pp. 19-39).

Gatti, B. A. (2003). O professor e a avaliação em sala de aula. Estudos em avaliação educacional, (27), 97-114.

Golin, C. H. (2017). Educação física escolar na fronteira Brasil-Bolívia: desafios e dilemas interculturais. (Doctoral Thesis, Tese em Educação Física, Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Católica de Brasília).

Grosso, M. J. (2007). As competências do Utilizador elementar no contexto de acolhimento. Actas do Seminário Língua Portuguesa e Integração. Lisboa. Portugal. https://bit.ly/3sYU4P3

Grosso, M. J. R. (2010). Língua de acolhimento, língua de integração. Revista Horizontes de linguística aplicada, 9(2), 61-61.

G1 AM (2018). Rede pública de ensino do AM tem mais de 700 alunos venezuelanos e haitianos. https://bit.ly/3EKQLxw.

Hadji, C. (2011). Avaliação desmistificada. In Avaliação desmistificada. Porto Alegre: ARTMED Editora, Revista Polyphonía, 26(2), 136-136.

Idoeta, P. A. (2018). De onde vêm as pessoas que pedem refúgio no Brasil e qual a situação em seus países. Jornal BBC Brasil. São Paulo: BBC.

Leask, B. R. (2021). Internacionalização do currículo: evoluindo em direção à Educação 4.0. in. Morosini, M.; Cassol, C.; Elsner, C.; Whitsed, C. Internacionalização da educação superior: práticas e reflexões do Brasil e da Austrália. Porto Alegre: EDIPUCRS (pp. 37-75).

Luckesi, C. C. (2003). Avaliação da aprendizagem na escola: reelaborando conceitos e recriando a prática. Salvador: Malabares Comunicação e Eventos.

Luckesi, C. C. (2011). Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições. In Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições (pp. 272-272).

Marshall, T. H. (1967). Cidadania, status e classe social. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.

Martins, I. D. M. M. (2018). Geografias da Imigração Haitiana para o Brasil. Revista Tamoios, 14(1).

Mec (2022) - Ministério da Educação. Prova Brasil - Apresentação. Secretaria da Educação Média e Tecnológica. https://bit.ly/3EHnggb.

Moreira, A. F. B. & Candau, V. M. (2003). Educação escolar e cultura (s): construindo caminhos. Revista brasileira de educação, 156-168.

Oliveira, C. D. (2016). Crianças imigrantes enfrentam barreira da língua e despreparo da rede de ensino. Rede Brasil, 24.

Ratier, R., Nadal, P., Pellegrini, D., Lopes, N. & Heidrich, G. (2010). O desafio das escolas brasileiras com alunos imigrantes. Revista Nova Escola.

Roldão, S. F. & Souza, S. (2020). A Inserção Escolar De Imigrantes Haitianos Na Cidade De Joinville. Revista Científica Interdisciplinar Interlogos, 6(1), 102-116.

Santos, E. (2020). Semed lança projeto-piloto Ampliando Horizontes in Loco em escola que atende alunos estrangeiros. Portal da Prefeitura de Manaus. Secretaria Municipal de Educação (Semed). https://bit.ly/48eDqLv.

Silva, A. J. D. (2021). “Vamos falando no caminho”: o ensino de português com estrangeiros nas escolas públicas municipais em Manaus. (Doctoral Thesis, Tese de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Silva, S. A. (2015). A Amazônia na rota das migrações. O caso dos haitianos e os desafios às políticas públicas. Revista Territórios e Fronteiras, 8(2), 138-153.

Silva, S. A. (2016). Entre o Caribe e a Amazônia: haitianos em Manaus e os desafios da inserção sociocultural. Estudos Avançados, 30, 139-152.

Silva, J. C. J. (2017). Migração forçada de venezuelanos pela fronteira norte do Brasil. Anais do 41º Encontro Anual da Anpocs. Caxambu–MG.

Simões, G. D. F., Silva, L. C. & Oliveira, A. T. R. (2017). À guisa de introdução: Imigração venezuelana no Brasil. À guisa de introdução: Imigração venezuelana no Brasil.

Taniguchi, A. C. G. & Paiva, J. Z. S. (2019). Resposta Da Sociedade Civil Frente À Situação Migratória Venezuelana Em Manaus. In: Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais 2019 (Vol. 16, No. 1)

Teixeira, S. K. P. (2021). Haitianos em Manaus: pertencimento e processos de sociabilidade a partir da escola municipal professor Waldir Garcia. (Doctoral Dissertation, Dissertação, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Amazonas).

Walsh, C. (2001). Interculturalidad en la educación. Programa FORTE-PE. Ministerio de Educación. Lima, 3-11.


1 Dados levantados pela Pastoral do Migrante, na casa de acolhida São Francisco, em 2014.

2 De acordo com estimativa da Plataforma R4V, o estado do Amazonas possui quase 40 mil venezuelanos espalhados pelo seu território, ao passo que, segundo Painel de Informações Sociais para Refugiados e Migrantes Venezuelanos, somente Manaus, a capital do estado têm quase 15 mil venezuelanos registrados no Cadastro Único para Programas Sociais. Disponível em https://bit.ly/3Rq7Ggg

Cómo citar en APA:

Golin, C. H., Costa, E. A. da & Farias, R. P. (2023). Desafios para a inclusão de alunos imigrantes em uma escola pública de Manaus-AM, Brasil. Revista Iberoamericana de Educación, 93(1), 111-125. https://doi.org/10.35362/rie9315890