Revista Iberoamericana de Educación (2023), vol. 92 núm. 1, pp. 29-45 - OEI

https://doi.org/10.35362/rie9215892 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653

recibido / recebido: 05/06/2023; aceptado / aceite: 08/06/2023

A transdisciplinaridade na formação de professores no século XXI: dispositivos textuais, discursivos e enunciativos para leitura da realidade social

Sueli Cristina Marquesi 1 https://orcid.org/0000-0002-8792-0699"

Maria das Graças Soares Rodrigues 2  https://orcid.org/0000-0002-8295-358X

Lílian Maria Ghiuro Passarelli 1 https://orcid.org/0000-0003-3892-7840">

1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil, 2 Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil

Resumo. Neste artigo, propomo-nos a contribuir para as reflexões centradas na formação de professores, à luz dos estudos ancorados nas abordagens textuais-discursivas-enunciativas. Assim, postulamos que a formação transdisciplinar de um futuro professor deve considerar a leitura de realidades. Para tanto, estabelecemos como objetivo analisar o texto Quando a lama bate à porta, da coluna do ombudsman José Henrique Mariante, do jornal Folha de S.Paulo, publicado em 25 de fevereiro de 2023. Ressaltamos que a análise considera algumas categorias linguísticas, como: 1) os três níveis da textualidade, conforme proposto por Adam (2021; 2022) – (i) o macronível, que se constitui das zonas peritextuais e das partes do texto; (ii) o mesonível, formado pelas sequências textuais narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa ou dialogal; e (iii) o micronível, que focaliza as ligações textuais, ou seja, os processos coesivos referenciais (retomada pronominal e colocações lexicais, entre outros mecanismos) e sequenciais (operadores argumentativos e juntores coesivos); 2) o ponto de vista do autor do texto, o locutor enunciador primeiro (L1/E1), marcado pelo discurso reportado dos enunciadores segundos (e2), assim como pela subjetividade do próprio autor. Por fim, destacamos que esse conjunto de dispositivos enunciativos instaura o nível semântico, que permite ao leitor a construção de sentido(s).

Palavras-chave: formação de professores; transdisciplinaridade; plano de texto; ponto de vista; leitura.

El carácter transdisciplinario en la formación del profesorado en el siglo XXI: dispositivos textuales, discursivos y enunciativos para la lectura de la realidad social

Resumen. En el presente artículo, nos proponemos contribuir a las reflexiones enfocadas en la formación del profesorado, a la luz de los estudios basados en enfoques textuales-discursivos-enunciativos. Así, postulamos que la formación transdisciplinar de un futuro docente debe plantear la lectura de las realidades. Para ello, nos hemos propuesto como objetivo analizar el texto Quando a lama bate à porta, de la columna del Defensor del Pueblo José Henrique Mariante, del diario Folha de S.Paulo, publicado el 25 de febrero de 2023. Queremos subrayar que el análisis toma en cuenta algunas categorías lingüísticas, como: 1) los tres niveles de textualidad, propuestos por Adam (2021; 2022) son: (i) el macronivel, constituido por las zonas peritextuales y las diferentes partes del texto; (ii) el mesonivel, formado por las secuencias textuales narrativas, descriptivas, argumentativas, explicativas o dialógicas; y (iii) el micronivel, que se centra en las conexiones textuales, es decir, los procesos cohesivos referenciales (reanudación pronominal y colocaciones léxicas, entre otros mecanismos) y secuenciales (operadores argumentativos y nexos cohesivos); 2) el punto de vista del autor del texto, el primer enunciador (L1/E1), marcado por el discurso reportado de los segundos enunciadores (e2), así como por la propia subjetividad del autor. Por último, destacamos que este conjunto de dispositivos enunciativos establece el nivel semántico, que permite al lector la construcción de significado(s).

Palabras clave: formación del profesorado; carácter transdisciplinario; plan de texto; punto de vista; lectura.

Transdisciplinarity in teacher training in the XXI century: textual, discursive and enunciative devices for reading social reality

Abstract. In this article, we propose to contribute to the reflections focused on teacher education, in the light of the studies anchored on the textual-discursive-enunciative approaches. Thus, we postulate that the transdisciplinary training of a future teacher should consider the reading of realities. To this end, we set as our objective to analyze the text Quando a lama bate à porta, from the column of the ombudsman, José Henrique Mariante, from Folha de S.Paulo Newspaper, published on February 25, 2023. We emphasize that the analysis considers some linguistic categories, such as: 1) the three levels of textuality, as proposed by (Adam, 2021; 2022) - (i) the macro-level that is constituted of the peritextual zones and the parts of the text; (ii) the meso-level, formed by the narrative, descriptive, argumentative, explanatory, or dialogical textual sequences, and (iii) the micro-level, which focuses on textual connections, that is, the referential cohesive processes (pronominal retaking and lexical collocations, among other mechanisms) and the sequential ones (argumentative operators and cohesive joiners); 2) the point of view of the author of the text, speaker enunciator first (L1/E1), marked by the speech reported by the second enunciators (e2), as well as by the author’s own subjectivity. Finally, we highlight that this set of enunciative devices establishes the semantic level, which allows the reader to construct the meaning(s).

Keywords: teachers training; transdisciplinarity; text plan; point of view; reading.

1.Introdução

Chegamos à terceira década do século XXI, e o percurso de início do novo século, que vinha sendo anunciado desde o final dos anos de 1990 com muitos desafios a serem pensados para uma educação de qualidade e ao longo da vida, confirma-se tanto por nosso exercício na área de formação de professores, quanto por nossas investigações no campo da Linguística, e, dentro dela, especificamente, dos estudos textuais-discursivos-enunciativos, cujos resultados têm confirmado categorias analíticas que nos permitem despertar nos futuros professores a importância da leitura de textos, no contínuo processo de construção de sentidos para os mais distintos problemas da sociedade de hoje e de amanhã.

Se pensarmos na conjugação entre essa formação e a contribuição que ela prenuncia, diretamente nos remetemos ao que está tão bem pensado, explicado, exposto e refletido no Relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, 2022), no que tange à projeção da educação para os anos de 2050 e seguintes, fundamentada em um novo contrato social que se coloca para a educação, do qual, entre os dois princípios universais, sobressai  o relativo à educação de qualidade e ao longo da vida, em estreita relação com o que considera a educação como um bem público e social comum.

Se pensarmos, ainda, na adoção desse princípio como uma diretriz para a formação de professores, podemos considerar que estamos diante de uma mudança educativa que, também conforme é concebido nos estudos da Unesco, aponta uma estratégia-chave para oferecer um currículo educativo de maior qualidade, capaz de formar cidadãos preparados para resolver problemas sociais contemporâneos: a transdisciplinaridade.

Se pensarmos, também, na formação de professores fundada na formação de leitores para ler o mundo, a exemplo das discussões promovidas no “Congresso Internacional de Promoção da leitura formar leitores para ler o mundo”, de acordo com Nóvoa (2009, p. 144) “nada se resolve com campanhas, programas especiais, modas ou reformas. O grande programa que nos deve mobilizar é a inscrição da leitura como acto normal, natural, banal”. Nessa direção, neste artigo, mobilizamos a leitura do mundo, a leitura de uma realidade social crítica, desafiadora.

Se pensarmos, igualmente, na formação do professor que deve mobilizar a leitura digital, evocamos Ganito (2015, p. 117), ao postular que “a leitura digital é profundamente marcada por uma componente social e participativa”. É o caso do dado, objeto de análise, neste trabalho, coletado em plataforma digital. O acesso é democrático, é inclusivo.

Essas considerações iniciais nos levam a definir o tema deste artigo: uma análise textual-discursiva-enunciativa como base para a formação transdisciplinar de um futuro professor que lê realidades e se prepara para nelas atuar de forma crítica, como construtor de sentidos, formando-se, assim, para, da mesma perspectiva, orientar seus futuros alunos, não pelo domínio de conteúdos, mas pela possibilidade de ler os mais diversos textos, nos mais distintos domínios do conhecimento. Para desenvolvê-lo, propomos as seguintes questões a serem respondidas:

 Em que medida critérios textuais-discursivos-enunciativos, já por nós aplicados em diferentes corpora, no campo dos estudos linguísticos, podem dar o suporte a uma análise de textos relacionados a temas sociais que envolvem uma abordagem transdisciplinar?

• De que forma a abordagem textual-discursiva-enunciativa estabelece um diálogo com a transdisciplinaridade na formação de professores?

Para responder a essas questões, temos, pois, por objetivos, analisar um texto do discurso social contemporâneo – Quando a lama bate à porta, escrito por José Henrique Mariante, ombudsman do jornal Folha de S.Paulo, publicado no referido jornal, em 25 de fevereiro de 2023 – e refletir sobre como os critérios analíticos adotados podem se reverter em estratégias para a formação do leitor que constrói sentidos, não só no contexto da universidade.

Para a abordagem aqui proposta, fundamentamo-nos em estudos teóricos de Adam (2011; 2019; 2021; 2022), Benveniste (1958), Rabatel (2016; 2021)) e Muñoz et al. (2009), bem como em trabalhos por eles subsidiados, a saber, Marquesi (2022), Marquesi e Passarelli (2022), Marquesi e Ferreira (2022), Rodrigues (2021; 2022) e Rodrigues e Marquesi (2021), no que diz respeito aos fundamentos textuais-discursivos-enunciativos. Também discorremos a respeito da concepção de transdisciplinaridade, recorrendo a Nicolescu (2000), Charaudeau (2013), Litto e Mello (2000) e Random (2000).

O desenvolvimento do artigo, além desta introdução, se organiza em três seções: na primeira, discorremos sobre a transdisciplinaridade; na segunda e na terceira, analisamos, respectivamente, a construção do plano do texto e a construção do ponto de vista de seu autor. Nas considerações finais, destacamos algumas perspectivas advindas da análise e da abordagem transdisciplinar como estratégias para a formação do futuro professor, necessariamente, um leitor crítico.

2. Transdisciplinaridade

Pensar a formação de professores nesta complexa década de 2020 nos impele a recorrer a abordagens que não descurem do tratamento ao conhecimento em perspectiva transdisciplinar, dado que dela pode aflorar uma visão emergente como contribuição ao desenvolvimento sustentável da sociedade. Essa perspectiva nos leva a refletir, juntamente com Nicolescu (2000), sobre o papel da transdisciplinaridade e seu potencial de possibilitar a compreensão do mundo segundo uma visão macro baseada no conhecimento; não o conhecimento limitante a determinada área, mas aquele que se dá “ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina” (Nicolescu, 2000, p. 11).

Considerando a assunção do conhecimento como uma unidade inter-relacionada, a transdisciplinaridade demanda a aprendizagem e o ensino abarcando uma conexão com as diversas disciplinas, de modo que, criticamente, se desenvolva a atividade intelectual. Esta, ao reger o desempenho das aptidões do docente como estímulo a uma educação de qualidade, assume a inquestionável necessidade de propor, viver, aprender e ensinar um pensamento complexo, na medida em que as disciplinas considerem a perspectiva de completude da condição humana. Somente assim, adverte o autor, há possibilidade de enfrentar tanto a limitação como a fragmentação do sujeito isolado de suas próprias convicções em busca do conhecimento.

A assunção de uma atitude transdisciplinar, que abarca e vai além do que há em todas as disciplinas, e, portanto, chega aos vários níveis de realidade, transpassa o sentido de interação por desencadear a junção coerente do conhecimento promovido nas disciplinas. Não falamos, assim, de uma atitude que se faz de forma aleatória, mas sistematizada, de modo que leva à construção de um discurso singular, articulador e integrativo que encontra um lugar próprio do qual o pensamento emerge (Charaudeau, 2013).

Dado que a transdisciplinaridade é um modo de conhecimento que implica compreensão de processos e alargamento da visão do mundo, constitui-se, pois, em uma aventura do espírito, estando tanto entre as disciplinas, quanto através e além delas, o que nos remete a uma ideia de transcendência. E mais: por ser a assimilação de uma cultura, constitui, conforme afirmam Litto e Mello (2000, p. 151), “uma Arte no sentido da capacidade de articular”, colocando-se como um contributo cuja natureza é integradora e globalizante, uma vez que envolve a noção de valor, o contexto, a estrutura, a pesquisa, a competência, a oferta, o método e o ser humano, emplacando sua própria contribuição (Litto e Mello, 2000).

Nessa direção, faz sentido considerarmos, na esteira de Random (2000), que a atitude transdisciplinar implica não só o pensamento, mas também a experiência interior; não só a ciência, mas também a consciência; não só a efetividade, mas também a afetividade. O significado ou a direção à atitude transdisciplinar decorrem da “identidade de sentido entre o fluxo de informação que atravessa os níveis de Realidade e o fluxo de consciência que atravessa os níveis de percepção”; bem por isso, a “aptidão para preservar essa postura, orientada para a densificação da informação e da consciência, caracteriza a atitude transdisciplinar” (Random, 2000, p. 134).

Se enveredarmos para pensar o processo educacional, de acordo com Litto e Mello (2000, p. 150-151), os locais onde acontece são altamente propícios para o exercício transdisciplinar, pois ele não descura, mas abona, enaltece e solicita. Assim, nada mais propício ao ambiente educacional do que a prática da transdisciplinaridade, uma vez que ela possibilita a restituição da integridade ao sujeito e da vocação de universalidade à Educação (Litto e Mello, 2000).

Na busca de contribuir reflexivamente para a formação de professores, conciliando a abordagem transdisciplinar, acreditamos como caminho viável o enfoque ao tratamento da leitura de questões sociais, no caso socioambientais, na universidade, como base para a formação que se estende ao longo da vida, recobrando a experiência para enfrentar “os insucessos do passado, muito reformadores, optando por soluções demasiado radicais ou teóricas”, por não levarem em conta os “ensinamentos da experiência, ou (...) as aquisições positivas herdadas do passado” (Delors, 1999, p. 24).

Circunscrever a formação de nossos professores em relação ao ensino de leitura, tal como já estudado por Passarelli (2019), tem ainda mais relevância quando consideramos como objeto de leitura crítica um texto atual que trata justamente de temática que, além de a termos experienciado, muito nos aflige: o desastre socioambiental ocorrido no litoral norte do Estado de São Paulo (Brasil), em 19 de fevereiro de 2023.

3. Plano do texto

Nesta seção, como anunciamos na introdução, abordamos o primeiro critério teórico-analítico estabelecido para o presente estudo: o plano de texto, este conforme concebido por Adam (2011; 2019; 2021; 2022) e por nós estudado, na última década, em corpora constituídos por diferentes gêneros textuais-discursivos, entre eles, os acadêmicos, os didáticos, os jurídicos, os políticos e os midiáticos (Marquesi, 2013; 2017; 2018; 2022; Marquesi et al., 2017; Marquesi et al., 2019; Marquesi e Passarelli, 2022; Rodrigues e Marquesi, 2021; Rodrigues, 2021; 2022). Esse conjunto de estudos da perspectiva da Análise Textual dos Discursos tem nos possibilitado o olhar para cada plano de texto e, de seu ângulo, constatar regularidades e especificidades que abrem perspectivas para a formação de um leitor crítico em diferentes domínios do conhecimento.

Por que consideramos importante o referido critério analítico no escopo de nossos estudos, incluindo-se, entre eles, este em desenvolvimento no presente artigo?

Acreditamos que a resposta se fundamente no próprio conceito de plano de texto tal como proposto por Adam, como fator unificador da estrutura composicional do texto, que desempenha papel fundamental na composição macrotextual do sentido (Adam, 2011). Segundo o autor, a análise do plano do texto, correspondente ao que denomina nível 5 da análise textual, ao lado dos outros níveis por ele propostos como podemos observar, a seguir, na Figura 1, só pode ocorrer dentro do plano maior – do discurso, tal como procedemos, ainda nesta seção, na análise do texto Quando a lama bate à porta.

Figura 1. Níveis ou planos da análise de discurso e da análise textual

Fonte: Adam (2011, p. 61).

Analisar o plano de texto implica, pois, muito mais do que lançar o olhar para a estrutura composicional do texto, já que envolve a construção macrotextual de sentidos, o que nos permite corroborar posição anterior (Marquesi e Passarelli, 2022), em que incorporamos à concepção já explicitada anteriormente as visões complementares de estudiosos brasileiros de que: i) o plano de texto reflete criatividade, orientada por intenções de seu produtor e por construções de sentido dos leitores (Cabral, 2013); ii) o plano de texto é um todo particular de organização, resultante do entrelaçamento entre diferentes tipos de sequências textuais, o que revela sua orientação argumentativa (Marquesi et al., 2017); iii) o conceito de plano de texto guarda uma relação estreita com o conceito de contexto (Marquesi et al., 2019); e iv), do próprio teórico, de que o plano de texto é constituído por três níveis diferentes: o macrotextual, o mesotextual e o microtextual (Adam, 2021; 2022).

A respeito de cada um desses níveis, Adam assim os concebe: (i) o macronível, que se constitui das zonas peritextuais e das partes do texto; (ii) o mesonível, formado pelas sequências textuais narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa ou dialogal; e (iii) o micronível, que focaliza as ligações textuais, ou seja, os processos coesivos referenciais (retomada pronominal e colocações lexicais, entre outros mecanismos) e sequenciais (operadores argumentativos e juntores coesivos).

Sobre esses níveis de análise, Rodrigues (2022, p. 192), corroborando a posição de Adam, dá visibilidade à constituição do nível macrotextual, pelos níveis meso e microtextual, como apresentado na Figura 2, a seguir.

Figura 2. Representação da relação entre os níveis da textualidade

Fonte: Rodrigues (2022, p. 192).

Com base nesses conceitos que orientam nossos critérios analíticos, passamos à análise do plano do texto escolhido (transcrito na coluna da esquerda do Quadro 1), centrando-a em seu macronível, ao qual se relacionam elementos do meso e do micronível (apresentado na coluna da direita).

Quadro 1. Plano do texto

Quando a lama bate à porta

Tragédia no litoral norte mostra como estamos longe do que parece próximo.

Título e subtítulo

O texto tem início por um dado de peritexto – seu título e subtítulo, que, particularmente neste plano de texto, introduzem dois aspectos importantes em sua orientação argumentativa: (i) a tragédia ambiental ocorrida no litoral norte de São Paulo, em fevereiro de 2023, provocada pelas intensas chuvas, como um problema muito próximo de todos nós; (ii) a referida tragédia como um problema longe de solução.

(1) “O litoral norte é a região onde devem ser registrados os maiores volumes de precipitação, com possibilidade de até 250 mm neste final de semana.” A frase com o alerta sobre o risco de fortes tempestades está no meio de um texto da Folha da manhã de sexta-feira (17), véspera de Carnaval.

(2) Foi bem pior, mais de 600 mm de chuva, deslizamentos de terra, rios de lama engolindo casas, carros e gente, troncos de árvores arrancados e arrastados até a areia da praia. A tragédia do litoral norte de São Paulo culminou em dezenas de mortos e milhares de desabrigados na madrugada de domingo (19). Décadas de desprezo pela natureza, desigualdade e ausência do poder público revisadas em poucas horas de horror.

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(3) Das tantas descrições sobre o que era a área atingida, é fácil ficar com a do blog Cozinha Bruta, que sublinha a atuação de Eudes Assis, um dos tantos locais que não esperou a água baixar para entrar em ação em favor de sua comunidade. “O chef Eudes é caiçara e mestiço, criado na mesma paisagem magnífica que nós, paulistanos, invadimos para brincar de Havaí — expulsando as populações tradicionais para as encostas periclitantes.”

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(4) O idílio de se ter à mão um North Shore brasileiro, que produz até campeão mundial, é um dos tantos detalhes que escapam a boa parte das coberturas da última semana. É curioso ler sobre lugares conhecidos, faz imaginar a quantidade de bobagens que escrevemos quando atuamos nos rincões. A familiaridade acusa erros, omissões e oportunidades perdidas. A Folha colecionou algumas nos últimos dias.

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(5) A iniquidade patente ganhou textos e análises, mas pouco se falou de uma certa precariedade cultivada. São Sebastião é um município de estrutura e serviços insuficientes nos dois lados da Rio-Santos. A diferença é que a parte rica se resolve sozinha, ainda que em graus e com bolsos diferentes. Tem praia com shopping, tem praia sem um único bar, tem praia com Abilio Diniz.

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Introdução ao texto

Parágrafo (1)

O autor recorre à narrativa de uma notícia de alerta, publicada três dias antes por importante meio de comunicação – Jornal Folha da Manhã. Um dado importante a ser aqui destacado é o de que havia conhecimento, tanto da população quanto das autoridades sobre a tragédia que se anunciava. Era período de feriado, haveria deslocamento de muitas pessoas para o litoral. O alerta não foi ouvido nem pela população, que se deslocou em grande volume, nem pelas autoridades, que não tomaram providência.

Desenvolvimento do texto

Parágrafo (2)

Situa a tragédia, por sua gravidade, bem pior do que estava previsto. Descreve o horror vivido, pelo deslizamento de terra, os rios de lama e as tristes consequências para as pessoas, com dezenas de mortes e milhares de desabrigados.

A descrição da tragédia serve como ponto gatilho para o autor expressar sua avaliação, com a introdução de sua real causa – o descaso do poder público em relação à natureza e à desigualdade, materializado e revisto em poucas horas de horror.

Parágrafo (3)

Entre tantos exemplos de descrições sobre o que era a área atingida, o autor traz o que selecionou em um blog – Cozinha Bruta –, que destaca a ação do chef Eudes, um nativo e mestiço, que não esperou a água baixar e entrou em favor de sua comunidade (...)

Esta descrição, que está imbricada à ação do chef caiçara serve como ponto gatilho para o autor introduzir outra avaliação, que expressa as desigualdades sociais e, ao mesmo tempo, remete ao descompromisso que aqueles que, como nós, paulistanos, em que ele se inclui, apenas desfrutam da mesma paisagem magnífica, expulsando as populações tradicionais para as encostas periclitantes.

Esta avaliação é reforçada pelo autor, na comparação que estabelece, quando afirma que invadimos para brincar de Havaí, intertexto possível de ser reconhecido pelos leitores de Mariante, como um lugar privilegiado.

Parágrafo (4)

O autor assume diretamente seu papel de ombudsman, na tarefa específica de crítica ao jornal e aos jornalistas, no que se refere ao que deixam de priorizar em suas publicações, como na afirmação: É curioso ler sobre lugares conhecidos, faz imaginar a quantidade de bobagens que escrevemos quando atuamos nos rincões. A familiaridade acusa erros, omissões e oportunidades perdidas.

À tragédia tal como descrita até então e à avaliação sobre o descaso público e sobre as desigualdades sociais, o autor acrescenta outro problema, que diz respeito ao que deveria ser priorizado nas notícias e também no interesse de cada um pelas abordagens que, de fato, deveriam importar nas notícias.

Parágrafo (5)

(6) A Folha conta que Tarcísio de Freitas recusou a duplicação da estrada quando era ministro de Jair Bolsonaro. Mais faixas de rolamento é solução para a população local, que anda de bicicleta pelo acostamento, ou para os veranistas, que o invadem a bordo de SUVs1 na hora do trânsito do feriado? Que progresso se quer? O de uma Cancún, como um dia vaticinou o ex-presidente sobre a miliciana região dos Lagos?

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(7) O litoral norte é uma espécie de resumo do país, encurralado entre natureza, progresso predatório, emergência climática e abismo social. A ver se mídia e autoridades não abandonam a discussão assim que o sol reaparecer e o mar levar a sujeira da vez embora.

Com a expressão iniquidade patente, que encapsula as injustiças apontadas até este ponto do texto, o autor reitera que muito se noticiou, mas que pouco se falou de uma precariedade cultivada, reveladora da desigualdade social que caracteriza o local da tragédia: de um lado a parte rica, de outro, a pobre, uma com recursos próprios para solucionar os problemas enfrentados; outra, sem recurso algum.

Nota-se, ainda, a intensificação dessa desigualdade, quando o autor faz alusão às diferentes praias com shopping; sem um único bar; com Abilio Diniz, em uma alusão a um conhecido empresário, que representa a alta classe social paulistana.

Reitera, aqui, a ausência de política para tratamento de um problema que atinge cada segmento de uma forma muito diferente. Em outras palavras, podemos considerar que as consequências da tragédia de São Sebastião não foram as mesmas para todos.

Parágrafo (6)

O autor reitera o descaso do poder público, recorrendo ao fato anterior de que o hoje governador do estado, Tarcísio de Freitas, quando ministro do então presidente Jair Bolsonaro recusou a duplicação da estrada, mas que criou faixa de rolamento, indistintamente utilizada tanto pela população local, que anda de bicicleta pelo acostamento, quanto pelos veranistas, que o invadem em seus carros de luxo na hora do trânsito do feriado.

E, então, o autor, diante da situação trágica, não só provocada pelo desastre ambiental, mas também, e principalmente, pela eterna desigualdade social existente no local, lança uma pergunta, por nós entendida como provocação a uma reflexão, para a mudança do status quo:

Que progresso se quer?

E, na continuidade desta pergunta, traz um exemplo do que jamais poderia ser entendido como progresso, por uma fala do ex-presidente Jair Bolsonaro quando um dia se referiu a progresso relacionado estritamente ao aspecto material, em uma alusão a Cancún e região dos Lagos, respectivamente, ricos balneários no México e no Brasil, o último sob forte influência da ação de milicianos.

Conclusão do texto:

Parágrafo (7)

Neste parágrafo conclusivo do texto, o autor tece uma reflexão sobre o que representa a tragédia ocorrida no litoral norte de São Paulo, em 19 de fevereiro de 2023, em comparação com a própria realidade do Brasil, sintetizada pelo abismo social, pela emergência climática e pelos desafios da natureza em face de um progresso predatório.

Ainda nesse fechamento do texto, também com uma consideração reflexiva – A ver se mídia e autoridades não abandonam a discussão assim que o sol reaparecer e o mar levar a sujeira da vez embora –, ele ressalta um outro problema mais grave ainda: o do esquecimento que se dá ao longo da história, em que, passadas as tragédias, elas caem no esquecimento da mídia e das autoridades, não servindo como etapa de avanço na superação dos graves problemas sociais que nos assolam.

José Henrique Mariante – Ombudsman da Folha tem mandato de um ano, com possibilidade de renovação, para criticar o jornal, ouvir os leitores e comentar, aos domingos, o noticiário da mídia.

Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jose-henrique-mariante-ombudsman/

Elementos peritextuais que indicam a autoria do texto, com descrição do lugar de onde o autor fala na sociedade, de sua função de Ombudsman da Folha (jornal Folha de S.Paulo), cuja responsabilidade é criticar o jornal, ouvir os leitores e comentar, uma vez por semana, aos domingos, o noticiário da mídia, assim como a previsão de sua atuação do dia da semana em que escreve.

Outro elemento peritextual, que se à coluna em que o texto foi publicado e a seu acesso.

Fonte: elaborado pelas autoras.

Como podemos observar no Quadro 1, os níveis de análise do plano de texto – macro, meso e microtextual – se dividem apenas por questão metodológica, pois, na progressão textual, se inter-relacionam, uma vez que os dois últimos níveis aqui indicados constituem o primeiro.

No que diz respeito ao nível macrotextual, estamos diante de um plano de texto organizado por três partes – introdução, desenvolvimento e conclusão –, além dos elementos peritextuais referentes ao título, ao subtítulo e à indicação de seu autor, com o lugar de onde fala. Destaque-se que esses elementos peritextuais constituem, como destacamos na análise, aspectos essenciais para a leitura do texto, já que orientam o leitor na construção de sentidos, seja como indicação de seu fio condutor e de sua dimensão argumentativa, seja como descrição do autor, que antecipa o enfoque que ele poderá dar ao texto.

Sobre o plano de texto analisado em seu macronível, confirma-se, portanto, em conformidade com Adam (2021), uma unidade textual composta de subunidades significantes, de extensão e de natureza semiológica variáveis. São três partes – introdução, desenvolvimento e conclusão –, com nove parágrafos, que constituem a unidade textual em que o autor descreve e reflete sobre a tragédia do litoral norte do Estado de São Paulo e enfoca os problemas sociais do Brasil ocasionados pela ausência de políticas públicas capazes de promover ações transformadoras.

No que diz respeito ao mesonível, chama a atenção a alta predominância da sequência textual descritiva (Adam, 2011; Marquesi, 2017), com proposições cuja função, no referido plano de texto, é construir a dimensão argumentativa do texto, como as tantas reflexões para as quais chamamos a atenção no quadro de análise.

Já no que se refere ao nível microtextual, destaque deve ser dado aos sintagmas e elementos lexicais, constitutivos da sequência descritiva, que, por sua vez, é a base para a crítica e a reflexão constatadas no macronível textual.

Da perspectiva da análise realizada nesta seção, consideramos possível afirmar que a singularidade da construção do plano e sua abordagem nos três níveis fornecem um amplo espectro de análise, que, a nosso ver, permite desenvolver o diálogo com a transdisciplinaridade na abordagem de textos de diferentes realidades, tal como o aqui escolhido em que um grave problema social que se arrasta por anos – o da inexistência de políticas públicas para questões ambientais – evidencia a urgência da formação de cidadãos que questionem, entendam e possam modificar realidades como a apresentada no texto, cujo título – Quando a lama bate à porta – chama a atenção para um problema que, mesmo próximo, está distante de todos nós.

4. Ponto de vista do ombudsman da Folha de S.Paulo e sua construção textual, discursiva e enunciativa2

Nesta seção, apresentamos o ponto de vista do ombudsman da Folha de S.Paulo referente à situação caótica do litoral norte do Estado de São Paulo, em fevereiro de 2023, decorrente das fortes chuvas, mas, sobretudo, da falta de uma política pública de preservação do meio ambiente, conforme seção de contextualização deste artigo.

Para tratarmos do ponto de vista (PDV), seguimos a noção postulada por Rabatel3 (2021, p. 34). Esse autor explica:

No plano linguístico, considero como PDV o fato de que toda predicação, dando qualquer informação sobre qualquer objeto de discurso, relativo ao seu sentido, informa, além disso, sobre o ponto de vista do enunciador sobre o objeto. Esse ponto de vista é indicado pela forma que o referente é construído no discurso, pelas escolhas de nominação, qualificação, quantificação, modalização, ordem das palavras, destaque, progressão temática, etc. e mostra que é impossível dissociar o objeto do seu “comentário”.

Essa noção de ponto de vista nos permite promover a discussão analítica, uma vez que considera a referenciação acerca do objeto de discurso. Dessa perspectiva, por se tratar de um gênero discursivo, cujo propósito é ser opinativo, o locutor enunciador primeiro (L1/E1) é levado a desenvolver seu raciocínio à luz da predicação acerca do objeto de discurso, no caso específico, o caos decorrente da falta de política pública dos órgãos responsáveis pela preservação do meio ambiente.

Esclarecemos que estamos adotando a noção de locutor e de enunciador em consonância com Rabatel (2021). Esse autor separa o locutor do enunciador, mas reconhece as situações de sincretismos, ou seja, quando o locutor e o enunciador coincidem. Assim, o locutor é o aparelho físico que enuncia, enquanto o enunciador é aquele que se engaja, que assume a responsabilidade enunciativa pelo conteúdo proposicional do seu próprio dizer. Nas cenas enunciativas em que locutor e enunciador coincidem, ou seja, em que é o aparelho físico responsável pela enunciação e assume a responsabilidade enunciativa pelo conteúdo proposicional do seu dizer, temos a figura do locutor enunciador primeiro (L1/E1). Igualmente há a figura dos enunciadores segundos (e2), aqueles que são convocados pelo L/E1 para o seu discurso. Essa posição difere da concepção de Benveniste (1958), conforme explica Rabatel (2016, p.78):

em parte, Benveniste é responsável por esse reducionismo. Todas as suas fórmulas, ao insistir na enunciação como apropriação do tesouro da língua por um locutor que diz “eu” (“o locutor põe-se como sujeito, ao remeter a si mesmo como eu no seu discurso”) (Benveniste, 1958, p. 20), não fazem diferença entre locutor e enunciador.

Isso posto, discutimos a seguir a construção textual do PDV. Nessa direção, transcrevemos um fragmento da coluna do ombudsman, à qual subjaz uma crítica acerca das construções em espaços indevidos, certamente, para atender aos interesses do mercado imobiliário, a despeito das consequências para a população.

Exemplo:

“O litoral norte é a região onde devem ser registrados os maiores volumes de precipitação, com possibilidade de até 250 mm neste final de semana.” A frase com o alerta sobre o risco de fortes tempestades está no meio de um texto da Folha da manhã de sexta-feira (17), véspera de Carnaval.

Foi bem pior, mais de 600 mm de chuva, deslizamentos de terra, rios de lama engolindo casas, carros e gente, troncos de árvores arrancados e arrastados até a areia da praia. A tragédia do litoral norte de São Paulo culminou em dezenas de mortos e milhares de desabrigados na madrugada de domingo (19). Décadas de desprezo pela natureza, desigualdade e ausência do poder público revisadas em poucas horas de horror”.

O L1/E1 faz o relato descritivo da situação, começando por uma previsão de até 250 mm de chuvas no litoral, anunciada pelo jornal Folha de S.Paulo. O evento ocorrido foi muito além do previsto, conforme ressaltamos com enunciados transcritos ipsis litteris:

(1) mais de 600 mm de chuva

(2) deslizamentos de terra

(3) rios de lama engolindo casas, carros e gente

(4) troncos de árvores arrancados e arrastados até a areia da praia

O L1/E1 ancora-se nesse relato descritivo e passa a expressar seu PDV, textualmente, o qual veicula um discurso acerca de uma nova realidade instaurada: “a tragédia do litoral norte de São Paulo”. O sintagma nominal que introduz esse enunciado avaliativo já aponta para o leitor a postura enunciativa do L1/E1, a qual é reiterada pelas consequências desastrosas para os seres humanos que ali estavam: “dezenas de mortos e milhares de desabrigados”. O ombudsman justifica seu PDV, mostrando a real causa que promoveu o desastre: “décadas de desprezo pela natureza, desigualdade e ausência do poder público revisadas em poucas horas de horror”.

O L1/E1 constrói seu PDV ancorando-se em três variáveis, as quais destacamos na Figura 3.

Figura 3. Variáveis de sustentação do PDV do L1/E1

Fonte: elaborada pelas autoras.

Além dessas variáveis, o ombudsman recorre a enunciadores segundos (e2), instaurando, assim, o discurso reportado, o que nos alinha a Muñoz et al. (2009), certamente, o L1/E1 assim procede como uma estratégia de sustentação do seu discurso, como os enunciados e seus respectivos enunciadores, que destacamos no Quadro 2, a seguir.

Quadro 2. Enunciadores segundos (e/2) convocados

“O chef Eudes é caiçara e mestiço, criado na mesma paisagem magnífica que nós, paulistanos, invadimos para brincar de Havaí — expulsando as populações tradicionais para as encostas periclitantes.”

Blog Cozinha Bruta

“A Folha conta que Tarcísio de Freitas recusou a duplicação da estrada quando era ministro de Jair Bolsonaro. Mais faixas de rolamento é solução para a população local, que anda de bicicleta pelo acostamento, ou para os veranistas, que o invadem a bordo de SUVs na hora do trânsito do feriado? Que progresso se quer? O de uma Cancún, como um dia vaticinou o ex-presidente sobre a miliciana região dos Lagos.”

Folha de S.Paulo

Fonte: elaborado pelas autoras.

Os e/2 mencionados estão diretamente ligados à esfera midiática: (1) Blog Cozinha Bruta e (2) Folha de S.Paulo. Estamos em face de discursos reenunciados, uma vez que são discursos reportados pelo ombudsman, são discursos em circulação, como bem ilustram Muñoz et al. (2009, p. 10) com a definição representada pela fórmula:

“Reportar = X diz “y” 

Mas circular = “y” circula (via X)/X diz que Z diz “y”/X faz circular “y””

Ao relacionarmos a fórmula com nossos dados do Quadro 1, temos que o Ombudsman reporta = X diz “y” (o ombudsman reporta os enunciados dos enunciadores segundos: “Blog Cozinha Bruta e Folha de São Paulo”). 

Mas circular = “y” (os enunciados dos enunciadores segundos: “Blog Cozinha Bruta e Folha de São Paulo” circulam (via X)/X (Coluna do ombudsman da Folha de São Paulo) diz que Z (os locutores, enunciadores segundos dizem “y” (os enunciados dos enunciadores segundos: “Blog Cozinha Bruta e Folha de São Paulo”/ X (Coluna do Ombudsman) faz circular os enunciados dos enunciadores segundos. 

Em síntese, só há circulação do discurso em cenas enunciativas de reenunciação, ou seja, em discursos reportados, em discursos citados. Nossos dados revelam esse tipo de dispositivo enunciativo, cujo propósito é fazer remissão ao já-dito, pressupõe um discurso anterior. Nas palavras de Muñoz et al. (2009, p. 11), “o estudo da circulação dos discursos obriga a se interessar pelos posicionamentos ideológicos, pelas posições e pelas posturas enunciativas assumidas pelos locutores no discurso”. O ombudsman, ao opinar, assume seu PDV, que manifesta uma posição ideológica em defesa do meio ambiente, exatamente o contrário do que ocorre no litoral norte de São Paulo.

À guisa de conclusão desta seção, ressaltamos, no Quadro 3, mais dois enunciados que dão sustentação ao PDV do ombudsman no que diz respeito à crítica sobre o aparente desconhecimento da realidade concernente aos problemas relativos à preservação do meio ambiente.

Quadro 3. Crítica a uma realidade que parece esconder o real

PDV

L1/E1

“A iniquidade patente ganhou textos e análises, mas pouco se falou de uma certa precariedade cultivada. São Sebastião é um município de estrutura e serviços insuficientes nos dois lados da Rio-Santos. A diferença é que a parte rica se resolve sozinha, ainda que em graus e com bolsos diferentes. Tem praia com shopping, tem praia sem um único bar, tem praia com Abilio Diniz.”

Ombudsman

“O litoral norte é uma espécie de resumo do país, encurralado entre natureza, progresso predatório, emergência climática e abismo social. A ver se mídia e autoridades não abandonam a discussão assim que o sol reaparecer e o mar levar a sujeira da vez embora.”

Ombudsman

Fonte: elaborado pelas autoras.

A produção dos enunciados destacados no Quadro 3 está ancorada no processo de referenciação, marcada pela predicação. Isso nos evoca Rabatel (2021, p. 32), ao explicar que ele se situa

em uma abordagem de enunciação que articula enunciação e referenciação (...) ou mais exatamente que considera que a análise da referenciação faz plenamente parte da análise da enunciação, na medida em que a inscrição da subjetividade não se reduz às marcas do aparelho formal da enunciação, centradas no sujeito, mas integra outras marcas relativas à construção dos objetos de discurso, que depende sempre, em última instância do objetivo do sujeito sobre o objeto.

Nessa esteira, evidenciamos a construção do PDV do ombudsman marcado pela crítica contundente, evidenciando contrastes sociais, de infraestrutura deficitária e desrespeito à preservação do meio ambiente, de acordo com os enunciados transcritos para a Figura 4.

O desencanto, a desesperança e o conhecimento da dura realidade, para um segmento social do litoral norte do Estado de São Paulo, subjazem ao PDV do ombudsman. A situação decorrente das chuvas denuncia uma realidade camuflada, um progresso que na realidade é predatório. Os enunciados do ombudsman expressam percepções de um contexto que é predicado, referenciado de forma negativa, conforme os sintagmas nominais destacados na Figura 4. Podemos considerar, assim, que a referenciação não é neutra, mas que manifesta interpretação, posicionamento, opinião, PDV. Encerramos esta seção realçando a interseção entre PDV e o papel do ombudsman de um jornal. De um lado, temos o PDV que é um dispositivo enunciativo, cujo locutor tem o propósito de emitir opinião. Do outro lado, temos o ombudsman que tem um propósito comunicativo de avaliar, opinar e, às vezes, de resolver conflitos.

Figura 4. PDV do ombudsman evidenciando contrastes sociais, de infraestrutura deficitária e desrespeito à preservação do meio ambiente

Fonte: elaborada pelas autoras.

5. Considerações finais

Ao considerar a formação professor-leitor como futuro formador de leitores atrelada à transdisciplinaridade, recuperamos a vertente que enfrenta desafios da educação escolar no mundo contemporâneo. Ler e compreender as plurais linguagens registradas em um produto linguístico-textual-discursivo-enunciativo demanda acionamento de critérios analíticos que extrapolam a atenção à superfície textual, justamente, como no caso em tela, por conta da inter-relação das subunidades significantes de extensão e natureza semiológica variáveis que compõem um conjunto de dispositivos enunciativos, articulando a denúncia à falta de políticas públicas quanto à prevenção de tragédias climáticas.

Em função da intensidade e da complexidade de conexões tanto de produção como de circulação de uma alta gama informacional, análises que subsumam o plano de texto num contexto social que contempla, pois, perspectivas socioambientais emergentes, como é o caso do enfoque ao caso do litoral norte do estado de São Paulo, a perspectiva transdisciplinar potencializa compreender o mundo, uma vez que ela instiga a assunção de reconhecer o conhecimento, com perdão do pleonasmo, por meio da leitura que lê o texto e a ele atribui significação; que lê o mundo e nele intervém em nome de um bem comum; que lê a integridade do sujeito enunciador ao dialogar provocativamente com seus leitores. Com isso, abrem-se perspectivas contributivas para a formação de leitores cuja criticidade, para muito além de um raso tecnicismo, promova enfrentamento aos problemas sociais brasileiros, pois a lamentável ocorrência em São Sebastião funciona como metáfora do que acontece Brasil afora.

Assim, finalizando este artigo, consideramos possível afirmar que as perguntas inicialmente propostas foram respondidas. No que diz respeito à primeira pergunta, pelo fato de os resultados das análises, tanto do plano de texto, quanto da construção do ponto de vista, terem evidenciado a adequação dos referidos critérios analíticos para uma abordagem transdisciplinar, que favorece a construção de sentidos em textos como os do gênero aqui analisado.

Dessa perspectiva, em relação aos resultados da análise do plano de texto, podemos ressaltar que sua abordagem, ao envolver elementos peritextuais e partes do texto, indissociavelmente de suas construções sequenciais e de seus elementos lexicais, contribui para a formação de um leitor que vai muito além da leitura do nível linguístico do texto, já que relaciona aspectos dos diferentes níveis textuais.

No que diz respeito aos resultados da análise da construção do ponto de vista do ombudsman (L1/E1) da Folha de S.Paulo, podemos destacar que, ao levar em consideração as vozes de enunciadores segundos (e2) veiculadas em suportes textuais midiáticos, evidenciam a materialização de uma estratégia enunciativa de retomada do discurso reportado, ou seja, o já veiculado, que funciona como um recurso de autoridade. Além dessa estratégia, o L1/E1 se engaja em seu posicionamento, recorrendo ao uso de lexemas marcados pela subjetividade. Dessa perspectiva, expressa críticas contundentes à falta de preservação do meio ambiente pelos setores responsáveis.

Essa discussão sobre a resposta à primeira pergunta nos fundamenta na proposição de uma interface entre os resultados obtidos de acordo com cada um dos critérios, o que nos leva a ver respondida também a segunda pergunta, uma vez que esses critérios podem se reverter em estratégias para o ensino da leitura, que nasce durante a formação do futuro professor e se projeta ao longo de sua vida.

Vemos, assim, cumprido o objetivo do artigo e, com ele, a abertura de horizontes para novos estudos sobre a abordagem transdisciplinar na formação de futuros professores, capazes de ler e modificar realidades sociais que possam tornar a vida mais justa e igualitária.

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1SUVs = Sport Utility Vehicles.

2 A análise ilustrativa do ponto de vista considerou os sete primeiros parágrafos.

3 O autor remete a Ducrot, O. (1993). A quoi sert le concept de modalité? In Dittmar, N. e Reich, A. (Eds.). Modalité et acquisition des langues (p. 111-129). Walter de Gruyter.

Cómo citar en APA:

Marquesi, S. C., Rodrigues M. das G. S. & Passarelli, L. M. G. (2023). A transdisciplinaridade na formação de professores no século XXI: dispositivos textuais, discursivos e enunciativos para leitura da realidade social. Revista Iberoamericana de Educación, 92(1), 29-45. https://doi.org/10.35362/rie9215892