Revista Iberoamericana de Educación (2023), vol. 93 núm. 1, pp. 145-160 - OEI
https://doi.org/10.35362/rie9315993 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653
recibido / recebido: 15/08/2023; aceptado / aceite: 26/09/2023
A interculturalidade como instrumento de internacionalização da educação na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa 1
Kellcia Rezende Souza 1 https://orcid.org/0000-0002-8663-4615
Camila Maria Bortot 2 https://orcid.org/0000-0002-9355-8876
Elisangela Alves da Silva Scaff 3 https://orcid.org/0000-0002-7682-0879
1 Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Brasil; 2 Centro Universitário Cidade Verde (UniCV), Brasil; 3 Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil
Resumo. O presente estudo tem o objetivo de analisar a interculturalidade como instrumento de internacionalização educacional na intersecção entre as agendas normativas da Unesco e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Para tanto, a partir de uma abordagem qualitativa, desenvolveu-se uma pesquisa bibliográfica e documental, na qual o corpus de análise correspondeu aos dois planos estratégicos de cooperação em educação instituídos pela CPLP e a Declaração Mundial sobre Educação para Todos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A partir da investigação empreendida é possível aferir que, se, por um lado, a Declaração de Incheon preconiza a relevância da interculturalidade como elo de cooperação internacional na área da educação, por outro, defende que esse processo resulte de uma cooperação vertical em uma perspectiva de influência dos países hegemônicos, sobretudo os do hemisfério norte. Nessa direção, a CPLP busca se distanciar dessa ótica ao estabelecer a promoção da língua portuguesa como instrumento de interculturalidade e, dessa forma, constitui-se como uma perspectiva de política educacional contra-hegemônica de cooperação internacional entre os países lusófonos.
Palavras-chave: cooperação internacional na educação; globalização e educação; interculturalidade em educação; política educacional; educação em países lusófonos.
La interculturalidad como instrumento para la internacionalización de la educación en la Comunidad de Países de Lengua Portuguesa
Resumen: El presente estudio tiene como objetivo analizar la interculturalidad como instrumento de internacionalización educativa en la intersección entre las agendas normativas de la Unesco y la Comunidad de Países de Lengua Portuguesa (CPLP). Por ello, desde un enfoque cualitativo, se desarrolló una investigación bibliográfica y documental, en la que el corpus de análisis correspondió a los dos planes estratégicos de cooperación en educación instituidos por la CPLP y la Declaración Mundial sobre Educación para Todos de la Organización de las Naciones Unidas para la Educación, Ciencia y Cultura (Unesco) – Incheon (Unesco, 2016). De la investigación realizada se puede constatar que, si por un lado la Declaración de Incheon aboga por la relevancia de la interculturalidad como eslabón de la cooperación internacional en el área de la educación, por otro lado, defiende que el proceso resulta de una cooperación vertical en una perspectiva de influencia de los países hegemónicos, especialmente los del hemisferio norte. En esa dirección, la CPLP busca distanciarse de esta perspectiva estableciendo la promoción de la lengua portuguesa como instrumento de interculturalidad y, así, constituyéndose como una perspectiva de política educativa frente a la hegemónica de la cooperación internacional entre países de lengua portuguesa.
Palabras clave: cooperación internacional; globalización; interculturalidad; política educativa; países lusófonos.
Interculturality as an instrument for the internationalization of education in the Community of Portuguese Speaking Countries
Abstract: This study aims to analyze interculturality as an instrument of educational internationalization in the intersection between the normative agendas of Unesco and the Community of Portuguese Speaking Countries (CPLP). Therefore, based on a qualitative approach, a bibliographical and documentary research was developed, in which the corpus of analysis corresponded to the two strategic plans of cooperation in education instituted by the CPLP and the World Declaration on Education for All of the United Nations Organization for Education, Science and Culture (Unesco) – Incheon (Unesco, 2016). This investigation showed that if, on the one hand, the Incheon Declaration advocates the relevance of interculturality as a link of international cooperation in education, on the other hand, it defends that this process results from a vertical cooperation in a perspective of influence of hegemonic countries, especially those in the northern hemisphere. Thus, CPLP seeks to distance itself from this perspective by promoting the Portuguese language as an instrument of interculturality and, thus, constituting itself as a perspective of educational policy against the hegemonic international cooperation between Portuguese-speaking countries.
Keywords: international cooperation; globalization; interculturality; educational politics; lusophone countries.
1. Introdução
A educação, enquanto pauta política da agenda internacional, pode adquirir uma função estratégica na dinâmica geopolítica das relações entre os países periféricos como contraponto a uma homogeneização sócio-econômica-cultural definida no âmbito da globalização. Esse posicionamento, defendido por Souza e Souza (2017), está relacionado ao estreitamento das relações entre nações emergentes que pode ter como elo, por exemplo, a colonização pelo mesmo país, já que compartilham laços históricos e aproximações culturais, como é o caso da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
A CPLP foi criada em 17 de julho de 1996 e é constituída por nove Estados-membros (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Portugal, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste). Tem como perspectiva assegurar a aproximação da relação político-diplomática dos países de língua portuguesa, bem como a cooperação nas áreas de educação, saúde, ciência e tecnologia, defesa, agricultura, administração pública, comunicações, justiça, segurança pública, cultura, desporto e comunicação social (Saraiva, 2001).
As relações multilaterais entre os países têm proporcionado, conforme Saraiva (2001), espaços de cooperação a partir da aproximação de elementos interculturais em comum, como o idioma. A CPLP é uma ilustração de um arranjo de organização supranacional que veio conferir uma moldura institucional à lusofonia. Os países que comungam da língua portuguesa carregam o patrimônio cultural de aproximações entre os processos colonizadores. Nessa vertente, o elo de patrimônio cultural partilhado entre os países membros da CPLP pode ser configurar como um instrumento estratégico de interculturalidade.
A interculturalidade, diferentemente da multiculturalidade, não é simplesmente duas culturas que se mesclam ou que se integram. A interculturalidade alude a um tipo de sociedade em que as comunidades étnicas, os grupos sociais se reconhecem em suas diferenças e buscam uma mútua compreensão e valorização. O prefixo “inter” expressaria uma interação positiva que concretamente se expressa na busca da supressão das barreiras entre os povos, as comunidades étnicas e os grupos humanos (Damázio, 2008, p. 77).
A ampliação de fluxos de aproximação entre os povos e a promoção da interculturalidade no plano da cooperação internacional têm no campo da educação um lastro para o desenvolvimento de políticas que possibilita a promoção da diversidade cultural e fortalecem as inter-relações como instrumento de ruptura contra-hegemônico, principalmente, entre os países emergentes e subdesenvolvidos, como é o caso da maioria dos Estados que compõem a CPLP.
Assim sendo, a presente pesquisa tem como objetivo analisar a interculturalidade como instrumento de internacionalização educacional na intersecção entre as agendas normativas da Unesco e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Para tanto, a partir de uma abordagem qualitativa, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental. A composição do levantamento bibliográfico sobre as produções da área se deu a partir dos seguintes critérios: (a) tratar da interculturalidade como instrumento de internacionalização da educação em países lusófonos; (b) reportar-se ao período de 2015 a 2023, ou a fração dele; (c) ser de natureza acadêmica-científica; (d) estar disponibilizado em banco de dados eletrônicos.
Foram selecionados textos que evidenciam nos títulos, resumos e/ou palavras-chave os descritores: educação em países lusófonos; educação e lusofonia; educação na CPLP; interculturalidade e educação. As produções foram selecionadas nas seguintes bases de dados eletrônicas: Scientific Electronic Library Online (SCIELO) e Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal (REDALYC). O corpus da pesquisa documental foi constituído pelos dois estratégicos de cooperação em educação, instituídos pela CPLP e pela Declaração de Incheon (Unesco, 2016). O recorte temporal se deu a partir de 2015, considerando que esse ano corresponde à publicação da Declaração de Incheon e à normatização tanto do primeiro plano estratégico da CPLP (2015-2022)2 quanto do segundo (2022-2026), que está em vigência atualmente. A análise dos dados coletados ocorreu mediante a interpretação dos conteúdos normativos a partir da categoria da interculturalidade.
2. A cooperação educacional no contexto de globalização
A discussão em torno da cooperação internacional entre países emerge do fenômeno da globalização, considerado por Held e McGrew (2001) como uma transformação na organização social, que proporciona a interligação entre comunidades distantes, corroborando para a ampliação do alcance das relações de poder nas grandes regiões e continentes do mundo.
À medida que as atividades econômicas, sociais e políticas transcendem cada vez mais as regiões e as fronteiras nacionais, isso representa um desafio direto para o princípio territorial da organização social e política moderna. Esse princípio pressupõe uma correspondência direta entre a sociedade, a economia e a organização política num território nacional exclusivo e delimitado por fronteiras. Mas a globalização rompe essa correspondência, na medida em que a atividade social, econômica e política já não pode ser entendida como tendo limites idênticos aos das fronteiras territoriais nacionais (Held e McGrew, 2001, p. 22).
Ainda que a raiz da globalização esteja vinculada ao viés econômico, como a circulação de capitais, ampliação dos mercados e integração produtiva em escala internacional, trata-se de um fenômeno que perpassa diretamente as diferentes dimensões da esfera social. Nessa vertente, “[...] o termo tem designado a crescente transnacionalização das relações econômicas, sociais, políticas e culturais que ocorrem no mundo” (Vieira, 2002, p. 72).
Esse movimento altera os arranjos “políticos, econômicos, geoeconômicos, geopolíticos, culturais, religiosos, linguísticos, étnicos, racionais e todos os que articulam e tencionam as sociedades nacionais, na esfera internacional, regional, multinacional, transnacional ou mundial” (Ianni, 2006, p. 30).
Os desdobramentos apontados por Ianni (2006) como resultantes da globalização são desencadeados pelo vetor da diminuição do papel regulador do Estado. Nessa direção, Harvey (2004) esclarece que o Estado, no contexto globalizado, tem sua capacidade de regular os mecanismos de distribuição e de concorrência limitada, uma vez que a globalização dos fluxos de mercado, capital e das pessoas permitiu ultrapassar os limites de regulação, que antes estavam estritamente vinculados ao Estado-Nacional. Nessa vertente, a autonomia sem precedentes do capital financeiro e das cadeias de produção desencadeia o aumento da fluidez das representações nos territórios, sobretudo pela redefinição da compreensão do tempo-espaço gerada pelos avanços tecnológicos e, principalmente, da comunicação.
Para Mariano (2007), os Estados no mundo globalizado adquirem uma nova lógica de operação, em que o seu poder passa a ser parcial frente à expansão das forças transnacionais, que “[...] reduzem a capacidade dos governos de controlarem os contatos entre as sociedades, e que impulsionam essas relações transfronteiriças” (Mariano, 2007, p. 124). Essa dinâmica tende a obrigar os Estados a criarem estratégias de inserção no cenário globalizado, atendendo às demandas provenientes da nova dinâmica socioeconômica. A autora esclarece, ainda, que a globalização, apesar de se constituir como um fenômeno mundial, apresenta seus desdobramentos nos contextos locais e regionais, que acarretam transformações de diferentes intensidades e formas nos comportamentos dos Estados, determinadas pelos contextos internos em que estes estão inseridos e pela própria posição dentro do sistema internacional.
Nessa perspectiva, as fronteiras físicas dos países são alteradas e dissolvidas para que possam angariar esforços em conjunto com as demais nações e, assim, disporem de uma condição robusta para inserção e concorrência no desenho do mundo globalizado. Esse cenário impõe aos Estados não só a necessidade de viabilizar um novo projeto econômico, mas, sobretudo, a decisão política de articulação e aprofundamento de projetos de integração e cooperação entre os países.
A tendência de formação de instituições de integração e cooperação entre os países em face da globalização provocou o desenvolvimento de duas arenas que estão umbilicalmente vinculadas: a global e a regional. De um lado encontra-se a globalização do capital associada à abertura dos mercados e à centralização do poder econômico às organizações transnacionais. Do outro, o fortalecimento dos espaços regionais e dos contextos interculturais em face do cenário global. Assim, a formação de instituições supranacionais representa uma alternativa de agregação de diversos Estados no sentido de adotarem ações em conjunto para melhorarem a condição em que se encontram no cenário internacional de correlação de forças políticas (Souza, 2017).
É relevante salientar que, segundo Souza (2017), a metodologia adotada para o relacionamento entre os Estados dispõe de duas perspectivas: a cooperação e a integração. Na cooperação, adota-se o pressuposto do “trabalhar com”, que corresponde ao princípio estabelecido no Direito Internacional Público, no qual cada Estado-membro atua na defesa de seus próprios interesses, visando resguardar a própria soberania. Nesse caso, devem existir duas ou mais soberanias que tomem decisões por unanimidade. Já na integração, há o entendimento da interpenetração, em que os parceiros se fundem, perdendo a individualidade.
Barbiero e Chaloult (2001) apontam que determinados aspectos favorecem a cooperação e a integração entre os países, dentre eles destacam-se: existência de um substrato comum de interesses; aproximações a partir de simetria histórica, econômica-social, cultural e política-institucional, com certo grau de complementaridade entre os estados-membros; e a consistência de valores manifestos e compartilhados entre os atores envolvidos.
Torna-se evidente que o aprofundamento da globalização tem desencadeado o avanço de processos de integração entre os países. Isso implica um cenário político em que a agenda diplomática governamental inclui cada vez mais, reiteradamente, as dimensões de cooperação internacional. Logo, a sistematização de instrumentos de cooperação internacional entre os países tende a formalizar a operacionalização entre os atores estatais e o potencial de engajamento na arena global de disputas políticas. A cooperação internacional, nesse contexto, passa a ser uma condição indispensável, como analisa Sato (2010), pois ela se faz presente na engrenagem regulatória dos Estados, direta e indiretamente.
[...] uma das dimensões marcantes nas relações internacionais é a expansão da cooperação internacional, se tornando como prática institucionalizada pelos governos, que unificou as sociedades dentro deste sistema, seja elas ricas e poderosas ou pobres e de pouca expressão, demarcando nos foros internacionais, a iniciação dos governos a colocar rede de instituições voltadas para a prática, do que passou a ser denominada “cooperação internacional” (Sato, 2010, p. 46)
A autora destaca que, ainda que as origens dos processos de cooperação internacional tenham suas raízes fixadas nos interesses das áreas econômicas e comerciais, o avanço da globalização ultrapassou essas dimensões, incorporando ações que se estenderam para diversas áreas, sendo elas: segurança, meio ambiente, saúde, educação, entre outros. Logo, a cooperação entre os países não pode ser considerada uma ação de natureza exclusivamente econômica, mas multidimensional (Sato, 2010).
A cooperação se materializa, então, pelo arranjo dos países em instituições como blocos, organizações e comunidades de cooperação internacional, fenômenos oriundos das transformações da globalização. O avanço desse processo desencadeia novos formatos de relações multilaterais, em que a articulação entre os países “se tornou crucial para a integração econômica, política, social e cultural, como uma importante estratégia de inserção no cenário internacional” (Souza, 2017, p. 23).
Essa constatação decorre da tendência de constantes transformações impostas pela intensificação dos processos de globalização que permeiam o mundo contemporâneo. Essas crescentes mudanças transfronteiriças das relações entre os Estados e outros atores internacionais na arena política global impactam a educação, que passa a desempenhar papel estratégico, também como vetor para o desenvolvimento de outras áreas.
[...] ao longo das últimas décadas, os sistemas educacionais em todo mundo sofreram mudanças significativas. Sendo que tais mudanças desencadeiam mecanismos que buscam interpretar e responder ao atual campo de mudanças no contexto econômico, social e político dentro do qual a educação está inserida. Por isso, podemos afirmar que as políticas educacionais têm sido profundamente afetadas por estas transformações, processo em que os governos nacionais têm buscado “realinhar” suas prioridades educacionais ao que eles consideram serem os imperativos da globalização (Souza et al., 2023, p. 1123).
Em tempos de globalização, organismos internacionais têm exercido forte influência supranacional sobre os sistemas e as políticas educativas em nome de uma agenda global de educação (Maués, 2021; Morosini, 2021), atuando junto aos países como mediadores da cooperação internacional. Tais organismos posicionam-se como especialistas científicos capazes de criar soluções por meio de acordos educacionais universais, como é o caso da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Como agência especializada da educação no sistema das Nações Unidas, ela atua principalmente junto aos países no sentido de projetar e executar um plano de associação e compartilhamento de responsabilidades entre os atores envolvidos, propondo metas, reformas, aconselhamentos e cooperações.
No campo educacional, a cooperação internacional entre Unesco e os Estados passa a se constituir a partir de relações resultantes de consensos, projetos coletivos e ações cooperadas. No caso da interculturalidade e da educação, denota-se a criação de bases internacionais com compromissos e recomendações a serem seguidas sobre multiculturalismo, interculturalidade, identidades, pluralismo e diversidade (Carvalho & Faustino, 2015).
Destacam-se nesse movimento as seguintes normativas: a Declaração Mundial sobre Educação para Todos (Unesco, 1990); a Declaração de Princípios Sobre a Tolerância (Unesco, 1995); o Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, mais conhecido como Relatório Delors (1996); Relatório Cuéllar: Nossa Diversidade Criadora (Cuéllar, 1997); Relatório Investir na Diversidade Cultural e no Diálogo Intercultural (Unesco, 2009). Com essas orientações, a Unesco trabalhou como indutora de cooperação internacional, alinhada ao projeto internacional delineado nos documentos, de integração regional, promoção da paz, respeito às diferenças, à diversidade e à linguagem.
No início do século XXI, novos compromissos e diretrizes internacionais vêm dando sustentação para a internacionalização de proposições sobre como melhorar o sistema educacional a partir da cooperação internacional frente a uma demanda crescente: a interculturalidade. Vislumbrando analisar essas proposições internacionais, examinaremos a declaração “Educação 2030: Rumo a uma educação de qualidade, inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos”, conhecida como Declaração de Incheon (Unesco, 2016)3. Tal Declaração foi organizada no bojo dos compromissos do Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2015), pela Unesco, junto com o Fundo de Emergência Internacional para Crianças das Nações Unidas (Unicef), o Banco Mundial, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Organização das Nações Unidas Mulheres (ONU Mulheres)e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), a partir dos debates do Fórum Mundial de Educação 2015, em Incheon, na Coreia do Sul, envolvendo autoridades e a sociedade civil de 160 países, a fim de criar uma nova visão para a educação nos próximos 15 anos.
3. Bases internacionais atuais sobre interculturalidade: a Declaração de Incheon
É sabido que no movimento da história os organismos multilaterais, agências internacionais e Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU) são agentes que dão organicidade para ações transfronteiriças a partir de acordos firmados nos diferentes Estados signatários, buscando influenciar e hibridizar conhecimentos, ideias, serviços e projetos (Bortot, 2022). Segundo Woicolesco (2023, p. 47), essa influência tem “[...] implicação cada vez mais intensa na harmonização dos sistemas educacionais dos Estados-membros, os direcionamentos dos organismos internacionais têm implicado não apenas nas políticas educativas, mas nas práticas pedagógicas”.
Akkari (2017) salienta que o debate sobre a internacionalização da educação corresponde um movimento iniciado com o advento da globalização, em que as políticas públicas não são mais de responsabilidade exclusiva dos Estados Nações e, inerente a elas, mas a educação, nesse contexto, passa a ser cada vez mais objeto de crescentes influências internacionais e um “processo estratégico ligado à globalização e à regionalização das sociedades” (Morosini, 2011, p. 94). A Declaração de Incheon (Unesco, 2016) é um marco internacional atual para a cooperação internacional que integra a Interculturalidade no bojo das ações de internacionalização por meio da cooperação entre os países, a fim de “assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” (Unesco, 2016, p. 8). Para atingir a meta, a Educação 2030 deve buscar, entre os países, desenvolver a inclusão, a democracia, os direitos humanos, a cidadania, a tolerância e o engajamento civil, haja vista que a educação facilita o diálogo intercultural e fomenta o respeito pela diversidade cultural, religiosa e linguística, aspectos vitais para alcançar a coesão e a justiça social (Unesco, 2016). As ações interculturais, segundo o documento, envolvem eliminar as disparidades de gênero na educação e garantir a igualdade de acesso a todos os níveis de educação e formação profissional para os mais vulneráveis, incluindo as pessoas com deficiência, os povos indígenas e as crianças em situação de vulnerabilidade.
Registra o documento em análise que a educação precisa desenvolver conhecimentos, habilidades, valores e atitudes necessários para que cidadãos tenham vidas produtivas, e resolver desafios globais que podem ser adquiridos por meio da educação para a cidadania global, que inclui “educação sobre paz e direitos humanos, bem como educação intercultural e para a compreensão internacional” (Unesco, 2016, p. 22). Para tanto, a Declaração destaca a importância da coordenação efetiva, desenvolvida sob orientação dos Ministérios da Educação, com envolvimento de atores não estatais, como a ONU, bem como esforços coletivos regionais/sub-regionais e o envolvimento de comunidades regionais a fim de garantir forte colaboração, cooperação, coordenação e monitoramento regional da implementação da agenda educacional, como a nova ênfase na aprendizagem ao longo da vida e na interculturalidade, sobretudo em programas interculturais de linguística e de etnia (Unesco, 2016).
A declaração salienta como exemplos de sucesso de cooperação internacional em curso as seguintes estratégias e marcos regionais: a Agenda 2063, da União Africana: A África que Nós Queremos (The Africa We Want); a Estratégia de Educação Continental para a África 2016-2025; a estratégia educacional da Organização Árabe para a Educação, Ciência e Cultura (Arab League Educational, Cultural and Scientific Organization – Alecso); a estratégia Europa 2020, da União Europeia; o quadro de competências do Conselho Europeu para a democracia cultural e o diálogo intercultural; o Projeto de Educação Regional para a Educação na América Latina e Caribe e a Visão Comunitária 2025 da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Unesco, 2016). Denota-se desses exemplos que a coordenação efetiva envolve a cooperação entre comunidades de integração regional, assim como o arranjo de organização supranacional.
As comunidades locais são, na perspectiva do documento, garantias de que a educação básica tem papel estratégico e que a cultura corrobora para a sustentabilidade, levando em consideração os contextos e a cultura locais e construindo conscientização sobre o patrimônio e as expressões culturais e sua diversidade, enfatizando, ainda, a importância do respeito pelos direitos humanos.
Para que se cumpra o acordo, o documento de Incheon (Unesco, 2016) destaca o papel da Unesco, enquanto agência da ONU especializada em educação, para liderar e coordenar a agenda da Educação 2030, que tem como eixos centrais empreender advocacy para manter o compromisso político e promover a cooperação triangular. Advocacy envolve um lobby de especialistas na construção de agenda política e na promoção do aconselhamento para torná-la efetiva. Para isso, necessitam organizar-se, mobilizar-se e ter influência na entrada no lobby político para exercerem o poder na formação da agenda política (Calmon & Costa, 2007; Secchi, 2011), e, portanto, estarem dentro da arena política. Assim, o aconselhamento advém da pauta organizada pelo Marco de Incheon (Unesco, 2016), e como uma dessas estratégias de aconselhamento encontra-se a criação de cooperação triangular.
Segundo Muhr e Azevedo (2019), a cooperação triangular ocorre quando agências internacionais e governos do Norte atuam como intermediários para a transferência de melhores práticas entre os países em desenvolvimento no contexto da neoliberalização. A transferência de políticas se efetiva como resultado de um processo complexo de advocacy internacional, que não é pensado, organicamente, em seus contextos e culturas. Assim, na perspectiva da Declaração de Incheon (Unesco, 2016), promover a cooperação triangular e Sul-Sul é um
elemento importante da cooperação internacional para o desenvolvimento – como complemento, e não substituição, da cooperação Norte-Sul. A cooperação triangular deveria ser fortalecida como forma de financiar a educação e mobilizar experiências e conhecimentos relevantes na cooperação para o desenvolvimento (Unesco, 2016, p. 35).
Eis a primeira contradição que envolve as bases internacionais sobre interculturalidade: de um lado, o Marco de Incheon (Unesco, 2016) ressalta a constituição de estratégias nos países e em organizações regionais alinhadas às questões interculturais, mas, do outro, se coloca como agente de cooperação triangular para influenciar no desenvolvimento de práticas que estão ligadas ao “processo pelo qual o conhecimento sobre políticas, arranjos administrativos, instituições e ideias em um sistema político (passado ou presente) é usado no desenvolvimento de políticas, arranjos administrativos, instituições e ideias em outro sistema político” (Dolowitz e Marsh, 2000, p. 5).
Como forma de síntese, o Mapa Conceitual, representado pela figura 1, evidencia os principais achados nas recomendações sobre Interculturalidade.
Figura 1. Mapa Conceitual: Interculturalidade e Educação na Declaração de Incheon (Unesco, 2016)
Fonte: elaborado pelas autoras a partir do documento da Unesco (2016).
Observe-se que, ao mesmo tempo em que a Declaração de Incheon (Unesco, 2016) demarca a interculturalidade e a cooperação regional como formas de integração territorial e inclusiva, também determina para esse processo as influências, interdependências e hibridismos com atores externos a esses contextos. Esses fatores vão sendo disseminados, a partir dos acordos globais, como processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas nas comunidades regionais, combinadas às práticas silenciosas de internacionalização.
Apesar das recomendações de Incheon (Unesco, 2016) reconhecerem que saberes interculturais estão relacionados ao reconhecimento das múltiplas visões de mundo e ao respeito a toda forma de diversidade – cultural, racial, étnica, de gênero, linguística, social, e ao entendimento da própria identidade –, incentivam um conjunto de quatro ações combinadas: a) internacionalização; b) integração e cooperação regional; c) interculturalidade; e d) cooperação triangular de boas práticas. Por meio da influência de propósitos humanistas de educação, bem como dos princípios de direitos humanos – dignidade, respeito à diversidade cultural e justiça social –, percebe-se essas instituições globais como redes de políticas que objetivam a disseminação de ideias e modos de agir hegemônicos aos países via cooperação internacional (Ball, 2014).
Assim, iniciativas de integração e cooperação entre os países construídas no bojo da premissa do respeito das suas particularidades e, de certa forma, menos vulneráveis aos contextos de influências de manutenção hegemônicos via agências internacionais, podem ser alternativas para a garantia de políticas educacionais efetivamente alicerçadas em práticas coerentes com a promoção da interculturalidade. Desse modo, a seguir buscamos explorar como vêm se construindo os desenhos normativos para a interculturalidade no campo educacional na CPLP, que representa um esforço diplomático de cooperação entre nações que têm o português como idioma em comum.
4. A interculturalidade nos Planos Estratégicos de Cooperação em Educação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
A CPLP compreende interesses e aproximações diplomáticas entre os seus estados membros, que comungam laços históricos cujo elo é a colonização portuguesa. O movimento de articulação nessa organização internacional prevê uma agenda política voltada para a cooperação de diversas áreas entre os países, dentre elas a educação.
A CPLP visa à concertação política e à cooperação socioeconômica e cultural entre seus membros por meio da coordenação sistemática de atividades e tarefas entre entidades públicas e privadas e do desenvolvimento de parcerias que envolvem governos de Estados-membros, organizações intergovernamentais e organismos não governamentais para o apoio ao desenvolvimento dos Estados de Língua Portuguesa. Além disso, muitas diretivas adotadas pela Comunidade são voltadas para setores como saúde e educação, para os quais os membros buscam mobilizar recursos e esforços (Vieira de Jesus, 2012, p. 309).
A pauta educacional no âmbito da CPLP é debatida nas reuniões entre os Ministros de Estado da Educação de cada país membro, que ocorre ordinariamente a cada dois anos. Desde 2015, a institucionalização dessas reuniões resultou também na regulamentação dos Planos Estratégicos de Cooperação em Educação, instrumentos que objetivam registrar o compromisso de cooperação horizontal entre os países no tocante à educação. Trata-se, então, de um documento que define diretrizes e estratégias educacionais para os países, bem como assegura a afirmação da CPLP como um espaço de diálogo multilateral de políticas públicas para a área.
O primeiro plano foi denominado Plano Estratégico de Cooperação em Educação da CPLP, e teve a vigência de 2015 a 2020, sendo prorrogado por mais dois anos devido à pandemia de Covid-19. O documento estabeleceu 5 eixos estratégicos para a área, quais sejam: Informação e Avaliação; Acesso; Capacitação; Qualidade; Língua Portuguesa. Já o segundo é referente ao período 2022 a 2026, em que foram definidos 10 eixos estratégicos: Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (AEJA); Alimentação, Nutrição e Saúde Escolar (Anse); Avaliação das Aprendizagens e dos Sistemas Educativos; Educação em Situações de Emergência; Educação Inclusiva; Ensino Técnico Profissionalizante; Portal da Educação da CPLP; Produção de Estatísticas da Educação; Promoção da Língua Portuguesa nos Sistemas Educativos e; Rede de Escolas Amigas.
É evidente a ampliação de diretrizes educacionais pactuadas entre os países se compararmos o primeiro e o segundo plano. Nota-se que há um avanço em considerar problemas públicos da área mais contextualizados no plano em vigência, como, por exemplo, com o Eixo “Educação em Situações de Emergência”. No segundo plano também consta a preocupação com pautas relacionadas aos direitos humanos, como a “Alimentação, Nutrição e Saúde Escolar” e a “Educação Inclusiva” (Souza, 2017).
Com relação à agenda alinhada às diretrizes estabelecidas por organismos internacionais, como a Unesco, registra-se nos dois planos pautas que convergem com o movimento de internacionalização da educação, induzido por esses organismos para as políticas educacionais nacionais, como é o caso da pauta relacionada à “Avaliação e a Qualidade Educacional” (Bortot et al., 2023).
Por outro lado, nos dois planos constam a promoção da Língua Portuguesa nos processos educativos como eixo político transversal a todas as demais pautas, o que sinaliza a aproximação linguística como fio condutor da cooperação educacional entre os países. Figueiredo (2012) salienta que a língua pode revelar valores culturais e históricos de uma comunidade, e que a sua preservação representa um compromisso político com o patrimônio social dos povos, como as nações da CPLP.
Especificamente sobre a língua portuguesa, é preciso registrar sua relevância histórica e conjuntural no que tange à sua influência, sobretudo em organizações internacionais. O português foi, historicamente, a primeira língua da internacionalização das grandes navegações durante os séculos XV e XVII. A colonização resultante desse processo estabeleceu no século XXI a institucionalização do português como idioma oficial de 9 países, todos membros da CPLP.
Oliveira (2013) salienta que o português, além de ser idioma desses países, também amplia o seu alcance à medida que compõe, na condição de oficialidade, estatutos de importantes blocos regionais, como a União Europeia (UE) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul). Na mesma direção, o português se faz presente em organizações diplomáticas, como na própria CPLP, bem como na União Africana, União de Nações Sul-Americanas (Unasul), Organização dos Estados Americanos (OEA), Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), entre outras. Cada um desses espaços de integração e cooperação internacional se configuram como ambientes privilegiados de promoção da internacionalização da interculturalidade a partir da língua (Oliveira, 2013).
Em que pese a língua portuguesa disponha do estatuto de idioma oficial em vários países, blocos econômicos e organizações diplomáticas internacionais, é preciso enfatizar que ela é o idioma predominante entre os povos pertencentes a países emergentes ou subdesenvolvidos que, geograficamente, estão situados no hemisfério sul, com exceção de Portugal, Estado europeu e colonizador.
Esses países, historicamente, sempre tiveram forte dependência dos países mais ricos do mundo, e, desse modo, foram alijados de trocas e intercâmbios culturais e, principalmente, econômicos, o que ilustra uma política internacional alicerçada na garantia da manutenção da predominância dos países do hemisfério norte, que, por sua vez, alçaram o inglês como “língua universal” e base da concentração da produção científica em escala global (Oliveira, 2013). Essa hierarquia, em que o inglês está no topo, privilegia uma internacionalização hegemônica desse idioma, que é reforçada, no entender de Magalhães (2016), pela orientação dos organismos internacionais de que os países onde o inglês não é a língua oficial passem a adotá-lo na educação básica como o componente curricular obrigatório de língua estrangeira.
Se essa estratégia, por um lado permite uma interação imediata com o exterior a partir da “universalização” do inglês, por outro, “acaba por impedir o acesso dos estrangeiros à cadeia da produção cultural e de sentidos do país, tornando a relação mais superficial e exteriorizando o lucro linguístico, que será captado pelos países de língua inglesa” (Oliveira, 2013, p. 430).
Magalhães (2016) alerta que o amplo alcance territorial do inglês não tem a finalidade apenas de ser só um idioma que atenda às necessidades comunicativas de vários países, mas, sobremaneira, de exercer controle hegemônico. Para tanto, tende a segregar diferentes culturas ao imprimir uma preponderância linguística sobre os diversos outros idiomas, principalmente de países do hemisfério sul. A prevalência do inglês em detrimento dos demais idiomas representa o que Barber (2005) aponta como globalização cultural a partir da dimensão da homogeneização da cultura, que tem como referência, sobretudo, a influência da cultura norte ocidental americana. Assim, essa dimensão da globalização fomenta o consumo cultural mundial estandardizado, que cerceia os espaços e os esforços para as expressões culturais regionais e locais, principalmente dos países periféricos, que, em sua maioria, estão localizados no hemisfério sul.
Nesse contexto de culturas “padronizadas”, a dimensão da interculturalidade é extremamente precarizada, por isso a CPLP, ao eleger a pauta da promoção da língua portuguesa como principal estratégia de cooperação educacional entre os seus países, se compromete também “com princípios orientados para o respeito ao outro, às diferenças, à diversidade cultural que devem caracterizar todo o processo de ensino e aprendizagem” (Mendes, 2008, p. 61).
Em que pese a CPLP tenha se constituído recentemente como uma organização diplomática de cooperação entre os países, nota-se que há uma sinalização de direcionamento no âmbito normativo, representado pela priorização de pautas dos Planos Estratégicos de Cooperação em Educação, de se deslocar da dependência da influência da agenda da Unesco de política educacional de interculturalidade que, por sua vez, tende a assegurar a manutenção hegemônica dos organismos internacionais.
Ainda que a Unesco, na Declaração de Incheon, sinalize, de um lado, a relevância da interculturalidade como um instrumento de cooperação internacional, do outro, atribui que esse processo deve ser direcionado por agências internacionais exteriores aos países e chanceladas pela agência como referências de práticas exitosas. Esse movimento que, por sua vez, expressa uma clara tendência de homogeneização cultural linguística, preconizada, sobretudo, pelos países do hemisfério norte na promoção do inglês enquanto idioma global (Lopes, 2008).
É importante registrar que, dos nove países membros da CPLP, seis estão localizados na África, continente que concentra os mais baixos indicadores econômicos e de desenvolvimento humano do planeta (Muñoz, 2016). Essa evidência demonstra a condição de fragilidade estrutural desses países, e, como consequência, a vulnerabilidade destes quanto à influência vertical de organismos internacionais, como a Unesco, na indução de políticas públicas educacionais, principalmente pela via do financiamento condicionado.
Na medida em que a maioria dos países que compõem a CPLP estão inseridos em contextos de vulnerabilidade socioeconômica, esta pode se configurar como uma organização diplomática de cooperação para o desenvolvimento menos desigual, defendendo, assim, uma iniciativa que vise a internacionalização, via cooperação em uma ótica de diversidade em termos de princípios, políticas e práticas, tendo como base, então, o fortalecimento de laços históricos em comum, resguardado o respeito às particularidades culturais de cada país. Desse modo, corroboramos com a defesa que Muñoz (2016, p. 9) faz sobre a “solidariedade, a ausência de condicionalidades, a horizontalidade e o respeito à soberania como princípios reclamados” por uma nova forma de internacionalização contra-hegemônica, a Cooperação Sul-Sul (CSS), no qual as políticas educacionais de promoção a interculturalidade têm um papel estratégico e potencializador para essa finalidade.
5. Conclusões
O debate da pauta educacional tem figurado na agenda internacional de forma acentuada nas últimas décadas, e, consequentemente, tem sido alvo da política externa de vários Estados-Nação como um instrumento para a cooperação entre os países, o que tem fortalecido as discussões nas esferas transnacionais a partir da circulação de conceitos, reformas e inovações para a área, como é o caso da normatização de Planos Estratégicos de Cooperação para a Educação da CPLP.
A normatização de Planos Estratégicos para a Educação evidencia que a pauta educacional também é considerada necessária para os processos de cooperação internacional da CPLP. Trata-se de um movimento historicamente recente, mas que já demonstra materialidade na regulamentação de perspectivas de atuação em comum de eixos estratégicos para a promoção da multilateralidade e colaboração entre os países. Observa-se nos planos analisados a priorização de políticas de promoção da língua portuguesa como eixo transversal.
Essa evidência da promoção do português pela CPLP contrasta com a tendência da priorização do inglês preconizada na agenda educacional dos organismos internacionais. Ainda que o idioma não represente uma categoria isolada da interculturalidade, trata-se de uma dimensão fundamental para compreender o fenômeno, e uma ferramenta pedagógica e política de conhecimento e valorização das particularidades de diferentes culturas (Lopes, 2008).
Assim sendo, ao priorizar o português nos planos de cooperação educacional, a CPLP demonstra uma tendência de contraponto à reprodução do direcionamento homogeneizador da política educacional estabelecido pela Unesco e expresso na Declaração de Incheon, haja vista que, apesar da pauta em respeito à diversidade e a interculturalidade, há um reforço à culturas padronizadas e internacionalmente aferíveis. Assim, a promoção da língua portuguesa além de se configurar como uma prática de internacionalização, é um espaço para a construção de saberes que respeitem a interculturalidade a partir de políticas educacionais que têm na promoção desse idioma um instrumento contra hegemônico de formação educacional dos povos dos países lusófonos.
Nessa direção, Canclini (2004) advoga que as culturas têm estruturas incomensuráveis, e o idioma representa um desses alicerces. Por isso, o autor sublinha que a interculturalidade, no contexto da globalização, está inclinada à projeção da uniformidade e à sobreposição hierárquica de culturas. Esses movimentos exigem a desestabilização política das ordens transnacionais a partir do reconhecimento e proteção das diferenças culturais. Logo, ressalta-se, mais uma vez, a relevância da priorização do português na agenda educacional da CPLP como uma condição de tensionamento geopolítico.
Na esteira desse entendimento, registra-se o avanço da CPLP no que se refere à orientação da cooperação horizontal, em contraponto à cooperação efetiva triangular, em uma perspectiva verticalizada, que é indicada pela Unesco nos compromissos de da Declaração de Incheon (Unesco, 2016). A esse respeito, a CPLP prima “pela não hierarquia e por relações horizontais entre os participantes” (Souza, 2018, p. 18), com um desenho ousado em busca de fortalecer uma rede que tem por eixo comum as relações interculturais.
Conclui-se, portanto, que a CPLP é uma instituição internacional em expansão, que pode ser caracterizada como contra-hegemônica na defesa da lusofonia como espaço estratégico no cenário de correlações de forças na arena geopolítica mundial. Para tanto, elege a interculturalidade a partir da promoção da língua portuguesa como instrumento de cooperação educacional entre os seus países membros. A efetividade das diretrizes normativas estabelecidas pela CPLP, por sua vez, mediante a implementação dessas políticas educacionais nos seus países membros, ainda é um fenômeno a ser avaliado e explorado em investigações futuras.
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1Este estudo integra a Rede Internacional de Pesquisa “Pontes Lusófonas”, coordenada pelas seguintes Instituições: Universidade de Aveiro (PT), Universidade Federal do Paraná (BR), Universidade Federal do Pernambuco (BR), Universidade Joaquim Chissano (MZ), Universidade de Maputo (MZ), Instituto Superior de Ciências da Educação de Luanda (AO), Instituto Superior Politécnico Sol Nascente (AO) e Universidade de Cabo Verde (CV).
2Por conta da pandemia de Covid-19, esse plano teve a vigência prorrogada até 2022.
3 A declaração será citada como Incheon (Unesco, 2016), haja vista a quantidade de autores que organizaram o estudo, bem como a observância frente à literatura sobre a forma de citação do documento.
Cómo citar en APA:
Souza, K. R., Bortot, C. M. & Scaff, E. A. da S. (2023). A interculturalidade como instrumento de internacionalizaçãoda educação na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa . Revista Iberoamericana de Educación, 93(1), 145-160. https://doi.org/10.35362/rie9315993