Revista Iberoamericana de Educación (2024), vol. 96 núm. 1, pp. 97-117 - OEI

https://doi.org/10.35362/rie9616440 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653

recibido / recebido: 02/07/2024; aceptado / aceite: 10/09/2024

O impacto da paisagem linguística nos espaços universitários e urbanos no Brasil e na Bolívia

El impacto del paisaje lingüístico en espacios universitarios y urbanos de Brasil y Bolivia

The impact of the linguistic landscape on university and urban spaces in Brazil and Bolivia

Maria Célia Lima-Hernandes 1  https://orcid.org/0000-0003-2009-3606
Eliete Sampaio Farneda 1  https://orcid.org/0000-0002-5635-440
Miriam Cayetano Choque  https://orcid.org/0009-0005-3052-4360

1 Universidade de São Paulo (USP), Brasil; 2 Universidad Mayor de San Andrés (UMSA) Bolivia.

Resumo. Neste artigo, pretendemos explorar, numa abordagem da Paisagem Linguística, os espaços universitários e urbanos como pano de fundo para evidenciar descompassos na integração étnica e na incorporação de diferenças no Brasil e na Bolívia, a partir de duas cidades pulsantes em urbanidade e atratoras de talentos interessados em participar de seus ambientes acadêmicos. No Brasil, abordaremos os protestos étnicos que, em alguns espaços, são naturalizados como uma ocupação estudantil, um direito regular e geral que ressoa nos espaços universitários como uma fase simbólica, mas fugaz. Na Bolívia, demonstraremos o resultado de protestos pregressos que deixaram ainda marcas na paisagem urbana e universitária, embora hoje os protestos já estejam silenciados, sem grandes mudanças na condição das diferenças étnicas. Sendo esta uma pesquisa qualitativo-descritiva, recolhemos, in loco, por meio de fotografias e de documentos diversos, registros de como a superdiversidade de ações, atitudes e movimentos têm delineado em São Paulo resultados que já foram percorridos por La Paz, frisando, na comparação entre esses espaços, o descompasso de avanços nas grandes metrópoles desses dois países da América Latina. A análise das imagens que pululam os espaços universitários e humanos nos permitiu identificar as diferentes atitudes e estratégias utilizadas pelos grupos étnicos para reivindicar seus direitos, constituindo-se, assim, um elemento a ser incorporado na metodologia científica do campo das Paisagens Linguísticas

Palavras-chave: representações étnicas; paisagem linguística; espaço urbano-universitário; descompasso na América Latina.

Resumen. El presente artículo pretende explorar, desde un enfoque de Paisaje Lingüístico, los espacios universitarios y urbanos como telón de fondo para poner de manifiesto los desajustes en la integración étnica y la incorporación de las diferencias en Brasil y Bolivia, a partir de dos ciudades que pulsan en urbanidad y atraen talento interesado en participar en sus entornos académicos. En Brasil, se estudiarán las protestas étnicas que, en algunos espacios, se naturalizan como una ocupación estudiantil, un derecho regular y general que resuena en los espacios universitarios como una fase simbólica pero fugaz. En Bolivia, se mostrarán los resultados de protestas anteriores que aún hoy dejan huella en el paisaje urbano y universitario, a pesar de que estas se han silenciado sin que se hayan producido grandes cambios en la condición de las diferencias étnicas. Por tratarse de un estudio cualitativo-descriptivo, se han recogido, in situ, a través de fotografías y documentos diversos, registros de cómo la superdiversidad de acciones, actitudes y movimientos han perfilado en São Paulo resultados que ya han sido recorridos por La Paz, destacando, en la comparación entre estos espacios, el desajuste del progreso en las grandes metrópolis de estos dos países latinoamericanos. El análisis de las imágenes que llenan los espacios universitarios y humanos ha permitido identificar las diferentes actitudes y estrategias utilizadas por los grupos étnicos para reivindicar sus derechos, constituyendo así un elemento a incorporar en la metodología científica del campo de los Paisajes Lingüísticos.

Palabras clave: representaciones étnicas; paisaje lingüístico; espacio urbano-universitario; desajuste en América Latina.

Abstract. In this article we apply a Linguistic Landscape approach to explore university and urban spaces as the background to highlight discrepancies in ethnic integration and incorporation of differences in Brazil and Bolivia. We focus on two vibrant cities that attract talents interested in participating in their academic environments. In Brazil, we address ethnic protests that, in some spaces, are naturalized as student occupations, a regular and general right that resonates in university spaces as a symbolic but fleeting phase. In Bolivia, we highlight the outcome of past protests whose marks are still found on the urban and university landscape, although protests have been silenced with no significant changes in ethnically different conditions. We have done qualitative, descriptive research based on in loco photographs and various documents to collect records of how superdiversity of actions, attitudes, and movements has outlined results in São Paulo that have already been witnessed by La Paz. By comparing these spaces, we have placed emphasis on the discrepancy in advances in the major large cities of these two Latin American countries. The analysis of images that populate university and human spaces allowed us to identify the different attitudes and strategies used by ethnic groups to claim their rights. This is an element that should ultimately be assimilated by Linguistic Landscape scientific methodology.

Keywords: ethnic representations; linguistic landscape; urban-university space; discrepancy in Latin America.

1. Introdução

Os campi universitários são espaços privilegiados de reivindicações identitárias, mas essas reivindicações são mais ou menos visíveis a depender do momento de integração das diferenças étnicas nesses espaços. Em geral, podem-se apreender os efeitos dessa integração tanto na paisagem universitária quanto na paisagem urbana circundante. No contexto universitário brasileiro, por exemplo, todas as reivindicações étnicas saltam os muros e invadem a cidade. É o caso da Universidade de São Paulo (USP), que é considerada um dos orgulhos paulistas pelo papel histórico que teve num momento crítico da política brasileira.

A USP nasce com essa marca de luta pela democracia; no entanto, demorou-se a se engajar na luta pela igualdade de direitos sociais criando cotas de acesso aos negros e indígenas. Essa vitória no respeito às diferenças étnicas transbordou pela cidade, promovendo uma manutenção do grito reivindicatório em paisagens diversas na cidade. Nesse sentido, no contexto urbano em geral, a paisagem linguística (PL) pode ser concebida como uma ferramenta intencional para despertar o pensamento crítico. Ela também favorece a oportunidade de analisar e refletir sobre temas como a diversidade étnica e identitária, a desigualdade e o poder e faz referência às reivindicações de grupos, ao mesmo tempo que promove a busca por transformações ideológicas representadas no contexto multi-identitário local, tal como defendem Gorter e Cenoz (2024, p.311):

We discuss some Studies that have demonstrated how linguistic landscapes hold considerable potential for a range of possibilities for language learning, literacy practices, multimodality, identities, ideologies, and functions of sign and, in particular, for increased language awareness and for critical reflection on questions about social and political issues.

Na Bolívia, a Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), de La Paz, parece silenciosa quanto a lutas étnicas, mas as aparências podem enganar. Basta uma simples visada atenta pela cidade e se verificará que essa luta já esteve ativa preteritamente e deixou respostas sociais inscritas em alguns lugares. Esse descompasso entre os espaços universitários brasileiro e boliviano sugere que as dinâmicas locais presentes e pretéritas podem ser percebidas em clamores, em reivindicações sociais e em inscrições cristalizadas na PL (Melo-Pfeifer & Lima-Hernandes, 2020).

Neste artigo, percebendo a lacuna existente nos estudos da paisagem linguística de cunho reivindicatório, priorizamos os elementos que se revelam proeminentes em cada paisagem, seja por meio da arte1 como forma de ecoar reivindicações étnicas nos espaços urbanos e universitários, seja por meio de inscrições - nem sempre percebidas pela população local como resultado de reivindicações pretéritas ou como elementos identitários presentes nos espaços de convivência social urbana. Como já sinalizado, duas PL serão analisadas: São Paulo (Brasil) e La Paz (Bolívia).

São Paulo traduz-se numa megalópole que concentra grande riqueza por via de serviços, como desde sempre foi sua tendência natural na passagem de Capitania de São Paulo2 a Estado de São Paulo (Lima-Hernandes, 2009; Costa, 2014). Sua riqueza está concentrada nas mãos de alguns poucos há muito tempo. A população local menos abastada, a partir do primeiro governo de esquerda no século XX, passou a ter voz e a reivindicar o direito à sua visibilidade nas cidades por meio de manifestações. A USP passou a se preocupar com essa ascensão identitária de modo a abrir portas e a criar estratégias de aceleração do acesso à camada mais desfavorecida e mesmo à classe média urbana e rural. A despeito das demandas de gênero e de outras causas sociais de grupos minorizados, as étnicas são as mais visíveis3.

Percorrer o caminho que vai da USP (zona Oeste) a uma das regiões mais humildes (zona Leste), em que houve a criação de um segundo campus universitário, conhecido como “USP Leste”, nos permitirá evidenciar essas demandas. Para isso, munidos de smartphone, registramos grafites, que são formas artísticas de expressão ligadas à contracultura. A linguagem multimodal dos grafites costura o percurso em fachadas laterais de prédios residenciais e comerciais, em túneis, em muros ao longo do caminho. Vide imagem 1.

Imagem 1: Grafite4 no centro da cidade de São Paulo (Brasil).

Imagem 2. Grafite exposto no terminal de ônibus interdepartamental, La Paz (Bolivia).

Fonte: Arquivo das autoras.

Na imagem 1, o texto multimodal compõe-se de uma figura meio humana meio pássaro, com penas coloridas. Seus braços abertos representam o acolhimento às diferenças étnicas e de gênero na cidade de São Paulo. A representação do arco-íris simboliza a causa LGBTQIAPN+5 e se soma à mescla da etnia indígena com a preta. Essa imagem é complementada por um texto com a inscrição “Somos todos UM”, em português, sinalizando que as diferenças unem a população. Mesmo a decisão por um texto multimodal (híbrido em códigos) já reforça a diversidade que se pretende evocar com esse grande mural: a língua portuguesa age como estratégia de reforço para a multimodalidade semiótica (Gorter e Cenoz, 2024). De outra forma, nota-se a figura de Isis, associada à ideia de proteção, que é situada à frente das cores do arco-íris, símbolo da união e da diversidade da comunidade LGBTQIAPN+. Assim também, a estrela de seis pontas que combinada à inscrição “somos todos UM” que, suscita, a conexão entre as diferentes culturas. É uma representação inclusiva e integrativa da diversidade na paisagem linguística urbana.

Assim como São Paulo, La Paz se traduz como uma metrópole de riqueza cultural e histórica. Nas ruas, a herança indígena se mescla às influências modernas criando um cenário em que a superdiversidade6 se mostra. Com a riqueza econômica concentrada igualmente nas mãos de poucos, grandes desafios rondam a vida da maioria da população de La Paz, e a UMSA teve e tem um papel relevante no apoio aos movimentos sociais. Através de seus programas de apoio a esses movimentos, as comunidades indígenas ganharam maior visibilidade, e estudantes de classes menos privilegiadas tiveram acesso ao ensino superior. Os grafites, tal como o da imagem 2, representam a superdiversidade étnica e, consequentemente, a diversidade (direitos e acessos) dentro da diversidade (convivência étnica e linguística). Vide imagem 2.

Na paisagem linguística do terminal de ônibus se privilegia o uso do espanhol. Em uma leitura multimodal e semiótica, exibem-se diferentes rostos que representam a diversidade cultural e, na parte central da imagem, se encontra o rosto de uma mulher indígena adulta. Na parte inferior, há uma inscrição da palavra aymara ‘kullakita’, que faz referência a ‘irmã’ com um sentido afetivo. Na visão andina, todas as mulheres são consideradas irmãs. Esta palavra é de uso frequente entre os aymaras para aproximarem-se nas relações interpessoais.

Imagem 3. Saída de emergência do terminal.

Fonte: Arquivo das autoras.

A imagem 3 sinaliza a saída de emergência em espanhol, inglês, aymara e quechua. A presença do multilinguismo decorre do fluxo turístico nacional e internacional por transporte terrestre. Lembremo-nos de que em La Paz predomina o povo aymara, embora também haja a população quechua. Esses rasgos identitários reverberam a diversidade e apelam por direitos de integração social, daí nossa decisão de refletir sobre o tema. Inicialmente, explicaremos a realidade urbana de São Paulo e, depois, a de La Paz. Ao longo da exposição, pinçaremos elementos identitários relevantes e pertinentes em cada um desses espaços.

2. Mote temático: diversidade e reivindicação étnica de povos originários do Brasil e da Bolívia

O Brasil é uma grande colcha de fuxico7, com retalhos de tecidos provenientes de uma diversidade étnica muito grande. Sua dimensão territorial nos remete a um passado em que, de acordo com o IBGE8 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2023, mais de dois milhões de indígenas ocuparam este território. Com o tempo, devido ou à perda de território e consequente aproximação entre tribos ou à criação de território comum para a convivência (por exemplo, a Reserva do Alto Xingu), um processo de integração passou a ocorrer. Um exemplo de integração é apresentado por Sampaio (2007) com base na produção de Eduardo Galvão, grande interessado pela aculturação indígena9. Em São Paulo, sobreviveram algumas tribos indígenas, no entanto em condições muito precárias de acessos e direitos. Dado ser sua população de baixa densidade, demonstram pouca ou nenhuma autonomia em relação ao autogerenciamento, seja por regras ultraliberais de acesso, seja por barreiras impostas à sua condição marginalizada e desvalorizada em políticas públicas.

Em outro espaço brasileiro, diferentemente, um movimento dos Bóe-Bororo visa ao autogerenciamento. Os agentes e líderes da dinâmica são jovens de Córrego Grande, Perigara, Piebaga e Merúri. Todos eles falam a língua Bóe-Bororo que, segundo os estudos, liga-se ao tronco linguístico Macro-Jê, ainda que demonstre tendências para o desaparecimento10. Com o movimento de empoderamento pelos jovens, estes passam a assumir o lugar de difusores da língua materna ocupando a função de professores. Sampaio (2007), com base em Isaac (2004), expôs números que referendam essa substituição em 9 aldeias (Merúri, Garças, Sangradouro, Tadarimana/Jurigue, Praião, Pobore, Córrego Grande, Piebaga e Perigara). Tanto os indígenas mais velhos quanto os mais jovens, que se sentiam preparados para ocupar a função, argumentavam que um professor indígena traria maior benefício ao processo de ensino-aprendizagem, porque facilitaria a intercompreensão por fatores identitários que produziriam um sentimento de pertença pelos alunos e pelos professores. Com isso, vemos que a substituição de professores é uma importante estratégia para a integração social.

No caso da Bolívia, no início do período em que assumiu o estatuto de Estado independente, a população indígena monolíngue majoritária convivia com um governo oligárquico. Todas as decisões subjugaram os povos indígenas ao ponto de serem despojados de suas terras e, num processo de minorização, foram bloqueados em seus acessos e direitos, por exemplo de serem remunerados por sua força de trabalho. Na década de 1950, o sistema educacional e o sistema agrário foram reestruturados. A educação, universalizada, passou a incluir segmentos diversos da população, dentre os quais o dos indígenas, porém numa educação monolíngue e monocultural que, cada vez mais, os afastou de sua língua-cultura.

A partir da década de 1980, acentuaram-se os movimentos indígenas iniciados na década de 1930, tornando visíveis as desigualdades (econômicas, sociais, políticas) e acentuando as reivindicações, não só por terra e território, mas também por direitos fundamentais e por uma educação inspirada na realidade boliviana. Esses movimentos conseguiram algumas reparações históricas, como a devolução de algumas terras que estavam nas mãos de latifundiários, transferindo-se a titularidade aos proprietários originais, os povos indígenas. Da mesma forma, com base em lutas constantes, os povos apresentaram o projeto de uma educação plurilíngue intra e intercultural, que mais tarde se tornou lei. A despeito desses avanços, a educação continua com um modelo monolíngue e globalizante.

Se, por um lado, a Bolívia vivenciou avanços decorrentes de lutas étnicas, com benefícios na integração social dos povos originários e na manutenção das respectivas línguas maternas, ainda que com restrição de uso em alguns espaços, por outro, o Brasil, muito mais miscigenado, viu sua população parda aumentar em número, ampliando a percepção da língua portuguesa como língua materna, e muitas tribos indígenas foram se apartando e se isolando desse contato. Assim, embora, em ambos os espaços, houvesse reivindicação de direitos pelos indígenas, não só os momentos foram diferentes mas também seus resultados. No Brasil, essa luta tem sido mais recente, embora mais silenciosa entre os povos originários indígenas do que entre os descendentes de africanos.

A lente da superdiversidade nos move, assim, a delinear universos muito próximos geograficamente, mas descompassados em resultados de integração. E como todo ato comunicativo dirigido a um público é um ato político que integra a PL local, são atos políticos os grafites e as inscrições que nomeiam e potencialmente fazem pensar na demanda atual e pregressa que veiculam.

3. Sociedade brasileira mesclada e híbrida

Muitos bairros de São Paulo concentram migrantes europeus diversos (judeus, gregos, espanhóis, portugueses, franceses, alemães, dentre outros), asiáticos11 (indianos, coreanos, chineses, japoneses e árabes) e africanos (guineenses, angolanos, moçambicanos, principalmente)12, desenhando uma paisagem com representação global do mundo. Algumas dessas comunidades vivem lado a lado, sem, contudo, integrarem-se em conversas, tampouco em práticas socioculturais.

A USP, sendo a maior universidade da América Latina e uma instituição de renome no Brasil, recebe um fluxo considerável de filhos de imigrantes de todas as partes, assim como indígenas, ainda que em menor número, e negros, integrando-os socialmente. Um ambiente como esse em que fulguram ideias de democracia e liberdade e em que os jovens ganham voz para suas demandas é propício para que manifestações mais incisivas sejam notadas. As causas são sempre coletivas e as demandas são exibidas em ambientes públicos, arrastando outros grupos simpatizantes para essas lutas.

Mais recentemente13, esses grupos passaram a se inserir como vozes dissonantes ao status quo, ou seja, começaram a se perguntar sobre as próprias representações étnicas na escala de poder universitária. As estratégias adotadas pela Universidade como resposta a essa demanda foram principalmente a criação das cotas de reparação histórica (Franco & Afonso, 2024) e, simultaneamente, um intenso trabalho de alfabetização sobre a história étnica. Esses dois movimentos fizeram com que os grupos negros se destacassem em relação aos grupos indígenas. Suas demandas reverberam-se por alguns recursos multimodais, tais como exibido na imagem 4 a seguir.

Imagem 4. Murais universitários.

Fonte: Arquivo das autoras.

No grupo de imagens 4, exemplos de demandas que emergiram na USP como parte da agenda estudantil revelam-se. Ambas as imagens referem-se a demandas sociais pela igualdade de direitos. Na primeira imagem, há a quebra da neutralidade da cor a partir da colocação de faixa de cor preta com a inscrição “PRETA”, como um recorte significativo que atravessa essa neutralidade social e reivindica seu lugar de direito na universidade. Já, na segunda imagem há um discurso multimodal de afirmação dos direitos da comunidade LGBTQI+ e o apelo da Faculdade de Letras contra a homofobia, com representação da etnia preta. Embora sejam monolíngues (português), as imagens revelam reivindicações voltadas às mudanças de perspectivas relacionadas às etnias e às questões de gênero.

3.1 A cor da paisagem na USP

Há tendências que guiam a vida dos lugares e das pessoas. As cidades se expandem em direção às áreas rurais, novos bairros surgem, o metrô liga regiões antes isoladas, as dinâmicas se integram e as pessoas passam a ocupar lugares que, antes, nem lhes ocorria ocupar. Assim ocorreu na cidade de São Paulo, cuja paisagem já estava em mudança quando os imigrantes europeus e japoneses passaram a integrá-la. Seus filhos, com o tempo, oxigenaram as salas de aula da USP com novas formas de ver o mundo (Lima-Hernandes, 2009; Oliveira e Lima-Hernandes, 2010), assim como alguns deles e também os filhos de “caipiras”, anos depois, tornaram-se os novos catedráticos (Texeira e Silva et al., 2012; Lima-Hernandes & Carvalhinhos, 2020). A diversidade paulista se complexificou e se tornou superdiversa ao ser integrada à diversidade preexistente.

A cidade inchou, expandiu-se sobre a área rural e tornou-se superpopulosa. A luta por causas socialmente soterradas, ou o apelo de grupos, por vezes invisibilizados, migrou da USP para as paredes de grandes prédios, muros das casas, murais das escolas, das universidades, das ruas e dos becos em diferentes formas de mensagens. Variados apelos foram, no passado, criminalizados por poluírem visualmente, ou sujarem a cidade. Depois, houve uma reanálise dessas imagens em “expressão artística”, e elas passaram a ser respeitadas como grafitagem, sinônimo de arte urbana. Vide imagem 5.

Imagem 5: Grafite em prédio da cidade de São, Paulo Brasil)

Fonte: Arquivo das Autoras

Imagem 6. Apelo por professores pretos e indígenas, USP/SP

Fonte: Jornal da USP, 2023

As imagens multimodais encontradas pela cidade de São Paulo gritam a diversidade. Na imagem 5, temos a exposição da figura de um negro olhando a cidade de um ângulo próprio, buscando enxergar algo ao longe e,ao mesmo tempo, vemos acima de seus olhos a palavra “veracidade”, que nos induz ao sentido de “verdade”, ou a uma forma mais atenta de “ver a cidade”. Há na parte inferior da imagem a frase “pode haver igualdade”, o que nos remete à ideia de esperança na questão da igualdade social, na cidade. Notamos que a palavra “igual” está em destaque, assim como “veracidade”. Dessa forma, podemos inferir que a imagem reivindica um olhar mais atento para a cidade, para a percepção das diferenças, para uma maneira de ver a cidade de forma igual numa língua que os transeuntes podem entender (Gorter e Cenoz, 2024).

Ainda que a paisagem linguística tenha maior enfoque na urbes, é compulsório notar que o estudo da paisagem viva e dos grafites engendra aspectos reivindicatórios e contestadores que nos permitem reconhecer e analisar a gama de problemas sociais. A imagem 614 exibe a reivindicação de discentes pela inclusão de docentes pretos e indígenas.

Com tempo surpreendente, a USP tem respondido a algumas reivindicações. Em 2024, três mulheres indígenas (Arissana Pataxó, Francy Baniwa e Sandra Benites) passaram a liderar a Cátedra de Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência, do Instituto de Estudos Avançados, da USP.

Antes elitizada, até mesmo com aulas ministradas nas línguas nativas dos professores estrangeiros, a USP reinventou-se para alargar o escopo de seus objetivos. Depois, passou a alterar as formas de ingresso para acolher alunos provenientes de regiões periféricas da cidade e, mais recentemente ainda, além da questão social, passou a planejar a reserva de vagas para pretos, pardos e indígenas com resultados interessantes em sua comunidade.

Tabela 1. Grupos étnicos representados na USP.

Graduando

Pós-graduando

Pós-doutorando

Professor

Servidor

Total

Amarelo

2.986

611

51

192

349

4.189

Branco

38.549

13.960

1.148

4.699

9.946

68.302

Indígena

66

78

3

2

5

154

Pardo

10.461

2.592

124

93

1.505

14.775

Preto

3.124

936

31

28

699

4.788

Não informado

4.934

19.061

2.664

137

380

27.176

Total

60.120

37.238

4.021

5.151

12.854

119.384

Fonte: Dias (2023).

Destacamos na tabela as etnias sobre as quais tratamos neste texto. Comparadas entre si, notamos que os pardos estão mais fortemente inseridos na universidade, inclusive com um número significativo de professores que se autoidentificam assim, ainda que estejam muito mais densamente representados na categoria de graduandos. Os pretos seguem essa mesma ordem de distribuição étnica, o que não acontece com os indígenas, que estão concentrados numericamente nas categorias de alunos, e com baixa representação nas categorias de pesquisador, de professor e de servidor.

Os números exibidos na tabela incluem, no entanto, um alto índice de pessoas que não informam sua vinculação étnica. Mesmo assim, a USP é uma universidade “branca”, daí a reivindicação constante que presenciamos em seus espaços. Guardadas as devidas proporções, podemos dizer que o que se vê hoje na USP é um retrato em miniatura do que ocorre na cidade de São Paulo:

Tabela 2. Representação étnica da cidade de São Paulo.

cor ou raça

população

%

Total

203.080.756

100

Branca

88.252.121

43,5

Preta

20.656.458

10,2

Amarela

850.130

0,4

Parda

92.083.286

45,3

Indígena

1.227.642

0,6

Sem resposta

11.119

0,0

Fonte: Censo demográfico 2022: população por cor ou raça - resultados do universo - (IBGE, 2023). [apud Informes Urbanos n.65- Junho 2024].

Obviamente, que a autoidentificação pode ser um fator explicativo da flutuação nas respostas. De todo modo, como pudemos evidenciar, as etnias preta e indígena são as que pedem direitos iguais aos demais. Todos os grupos, contudo, consideram ser a língua portuguesa do Brasil sua língua materna.

4. Pluralismo linguístico e cultural na Bolívia

A Bolívia é um Estado plurilíngue e plurinacional, em que coexistem 36 línguas, declaradas constitucionalmente como idiomas oficiais segundo o Artigo 5 da Constituição Política do Estado. Destas, 35 são originárias e estão distribuídas em diversos departamentos da Bolívia, sendo a maioria encontrada em terras baixas e uma minoria em terras altas. Segundo o Censo Populacional e habitacional de 2012 do Instituto Nacional de Estatística (INE) 15, de um total de 10.57 milhões de habitantes, tem-se uma distribuição difusa da população indígena (vide tabela 3).

Três línguas nativas apresentam maior densidade demográfica: o quechua, o aymara e o guarani. As duas primeiras são faladas principalmente nas terras altas e a terceira nas terras baixas, contudo, a migração influenciou a diversificação da população rural em direção às cidades metropolitanas. Com ele, principalmente as línguas quechua e aymara expandiram-se para as cidades da zona andina e do leste da Bolívia. Em particular, a língua quechua é falada em todos os nove departamentos da Bolívia. As demais línguas são minorias que apresentam diferentes graus de vitalidade, segundo os parâmetros da ONU. Das 35 línguas originais, duas delas estão extintas, Guarasug’we e Puquina (Cuiza, 2016).

Tabela 3. População de idiomas oficiais do Estado Plurinacional da Bolívia - Censo 2012

Idioma

Falantes

Idioma

Falantes

Araona

24

Mojeño-Ignaciano

1.051

aymara

836.570

Mojeño-Trinitario

2.585

Baure

21

Moré

8

Bésiro

2.401

Mosetén

757

Canichana

7

Movima

502

Castellano

5.424.685

Pacawara

6

Cavineño

733

Puquina

76

Cayubaba

12

quechua

1.339.919

Chacobo

806

Sirionó

160

Chimán

8.904

Tacana

812

Ese ejja

676

Tapiete

48

Guaraní

39.307

Uruchipaya

1.383

Guarayu

6.980

Weenhayek

3.482

Itonoma

29

Yaminawa

127

Leco

53

Yuki

123

Machajuyai-kallawaya

1

Yuracaré

1.34516

Machineri

9

Zamuco

1.177

Maropa

116

Fonte: Instituto Nacional de Estadística, 2012

As línguas nativas coexistem com o espanhol, que possui um número significativo de falantes. A maioria da população boliviana é bilíngue, quechua-castelhano ou aymara-castelhano. Em alguns casos, trilíngue, quechua, aymara e espanhol. Num contexto plurilíngue e pluricultural, como o da Bolívia, coexistem as línguas indígenas originais e o espanhol. Na situação de contato linguístico, em que a maioria da sociedade boliviana é bilíngue, o espanhol prevalece pela condição comunicativa mais ampla entre os diferentes grupos, o que propicia melhores condições de vida evitando a discriminação. É também a língua do sistema educacional e das instituições governamentais.

A situação linguística descrita anteriormente gerou uma diglossia linguística e cultural, um dos fatores de expansão do espanhol e deslocamento do uso das línguas indígenas para contextos mais restritos. Tal situação dá origem a uma diglossia nas populações bilíngues ou trilíngues, pois reflete o estatuto que a língua espanhola tem devido ao seu prestígio na sociedade plurilíngue e pluricultural da Bolívia (Laime, 2011).

Algumas ações nas políticas linguísticas, no entanto, permitem a revitalização, desenvolvimento e fortalecimento das línguas nativas, tal como a do Estado Plurinacional da Bolívia, prevista no inciso II, artigo 5º da Constituição Política do Estado (CPE), referindo-se ao uso das línguas nativas nas Instituições do Estado. De acordo com o artigo 235, parágrafo 7º do CPE da Bolívia, os funcionários públicos devem “falar pelo menos duas línguas oficiais do país”, ou seja, o espanhol e uma das línguas nativas.

Similarmente, na Lei 070 promulgada, em dezembro/2010, no artigo 88, parágrafo 1º da Lei de Educação nº 070 Avelino Siñani e Elizardo Pérez é criado o Instituto Plurinacional para o Estudo de Línguas e Culturas (Bolívia, 2010), como entidade descentralizada, uma agência do Ministério da Educação para desenvolver pesquisas linguísticas e culturais dos povos indígenas originários. Além disso, de acordo com a CPE, artigo 30, parágrafo II, no 12, estipula-se que as nações e povos indígenas originários campesinos têm direito a uma educação intracultural, intercultural e plurilíngue em todo o sistema educativo.

Posteriormente, na Lei 070 Avelino Siñani e Elizardo Pérez, no artigo 1º, parágrafo 6º, fica estabelecido que “A educação é intracultural, intercultural e plurilíngue em todo o sistema educacional”. Além disso, no artigo 7º, afirma-se que “A educação deve começar na língua materna, sendo a sua utilização uma necessidade pedagógica em todos os aspectos da sua formação […]”. Outro aspecto a considerar é a identidade dos povos indígenas originários do Estado Plurinacional da Bolívia, Bolívia, o que pode ser visto na tabela 4:

Tabela 4. Identidade indígena censos das Terras Altas 2001-2012

Povo indígena

Censo 2001

Censo 2012

quechua

1.555.641

1.281.116

aymara

1.277.881

1.191.352

Fonte: INE, 2012

De acordo com a tabela comparativa dos dois censos (tabela 5), 2001 e 2012, as duas populações indígenas relevantes das Terras Altas, quechua e aymara, apresentaram uma diminuição.

Tabela 5. Identidade indígena Terras Baixas - censos 2001- 2012

Povo Indígena

Censo 2001

Censo 2012

Chiquitano

112.218

87.885

Guaraní

81.011

58.990

mojeño

46.336

31.078

Fonte: INE, 2012

Na mesma direção, três dos povos indígenas das Terras Baixas diminuíram em população de acordo com o censo de 2012. A diminuição da população indígena e do número de falantes das línguas originárias tanto das Terras Altas como das Terras Baixas é impressionante. Segundo Tamburini (2013), a migração da população rural para diferentes cidades dos departamentos e/ou de outros países, em alguns casos, reproduz suas tradições, costumes, etc. Os migrantes também carregam consigo a sua língua, mas, ao mesmo tempo, adotam facilmente os modos de viver e de conviver com a população local e com as tradições diferentes.

O CPE, as leis e regulamentos do Estado Plurinacional da Bolívia favorecem o uso das línguas e a identidade das culturas indígenas que coexistem na Bolívia. Na CPE, os direitos dos povos indígenas camponeses originários são regulamentados, especificamente, no artigo 30, inciso II, item 3, que dispõe: “A que la identidad cultural de cada uno de sus miembros, si así lo desea, se inscriba junto a la ciudadanía boliviana en su cédula de identidad, pasaporte u otros documentos de identificación con validez legal.” (CPE, 2010, p. 13). Porém, os falantes das línguas nativas não se autoidentificam com sua própria identidade cultural originária, em seus documentos pessoais. A mesma situação ocorre no censo populacional e habitacional: alguns habitantes, especificamente jovens, sendo falantes das línguas nativas e sendo provenientes de uma das culturas nativas, identificam-se como falantes de espanhol.

A despeito desse “abandono” linguístico, notamos a presença do incentivo para que os costumes e elementos culturais sejam respeitados. No mesmo parágrafo número 9 do CPE, está estipulado “Que os seus saberes e saberes tradicionais, a sua medicina tradicional, as suas línguas, os seus rituais e os seus símbolos e vestimentas sejam valorizados, respeitados e promovidos”. Consubstancia as Políticas do Estado Plurinacional, através do CP, leis e regulamentos, privilegiando as línguas culturais dos povos indígenas originários, pouco ou nada mais que frutos da reivindicação, revitalização e fortalecimento das línguas nativas ocorridos no passado e muito próximo ao que vemos hoje na cidade de São Paulo, conforme já apresentamos. Como destaca Layme (2011, p.126):

El tema de identidad parece ser una fuerza que contrarresta procesos de globalización, sean éstos culturales o linguísticos. A medida que unas culturas y lenguas crecen a escala mundial otras corren el riesgo de desaparecer donde las lenguas unas se consideran globales, internacionales o mayoritarias, otras quedan siendo locales, regionales o minoritarias.

A população adulta ou de terceira idade é aquela que possui uma forte identidade aymara, quechua, e de outras línguas-culturas originárias, posto que para eles, usar a língua nativa faz parte de seu cotidiano e de sua vivência histórica. Apesar da migração do campo para a cidade, temporária ou permanentemente, conhecimentos, tradições e práticas culturais integram o cotidiano de modo a coexistirem com os novos hábitos. A nova Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia reconhece as línguas nativas como oficiais, bem como sua identidade e conhecimento. As autoridades nativas nas representações oficiais e em diversos eventos oficiais vestem suas roupas nativas.

4.1 A paisagem linguística urbana da cidade de La Paz

Em nosso trabalho de campo, entre abril e maio de 2024, coletamos a PL por meio de fotos, visitando diferentes espaços, como por exemplo os órgãos estatais, o comércio, o transporte em um ambiente urbano central. Neste ambiente urbano, há maior concentração da população, particularmente por situações de trabalho, de estudo, ou outras razões e as imagens refletem o uso das línguas e dos símbolos que fazem parte ou identificam o espaço ocupado de acordo com a relevância.

Nesse sentido, partimos da análise e interpretação das imagens dos ministérios do Estado Plurinacional da Bolívia. Um dos Ministérios que está diretamente relacionado com as línguas e culturas nativas é o Ministério da Educação, que é a entidade responsável por conceber, fortalecer e avaliar políticas e estratégias educativas descolonizadoras, intraculturais, interculturais e plurilíngues. Um dos braços operacionais e técnicos desse Ministério é a Escola Plurinacional de Gestão Pública (EGPP), que é uma das entidades estatais que forma funcionários públicos em línguas nativas.

Imagem 7. Ministério de Educação.

Fonte: Arquivo das autoras.

A imagem 7, por um lado mostra o nome do Ministério em espanhol, por outro a placa frontal do EGPP tem a sua descrição em espanhol, o que reflete que a população de La Paz privilegia o uso do espanhol na escrita e na comunicação oral deslocando as línguas nativas para outros contextos de uso. Outro braço técnico dos Ministérios é o Instituto Plurinacional para o Estudo da Língua e da Cultura (IPELC) e os Institutos de cada uma das línguas e nações dos povos indígenas originais, cuja função é treinar funcionários públicos nas línguas originais e, ao mesmo tempo, como o EGPP, certificar seu conhecimento das línguas.

Imagem 8. Uso da língua na página web do IPELC

Fonte: Arquivo das autoras

Seria de se esperar que os sites do IPELC e de cada um dos institutos estivessem no idioma dos povos indígenas originais, porém, de acordo com a imagem 8, nos sites e no Facebook, as informações sobre as atividades realizadas ou a serem realizadas pelos institutos ou pelo IPELC estão em espanhol.

As instituições utilizam o espanhol para divulgar as atividades ao público em geral, uma vez que a população boliviana é majoritariamente espanhola e monolíngue. A informação de algumas publicações em relação às línguas e culturas nativas circulam na língua nativa, por serem material didático no ensino primário e secundário devido ao seu caráter intracultural e intercultural. As informações que tratam de temas comuns aos povos indígenas estão em espanhol. A Imagem 9 mostra publicidades de cursos de certificação.

Imagem 9. Publicidade de cursos e certificação

Fonte: https://www.ipelc.gob.bo/

Trata-se de cursos de quechua e aymara oferecidos à população e inclui os requisitos para a inscrição. Todas as informações estão em espanhol para que a população não falante das línguas nativas possa ter acesso a esses cursos, principalmente os servidores públicos, já que a certificação é uma exigência para quem trabalha em entidades estatais. Da mesma forma, fica evidente que a certificação em relação ao nível de conhecimento da língua nativa é em espanhol. Isso significa que nestas entidades estatais o espanhol tem maior funcionalidade em relação às línguas nativas. O uso privilegiado do espanhol deve-se à continuação de uma política linguística tradicional e à continuação do monolinguismo nos textos escritos.

O Ministério do Desenvolvimento e Planejamento é o único que tem uma placa com o nome do ministério em três idiomas nativos aymara, quechua e guarani (imagem 10), e a embaixada brasileira se destaca com seu nome em três idiomas - português, espanhol e o idioma nativo quechua (imagem 10).

Imagem 10: Ministério de Desenvolvimento e Planejamento

Fonte: Arquivo das autoras.

Imagem 11. Embaixada do Brasil em La Paz

Fonte: Arquivo das autoras.

A localização das inscrições varia. Na frente do pilar direito das instalações, está o nome da embaixada em português e, no lado direito desse pilar, está na língua quechua; a designação espanhola está no outro pilar frontal. É interessante que o Brasil tenha considerado a importância de colocar o nome da instituição em quechua, já que La Paz tem a língua aymara prevalecente sobre o quechua (mais de 1.000.000 de habitantes) No entanto, a população quechua está presente em todos os departamentos da Bolívia.

O teleférico, como o transporte público mais popular entre a população, contém 10 linhas, cujas estações são nomeadas em aymara, assim como a palavra “bilheteria”. Isso se deve, por um lado, ao fato de que a população da cidade de La Paz e El Alto fala aymara; por outro lado, a construção foi um dos principais projetos do governo de Evo Morales, cujas políticas favoreceram as línguas e culturas nativas.

Imagem 12. Meio de transporte teleférico

Fonte: Arquivo das autoras.

Na imagem 12, notamos, que nos espaços da estação central ‘taypi uta’ da Linha Vermelha, observam-se palavras em aymara e a palavra Qinaya, que é o nome de uma confeitaria, que denota ‘névoa’.

O panorama linguístico do centro da cidade de La Paz mostra um comportamento diferente das normas e leis em relação às línguas e culturas nativas; as instituições relevantes para o desenvolvimento das reivindicações dos povos indígenas nativos em relação à língua e à cultura não priorizam o mandato constitucional. De todos os ministérios, apenas um tem o nome em uma placa em três idiomas indígenas, mas os hospitais, o transporte urbano e as estações de teleférico usam o aymara. Há evidências da preferência por textos em inglês em pôsteres ou nomes de empresas locais, o que, de alguma forma, influencia a conscientização da população sobre a importância do inglês e provoca a busca pelo aprendizado informal ou ocasional desse idioma.

4.2 A paisagem do cenário linguístico na Universidad Mayor de San Andrés

A UMSA é uma das instituições acadêmicas de maior prestígio na Bolívia, que recebe alunos de diferentes departamentos, bem como das províncias de La Paz, razão pela qual os alunos vêm de diversas culturas, sendo bilíngues ou trilíngues em alguns casos (principalmente falantes de aymara e/ou quechua, bem como de espanhol). Alguns professores e funcionários administrativos também são bilíngues, aymara ou quechua e espanhol. Essa universidade tem várias faculdades, que são descentralizadas e, portanto, localizadas em diferentes áreas da cidade de La Paz. Apenas algumas delas estão localizadas no bloco da UMSA, além dos escritórios administrativos.

De acordo com o panorama linguístico, não foram encontrados grafites, pôsteres ou nomes de escritórios em idiomas nativos no bloco da frente da universidade. Porém no segundo pátio da universidade há um quiosque e, nesse espaço, o curso de Agronomia vende os produtos agrícolas que produz, que é chamado de “Chiqui Market”. Vide imagem 13.

Imagem 13. Universidad Mayor de San Andrés

Imagem 14. Cartelas na Carreira de Linguística e Idiomas

Fonte: Arquivo das autoras.

Na imagem 13, a frase é composta de duas palavras que correspondem a dois idiomas - chiqui, um adjetivo aymara que denota pequeno e, market, um nome em inglês que se refere a um mercado -. Na janela desse quiosque, há um cartaz com um logotipo que reflete o texto “UMSA food”, a palavra food está em inglês.

Quanto às ofertas acadêmicas da UMSA, o Departamento de Linguística e Idiomas, que faz parte da Faculdade de Ciências Humanas e Educacionais oferece diplomas em inglês, francês, espanhol, aymara e quechua, de modo que cada área tenha professores especializados. A UMSA é uma das primeiras universidades do sistema a oferecer cursos em dois idiomas nativos com uma população maior de falantes do que em outros idiomas.

O panorama linguístico dentro da Faculdade e do curso de graduação é semelhante ao do bloco. Nos espaços da graduação, não há cartazes, comunicados, ou convites em idiomas nativos, nem em outros idiomas que não seja o espanhol. No entanto, há um pequeno cartaz em uma das vitrines de informações, mostrando a chakana, símbolo do mundo andino, e no meio a palavra taypi da língua aymara, que denota o centro do núcleo.

Esse cartaz é uma propaganda para um dos candidatos à reitoria da faculdade, que usou a chakana como símbolo para se identificar com a população universitária de diferentes culturas. Há também uma imagem em que o texto está em inglês.

Em relação à paisagem linguística nas salas de aula de ensino de idiomas, havia quadros e flipcharts com textos escritos em dois idiomas. Por um lado, na sala de aula de aymara, há flipcharts nas paredes, com textos volumosos em aymara e um quadro de Tupac Katari com sua biografia escrita em aymara. Vide imagens 15. Por outro lado, na sala de aula de francês, há quadros com imagens de importantes pontos turísticos da França e seu texto correspondente em francês.

Imagem 15. Sala de Aula de ensino do idioma aymara

Fonte: Arquivo das autoras.

O panorama linguístico da UMSA é uma fonte de informações sobre a situação do uso do idioma. Apesar de parte da população ser de origem e/ou falante de aymara e quechua, ou trilíngue, o uso de idiomas nativos é completamente invisível. Da mesma forma, o uso oral de idiomas é geralmente restrito a contextos familiares ou comunitários devido à falta de conscientização dos alunos sobre a importância dos idiomas e culturas nativos da Bolívia. Em alguns casos, são eles que se tornam invisíveis, negando seu idioma e sua cultura, demonstrando preferência pelo idioma inglês, com a grande falácia de que isso melhoraria suas condições de vida.

5. À guisa de Conclusão

Ao longo deste artigo, fomos apresentando evidências que nos conduziram à reflexão sobre a relevância das dinâmicas reivindicatórias internas e as formas como elas se exprimem em dado espaço geográfico. Ao mesmo tempo, evidenciamos a importância de algumas delas para a construção da paisagem linguística local, para além de imagens e fotografias. Fomos trazendo à percepção dos leitores a ideia de que há intenções reivindicatórias amortecidas pelo tempo, como vimos no caso da Bolívia, e em plena ebulição, como no caso do Brasil. Essas demandas nascem em ambientes de grande efervescência crítica entre jovens, como é o caso das duas universidades aqui exemplificadas. Nesse sentido, embora sejam elementos fundamentais para compreendermos as dinâmicas locais, ficou claro que considerar o peso do fator tempo é de primeira ordem para um estudo alinhado com as realidades locais.

O fator tempo, no estudo que desenvolvemos, permitiu visitar no momento dêitico de escrita deste texto duas paisagens diferentes: a que reivindicou, obteve algumas vitórias e manteve traços socioculturais originais, como as línguas étnicas (Bolívia) e a que vive uma ebulição social intensa, com mesclas de traços socioculturais evidentes, mas com grandes prejuízos em termos de reivindicação linguística (Brasil). Dois espaços latinoamericanos tão díspares nos fizeram mobilizar alguns dados de pesquisa que resguardavam também suas diferenças locais. Enquanto, no delineamento boliviano, lançamos mão de dados estatísticos que corroboram sua diversidade linguística atestada em vitórias reivindicatórias, no contexto brasileiro, exibimos dados que permitem construir a percepção de uma integração étnica mais profunda pelo surgimento de uma categoria híbrida, os pardos. Nesse sentido, dados estatísticos corroboram o grande descompasso temporal e também integrativo dessas duas localidades.

Em alguns lugares como na cidade de São Paulo, o afastamento dos direitos fez com que algumas etnias (negros e indígenas) sobrepusessem suas demandas às de outros grupos, tornando a cidade um terreno neutro para as camadas híbridas da população, como é caso dos pardos, com consequências em sua maior integração social via universidade. Em La Paz, uma diversidade maior se revela, inclusive pela manutenção de línguas com estatuto de oficialidade e, numa fase mais adiante de avanços, já exibir impressas em órgãos públicos e fachadas comerciais essas representações identitárias em línguas e símbolos multilíngues. As Universidades locais são um campo em que se pode verificar a integração desses grupos, num simples exercício de verificação da densidade populacional universitária, tal como fizemos com os dados da USP e o número de professores, pesquisadores, alunos e servidores das etnias consideradas excluídas e menos favorecidas.

No meio universitário globalmente, vemos o inglês funcionando como língua prioritária, o que parece guiar o cenário linguístico de La Paz. No entanto, esse comportamento das pessoas na UMSA nos revela uma realidade social que, a despeito dos avanços alcançados, pode ser uma ameaça aos idiomas e às culturas nativas. A despeito de haver a tendência de globalização e de modernização em La Paz e na UMSA, o uso oral do aymara e do quechua tem sobrevivido e se revelado como o mais eficiente meio de alcançar novos conhecendo o saber-fazer, ou seja, as línguas étnicas continuam resistindo em uso, diferentemente do que ocorre na USP, em que a língua portuguesa é majoritariamente a língua veiculada.

Do que mostramos neste artigo, pudemos extrair a ideia de que lidar com o espaço universitário e com as reivindicações sob formas diversas ecoadas no campus e também em seu entorno urbano enriquece a compreensão do que é paisagem linguística e sociolinguística em espaços poscoloniais. Nesse contexto, não temos mais a figura externa como agente de preconceito e exclusão, mas as camadas étnicas que, em instâncias da vida pessoal, ainda zelam por comportamentos intraétnicos e resistem na luta para a ascensão social.

Cabe ressaltar, assim, que grafites e inscrições em fachadas, muros e paredes de prédios podem ser elementos adicionais que nos permitem compreender as lutas sociais que remanescem nas sociedades multiculturais, em especial, como as que apresentamos aqui, as poscoloniais.

Referências

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Sampaio, O. S. (2007). Eduardo Galvão – índios e caboclos. Annablume.

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    1 Admitimos que o conceito de arte é variável de lugar para lugar, de autor para autor e de época para época. Na percepção brasileira, toda forma de expressão criativa que tenha a finalidade de comunicar mensagens codificadas em imagens ou textos escritos em muros, painéis ou fachadas são alinhados com o conceito de arte urbana. Num passado não muito distante, a administração urbana reprimia essa forma de expressão e, em razão disso, eram rotuladas como pichação. Com o passar do tempo e a compreensão de que havia um poder reivindicatório implícito nessas obras, houve uma reanálise do conceito e do rótulo utilizado. Abandonou-se o termo pichação e passou-se a adotar grafite. De rabiscos associados à marginalidade, surge o conceito de espaço reivindicatório de caráter artístico.

    2 A Capitania de São Paulo foi uma das capitanias coloniais do Brasil, criada em decorrência da separação de Minas Gerais, em 1720. (Costa, 2014).

    3 Cabe ressaltar que a língua oficializada e imposta a todos é a língua portuguesa do Brasil, mas, para quem convive com essas camadas populacionais, é fácil saber que as construções, os tons e o léxico denotam as marcas étnicas reivindicatórias. Isso quer dizer que as línguas étnicas, na USP, são invisibilizadas como voz reivindicatória, mas não em La Paz. Esse é mais um descompasso entre as paisagens que focalizamos.

    4 Enquanto pintura, constituída a partir de diferentes formas e cores, o grafite tem valor estético e, por isso, é considerado como uma expressão artística contemporânea, sendo bem aceito na sociedade. Fonte: e-diariooficial.com

    5 Para entender a mudança da sigla LGBT para LGBTQIAPN+, sugerimos consultar O Globo (2024).

    6 Consideramos os estudos de Vertovec (2007) que descrevem superdiversidade como a diversificação da diversidade.

    7 Fuxico é o nome dado a conversas, especialmente entre mulheres no passado. Enquanto conversavam sobre a vida alheia, costuravam retalhos de tecido. Posteriormente, Fuxico passou a nomear as peças artesanais feitas de retalhos de tecido. Costurando-se um fuxico no outro, tem-se uma colcha ou uma toalha de mesa que enfeita o ambiente. No passado, era feito de sobras de tecido por quem não podia adquirir uma sem retalhos. Hoje, é valorizado como artesanato.

    8 IBGE | Brasil: 500 anos de povoamento | território brasileiro e povoamento | história indígena | os números da população indígena. https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/historia-indigena/os-numeros-da-populacao-indigena.html.

    9 De acordo com Sampaio (2007, p. 215), o conceito de aculturação remete a “um processo sociocultural no qual se registram mudanças ou transformações em sociedades e culturas, que se encontram e passam a conviver, interagindo.”

    10 “No final da década de 70, o ensino da língua materna já era uma prática na escola da Aldeia Indígena Merúri. Nas outras áreas indígenas, somente com a chegada das Irmãs da CICAF, professoras Maria Ossemer (na Aldeia Córrego Grande, em 1980) e Valdina Tambosi (na Aldeia Piebaga, 1992), o ensino da língua materna foi ministrado nesses locais.” (Sampaio, 2007, citando Isaac, 2004, p. 49-50).

    11 Países da Ásia - https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/paises-da-asia.htm

    12 Para uma visão mais aprofundada dessas correntes migratórias, sugerimos a consulta ao Museu da imigração de São Paulo: https://www.saopaulo.sp.gov.br/conhecasp/nossa-gente/migrantes/

    13 A USP implantou o sistema de cotas a partir de 2008 e, em 2024, já contamos com um percentual de 50% das vagas de ingresso reservadas para as cotas: “A política de ações afirmativas da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) atende pessoas que cursaram o ensino médio em escolas públicas. Mais da metade (54,1%) dos estudantes que entraram para a Universidade de São Paulo (USP) em 2023 vieram de escolas públicas. Pretos, pardos e indígenas representaram neste ano 27,2% dos ingressantes.” (https://go.oei.int/zoap2gxy)

    14 Publicada por Queiroz (2023), no Jornal da USP. 2023.

    15 Os dados preliminares do último censo realizado na atual gestão ainda não estão disponíveis.

    16 Os dados preliminares do último censo realizado nesta gestão ainda não estão disponíveis.

Cómo citar en APA:

Lima-Hernandes, M. C., Sampaio Farneda, E., & Cayetano Choque, M. (2024). O impacto da paisagem linguística nos espaços universitáriose urbanos no Brasil e na Bolívia. Revista Iberoamericana de Educación, 96(1), 97-117. https://doi.org/10.35362/rie9616440