Revista Iberoamericana de Educación (2025), vol. 98 núm. 1, pp. 87-102 - OEI
https://doi.org/10.35362/rie9816758 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653
recibido / recebido: 16/02/2025; aceptado / aceite: 05/03/2025
Celulares em sala de aula: entre restrição e autonomia e a escola como ágora digital
El móvil en las aulas: entre la restricción y la autonomía y la escuela como ágora digital
Cell phones in the classroom: between restriction and autonomy and the school as a digital agora
Luciana Velloso 1 https://orcid.org/0000-0002-6832-4189
Leila Santos de Santana 1 https://orcid.org/0000-0003-0646-29381
1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil
Resumo. Este texto propõe um ensaio teórico-reflexivo de inspiração cotidianista vinculada à epistemologia das práticas (Oliveira, 2023; Andrade et al., 2019, Certeau, 1994) e análise de documentos públicos, numa abordagem situada, de natureza qualitativa e interpretativa, sem a pretensão de generalizações, que busca compreender algumas das implicações pedagógicas do Decreto Rio nº 53.918/24, que regulamenta o uso de celulares no município do Rio de Janeiro, a Lei Federal nº 15.100/25 e como contraponto, a Nota ANPED (GT 16 de Educação e Comunicação). As análises são discutidas à luz de um referencial teórico que nos auxilia a abordar questões relacionadas à ‘políticaspráticas’ educacionais em contexto de cibercultura. Pretendemos então discutir: i) ampliação do capital de rede (Elliot e Urry, 2010) e, por conseguinte, a inserção no mundo do trabalho; ii) potencialização do processo formativo em prol da justiça cognitiva e social. Dialogando com autores do campo da educação e comunicação, dentre outros de viés mais filosófico e sociológico, argumentamos em favor de uma escola que, ao invés de restringir, possa se tornar o que entendemos como uma “ágora digital”, preconizando o diálogo entre diferentes membros da comunidade escolar, para criarmos acordos acerca de um uso mais equilibrado dos dispositivos.
Palavras-chave: tecnologias digitais em rede; cidadania digital; autonomia educacional; ágora digital.
Resumen. Este texto propone un ensayo teórico-reflexivo inspirado en la vida cotidiana, vinculado a la epistemología de las prácticas (Oliveira, 2023; Andrade et al., 2019, Certeau, 1994) y el análisis de documentos públicos, en un enfoque situado, de naturaleza cualitativa e interpretativa, sin pretensión de generalizar, que busca comprender algunas de las implicaciones pedagógicas del Decreto de Río nº 53.918/24, que regula el uso del teléfono móvil en el municipio de Río de Janeiro, de la Ley Federal nº 15.100/25 y, como contrapunto, de la Nota de la ANPED (GT 16 Educación y Comunicación). Los análisis se debaten a la luz de un marco teórico que nos ayuda a abordar cuestiones relacionadas con las «políticas-prácticas» educativas en el contexto de la cibercultura. Así, pretendemos debatir: i) la ampliación del capital de red (Elliot y Urry, 2010) y, en consecuencia, la inserción en el ámbito laboral; ii) la mejora del proceso formativo en pro de la justicia cognitiva y social. Dialogando con autores del ámbito de la educación y la comunicación, entre otros de sesgo más filosófico y sociológico, abogamos por una escuela que, más que restringir, pueda convertirse en lo que entendemos como un «ágora digital», preconizando el diálogo entre los diferentes miembros de la comunidad escolar, para crear acuerdos sobre un uso más equilibrado de los dispositivos.
Palabras clave: tecnologías digitales en red; ciudadanía digital; autonomía educativa; ágora digital.
Abstract. This paper aims to understand some of the pedagogical implications of Rio Decree No. 53,918/24, which regulates the use of cell phones and other electronic devices by students in public municipal schools. Regarding the decree’s repercussions, we highlight the note published by the National Association of Graduate Studies and Research in Education (ANPEd), questioning the restriction of use. Recognizing what we still need to learn in light of the legacy of the Sars Covid-19 pandemic, we intend to discuss: i) the expansion of network capital (Elliot & Urry, 2010) and, consequently, the insertion into the labor market; ii) the enhancement of the educational process in favor of cognitive and social justice. Therefore, we argue for a school that, instead of restricting, can become what we understand as a “digital agora,” advocating respectful dialogue and the exchange of ideas among different members of the school community to reach agreements on more balanced device usage.
Keywords: Networked digital technologies; digital citizenship; educational autonomy; digital agora.
1. Nas entrelinhas dos cotidianos: celulares, restrições e sentidos em disputa
As palavras guardam informações e nos dizem muito, mas nossa compreensão depende de como nos comunicamos e nos aprofundamos. A partir da epígrafe nós refletimos sobre a insignificância de certas verdades. Como nuances, aparentemente insignificantes, como o uso de celulares nas escolas podem impactar os processos formativos, especialmente em contextos de ausências de outros dispositivos eletrônicos.
No intuito de tensionar práticas, percepções e contradições que emergem dos cotidianos escolares em torno da restrição do uso de celulares, iniciamos com o que trazemos como um dispositivo analítico-reflexivo (Alves, 2019; Santos, 2019), com a inspiração nas epistemologias dos cotidianos e das práticas.
A narrativa que segue, elaborada a partir de registros pessoais e de memória (Santana, 2019) permite a reflexão sobre pequenos gestos e cenas escolares, aparentemente triviais que, no entanto, revelam disputas de sentido, táticas de resistência e apagamentos institucionais.
Era o ano de 2016. Constantemente, eu ouvia as queixas dos docentes, no que se refere ao uso de celulares na sala de aula. Eu era a docente que ouvia, observava e pensava: O que poderia ser feito?
Um dia, ao chegar à escola, deparei-me com o aviso da imagem 01 acima: “Proibido o uso de celular”. Parecia, à primeira vista, a solução definitiva.
Os dias seguiram, e curiosamente os estudantes passaram a beber mais água, e por consequência, ir ao banheiro com mais frequência. A teoria sobre a importância da hidratação parecia ter, enfim, se transformado em prática. A tranquilidade se instaurou.
Até que, em um dia de verão, a rotina desvelou uma nova realidade: os docentes também começaram a sair das salas com frequência, com garrafas nas mãos para aliviar a sede. Nos corredores eles cruzavam com os estudantes, que haviam solicitado a autorização para fazer o mesmo. As saídas se cruzavam, mas por razões distintas. A necessidade fisiológica de uns coexistia com a necessidade digital de outros. (Santana, 2019 p. 42-43)
A narrativa contida no presente estudo é utilizada como dispositivo de análise e reflexão e explicita uma das tentativas institucionais de restringir o uso do celular nos espaços escolares, de forma literal e, pois a lei, identificada na imagem, se assemelha a regulamentada pelo Decreto Rio nº 53.918/24 e pela Lei nº 15.100, de 13 de janeiro de 2025. Cada um ao seu tempo, estes dispositivos legais materializam políticas de contenção que a nosso ver, ignoram o contexto cibercultural em que vivemos e revelam tensões entre controle institucional e as práticas docentes, ou liberdade de cátedra, como mais à frente abordaremos. Portanto, ao abordar essa questão, é mister a necessidade de refletirmos como a restrição impacta o cotidiano escolar.
Ao analisarmos o Decreto Rio nº 53.918/24, levamos em conta implicações pedagógicas, sociais e políticas decorrentes deste, e a Lei nº 15.100, de 13 de janeiro de 2025, que versa sobre matéria semelhante, ou seja, o uso de telefones celulares nas instituições públicas e privadas que ofertam a Educação Básica, “[...] com o objetivo de salvaguardar a saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes” (Brasil, 2025). Consideramos, portanto, vital a existência de uma análise de como o uso eficiente das tecnologias pode transformar a experiência de aprender, porque ‘pequenas insignificâncias’ podem revelar profundidades ocultas. A Lei nº 15.100/25 não se exime de mencionar a garantia do acesso e da inclusão, o que nos remete aos impactos nos cotidianos que mencionamos acima, pois como afirmado e defendido por diferentes pesquisadores as tecnologias digitais em rede por vezes possibilitam, ampliam e potencializam a formação (Maddalena, 2025; Santos, 2019), que a nosso ver, podem ocorrer nas mais diferentes modalidades de ‘aprendizadoensino’1
Vale então indagarmos: a maior parte dos estudantes, especialmente da rede pública, têm acesso aos recursos tecnológicos em suas residências? Ou ainda, esta rede garante esse acesso, para maior parte desses estudantes, no ecossistema escolar?
Souza et al. (2020) apontam que as tecnologias digitais em rede trazem a necessidade do uso de diferentes práticas sociais, reconfigurando interações, aprendizagem e compartilhamento de informações’. Há uma perceptível dicotomia entre os usos das tecnologias digitais em rede e a inserção dos seus usos nas práticas pedagógicas. Esse entendimento talvez indique uma necessária reconfiguração da prática para que essas, as tecnologias, possam ser incorporadas, com intencionalidade pedagógica, como previsto no decreto e na lei.
Neste artigo, que se constitui como um ensaio teórico-reflexivo de inspiração cotidianista com a epistemologia das práticas (Certeau, 1994; Andrade et al., 2019; Oliveira, 2023), numa abordagem situada, de natureza qualitativa, sem pretensão de generalizações, nos propondo a refletir sobre implicações do Decreto Rio nº 53.918/24, que regulamenta o uso de celulares e outros dispositivos eletrônicos pelos alunos e alunas nas unidades escolares da rede pública municipal de ensino propor estratégias para integração de tecnologias digitais na prática pedagógica como versa o inciso II, do artigo 2º do referido decreto. Vale dizer que privilegiamos o decreto e não a lei, devido a nossa localização geográfica e o status de precursor adotado pela administração do ente federativo e assim traremos algumas das percepções sobre o decreto e após identificá-las, as discutiremos.
Para pensarmos sobre essas questões e fazermos ponderações, nós organizamos o texto do seguinte modo: ‘Ecos e Reflexos: vozes sobre o Decreto’, destacando alguns aspectos que percebemos ter relevância na abordagem, envolvendo a análise do Decreto Rio nº 53.918/24. Posteriormente, buscaremos um diálogo teórico-metodológico demonstrando a integração das tecnologias com as práticas pedagógicas na seção ‘Quando os fins não são pedagógicos?’, que focaliza a disputa de sentidos no que se refere a propositura de atividades pedagógicas pelo docente e a possibilidade de ela emergir nos cotidianos, refletindo sobre dois tensionamentos: a liberdade de pensamento e usos; e ainda, os desafios e oportunidades na Era Digital. Continuaremos mencionando a importância de potencializar o processo formativo quando abordarmos ‘Paradoxo humano: (in)certezas, diálogo e alternativas’ trazendo nossas apropriações de autores de diferentes campos para embasar nossa defesa da escola como ágora digital. A seção ‘Diálogo como alternativa à restrição: escola como ágora digital’, em diálogo com autores de diferentes campos do conhecimento, esmiuça um dos argumentos centrais do artigo, explicitando o que entendemos quando nos apropriamos da noção de “ágora”, para pensar nos espaços educacionais que incorporem o digital em rede em suas práticas, discutindo e refletindo coletivamente acerca do que estes usos implicam. Finalizaremos trazendo nossas compreensões nas considerações da análise em ‘Reflexões para uma Educação Digital.
Desta maneira, diante da complexidade que emerge dos cotidianos (Oliveira, 2023), entendemos que é mister defender o uso das tecnologias digitais em rede com vista a uma docência pedagógica contemporânea e, por isso, docência cibercultural. Buscando corroborar com essa defesa, apresentamos os argumentos que se seguem.
2. Ecos e reflexos: vozes sobre o decreto
Pelos corredores das escolas ecoam sons diversos, tecnológicos, humanos, institucionais, que disputam sentidos e atenção. A escuta e a curiosidade do docente decidem o que entra ou permanece fora da sala de aula. Já Freire e Guimarães (2011), ao refletirem sobre os estudantes e a mídia de massa apontavam que num dado momento histórico o foco era a preocupação com a paralisia das atividades escolares, por obsolescência dos dispositivos tecnológicos disponibilizados por falta de recursos e manutenção, ou necessidade de desenvolver uma educação que olhava para o que a Web poderia oferecer (Santos, 2019).
Para aprofundar esse debate sobre as restrições, destacamos o caso noticiado pela CNN Brasil (2023), pois ele informava que o governo britânico proibiu o uso do celular em escolas, por entender que esses dispositivos consistem em fonte de distração e bullying. Ao mesmo tempo, a matéria ressalta que o maior problema é: “como lidar com os smartphones nas escolas?” (CNN Brasil, 2023). No mesmo período, como a ilustração do uso da realidade virtual em uma escola britânica evidencia a coexistência de políticas restritivas e a potência de práticas inovadoras com o digital, aspecto que requer atenção, análise e reflexão.
Atualmente, vinte e quatro anos depois do afirmado por Santos (2019), vivemos a dependência, quase que exclusiva dos dispositivos tecnológicos em rede durante a pandemia. Experimentamos intensamente a cultura da conexão, com lógicas sociais e práticas culturais mediadas pelas redes. Mas ao voltarmos os olhos para a maior parte das escolas da Rede Pública o acesso a equipamentos eficientes disponíveis nas salas de aula das instituições de ensino e a conexão de qualidade, ainda é raro e precário.
Inspiradas no Decreto Rio nº 53.918 de fevereiro de 2024, regulamentado após uma consulta pública que recebeu 10.437 contribuições e dessas 83% favoráveis à restrição do uso dos dispositivos durante o horário escolar.
Se fizermos uma estimativa com base nas 1544 escolas que compõe a Rede, conforme o site da Prefeitura2, continuamos nossa reflexão com as seguintes indagações: a) As 10.437 contribuições ressaltadas no Decreto Rio nº 53.918 expressam, realmente, um percentual significativo da comunidade escolar, na medida em que somados alunos, alunas e professores, em média, ultrapassam 700 mil sujeitos diretamente afetados pela regulamentação? b) As escolas que pertencem à Rede Pública do município do Rio de Janeiro estão próximas de oferecer outras formas de enriquecer o processo formativo, tornando-o mais atrativo para os alunos e alunas, como sugere acontecer com as escolas britânicas? c) Todos os aspectos relativos à regulamentação e impactos à formação foram discutidos por ocasião da consulta e da elaboração dos dispositivos que regulamentam o uso do aparelho celular?
Longe de querer trazer respostas a tais indagações, elas são feitas muito mais no sentido de problematizar, para um debate que se mostra bem mais complexo. A mudança da diretriz para regulamentação do uso dos dispositivos móveis demonstra a relevância do tema para as instituições escolares, pois a regulamentação que decreta, em seu artigo 1º e incisos a proibição, e no seu artigo 2º as permissões.
Após o que já foi discutido, nós destacamos o artigo 2º do Decreto Rio nº 53.918/24, que trata das permissões no seu inciso III, que destacamos a seguir:
III - quando houver autorização expressa do professor regente para fins pedagógicos, como: pesquisas, leituras, acesso ao material Rioeduca ou qualquer outro conteúdo ou serviço; (Brasil, 2024)
A análise do Decreto destaca que a inserção das tecnologias digitais em rede na prática pedagógica é um tema amplamente debatido, especialmente devido aos impactos negativos da presença dos dispositivos no contexto escolar. O artigo que destacamos no decreto e agora a Lei federal salientam a relevância desta discussão que ultrapassa os limites geográficos do município do Rio de Janeiro. Essa questão nos leva a discutir não apenas sobre as permissões, mas também os impactos das tecnologias digitais nos processos formativos, pois a formação muitas vezes advém da criatividade e curiosidade humana, por meio de algo que aparentemente possa ser desimportante, mas que pode impactar a prática educativa, como uma simples conversa num aplicativo, um jogo online ou discussão nas redes sociais. São as tantas táticas dos praticantes (Certeau,1994) que criam e recriam cotidianamente em seus ‘fazerespensares’, nos convidando a ir além do já sabido, como sugerem Andrade et al. (2019) e auxiliando a perceber as múltiplas possibilidades que os usos do digital em rede podem propiciar.
3. Quando os fins não são pedagógicos?
Em nossa análise e compreensões sobre o sentido das restrições e da permissão do uso dos dispositivos pedagógicos, acreditamos ser necessário nos indagar: “E quando os fins não são pedagógicos?” Nesta indagação reside uma disputa de sentidos no que se refere a propositura de atividades pedagógicas pelo docente e a possibilidade dela emergir nos cotidianos, sem que haja, inicialmente, a intencionalidade pedagógica, mas que oportunize o conhecimento, a formação. Por esse motivo, refletimos sobre dois tensionamentos: a liberdade de pensamento e usos; e ainda, os desafios e oportunidades na Era Digital.
3.1 Liberdade de pensamento e usos
Partimos da compreensão de que a educação deve ser um ato de liberdade e não de opressão (Freire, 2015); de que ensinar requer estar aberto ao diálogo e não a imposição; que na docência não devemos desperdiçar nenhuma oportunidade de demonstrar aos estudantes a segurança com que discutimos um tema, analisamos um fato ou expomos nossa posição diante de uma decisão governamental (Freire, 2015).
Concordamos com a ideia de que “[...] ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (Freire, 2013, p.69). Nesse sentido do dito, mesmo no silêncio, mas nunca na omissão, há relevantes saberes para o exercício da prática docente, e Freire (2013) destaca a autonomia.
Ele reflete sobre este conceito e ressalta que “o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros” (Freire, 2013, p. 58). Entendemos, assim, que como um ser inacabado, o ser humano está em constante transformação e vai construindo historicamente a sua autonomia como um processo dinâmico e contínuo.
O Decreto interrompe essa percepção de autonomia quando traz as proibições e permite o uso, dentre outros, apenas para fins estritamente pedagógicos ou didáticos, conforme orientação do professor. Inviabiliza as pequenas descobertas e aprendizados que surgem da exploração que ele limita. No entanto, entendemos que educar na contemporaneidade implica, como ressalta Rojo (2013), reconhecer que o estudante, ao menos em potência, é “um construtor, colaborador das criações conjugadas na era da linguagem líquida” (Bauman, 2001, p.8). Tempos de rápidas e intensas mudanças; um mundo que parece se liquefazer, cada vez mais, em suas certezas, e igualmente, em suas formas de se pensar as linguagens, ao nos apropriarmos de Bauman (2001).
Por esse motivo dialogamos ainda com Santaella (2007) que afirma que as linguagens cada vez mais fluidificam na enxurrada de fluxos informacionais, implicando a diversidade de modos de agir, viver, pensar e se comunicar o contexto cibercultural no qual estamos imersos, e em conformidade com Fernandes et al. (2020) oportunizaram que os sujeitos possam se desenvolver para protagonizarem de forma crítica seus discursos e narrativas.
A discussão sobre os usos dos artefatos digitais no ambiente escolar e a incontestável desigualdade no acesso às tecnologias digitais é essencial. Um ecossistema escolar atualizado pode oportunizar o acesso a multiplicidade de materiais e linguagem que podem enriquecer o processo de aprendizado dos estudantes. Não educamos apenas proibindo, mas chamando para participar ativamente da discussão.
A participação ativa remete às formas contemporâneas de socialização e ao desenvolvimento do capital de rede, que possibilita conexões significativas e acesso a diferentes oportunidades de inserção no mundo do trabalho. De acordo com Elliot e Urry (2010), para além dos capitais econômico, cultural, social e simbólico, a ideia de capital de rede envolve a capacidade de movimento em diversos ambientes, incluindo a habilidade, competência e interesse em usar telefones celulares, SMS, e-mail, internet, Skype etc.; acesso amplo a informações e contatos; equipamentos de comunicação, dentre outros. Em linhas gerais, o conceito envolve a capacidade de engendrar e manter relações sociais com pessoas que não estão necessariamente próximas e que podem gerar benefícios emocionais, financeiros e práticos. Tais aspectos são fundamentais para pensar sobre propostas que considerem as oportunidades e desafios do acesso e uso dos dispositivos digitais em rede no contexto contemporâneo.
Acreditamos que nosso capital de rede pode ser ampliado de diferentes modos, dentre os quais entendemos: i) fortalecimento da mobilidade digital, através do aprendizado sobre o uso de dispositivos digitais de colaboração e comunicação; boa conexão à internet e dispositivos tecnológicos adequados; ii) construção de redes sociais diversificadas, através da participação ativa em grupos presenciais e online; contato com pessoas de diferentes origens e áreas de atuação.
O conceito de capital de rede atrelado à educação nos ajuda a perceber que o aprendizado não depende apenas de conteúdo ou currículo, mas também da capacidade de se conectar — com pessoas, lugares, instituições e tecnologias digitais em rede. Nesse sentido, políticas educacionais que promovam igualdade de acesso às redes são essenciais para democratizar oportunidades e combater desigualdades estruturais. Políticas que possam incentivar um uso dos dispositivos digitais em prol da ampliação deste capital de rede, com vistas a ampliação do acesso à mobilidade e à conectividade.
O uso de celulares no contexto educacional permite ainda a ampliação do capital de rede de diferentes modos, contemplando estudantes ao permitir, por exemplo: participação em feiras, olimpíadas, congressos estudantis e programas extracurriculares; utilização de redes sociais profissionais como o LinkedIn para se conectar com docentes, ex-alunos e mentores; envolvimento em projetos interdisciplinares, interculturais ou internacionais, ainda que de forma virtual; busca por bolsas, intercâmbios e cursos online gratuitos em instituições nacionais e internacionais, dentre outras tantas possibilidades que se abrem diante de nós quando nos apropriamos do digital em rede como nosso aliado, não como antagonista.
3.2 Desafios e oportunidades na era digital
Entendemos a relevância da formação dos estudantes para um mundo que, incontestavelmente, está cada vez mais mediatizado, digital e interconectado, como há muito ressalta Rojo (2013). Um mundo no qual estudantes tenham acesso a informações, independentemente da mediação docente e desenvolvam habilidades midiáticas, pois eles utilizam diferentes plataformas para divulgar ou obter informações; se engajam, fazem parcerias para o bem e para o mal.
Pensamos na relevância do desenvolvimento de diferentes habilidades para exercer uma cidadania ativa e crítica na era digital que estamos vivendo, que se mostra cheia de oportunidades, mas nos mostra diferentes desafios que podem ser vencidos com a diversificação de práticas e inclusão do uso do digital em rede como afirmam Fernandes et al. (2020), na formação de estudantes para os usos ‘dentrofora’ dos espaços escolares.
Defendemos então que as escolas, além de espaços de interditos e proibições, podem ser pensadas como ‘ágoras digitais’, ideia que aprofundaremos adiante neste texto. Nelas, todos os cidadãos, e não uma pequena amostragem, poderão defender a sua liberdade de escolha dos currículos ‘pensadospraticados’ (Oliveira, 2023), sendo capazes fazer escolhas que beneficiem todos, sem ampliar a desigualdade, diante da inexistência da neutralidade pedagógica (Freire, 2013), a partir do pleno conhecimento dos diferentes aspectos envolvidos.
Trazemos para o cenário a ser analisado o lugar das inventividades docentes (Santana et al., 2021), sustentadas por documentos como a nota da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd)3 que questionou a restrição e segue circulando nos espaços acadêmicos de modo a cobrar que tais Decretos e Leis sejam revistos.
A comunidade acadêmica se manifestou, por exemplo, mediante a publicação de uma Nota publicada pelo GT 16 da ANPEd (Educação e Comunicação) que discute o projeto de lei do MEC para vetar celular na escola. Publicada em 03 de outubro de 2024, a Nota questionava, a hoje aprovada proposta do Ministério da Educação (MEC) de enviar ao Congresso Nacional um projeto de lei para restringir o uso de celulares nas escolas, segundo notícias que circularam na mídia.
Na visão do GT, a medida fere a liberdade de cátedra das professoras e professores, por não ter passado pelo que entendem como amplo debate público envolvendo os interessados, algo que entendemos mais como uma baixa representatividade dos envolvidos a serem considerados no processo.
Dentre os aspectos abordados pela Nota da ANPEd, elaborada pelo GT 16, que entendemos ainda ser necessário ressaltar, elencamos a seguir:
1. Liberdade de cátedra das professoras e dos professores e diálogo entre os envolvidos no processo de formação;
2. Limites de imposições no contexto educacional;
3. A ação pedagógica é do interesse da comunidade escolar envolvida e não deveria basear-se em pesquisas de opinião por amostragem, que por vezes não representam os diferentes contextos socioculturais. Que além desse aspecto, desconsideram e invisibilizam práticas pedagógicas exitosas, bem como pesquisas que apontam a possibilidade do uso pedagógico de dispositivos móveis no contexto escolar, com base numa comoção calcada em parâmetros que podem desconsiderar aspectos de igual relevância, como por exemplo:
i) O tempo de permanência no ambiente escolar e em outros ambientes onde o dispositivo pode ou é acessado, por conseguinte gere o efetivo excesso de uso;
ii) A existência de pesquisas que apontem que uso excessivo dos celulares a malefícios causados decorrem da exposição que acontece na escola e afetam crianças e adolescentes, entre outras questões, consubstancialmente, trazidas no documento.
Nos ancorando na nota da ANPEd, anteriormente citada, percebemos a inexistência de um diálogo com pesquisas, sejam nacionais e internacionais, que versem sobre as possibilidades pedagógicas dos celulares na escola, como por exemplo a pesquisa da Maturana (2020), que abordaremos mais à frente que traz a gamificação na Educação Básica; ou de Santana (2019) que utiliza o aplicativo WhatsApp como artefato curricular na formação de estudantes da Educação de Jovens e Adultos. Por esse motivo, não seria a escola um dos espaços propícios para discutir e problematizar, junto às/aos estudantes, os diversos usos de dispositivos tecnológicos nos seus cotidianos?
Ao invés de decretos que restringem os usos de dispositivos digitais nas escolas e estimulam um clima de rivalidade entre docentes e discentes, pensamos: não seria mais apropriado investir em infraestrutura de acesso e programas de educação para o uso responsável e adequado a diferentes idades de celulares, combatendo efetivamente a cultura do consumo exacerbado e as táticas de empresas que buscam lucrar com o vício nas telas?
4. Paradoxo humano: (in)certezas, diálogo e alternativas
O mundo já virou do avesso algumas vezes: guerras, tragédias naturais e mais recentemente, nos anos de 2020 e 2021, um vírus mostrou-nos nossa pequenez. O que aprendemos com tudo isso? Eis o paradoxo humano de manter-se preso às suas certezas, mesmo em um mundo que, cada vez mais, “tudo o que é sólido se desmancha no ar” (Berman, 1982, p.11). Por isso, em continuidade às nossas reflexões, queremos pensar na potência do diálogo em suas múltiplas dimensões, trazendo nossas apropriações de autores de diferentes campos para embasar nossa defesa da escola como ágora digital, a ser esmiuçada mais adiante.
Nietzsche (2001) nos faz perceber que aquele que mais sabe é também o que mais reconhece a vastidão de sua ignorância. O paradoxo da ignorância repousa entre o conhecimento e a ignorância; entre a verdade e as ilusões humanas. Essa ignorância pode estar ainda relacionada a reflexões filosóficas, como “A Gaia Ciência” (Nietzsche, 2001) que fala da busca de sentido e das cegueiras coletivas da humanidade. A famosa frase “Deus está morto” descreve uma sociedade que tenta se afastar das antigas certezas religiosas, mas se depara com o vazio existencial. Será que resta evidenciada a necessária constância de questionamento e diálogo? Abrindo-se ao desconhecido, repousa a disposição para o aprendizado contínuo, a possibilidade de superação de limitações e elaboração de novas certezas. Essa reflexão filosófica, quando transposta para o campo educacional, nos convoca a questionar os fundamentos das decisões políticas que moldam o cotidiano escolar. Podemos nos abrir e discutir alternativas que possam ser melhores? Em termos educacionais, isso exige reconhecer que políticas pedagógicas não devem ser pautadas apenas por receios ou moralismos, mas por escuta atenta e reflexão crítica, aspectos fundamentais para a formação ética e democrática.
Em “Além do Bem e do Mal”, Nietzsche (2019) examina como as ideias de moralidade, verdade e ignorância se entrelaçam, desafiando as concepções tradicionais de verdade objetiva. O “paradoxo da ignorância” pode ser interpretado como a tendência humana de apego a crenças consolidadas ou ilusões confortáveis, em vez de encarar as complexidades do conhecimento real.
Estamos vivendo tempos de novas cegueiras? Crenças que se pretendem universais, mas que não se adequam a diversidade dos contextos educacionais? Aquilo que parece eficaz em uma realidade pode ser inadequado em outra. Essa tensão entre certeza e relatividade reforça a importância de práticas educacionais mais apertadas ao novo.
Nietzsche (2019) vê isso como uma resistência à liberdade do pensamento e à criação de novos valores, destacando a necessidade de reflexão constante. Reconhecemos a necessidade do acesso a outras formas de pensar, para que possam surgir outras problematizações ratificando aquilo que acreditamos. Ele nos ajuda a desconfiar das certezas que herdamos, mostrando que muitas delas são construções culturais e históricas. Na educação, isso se traduz na valorização do pensamento crítico, da autonomia e da capacidade de questionar o mundo.
Este questionamento de nossas certezas pode ser realizado a partir de uma apropriação das reflexões contidas em diferentes obras. Nietzsche (2001; 2019)argumenta que o que chamamos de “verdade” muitas vezes é apenas uma “ilusão necessária” — algo que nos ajuda a viver, mas que não corresponde a uma realidade objetiva. Todo conhecimento é visto como interpretativo e condicionado pela perspectiva do sujeito (perspectivismo) e muitos valores considerados “bons” ou “naturais” foram, na verdade, impostos historicamente por forças dominantes, muitas vezes como formas de controle. Acreditamos que em um mundo cada vez conectado, para além de ter de dar respostas prontas, há que se incentivar a capacidade de fazer boas perguntas e saber utilizar a potência do digital em rede a nosso favor nessas empreitadas.
Nesse sentido, a ignorância emerge quando nos fechamos em nós mesmos, acreditando que não há nada a ser aprendido. Freire (2013, p.11) afirmou que “onde quer que haja mulheres e homens, há sempre o que fazer, há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender”. Para atingir a sabedoria é imprescindível buscar a sabedoria que está no mundo, do qual somos apenas parte.
A compreensão das incertezas que permeiam a existência humana e os contextos sociais contemporâneos pode ser enriquecida à luz do pensamento de Paulo Freire. Em sua obra, o autor parte da concepção de que o ser humano é um ser inacabado, histórico e em constante construção, o que implica reconhecer a incerteza como uma característica inerente à condição humana (Freire, 2015). O autor nos ajuda a entender que a educação deve ser dialógica, crítica e libertadora, atuando como uma prática da liberdade. Essa abordagem pedagógica valoriza a escuta, o diálogo e a problematização da realidade como caminhos para a formação de sujeitos conscientes, éticos e capazes de agir no mundo com responsabilidade social. Diante dos desafios impostos pela complexidade e instabilidade do mundo atual, o pensamento freiriano apresenta-se como uma ferramenta essencial para o enfrentamento crítico das incertezas, promovendo esperança ativa e transformação social.
Essas reflexões nos levam a questionar por que somos incapazes de lidar com nossas incertezas e relutamos em aceitar nossos desconhecimentos. Fugir do debate decretando a restrição do uso é o melhor a ser feito? Pensamos que não seja o caminho mais acertado para um mundo que tantas vidas perdeu e talvez não as tivesse perdido, se pudesse apenas admitir sua ignorância e se lançar ao novo para desaprender (Oliveira, 2023).
5. Diálogo como alternativa à restrição: escola como ágora digital
A esta altura, defendemos então a ideia de escola como ‘ágora digital’4, como já mencionamos, que propõe uma reinterpretação do conceito clássico de “ágora”, que, na Grécia Antiga, era o espaço público onde os cidadãos se reuniam para discutir assuntos da cidade, compartilhar ideias, e participar ativamente na vida política e social. Em relação a esta associação, pensamos ser importante não perpetuar a exclusão de uma parcela da população, como era feito com as mulheres e os escravos no contexto da Grécia. Entendemos que o Decreto faz isto, ao impor medidas para as instituições educacionais sem que seja feita uma ampla consulta aos profissionais e demais integrantes das comunidades escolares que estão envolvidos com a medida.
Como também reflete Maddalena (2025), ao invés de promover uma lógica de vigilância e punição em torno do uso de celulares nas escolas, seria mais produtivo reconhecer tais dispositivos como artefatos culturais da cibercultura, já enredados nos cotidianos escolares e familiares. A autora propõe deslocar o foco do controle sobre os estudantes para o enfrentamento das dinâmicas de poder das plataformas, defendendo uma formação crítica e inventiva com e sobre as tecnologias digitais. Ao aplicar esse conceito à escola e ao contexto digital, estamos falando de uma abordagem educacional em que a escola funciona como um espaço de encontro, debate, colaboração e construção coletiva de conhecimento, mas mediado pela tecnologia. Nesse cenário, a escola não é apenas um local físico, mas também uma comunidade virtual em que a troca de ideias e aprendizados ocorre de forma aberta e contínua.
Outros autores nos auxiliam na reflexão que propomos. Alguns dos mais relevantes serão elencados por nós a seguir: Manuel Castells, por pensar na sociedade em rede e na “era digital”. Em suas obras, que compõem a coleção “A Era da Informação” (Castells, 2002; 2003) ele discute como as tecnologias de comunicação estão reformulando a sociedade e as instituições, incluindo as de educação. Embora ele não use o termo “ágora digital” suas ideias sobre redes e espaços públicos digitais podem ser aplicadas à concepção de uma escola como ágora. Para isto nos auxiliam as reflexões do autor sobre as redes vistas como espaços que podem expressar nossas indignações e se constituir em espaços de esperança, conforme assevera Castells (2013), reverberando os movimentos sociais que ganharam as ruas e que conseguiam mobilizar ações coletivas através de conexões que se deram na Internet. O poder de mobilização que estes espaços virtuais produziram teve repercussões em diferentes lugares do mundo e o Brasil não ficou de fora.
Castells (2013) não romantiza a tecnologia, mas a vê como potência de articulação social. Da mesma forma, a escola como ágora digital não é apenas uma escola “com tablets”, mas sim uma escola que usa a tecnologia digital em rede para ampliar vozes, fomentar o pensamento crítico e construir conhecimento coletivo. Inspiradas pelas reflexões do autor, entendemos que a escola entendida como ágora digital é um espaço vivo, conectado, plural, onde os sujeitos aprendem não apenas conteúdos, mas formas de intervir no mundo. Castells nos oferece um olhar sobre como as redes digitais podem ser ferramentas de transformação — e isso se traduz em um chamado para a escola repensar sua função diante das novas formas de mobilização e ‘aprendizagemensino’.
Lévy (1999), um dos principais filósofos da informação e do ciberespaço, em livros como Cibercultura, explora a ideia de uma nova forma de conhecimento e de comunicação através das tecnologias digitais. Ele vê a internet e as redes sociais como novos espaços para o compartilhamento de saberes, o que se aproxima da ideia de uma ágora digital. E como afirmou Lemos (2010), “o ciberespaço é um ambiente de circulação de discussões pluralistas, reforçando as competências diferenciadas e aproveitando o caldo de conhecimento que é gerado dos laços comunitários” (Lemos, 2010, p. 135).
Henry Jenkins, com sua teoria da “cultura participativa” e do “convergente”, oferece uma visão de educação como um processo colaborativo e dinâmico, utilizando as tecnologias digitais. Em “Cultura da Convergência” (Jenkins, 2009), ele argumenta que a educação pode se beneficiar de formas de participação ativa, de um modo que remete ao conceito de “ágora digital”, onde todos têm a oportunidade de contribuir e interagir.
Papert (2008), um dos pioneiros no uso de computadores na educação, especialmente através do conceito de “construcionismo”, escrevendo nos anos de 1960, defende que estudantes aprendem melhor quando estão ativamente envolvidos na criação de projetos e na resolução de problemas. Embora não tenha usado o termo “ágora digital”, suas ideias sobre aprendizagem colaborativa e o uso de tecnologias podem ser interpretadas dentro dessa metáfora.
Paulo Freire, que embora tenha trabalhado no século XX, apresenta ideias sobre a educação como um espaço de diálogo e de construção coletiva de conhecimento que têm ressonâncias com a noção de “ágora digital”. Em sua obra “Pedagogia do Oprimido”, redigida nos anos de 1970, Freire (2013) defende a educação como um processo dialógico, algo que pode ser facilitado pelas tecnologias digitais, criando um espaço de interação constante e mutável. E em continuidade nos convida em outra obra “Pedagogia da Autonomia” (Freire, 2015) a pensar sobre o tempo vivido, sobre o que ele nos oferece e sobretudo, ao pensar em tecnologias, que elas deveriam ser classificadas como boas ou ruins, por tudo depende do uso. De como nós, seres humanos, as usamos. Como dar o melhor uso sem aprender como funciona em decorrência de uma proibição?
Robinson e Lou Aronica (2019) discutem como as escolas precisam evoluir para serem mais criativas e colaborativas. Ele propõe uma transformação no modelo educacional tradicional, algo que se aproxima do conceito de escola como um espaço digital interativo, onde as ideias podem ser compartilhadas livremente.
Esses pensadores têm apontado que a educação deve se tornar mais aberta, conectada e dinâmica, com as tecnologias digitais criando um espaço de aprendizagem mais colaborativo e participativo. A “ágora digital” reflete essa construção de ambientes de aprendizagem interativos e conectados.
Podemos destacar algumas características principais da escola como “ágora digital” e elencamos:
• nteratividade e Colaboração: Estudantes participam ativamente do processo de aprendizagem, tanto presencialmente quanto online, com plataformas digitais que permitem discussões, projetos colaborativos e trocas de conhecimentos, como as conversas e intervenções formacionais no WhatsApp com a Educação de Jovens e Adultos, narradas por (Santana, 2019). As ferramentas digitais (como fóruns, chats e plataformas de compartilhamento de documentos) tornam mais fácil essa interação, e onde todos os membros da comunidade escolar têm voz;
• Democratização do Conhecimento: A ágora digital busca tornar o conhecimento acessível a todos os estudantes, independentemente de sua origem, contexto social ou geográfico. As tecnologias digitais permitem que as escolas compartilhem recursos de forma mais equitativa, criando oportunidades de aprendizagem para pessoas de diferentes regiões e contextos socioeconômicos.
• Autonomia e Protagonismo Estudantil: Na “ágora digital”, o estudante assume um papel mais ativo, não só consumindo o conhecimento, mas também criando, compartilhando e discutindo. O uso de ambientes virtuais de aprendizagem, redes sociais educacionais e projetos digitais permite que os estudantes se tornem mais autônomos, desenvolvendo competências de pesquisa, análise crítica e comunicação.
• Plataformas de Comunicação e Debate: As redes sociais, blogs e fóruns podem ser usados para criar espaços virtuais de debate, permitindo que estudantes discutam tópicos acadêmicos, culturais e sociais. Professores podem moderar essas discussões, incentivando a reflexão crítica e o respeito pelas diversas opiniões, criando um ambiente seguro e inclusivo;
• Educação Contínua e Flexível: O conceito de “ágora digital” também está relacionado a uma educação contínua e flexível, onde estudantes têm acesso a recursos educacionais fora do horário escolar tradicional e podem seguir seu próprio ritmo de aprendizagem. Com plataformas digitais, os estudantes podem acessar materiais, assistir a aulas gravadas, fazer cursos extras e colaborar com colegas a qualquer momento.
• Inovação e Experimentação: O espaço digital permite a exploração de novas formas de ensino e aprendizagem, como realidade aumentada, gamificação, inteligência artificial, tecnologias imersivas e tecnologias de personalização do aprendizado. Nesse sentido, pudemos acompanhar o trabalho de Maturana (2020), que é um exemplo de como o aplicativo do jogo digital Minecraft pôde ser utilizado por praticantes de escola da educação básica da Rede Municipal de Educação da cidade de Duque de Caxias. A autora identifica que o game desenvolve habilidades cognitivas, acadêmicas, favorecendo ainda a competição, a criatividade e as relações sociais entre os jogadores.
A escola como ágora digital se torna um ambiente propício à experimentação e à inovação pedagógica, em que as possibilidades de ensino não são limitadas pela infraestrutura física ou pelo modelo tradicional de sala de aula. E trazemos alguns exemplos práticos de uma escola como ágora digital que envolvem o uso de:
a) Plataformas de ensino colaborativo: Ferramentas como o Google Classroom, Moodle, dentre outras que permitem que alunos, alunas, bem como professores compartilhem materiais, interajam em tempo real e desenvolvam atividades conjuntas;
b) Redes sociais e blogs educacionais: Grupos de discussão no Facebook, Twitter ou blogs onde a comunidade escolar possa postar suas reflexões sobre temas de interesse comum, debates sobre tópicos atuais ou até mesmo artigos de pesquisa;
c) Ambientes de aprendizagem gamificados: o uso de jogos e dinâmicas digitais para envolver os estudantes de maneira interativa e estimular a aprendizagem por meio da diversão e da competição saudável, conforme já identificamos anteriormente no estudo de Maturana (2020). Um bom exemplo é o que tem se desenvolvido em práticas de terapia gamificada5, que tem proporcionado resultados positivos, desde que utilizada adequadamente;
d) Aulas e conferências online: Palestras, workshops e webinars, realizados por profissionais, acadêmicos e especialistas que podem ser acessados a partir de qualquer lugar, transformando a escola em um ponto de contato global com saberes diversos.
No que se refere aos desafios da escola como agora digital, podemos destacar:
1. Desigualdade de acesso: Embora a tecnologia possa democratizar o acesso ao conhecimento, ainda existem muitas disparidades em termos de acesso à internet e dispositivos em diferentes contextos sociais e econômicos. Isso pode gerar exclusão digital;
2. Segurança e privacidade: Em um ambiente digital, as questões de privacidade e segurança são especialmente importantes. Deve haver cuidado para proteger as informações dos estudantes e garantir um ambiente seguro para a participação online;
3. Desafios pedagógicos: A adaptação dos professores ao uso eficaz das tecnologias digitais e a transição do modelo tradicional de ensino para um mais colaborativo e centrado nos/nas estudantes pode ser um desafio, demandando formação contínua e inovação pedagógica.
A escola como ágora digital é uma visão de uma educação mais aberta, inclusiva, interativa e transformadora, com foco na participação ativa de todos os envolvidos no processo educativo. Ela aproveita a conectividade digital para criar um ambiente de aprendizagem contínuo e colaborativo, alinhado com as demandas do mundo contemporâneo, onde o conhecimento circula de forma cada vez mais rápida e fluida.
6. Considerações sobre a análise - reflexões para uma educação digital
Ao longo do texto trouxemos análises que nos levam a considerar o que aprendemos sobre as nossas ignorâncias e aparentes certezas. Ideias que nos levaram a questionamentos que permearam nosso texto como: a liberdade de cátedra, a autonomia docente; as tecnologias digitais em rede como dispositivos de mediação da prática pedagógica em contexto de cibercultura, a ampliação do capital de rede e o papel da escola como espaço dialógico, por nós entendida como ágora digital.
Reafirmamos que restringir não é educar. Educar é formar para a liberdade crítica e para o uso ético das tecnologias, pois na configuração com as restrições, o docente é praticamente colocado como o único que pode propor, desenvolver e avaliar as ações pedagógicas. Sugere e incentiva a ideia de rivalidade entre o docente, um artefato tecnológico com potencialidade curricular.
Por fim, sugerimos que haja no processo maior interação entre os interessados para que exista a colaboração, discussão e garantia da democratização do conhecimento. Uma linha de comunicação e debate, com vista à flexibilidade do processo de formação com diversidade de experiências e inovação.
E finalmente, nos dias de hoje, especialmente diante das fake news e da imposição ilimitada e prejudicial do pensamento hegemônico, consideramos que não podemos prescindir do diálogo, da escuta e do engajamento coletivo. Como afirmou Mandela (2003), “a educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”. Essa arma pode, e precisa, ser também digital, plural e partilhada, de modo que novos caminhos, escolhas e possibilidades nunca deixem de existir. Defendemos ‘políticaspraticas’ educacionais contemporâneas, em favor de uma escola que, ao invés de restringir, constitua-se em uma “ágora digital”, capaz de preconizar o diálogo respeitoso e a troca de ideias entre diferentes membros da comunidade escolar, orientando acordos coletivos sobre o uso mais equilibrado dos dispositivos e não amplifique exclusões sociais existentes.
Referências
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1 [...] preferimos escrever juntas, em itálico e entre aspas simples, as palavras que aprendemos dicotomizadas pelos modos homogêneos de pensar e escrever. Dessa forma, demonstramos os limites de uma maneira de pensar herdada, e indicamos que podemos criar outros modos de ‘práticasteorias’ (Alves, 2019, p. 15-16).
2 Fonte: https://educacao.prefeitura.rio/unidades-escolares/.
3 Em repúdio à proposta da Comissão de Educação, a restrição do uso de celulares dentro e fora das salas de aula, incluindo intervalos nas instituições públicas e privadas, exceto para uso pedagógico e didático.
4 A ideia da escola como uma “ágora digital” é uma metáfora que tem sido explorada por vários pensadores da educação, especialmente no contexto das tecnologias digitais e da comunicação em rede. Ágora, na Grécia Antiga, era um espaço público onde as pessoas se reuniam para discutir questões políticas, sociais e culturais. No contexto educacional, a “ágora digital” remete a um ambiente virtual interativo, onde estudantes podem compartilhar ideias, debater e colaborar, com o uso das tecnologias digitais facilitando esse processo.
5 Ver mais em: https://www.ip.usp.br/site/noticia/jogo-rpg-traz-beneficios-no-combate-ao-deficit-de-atencao/
Cómo citar en APA:
Velloso, L., & Leila Santos de Santana (2025). Celulares em sala de aula: entre restrição e autonomia e a escola como ágora digital. Revista Iberoamericana de Educación, 98(1), 87-102. https://doi.org/10.35362/rie9816758