Revista Iberoamericana de Educación (2025), vol. 98 núm. 1, pp. 23-38 - OEI
https://doi.org/10.35362/rie9816767 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653
recibido / recebido: 26/02/2025; aceptado / aceite: 14/05/2025
A aliança família-escola como estratégia para fortalecer a máxima educacional todos na escola *
La alianza familia-escuela como estrategia para reforzar la máxima educativa «Todos en la escuela»
The family-school alliance as a strategy to strengthen educational maxim for everyone at school
Ketlin Kroetz 1 https://orcid.org/0000-0001-8055-8124
Paula Corrêa Henning 2 https://orcid.org/0000-0003-3697-9030
1 Universidade Federal de Uberlândia (Cap/UFU), Brasil: 2 Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Brasil
Resumo. O artigo objetiva analisar de que modo a aliança família-escola consiste em uma estratégia para fortalecer a máxima educacional Todos na escola. Entendendo tal díade como uma verdade consolidada no campo escolar brasileiro, o texto coloca sob escrutínio dez artigos científicos publicados em três bases de dados. Assumindo o campo dos estudos foucaultianos como base teórica, são examinados os modos como a aliança dessas duas instituições investe no fortalecimento da escolarização obrigatória. O processo analítico infere que as produções do campo da Educação, a partir de uma lógica de corresponsabilidade, posicionam o par família-escola como necessário ao sucesso escolar. O Estado é desresponsabilizado de certas funções básicas e a família assume as funções de fortalecer, consolidar, garantir a presença do estudante e o seu sucesso no processo de aprendizagem. Com ações de cooperação, tais instituições atuam por meio de práticas normativas e engendram estratégias de participação que visam ao governamento dos estudantes. Estranhando tal verdade, perguntamo-nos sobre os modos como nos tornamos sujeitos em uma sociedade marcada, necessariamente, pelo governamento das condutas, seja por meio da família, seja por meio da escola.
Palavras-chave: escola; família; governamento; Michel Foucault.
Resumen. Este artículo pretende analizar la forma en que la alianza familia-escuela constituye una estrategia para fortalecer la máxima educativa de «Todos en la escuela». Partiendo de esta dicotomía como verdad consolidada en el ámbito escolar brasileño, el texto analiza diez artículos científicos publicados en tres bases de datos. Tomando como base teórica el campo de los estudios foucaultianos, se examinan los modos en que la alianza de estas dos instituciones invierte en el fortalecimiento de la escolarización obligatoria. El proceso analítico infiere que los proyectos en el campo de la educación, a partir de una lógica de corresponsabilidad, posicionan el binomio familia-escuela como necesario para el éxito escolar. Se exime de responsabilidades al estado en ciertas funciones básicas y las familias asumen el papel de reforzar, consolidar y garantizar la presencia y el éxito de los estudiantes en el proceso de aprendizaje. A través acciones de cooperación, estas instituciones actúan mediante prácticas normativas y crean estrategias de participación orientadas a dirigir a los estudiantes. Así, nos preguntamos sobre las formas en que nos convertimos en sujetos en una sociedad marcada necesariamente por el gobierno del comportamiento, bien a través de la familia o bien a través de la escuela. .
Palabras clave: escuela; familia; gobierno; Michel Foucault.
Abstract. This article aims to analyze how the family-school alliance is a strategy to strengthen the educational maxim: Everyone at school. Understanding this dyad as a consolidated truth in the school field, the text places ten scientific articles published in three databases under scrutiny. Taking the field of Foucauldian studies as a theoretical basis, how the alliance of these two institutions invests in strengthening compulsory schooling is examined. The analytical process infers those productions in the field of Education, based on a logic of co-responsibility, position the family-school pair as necessary for academic success. The State is relieved of responsibility for certain basic functions and the family assumes the functions of strengthening, consolidating, and guaranteeing the student’s presence and success in the learning process. With cooperation actions, these institutions act through normative practices and create participation strategies aimed at student governance. Finding this truth strange, we wonder about how we become subjects in a society marked, necessarily, by the governance of conduct, whether through the family or school.
Keywords: school; family; governance; Michel Foucault.
1. Introdução
Todos na escola atua, em nossa sociedade, como uma verdade indubitável. Assumimos, de antemão, que lugar de criança é na escola e, junto a isso, lutamos pela garantia de vagas e pela permanência dos estudantes nessa instituição que parece a mais adequada para que o processo de aprendizagem ocorra. Nós, enquanto professoras e pesquisadoras do campo educacional, defendemos a importância da escola e a necessidade de lutar por qualidade e por competência profissional nesse espaço.
No entanto, acompanhadas por Michel Foucault, olhamos com desconfiança para aqueles lugares onde há consenso e garantia de verdades indiscutíveis. A escola é um desses lugares. Em outros textos, problematizamos a respeito da obrigatoriedade escolar e de seu processo de governamento alinhado à permanência de estudantes na escola (Kroetz, 2019). Na continuidade dessas problematizações, lançamos o olhar para um elemento fundamental na perpetuação e na manutenção da verdade Todos na escola: a família.
Antes de assumirmos a aliança família-escola como uma verdade inquestionável, gostaríamos de convidar o leitor a estranhar essa máxima, problematizando os efeitos que tal verdade produz em cada um de nós. Nosso desafio consiste em desestabilizar o presente, tal como nos ensinou Nietzsche (2003), buscando evidenciar que o que se apresenta como necessário, onde se julgava estar tudo resolvido, foi, na verdade, forjado por forças atuantes em certo tempo, vencedoras de lutas que determinaram formas de agir e de pensar.
Neste estudo, compreendemos a instituição familiar não como uma unidade natural que pode ser caracterizada por seus laços biológicos, tampouco como uma unidade imutável ou única, mas como uma instituição que pode assumir diversas configurações em sociedades específicas ao longo do tempo (Romanelli, 2016). Desse modo, não há família, mas famílias que são múltiplas em seus arranjos, isto é, famílias com realidades plurais, ainda que apresentem características comuns.
Embora a família e a escola sejam instituições distintas, é possível verificar o ponto em que essas duas esferas se entrelaçam e se fortalecem. A reflexão sobre a realidade dessas instituições é comum em diversos meios, tais como os pedagógicos e os midiáticos, nos quais a legitimidade e a importância dessas instituições são frequentemente reiteradas pelo senso comum: “todos devemos ter uma família”; “sem educação escolar, não somos nada”. Liev Tolstói (1828-1910), renomado escritor russo, expressou essa ideia ao afirmar que “a verdadeira felicidade reside no lar, entre as alegrias genuínas da família”. A normalização desse dito, que associa a felicidade à estrutura familiar, é proeminente.
Assim, o objetivo deste estudo consiste em analisar de que modo a aliança família-escola consiste em uma estratégia para fortalecer a máxima educacional Todos na escola no cenário brasileiro. Buscamos defender que a aliança dessas duas instituições é um potente mecanismo que investe na escolarização compulsória e assume tais ditos como inquestionáveis na sociedade.
Para atingir esse objetivo, o artigo foi estruturado em quatro seções. Nesta primeira, apresentamos o propósito da escrita e sua justificativa. Na segunda seção, trazemos os contornos metodológicos do estudo e os elementos teórico-investigativos necessários para análise do corpus discursivo. Na terceira seção, com base no material de pesquisa, defendemos analiticamente nossa investigação. Por fim, anunciamos os principais resultados e algumas problematizações que merecem nosso estranhamento. É sobre essa organização e com o campo teórico dos estudos foucaultianos que convidamos o leitor a caminhar conosco nas sendas desta pesquisa.
Para atender ao objetivo supracitado, este texto toma como referência os estudos de Michel Foucault a respeito da governamentalidade, sendo esta a principal ferramenta colocada em operação. No que diz respeito ao conceito de governamentalidade, Foucault (2008a, p. 143-144) define-a como
[...] o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança.
Ainda tratando sobre a governamentalidade, no curso de Segurança, Território e População, Foucault (2008a) concentrou seus estudos na análise das práticas e estratégias que regulamentavam as condutas dos sujeitos: “[...] o que propus chamar de governamentalidade, isto é, a maneira como se conduz a conduta dos homens, não é mais que uma proposta de grade de análise para essas relações de poder” (Foucault, 2008a, p. 258). Já em Nascimento da Biopolítica, o filósofo teve como objetivo principal estudar um poder cuja função é investir sobre a vida, um poder que só existe em ação: “não se dá, não se troca, nem se retoma, mas se exerce” (Foucault, 2008b, p. 175). Esse poder não opera apenas no Estado. Ele é múltiplo, atuando na família, na relação conjugal, nas relações entre adultos e crianças, na vida sexual e em várias outras esferas sociais.
O campo de atuação do poder vai passando por deslocamentos no decorrer dos séculos. Até o século XVII, o poder operado na sociedade era marcado por um poder de gládio, soberano, definindo a vida e a morte dos súditos do Rei. A partir do século XVIII, o exercício do poder não teve mais como foco apenas o poder de espada do Rei – definindo quem vivia ou quem morria. O foco era o corpo individual e a população (Foucault, 2008a). A estratégia utilizada era a de “[…] atuar sobre coisas aparentemente distantes da população, mas que se sabe por cálculo, análise e reflexão, que podem efetivamente atuar sobre a população” (Foucault, 2008b, p. 94). Nesse sentido, o indivíduo está envolto em mecanismos mais globais de controle, articulados entre si, pois o investimento coercitivo dará espaço a um investimento e controle maior sobre os fenômenos que compõem a vida da população.
Partindo desses apontamentos, a governamentalidade servirá como uma perspectiva para olhar para a aliança família-escola como situada no interior de determinadas práticas que implicam no governo das condutas; como uma ferramenta analítica para examinar as práticas em sua ‘microscopicidade’. A governamentalidade como ferramenta, guia ou enfoque de análise parece coerente quando utilizada para analisar a articulação entre as formas de governo e os modos de pensamento sobre o ato de governar (Fimyar, 2009). Assim, operar com o conceito de governamentalidade, verificando de que modo se conduz a conduta dos indivíduos, significa problematizar as técnicas de poder que visam transformar os indivíduos em sujeitos governáveis, no caso do estudo, mantendo todos na escola.
A análise intenta mostrar como as relações de poder se produziram em formas mais amplas de governo, o que reforçam e o que excluem para firmar estratégias direcionadas a governar uma população em determinada direção. Iniciamos apontando que a aproximação entre a família e a escola não existiu sempre; ela foi sendo constituída a partir de vários acontecimentos nos quais um feixe de relações de poder foi engendrado. Vale lembrar que a instituição escolar, com suas técnicas e procedimentos de intervenção, tem como objetivo conduzir as condutas infantis por meio de um modelo de escola que se implanta e se difunde a partir do século XVIII, quando a obrigatoriedade escolar é imposta em várias partes do ocidente e quando a população infantil passou a ser escolarizada “obrigatoriamente”, tendo a família como instituição parceira. Pretendemos dar visibilidade a uma instituição que ocupou um lugar privilegiado para a execução desses mecanismos de controle da população e reprodução da lógica liberal, os quais Foucault (2008a; 2008b) abordou durante sua trajetória. Essa instituição, a família, em diferentes momentos, apresentou-se como instrumento de governo da população e gestão da vida, operando na condução de condutas dos sujeitos e com o estudo dos diferentes meios pelos quais eles são moldados. Ademais, buscamos desnaturalizar e lançar outro olhar sobre ditos que reforçam o caráter hegemônico da escola, o que acaba alimentando sua ideia de condição natural, desconsiderando seu caráter de invenção.
Com a intenção de problematizar a aliança família-escola como ferramenta importante para o fortalecimento das verdades que circulam acerca da escola, selecionamos artigos científicos brasileiros a partir de uma busca realizada em dezembro de 2023, em três repositórios acadêmicos, a saber, o Portal de Periódicos da CAPES, o Google Acadêmico e o La Referência. Foram selecionados, nesses três repositórios, artigos científicos que abordam a temática aqui tratada, combinando as palavras-chave família e escola. O total de material foram 75 artigos científicos, considerando os seguintes filtros: apenas artigos científicos em língua portuguesa e produções decorrentes de 2015 a 2019. Do total de artigos, lemos os resumos e, após escrutínio inicial do material, selecionamos 10 produções mais aderentes ao objetivo, priorizando os textos que tinham a Educação como seu campo principal de saber.
Os artigos analisados neste estudo, que serão destacados na próxima seção, foram classificados e serão apresentados no corpo deste texto do seguinte modo: artigos encontrados no Portal de Periódicos da Capes estão indicados com a letra A; artigos do Google Acadêmico, com a letra B; produções do La Referência, com a letra C. Para nossa organização de dados, referenciamos um número que segue após a letra para identificar o artigo a que nos referimos, conforme nossa categorização metodológica.
Cabe mencionar que nossa decisão por apresentar os artigos com nossa classificação e organização investigativa justifica-se, a partir de Foucault (2001, p. 264), com uma pergunta bastante provocativa: “Que importa quem fala?”. Ao selecionar e colocar sobre a nossa mesa de trabalho os dez artigos científicos do campo educacional, interessa-nos a rede discursiva que conecta diferentes elementos e dá visibilidade à aliança família-escola. Uma rede discursiva que produz a cada um de nós como sujeitos deste tempo, imersos em um discurso de verdade e de fortalecimento da estreiteza entre escola e família. Uma rede quase imperceptível de tão legítima e indubitável que se faz em nossa sociedade. Daí porque não nos interessa o nome do autor, mas os “[...] modos de existência, de circulação e de funcionamentos de certos discursos no interior de uma sociedade” (Foucault, 2001, p. 274). Nosso propósito metodológico é dar a ver a rede que conecta diferentes fios e tramas, produzindo verdades e acionando uma governamentalidade em torno da inquestionável aliança entre família e escola. Destacamos que, nesses artigos, encontramos materializado o discurso de uma época – a nossa – e que a leitura é sempre realizada a partir de um interesse. Assim, recorremos à necessidade de discutir o material empírico não buscando encontrar uma verdade sobre a família e a escola, mas analisá-las a partir daquilo que Foucault (2013) chamou de monumentos.
Ao discorrer sobre a história, Foucault problematiza a noção de documentos, entendendo-os como construções discursivas que se produzem nos embates das relações de poder. Assim, o filósofo tensiona a noção de que os documentos são testemunhos objetivos e neutros da história. Valeria, então, enxergá-los e dimensioná-los como monumentos, dando a ver suas condições de produção do saber em um dado momento histórico. É nessa dimensão que Foucault (2013) potencializa seu conceito de discurso, demarcando sua formação e os atravessamentos dados nas tramas das relações de saber-poder em nossa sociedade. Assim, mais do que interpretar o que o documento descreve, tomá-lo como um monumento possibilita agrupar, relacionar e organizar os elementos em conjuntos, concebendo-os como ditos e produtores de verdades.
Isso permitiu que pudéssemos destacar regularidades discursivas que abordavam a aliança existente entre a família e a escola, fugindo de uma simples interpretação do seu conteúdo (Foucault, 2013). Encontramos recorrências que, após algum tempo de exercício analítico, compuseram e determinaram o aspecto a ser analisado neste estudo: a aliança família-escola como potente mecanismo que investe na escolarização compulsória e no governo da conduta dos sujeitos escolares.
3. De provocações, tensionamentos e enfrentamentos: a família e a escola como par indissociável a favor da escolarização obrigatória
A aliança entre família e escola assume uma legitimidade indubitável nos nossos dias. A necessidade da presença dos responsáveis pelos estudantes, no seu cotidiano de estudos, na sua organização de trabalho escolar e, vez ou outra, no interior dos muros institucionais, parece preencher o discurso tão característico da Educação: a importância da aliança família-escola.
Ainda que possamos ver aí desdobramentos bastante fecundos, merece estranharmos tal aliança no sentido de colocá-la sob suspeita e entender que essa díade se consolida como um valor de verdade em nosso tempo e, justo por isso, é tão difícil duvidá-la como um par de sucesso. Assim, imbuídas por ideias de Foucault e de pesquisadores da educação vinculados a essa vertente teórica, estranhamos essa consolidação para entender como ela se tornou uma verdade em nosso tempo.
Acompanhadas também de Nietzsche (2003), travamos uma batalha com as causas vencedoras, justo por entendermos que onde há consenso, há perigo. Não se trata de negar tal relação de antemão, mas de tensionar as verdades que nos rondam e nos constituem. Duvidá-las e rachá-las para entender como se fabricaram enquanto verdades, a tal ponto que se tornam naturais e legítimas sem nenhum escrutínio.
Desse modo, colocamos sob análise a relação direta entre o par família-escola e, em nossa época, encontramos recorrência e continuidade em tal discurso. Em nenhum dos artigos estudados, encontramos alguma possibilidade de duvidar, pensar outra vez a respeito de tal díade. As relações de confiança entre a escola e a família podem ser observadas nos fragmentos que seguem:
Para superar os desafios que enfrentam, hoje, [nas escolas] uma das alternativas é promover a colaboração entre escola e família (B2, p. 29).
Sabe-se que entre a família e a escola sempre haverá conflitos. Portanto, é preciso que as partes envolvidas nesse processo saibam manter uma relação significativa, que busquem um sentido real do contexto escolar, ou seja, que haja uma boa parceria entre família e escola (C2, p. 5).
A escola não deve agir isoladamente, mas, sim, estabelecer relações com outras instituições ou famílias a partir das dificuldades encontradas [...]. As relações familiares e educacionais são interdependentes, ambas devem possuir fortes e saudáveis vínculos (A3, p. 244).
[...] a família e a escola emergem como duas instituições fundamentais para desencadear os processos evolutivos das pessoas, atuando como propulsoras ou inibidoras do seu crescimento físico, intelectual, emocional e social (B2, p. 21).
Em cada um desses fragmentos, pode ser visto que a aproximação, o cuidado, a comunicação e o estar de mãos dadas cristalizam um ato importante no cotidiano escolar do estudante. A aproximação que se espera que a família estabeleça com a escola para evitar a violência, a evasão escolar, as dificuldades de aprendizagem, entre tantos outros, coloca-a em um patamar de responsabilização. A aliança esperada também visa evitar determinados problemas pelos quais a escola pode, efetivamente, passar e a ideia é que, se a relação entre essas duas instituições for produtiva e ocorrer de modo significativo, o sucesso escolar será mais certo.
Ao destacarem que família e escola contribuem para “a formação do cidadão” (A3) e que são “os dois principais ambientes de desenvolvimento humano” (B2), é visível o compromisso e a responsabilidade dessas duas instituições para que seja produzido um bom sujeito. Essa incitação e mobilização pela família ganhou força durante a Conferência Ações de Responsabilidade Social em Educação, momento em que foi elaborado o Compromisso Todos Pela Educação, no ano de 2007. Tal movimento propôs que a sociedade civil e a iniciativa privada se mobilizassem em prol da educação, utilizando a justificativa de que o Estado, sozinho, não daria conta de resolver as emergências da educação do país (Todos pela Educação, 2017).
Consideramos a família uma instituição importante dentro desse compromisso: “Mesmo se vencermos todas as batalhas para adotar as melhores práticas educacionais, perderemos a guerra caso as mesmas não contem com apoio e ação dos estudantes e seus pais” (C6, p. 50). A batalha a favor da aprendizagem e dos estudantes na escola só poderá ser vencida com o apoio da família. Valemo-nos, nesta subseção, de ditos que narram a escola do ponto de vista do seu compromisso com a mudança social, mas ela tem sido narrada de diferentes formas ao longo da história, assim como a família. Portanto, um pequeno recuo histórico parece interessante para compreender como a aliança entre a escola e a família se modificou ao longo dos anos, pois tal recuo fornece pistas para compreender de que modo chegamos a naturalizar tal relação.
Ainda que a família possa assumir outras configurações, Donzelot (1986) destaca que, no século XVIII, a família passou a ser concebida como ponto de apoio, pois a ela cabia cuidar dos indivíduos desregrados. A influência legítima que a família terá, como um espaço arquitetado que permite o controle de todos, a família celular, irá atuar diretamente no modo como se educam as crianças. É na entrega do corpo das crianças à escola que se estabelece uma potente aliança: a aliança família-escola. O que se constitui é um núcleo restrito e afetivo da família: a família célula, uma família-canguru, uma vez que o corpo da criança passa a ser visto como um elemento nuclear do corpo da família (Foucault, 2002). Um novo regime de vigilância, pautado no controle, na normalização e na disciplina entra em voga, pois os espaços, tanto da família quanto da escola, devem estar devidamente organizados de modo que o corpo das crianças se torne um corpo educado (Foucault, 2002).
De 1840 até o final do século XIX, tem-se a emergência de leis que protegem a infância, fazendo com que normas obriguem as famílias a vigiar e a cuidar seus filhos e filhas para que estes não sejam alvo do Estado. Donzelot (1986) aponta que, nesse período, surgem diversas profissões de cunho social – como orientadores e assistentes sociais – que têm como alvo cuidar da infância e tirá-la do perigo. Uma aliança entre a família e a escola, que funcionaria com o objetivo de transferir os corpos infantis, por algumas horas ao longo do dia, para as escolas, poderia ser uma alternativa potente.
A simultaneidade, a gradualidade e a universalidade, pilares sustentados por Comenius (1997) em seu ideal pansófico, somente poderiam ser alcançadas se existisse um acordo entre os que eram naturalmente encarregados da criança e entre os que eram efetivamente encarregados do aluno. Além de ser responsabilidade dos pais, para Comenius (1997), a educação deve ser responsabilidade de especialistas, uma vez que faltavam habilidades, tempo e espaço aos pais, e era necessário um lugar apropriado para os estudos. Ademais, a educação, se fosse de inteira responsabilidade dos pais, tornar-se-ia inútil, uma vez que o correto seria instruir a juventude em grupos mais numerosos.
Trata-se, como vimos em Scherer (2009), de uma partilha de tarefas que revaloriza a família, utilizando como apoio os experts da psicologia, da pedagogia e da psicanálise. Que pressupõe essa migração de um lugar para o outro? Para Narodowski (2001), a educação só pode se dar de modo harmonioso com a divisão das funções entre pais e professores: “É preciso que os pais cedam – a partir de um contrato implícito que aceita a legitimidade do saber dos professores – seus direitos sobre o corpo de seus filhos” (Narodowski, 2001, p. 52-53).
Na chamada escola materna, Comenius (1997) escreve um livro com as tarefas que serão descritas para os responsáveis, contendo os elementos necessários à formação das crianças, como palavras e gestos que devem ser usados, chamado de Guia para o ensino na escola materna. Semelhante ao objetivo de Comenius, na atualidade, o MEC distribui um guia denominado Educar é uma tarefa de todos nós (Brasil, 2002), guia este distribuído para 20 milhões de famílias brasileiras na terceira edição da Campanha do Dia Nacional da Família na Escola: “Um guia para a família participar, no dia a dia, da educação de nossas crianças” (Brasil, 2002, capa). Em uma infinidade de materiais, na forma de tratados práticos, mostram-nos como agir e acabam por ensinar aos pais e aos professores o que deve ser feito e pensado quando se trata de educação, prescrevendo formas de ser um professor ideal e um pai e uma mãe exemplares na contemporaneidade.
Nessa aliança, para Narodowski (2001), não existe espaço para qualquer tipo de coação dentro do que a escola estabelece para garantir a permanência das crianças na escola. Um dos motivos pelos quais os mecanismos de coação não existem se dá pelo fato de que a família e a escola apresentam condições equivalentes, isto é, possuem um objetivo comum e, por isso, estabelecem uma aliança. Além de ceder seus direitos sobre o corpo dos filhos e aceitar a legitimidade do saber dos professores, com o passar do tempo, outras responsabilidades recaem sobre a família. O bom desempenho dos alunos e uma aprendizagem eficiente, bem como o controle da evasão escolar, passam a se tornar responsabilidade das famílias, como pode ser evidenciado nos excertos seguintes:
[...] o envolvimento dos pais no processo educacional seria uma das mais importantes condições do bom desempenho escolar (B1, p. 17).
Os pais supervisionam e acompanham não somente a realização das atividades escolares, mas também adotam, em suas residências, estratégias voltadas à disciplina e ao controle de atividades lúdicas. Estas ações permitem a eles analisarem, identificarem e realizarem intervenções nos processos de desenvolvimento e aprendizagem dos filhos (B2, p. 27).
Promoção do aprofundamento das relações entre escola e comunidade, principalmente no que diz respeito à interação com os pais, a fim de que os mesmos sintam a importância da escola e passem a se preocupar mais com a vida escolar do aluno, orientando-o e incentivando a sua permanência na escola (C1, p. 131).
[...] é de suma importância que os gestores estabeleçam e promovam uma política de interação entre a família e a escola para que haja uma troca de informação sobre o comportamento e desempenho dos filhos. Assim, a escola precisa procurar se informar sobre aquele aluno que abandonou os estudos, os motivos de sua evasão e principalmente, buscar maior participação da família na educação dos filhos (C2, p. 5).
Tais instituições [família e escola] devem buscar novos métodos e terem os mesmos objetivos. Só assim é possível desenvolver um trabalho focado no desenvolvimento do sujeito, em todos os aspectos. Neste sentido, é preciso que a escola e a família fortaleçam cada vez mais os laços que as unem no processo de aprendizagem (C2, p. 6).
Nesses fragmentos, já é possível perceber uma exacerbação da participação da família para um melhor desempenho dos alunos nos estudos. Trata-se de uma aliança que implica um compartilhamento de responsabilidades. “Supervisionar as atividades escolares” (B2), bem como “controlar as atividades lúdicas” (B2) e uma “troca de informações sobre o comportamento” dos sujeitos escolares (C2) evidenciam um controle que passa de instituição para instituição, assim como um diálogo que a família e a escola devem manter para um melhor governamento dos sujeitos.
O engajamento dos pais na educação dos filhos é, muitas vezes, promovido como uma forma de melhorar os resultados educacionais e sociais, refletindo uma forma de governo que incentiva a participação ativa dos cidadãos e das cidadãs na gestão de suas responsabilidades. As expectativas sobre a participação dos pais são moldadas por estratégias governamentais e influenciam a prática educacional e familiar. Assim, analisar a aliança entre a família e a escola, por intermédio da lente da governamentalidade, envolve investigar que ditos de participação ativa e necessária na escola moldam e produzem verdades sobre essa relação. Ninguém a questiona. Essa análise revela as complexas interações entre normas sociais, políticas públicas e práticas institucionais na construção de uma governança educacional e familiar.
Apesar da aliança, essas instituições também passam por conflitos, que giram em torno da distribuição das obrigações de cada uma. A invasão de uma área pela outra (ou a acumulação) é uma usurpação de função, um conflito de poderes, tendo sempre como fundo a grande solidariedade adulta (Scherer, 2009). As instituições públicas tiveram que aceitar o controle das famílias sobre o funcionamento das crianças, o que faz aparecer condições de possibilidade para a emergência de outras formas de pensar e de agir nessa relação entre família e escola.
Foucault (2003) é didático ao afirmar que a questão do poder não apareceu apenas nos aparelhos de Estado, mas na vida cotidiana, “[...] nas relações entre os sexos, nas famílias, entre os doentes mentais e as pessoas sensatas, entre os doentes e os médicos, enfim, em tudo isso” (p. 233). Quando olhamos para a relação com a família, percebemos que o aparelho estatal escolar não dá conta, sozinho, de garantir a obrigatoriedade e a permanência dos estudantes, em seus muros, confinados. A família se torna instrumento fundamental para que a governamentalidade nos processos de escolarização possa acontecer. De acordo com Scherer (2009), a relação com os pais é insubstituível, eles são os únicos adultos por meio dos quais as instituições podem ter acesso às crianças.
Enquanto, na Modernidade, existia uma distinção nítida das responsabilidades da família e da escola, na contemporaneidade, as responsabilidades são compartilhadas. A família é apontada como solução para problemas educacionais, e sua maior participação na vida escolar dos filhos se mostra como ideal para a máxima Todos na escola. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), entre 2004 e 2005, apontaram a importância de se investigarem as famílias dos estudantes ao se verificarem os dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Nessa investigação, o Ministério da Educação (MEC) realizou grupos focais e entrevistou 10 mil pais ou responsáveis em todos os estados brasileiros, concluindo que baixa escolaridade, renda e formação familiar são aspectos que contribuem para o baixo desempenho dos estudantes (Brasil, 2005). Mais adiante, no final de 2008, a Fundação Itaú Social, ao realizar uma revisão de literatura de pesquisas nacionais e internacionais sobre a relação entre família e desempenho escolar, apontou a família como sendo responsável por 70% do desempenho escolar dos estudantes (Correio Braziliense, 2008).
Esses ditos contribuem para reinscrever a aliança que se estabelece entre família e escola. São prescritas normas de como a família deve agir, e é reafirmada a importância da escola enquanto uma instituição implicada na mudança social. Assim, na medida em que, agora, a família também é responsável pelo sucesso e pelo desempenho escolar dos filhos, a escola passa a se responsabilizar, também, pela educação que deveria vir de casa.
Essas práticas de auxílio por parte da família sobre a aprendizagem dos estudantes têm sido alvo de estudos e de análises no campo da sociologia de educação. Resende (2013), ao realizar um levantamento de estudos no Brasil sobre a relação das escolas e das famílias, aponta que o dever de casa reforça a aliança da escola com a família. O campo das pedagogias psi parece ser um solo fértil para analisar essa reconfiguração. São pedagogias combinadas com as reformas neoliberais da educação, formação dos professores e currículo; pedagogias que funcionam como estratégias de governamento das famílias, da escola e das crianças. A família passa a adquirir uma expertise sobre a educação e sobre o desenvolvimento das crianças, aumentando o controle sobre elas na medida em que divide as responsabilidades com a escola, instrumentalizando a capacidade que cada sujeito tem de se autogerir.
O experto produz discursivamente regras a serem adotadas para o autogoverno, de modo que, se o fracasso ocorrer, ele recairá sobre o próprio indivíduo. Tal expertise é exigida da família, que deve saber como lidar com a rotina do estudante, como funciona o processo de aprendizagem, como auxiliar nos deveres de casa, qual o modo correto de conversar com os filhos sobre os estudos, entre tantos outros. Aliado a isso, médicos, psiquiatras, assistentes sociais e professores têm adquirido maior responsabilidade pelos riscos que determinados sujeitos podem representar.
Vale lembrar que a ação sobre as escolhas dos sujeitos e as intervenções coercitivas que visam o governo da subjetividade não ocorrem por meio da repressão, “[...] mas através da persuasão inerente às suas verdades, das ansiedades estimuladas por suas normas e das atrações exercidas pelas imagens da vida e do eu que ela nos oferece” (Rose, 1998, p. 43-44). Desse modo, regulamos a nós mesmos, e os mecanismos de governo nos constroem como participantes ativos de nossas vidas. Não somos, portanto, dominados pelos interesses do poder, mas educados e convidados a mergulhar em uma espécie de pacto entre objetivos pessoais e objetivos socialmente valorizados, nesse caso, a educação.
Para Rose (1998), o governo age por meio de uma ação a distância, forjando indivíduos que se portem de tal modo, que consumam determinados itens, que sejam eficientes: “[...] o governo contemporâneo opera infiltrando, sutil e minuciosamente, as ambições do processo de regulação no interior mesmo de nossa existência e experiência como sujeitos” (Rose, 1998, p. 43). Nesse governo que age de modo sutil, os professores, por exemplo, são convidados a aconselhar, cuidar e praticar a pedagogia do amor, pois a escola é a segunda casa dos estudantes e não se pode ignorar que a escola necessita do envolvimento dos pais no ambiente escolar. Podemos perceber, nos fragmentos que seguem, que não é só a família a responsável pela educação:
[...] não é só a família que se impõe como instituição primária básica na vida de qualquer ser humano; o ambiente educacional também possui papel essencial (A3, p. 242, grifos em azul nossos).
[...] a família não é o único contexto em que a criança tem oportunidade de experiência e ampliar seu repertório como sujeito de aprendizagem e desenvolvimento. A escola também tem sua parcela de contribuição no desenvolvimento do indivíduo (C2, p. 5, grifos em azul nossos).
A responsabilização que escola e família têm adquirido passa a ir além do ensino, da aprendizagem e da questão cognitiva, constituindo-se como peça importante na educabilidade da moral e dos comportamentos do estudante. Em torno da necessidade da família para a escola, operam princípios de exclusão e de oposição entre o verdadeiro e o falso, e deparamo-nos com uma definição de família desejável e inteligível. Evidenciamos, também, a necessidade de uma força majorada para controlar a vida da população por meio de estratégias governamentais que são colocadas em operação nos espaços familiares e escolares.
Assim, no contexto da racionalidade neoliberal, a aliança entre a família e a escola é reinventada, ganhando outros contornos. As responsabilidades são firmadas para fiscalizar recursos e administrar aprendizagens. Podemos ver em Rose (1997) que, no início do século XX, ocorre uma redução de privacidade de esferas particulares, tais como a empresa e a família. O neoliberalismo imprimirá outros significados que permitirão examinar a organização social de outra forma, uma forma de governamento que estabelece e cria diferentes redes de responsabilidade e de confiabilidade (Rose, 1997).
Já na perspectiva da família, se esta é autogovernável, autogestora e sobre ela recaem outras responsabilidades (diferentes das responsabilidades a ela atribuídas no período da Modernidade), a aquisição de diferentes expertises para cuidar dos filhos ocorre na tentativa de responsabilizá-la pelo insucesso dos alunos na escola. Tal insucesso pode ser uma eventual reprovação, uma nota baixa ou a evasão escolar, situações em que a família é constantemente corresponsabilizada, em conjunto com a escola. Vejamos nos excertos:
[...] os pais não valorizam a escola como deveriam e esperam dela muito mais do que ela pode oferecer: “esperam que a escola eduque seus filhos para a vida e a escola não dá conta de tudo isso, pois a família precisa fazer sua parte (A1, p. 112, grifos em azul nossos).
Sabe-se que a estrutura familiar tem um forte impacto na permanência do aluno na escola, podendo evitar ou intensificar a evasão e a repetência escolar. Dentre os aspectos que contribuem para isto estão as características individuais, a ausência de hábitos de estudo, a falta às aulas e os problemas de comportamento (B2, p. 27, grifos em azul nossos).
Apesar de culpar a si própria pela desistência dos filhos, a família percebe que existem outros fatores que, direta ou indiretamente, contribuem para aumentar os índices registrados em relação à evasão escolar (C2, p. 5, grifos em azul nossos).
Em muitos casos, a própria família não destina o valor necessário à educação, preferindo que o jovem trabalhe e ajude no pagamento das despesas familiares, não motivando a sua permanência na escola (A4, p. 210, grifos em azul nossos).
[...] a relação da escola com os alunos, com os pais e com a comunidade onde está inserida pode ter um efeito incentivador para a permanência do aluno na escola ou para seu afastamento (A6, p. 100).
Em decorrência dos problemas sócio-culturais presentes na sociedade, os pais não aprenderam, ainda, a participar da vida escolar dos seus filhos, dando a devida prioridade ao desenvolvimento escolar dos mesmos. Isto é evidenciado, principalmente, pelos baixos índices de rendimento escolar, o que faz parte, também, da problemática sócio-cultural presente na sociedade (A5, p. 12, grifos em azul nossos).
Baixos índices de rendimento escolar, a falta de motivação para a permanência dos filhos na escola, preferência pelo filho trabalhador, índices de evasão, repetência escolar, entre outros, passam a ser responsabilidade da família. A cooperação, que visa um auxílio mútuo entre as partes, utiliza estratégias de participação da família na vida escolar dos seus filhos e filhas, ao mesmo tempo que coloca em ação táticas de corresponsabilização no sentido de nem somente a família, nem somente a escola serem responsáveis por reforçar a máxima Todos na escola. Uma vez mais, a aliança se consolida.
No que diz respeito à cooperação, o sociólogo e historiador norte-americano Sennett (2012) a compreende enquanto prática produzida por uma sociedade, como uma “troca em que as partes se beneficiam” (p. 15). Realizadas sob objetivos estabelecidos por um grupo de indivíduos com interesses em comum, as práticas de cooperação que foram evidenciadas nos excertos analisados ocorrem por meio de ações com o intuito de alcançar um propósito comum: todos na escola, todos por um melhor processo de aprendizagem escolar.
Determinadas condutas desejáveis e o motivo para o fracasso escolar impactam diretamente na permanência do estudante em sala de aula. Que seria uma conduta desejável? Estudar em casa, não faltar às aulas e não ter, por exemplo, problemas de comportamento. Ao afirmar que a família, muitas vezes, não destina valor à educação, preferindo que o jovem trabalhe e ajude no pagamento das despesas familiares, não motivando a sua permanência na escola, A4 escancara o governo e o controle das subjetividades e das condutas dos pobres, o governo de uma população que já é, por si só, excluída e se encontra às margens da sociedade.
Outra questão a ser levantada, aqui, é a forte tendência de desqualificação da escola pública e das famílias das camadas populares. Romanelli (2016) aponta que, ao desqualificar as famílias, são desconsideradas as particularidades de seus modos de vida e, em um tom preconceituoso, elas acabam sendo taxadas de famílias que não cuidam dos filhos e de sua escolarização, pois “não aprenderam, ainda, a participar da vida escolar dos seus filhos, porque não destinam o valor necessário à educação” (A5). Essa representação negativa que incide sobre a família da camada popular e da escola pública não ocorre – pelo menos não com tanta intensidade – em uma família de classe média cujos filhos estudam em uma escola privada.
Ao analisar quatro teses e seis dissertações que estabelecem aproximações entre família, escola, gênero e rendimento escolar, Carvalho (2004) problematiza o discurso da escola de que é a mulher, a mãe, a responsável pelo baixo rendimento dos filhos. A vida escolar dos filhos quase sempre é reduzida ao desempenho materno, o que reproduz concepções naturalizadas do senso comum, que colocam o cuidado, a proteção e o acompanhamento dos estudos atribuídos à figura da mãe, como mostra o artigo B2:
É comum a compreensão de que a evasão e a reprovação escolar são elementos condicionados pela família do aluno, onde quanto mais baixo o nível de escolaridade da mãe, por exemplo, mais tempo a criança permanece na escola. Nesse sentido, a família é apontada como um dos determinantes da evasão e do baixo rendimento escolar, seja pelas suas condições de vida, seja por não acompanhar o aluno em suas atividades escolares (B2, p. 114, grifo em azul nosso).
A ação familiar, no caso de B2 e de outros artigos sob análise, é reduzida à mãe, reforçando a concepção do senso comum que atribui à mulher o cuidado, a socialização e o acompanhamento de atividades dos filhos. Ao corresponsabilizar a família pelo desempenho dos estudantes, a escola a incita (principalmente a mãe) a se inteirar da educação do aluno, possibilitando a formação de um tipo desejável de conduta familiar que contribua para minimizar determinados riscos. Trata-se de um governamento pautado em estratégias de cooperação que utiliza mais da ordem do controle e menos da disciplina, pois, na cooperação, diferentes partes ganham por meio da troca (Sennett, 2011).
Diferentes modos são ativados para consolidar essa parceria. Miremos, agora, a gestão escolar. Como vimos discutindo neste texto, as famílias são mobilizadas no sentido de firmarem parcerias com a escola e com o Estado, dividindo responsabilidades no que diz respeito à educação por meio do ensino do autocuidado e do cuidado do outro, uma forma produtiva de governo. Outra estratégia, nesse mesmo sentido, refere-se ao estabelecimento de laços, por exemplo, por meio da participação em reuniões escolares, momentos nos quais a escola convida a família para a tomada de decisões:
Uma das estratégias que a escola pode usar para tornar a família sua aliada na educação é modificar a sistemática das reuniões que são feitas com os pais, uma vez que o convívio no contexto escolar revelou que geralmente os pais são chamados à escola para as reuniões de final de bimestre, quando são comunicados os resultados escolares dos alunos e os informes de interesse da escola (A1, p. 112).
[...] as formas de avaliação adotadas, bem como as estratégias para superar as dificuldades presentes no processo de ensino-aprendizagem, de maneira a incluir a família, exigem que as escolas insiram essa discussão no projeto político pedagógico, como forma de assegurar a sua compreensão e efetivar a participação dos pais que é ainda um ponto crítico na esfera educacional (B2, p. 28).
Aqui, a ênfase recai sobre uma família que, além de aliada, deve participar das decisões da escola, sendo sua parceira. A ideia é que cada escola organize a melhor estratégia de aproximação e de participação dos pais, instituindo a forma mais produtiva de receber a família na escola, na qual a participação nas reuniões escolares pode ser um meio de acesso. Quando a família é chamada para a tomada de decisões e para gerenciar os recursos da escola, ela acaba por reforçar uma comunidade local em que a gestão compartilhada de responsabilidades se torna fundamental (Klaus, 2011).
A responsabilização compartilhada é movida por uma constante intervenção das condições materiais, políticas, técnicas e educacionais do ambiente escolar. Tais ações não se restringem mais ao Estado, mas à sociedade como um todo. A aliança família-escola agora administra condutas e subjetividades humanas, engendrando um tipo de governo que não se utiliza da coação, mas de uma roupagem mais flexível, nesse caso, por meio do fortalecimento discursivo de que a família, agora, também é gestora da educação.
O aparecimento da família gestora nas escolas reinscreve o Estado, pois o desresponsabiliza de funções básicas. Famílias são convocadas a dividir responsabilidades com a escola, a serem parceiras nas decisões, a reforçarem a gestão e a fiscalizarem medidas adotadas pela direção da escola, fazendo com que, com o esforço conjunto, alcancem a máxima Todos na escola. A escola investe no governamento das famílias e da comunidade, uma vez que essa instituição não deve somente formar estudantes dóceis, “[...] deve também permitir vigiar os pais, informar-se de sua maneira de viver, seus recursos, sua piedade, seus costumes, minúsculo observatório social” (Foucault, 2014, p. 174). Essa lógica de governamentalização da vida implica um tipo de controle que concede uma sensação de liberdade, conferindo à família um status de participante da escola e de suas tomadas de decisão.
Nessa linha, os conselhos de pais e mestres, as reuniões escolares e a participação da comunidade na tomada de decisões ocupam um lugar importante na ocorrência dos acontecimentos discursivos da escola. O contexto da gestão democrática escolar controla, classifica, delibera e produz, e é realizado por meio de enunciados envolvidos em relações de poder. Colocar a família como participante dos processos de decisão possibilita que condutas sejam formadas, pois os pais devem saber que a educação é necessária, e é responsabilidade deles que os estudantes se mantenham nas escolas.
Essa política de responsabilização da família indica uma nova característica das técnicas de governo, que utiliza o discurso de Todos na escola como um mecanismo potente para fabricar sujeitos de determinado tipo, fazendo alianças com inúmeras instituições sociais que orientam, observam e conduzem sujeitos nas estratégias de ação governamental. Isso mostra uma sociedade cada vez mais governamentalizada e um Estado que vem sendo assumido, cada vez mais, dentro de cada um de nós.
4. Considerações finais
Garantir a escolarização de todos. Esse é o lema quando a aliança família-escola é reinventada a partir de uma lógica de corresponsabilidade. As enunciações que prescrevem o modo como a família deve se inserir na escola aumentam a responsabilidade que esta vem adquirindo no que diz respeito ao alcance das metas escolares.
O Estado é desresponsabilizado de certas funções básicas e a família é convocada a exercer uma parceria, utilizando práticas que interferem no sentido de gerenciar os riscos. Para melhor gerir os riscos sociais, a escola e a família compartilham responsabilidades, visto que o sucesso escolar passa a ser tarefa de todos, e sua busca pode se tornar mais fácil com a cooperação da família. Tais instituições atuam por meio de práticas normativas e engendram uma série de estratégias de colaboração que visam o governamento dos estudantes: “A família – aparelho estrito e localizado de formação – se solidifica no interior da grande e tradicional família-aliança” (Foucault, 2014, p. 305).
Os estudos de Michel Foucault possibilitam estranhar o discurso aceito como verdadeiro a respeito da aliança família-escola, mostrando que as estratégias, as tecnologias, os procedimentos e o seu funcionamento no interior de organizações discursivas permitem que outras formas de racionalidade política sejam colocadas em ação para o governo de uma população. A aliança entre a família e a escola pode ser vista como uma estratégia para alcançar objetivos mais amplos de governamentalidade, como a melhoria dos resultados educacionais, a formação de cidadãos e cidadãs responsáveis, a promoção da coesão social e o fortalecimento da máxima Todos na escola.
É desse modo, tão solidificado e tomado como indiscutível, que a aliança família-escola está longe de ser colocada sob escrutínio em nossa sociedade. Enxergar tal discurso como hegemônico e legítimo na esfera social é exercer a crítica a que nos convida Foucault: pensar sobre o dado e estabelecido para entender a fabricação daquilo que somos. Com esse exercício, escrevemos o referido artigo e desejamos que, em alguma medida, o leitor leve seu pensamento ao limite, estranhando nossas verdades e criando fissuras para, mais uma vez, pensarmos nos modos como nos tornamos sujeitos em uma sociedade marcada, necessariamente, pelo governamento das condutas, seja por meio da família, seja por meio da escola.
Referências
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* O artigo aqui apresentado é desdobramento da tese de doutorado da primeira autora (Kroetz, 2019). A partir de estudos desenvolvidos, naquele momento, produz-se o presente texto que compõe a pesquisa científica que vem sendo desenvolvida pelas autoras junto à FAPERGS – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul e ao CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, ambos órgãos de fomento da pesquisa no Brasil.
Cómo citar en APA:
Kroetz, K., & Corrêa Henning, P. (2025). A aliança família-escola como estratégia para fortalecer a máxima educacional todos na escola. Revista Iberoamericana de Educación, 98(1), 23-38. https://doi.org/10.35362/rie9816767