Aquilo que alguém viveu é, no melhor dos casos, comparável
à bela figura à qual, em transportes foram quebrados
todos os membros, e que agora nada mais oferece a não ser
o bloco precioso a partir do qual ele tem que esculpir a imagem
de seu futuro. Cada indivíduo é impelido pelo desejo
de ser visto, ouvido, discutido, aprovado e respeitado pelas pessoas
que o cercam e que o conhecem. A sociedade escópica que caracteriza
nosso tempo parece ter optado pelo reducionismo do ser visto, pela
indução ao tenha seu minuto de fama. Os avanços
tecnológicos típicos de nossos tempos permitem a fabricação
de múltiplos aparelhos captadores e reprodutores de visões,
não apenas para que o ser humano possa ver, mas principalmente
para ser visto. O mesmo olhar que retorna como um mandamento de
prazer: Veja! Diz: Mostre-me. Mesmo sem vê-lo, o olhar está
presente: Sorria! Você está sendo filmado.
Mas, o que está sendo filmado? Um corpo...Múltiplas
imagens...Aparências... Imagens típicas de nossos dias
chegam como imperativos de ideais a serem seguidos. Trata-se de
modelos de identificação constituintes da identidade,
fabricada pela propaganda, pelo esporte, nos quais o apelo à
identificação, por sua vez faz um apelo ao corpo:
o espetáculo. O poder de fascinação é,
ao mesmo tempo, modelo de captura, e faz o espectador identificar-se
com o vencedor (Porto, 2002).
Questiona-se, então: como fica a identidade
do ser humano obeso, cujo corpo foge aos padrões impostos
pela sociedade escópica? Lembramos da professora de nossa
pesquisa. Entretanto, ela nem sempre foi assim. Traz relatos que
convidam a uma viagem pelos caminhos da existência. Caminhos
da memória: Infância, de Graciliano Ramos; Confesso
que Vivi, de Pablo Neruda; Gaveta dos Guardados, de Iberê
Camargo.
Estudar e trabalhar ao mesmo tempo. Já são
quinze anos nessa luta. Não tive tempo para cuidar do meu
corpo. Diz a professora em uma das entrevistas.
Como posso trabalhar se não consigo acompanhar
a velocidade dos movimentos dos meus alunos? Gorda, com 125 quilos...
Essa é a imagem que vejo quando olho no espelho... Formada
em Artes Plásticas, o que faço com minha plástica,
com meu corpo? Refere em outra entrevista.
O espelho físico sempre foi objeto de infinita
curiosidade e diversos interesses para os seres humanos. Não
se trata simplesmente do objeto espelho, mas das relações
entre espelho físico e espelho humano. O espelho reflete
a imagem, mas o ser humano é muito mais do que uma imagem.
Ser criativo, desejante, capaz de simbolizar, de sublimar... Sublime
ação... (Vasconcelos, 2002).
A professora dedica-se ao outro, à educação,
função pedagógica. Mas, não dispõe
de tempo para cuidar do próprio corpo. É hereditário...
Somos todas umas madonas: minha avó, minha mãe, minhas
irmãs, eu... diz a professora.Os espelhos humanos estão
sempre às voltas com as brumas mais ou menos cerradas de
seus subjetivismos. Na verdade, a trajetória do processo
de subjetivação não é linear.Na vida
não há um único confronto, nem existe um único
ponto de vista. Entre as demandas inconscientes e conscientes, muitas
vezes não há um lugar seguro onde seja possível
pousar a cabeça. Não existem pontos privilegiados
do olhar. Olhar é, então, desviar o olhar.
Na sociedade escópica, o olhar, excluído
da simbolização efetuada pela cultura sobre a natureza
retorna sobre a civilização. Traz consigo o imperativo
do supereu, um comando de mostrar-se a ver, de tornar-se visível,
mas visível de um modo ditado a partir de modelos sociais.
O outro me vê. Logo, eu existo. Tende-se , a partir dessa
evidência a uma verdadeira paranóia pelo medo de não
ser visto (Melo Filho, 1985).
Quando ocorre um estancamento na criatividade surge
o vazio interior. A exposição ao aqui e agora da imagem
revela a carência fantasmática, a pobreza de espírito.
No vazio da imagem congelada
e silenciosa, a pulsão de morte grita.
Eu já não sei mais o que é estético,
se tenho alguma estética, porque hoje quem tem peso elevado
foge aos padrões. Que padrões? De onde vem esses padrões?
Questiona a professora.
Na sua dimensão estética, Vasconcelos
(2002) refere que a vivência dos traumas, dos choques, assim
como a vida imersa em atividades repetitivas diminui a faculdade
de trocar experiências, podendo esterilizar a função
estética. O artista criador retira sua matéria da
vida comum. E, ao lado dos artistas e dos gênios consagrados
há uma imensa criação anônima de desconhecidos.
A arte é produto da atividade humana.
Para Vygotsky (2001) arte não é adorno da vida. A
imaginação criadora reveste-se de ubiqüidade.
Imaginar é uma capacidade tipicamente humana, cujo significado
inclui imagem, ação e magia. Mas não é
inconsciente, é uma lembrança do que é ou foi
vivido, visto, ouvido. Se a sociedade defende um tipo de beleza,
um modelo de corpo que povoa as imagens da mídia, da moda,
que está nos outdoors de nosso caminho cotidiano, naturalmente
esses modelos passam a integrar o imaginário dos indivíduos.
É uma forma de linguagem. A linguagem possibilita a regulação
psíquica da atividade humana, na medida em que contém
o sentido como elemento da cultura, exprimindo a experiência
vivida nas relações sociais.
A sociedade de nossos dias remete-nos à concretude
do corpo enquanto imagem. Ao corpo capaz de produzir sensações.
A dimensão da imagem do corpo adquire então, uma materialidade
que impressiona Pode-se observar a precariedade que existe na imagem
corporal. Como se não houvesse futuro.
Por que as pessoas devem ser obrigatoriamente magras?
A minha obesidade me exclui de muitas coisas... Eu me sinto excluída.
Trabalho com crianças surdas, também excluídas...
Refere a professora.
A história de vida, longe de ser linear é dialética.
Ela teima constantemente em romper com o estabelecido. È
justamente porque ela é tecida no seio da vida, e por ela
alimentada, que insiste em sacudir o mofo da supremacia do racional
que esconde o alento.
Muitos textos referem a exclusão no contexto
escolar, sob a ótica dos estudantes. Nossas reflexões,
nesse artigo, dirigem o foco para o professor. Uma questão
foi apresentada pela professora, por ocasião de sua primeira
entrevista: como fica a inclusão quando o excluído
é o profesor?
Na ótica da professora, a exclusão ocorre
pela questão da obesidade. Entretanto há muito mais
a ser ponderado.Como docente graduada em Artes Plásticas,
professora dessa área parece haver um imperativo da ordem
do siga os padrões plásticos de sua época.Mesmo
que a professora domine novas mídias e tecnologias, que utilize
recursos didáticos diversificados e atualizados, a mesma
sente um descompasso entre o que é, o que mostra, e o que
acredita compartilhar com seus alunos em sala de aula. Possivelmente
a área de conhecimento da professora seja sensível
a essa questão, mas não se trata de exclusividade
dessa área, muito menos de um parâmetro que os currículos
contemplam. A sociedade de nossos dias valoriza excessivamente a
aparência, o ter em lugar do ser. Essa dimensão atinge
com intensidade profissionais ligados às visualidades: Artes
Visuais, Moda, Design, dentre outras. Mais uma vez o ser humano
passa a ser definido pelo que faz, pelo que mostra e produz, muito
mais do que pelo que é.
Compreender a docência como uma das atividades
constitutivas de saberes em Artes Visuais implica em reconhecer
que trata-se de um exercício contínuo de crises com
múltiplos significados, de construções, reconstruções
e ressignificações. Essa dinâmica supõe
ajustes constantes nas trocas que se estabelecem entre professores
e alunos para facilitar fluxos de energia criativa e possibilidades
de criação. Inclui, assim,experiências e potencialidades
renovadoras. O ensino de Artes Visuais impõe reflexões
aprofundadas ao professor como sujeito do processo educativo. Envolve
complexos aspectos sensoriais, perceptivos, corporais, emocionais
e intelectuais, que favorecem o desencadeamento de mecanismos expressivos.
O desenvolvimento da própria capacidade criativa
do professor está relacionado com possibilidades reflexivas
sobre a ação educativa. Parte-se da concepção
de que a criatividade é uma ação combinada
de originalidade, sensibilidade, curiosidade e inteligência,
que possibilita o distanciamento da rotina e amplia o campo de escolhas.
Trata-se de uma complexa trama entre conhecimento
e imaginário: imaginário que é, ao mesmo tempo,
pessoal e intransferível, mas que é também
social. Essa visão contempla uma complexa trama entre fatos,
fenômenos e significados que permeiam o cotidiano do professor
como ser humano. Ao criar vincula o processo de aquisição
do conhecimento a funções psicológicas superiores,
tipicamente humanas, tais como a capacidade de criar e de imaginar.
Assim, investe na busca do sentido estético, recriando e
revitalizando a cultura.
Insere-se na trama que envolve o fortalecimento do
corpo social, que desperta o desejo de participação,
de experimentação conjunta, de incorporação
afetiva do ambiente cotidiano. Ao mesmo em que cria, recria a si
mesmo, incorporando novos modos de transformar vicissitudes em potencial
criativo. Trata-se de uma aproximação ao que Maffesoli
(1996, 38) denomina de aisthesis: um experimentar junto emoções.
Esse processo possibilita novas visibilidades a partir
de realidades internas e externas, onde elementos indiferenciados
e informes são transformados em novas organizações,
plasmando-se marcas e novos registros. Da criação
emana um princípio de organização que favorece
o simbolismo e gesta um caráter para a visibilidade situada
aquém ou além da razão.
Bibliografia
MAFFESOLI, M. (1996): No fundo das aparências.
Petrópolis, Vozes.
MELLO FILHO, J. (1986): O ser e o viver. Porto Alegre, Artes Médicas.
PORTO, T. (2002): Linguagens em educação e comunicação.
Pelotas, Ed. UFPEL.
VASCONCELOS, M. (2002): Criatividade. São Paulo, Moderna.
VYGOTSKY, L. (2001): Psicologia da Arte. São Paulo, Martins
Fontes.
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