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 Número 48: Septiembre-Diciembre / Setembro-Dezembro 2008

Políticas de educación en tiempos de globalización / Políticas de educação em tempos de globalização

  Índice número 48 

Globlalização e reforma educacional no Brasil (1985-2005)

José Eustáquio Romão *

* Consultor da UNESCO e do Ministério da Educação do Brasil.

Síntese: Este trabalho tem por objetivo estabelecer os impactos mais profundos, positivos e negativos, sobre as reformas educacionais brasileiras nos últimos vinte anos, bem como sobre as políticas públicas delas decorrentes. Para tanto, aborda o conceito de «globalização» ou «globalizações», além de descrever e analisar criticamente o cenário histórico em que, concretamente, o embate se dá na formação social brasileira contemporânea. Examina ainda, a especificidade do conceito na América Latina e no Brasil, com sua conotação politológica negativa, destacando a «planetarização» como globalização alternativa.

Palavras-chave: globalização e educação; reforma educacional; políticas educacionais.

Síntesis: Este trabajo tiene por objetivo establecer los impactos más profundos, positivos y negativos, sobre las reformas educativas brasileñas en los últimos veinte años, así como sobre las políticas públicas subsecuentes. Para ello, aborda el concepto de «globalización» o «globalizaciones», además de describir y analizar críticamente el escenario histórico en que, concretamente, esta confrontación se da en la formación social brasileña contemporánea. Examina también, la especificidad del concepto en América Latina y en Brasil, con su connotación política negativa, destacando la «planetarización» como globalización alternativa.

Palabras clave: globalización y educación; reforma educativa; políticas educativas.

Abstract: The goal of this paper is to establish the most important impacts, negative and positive, on the Brazilian educational reforms of the past twenty years, and on the subsequent public policies. For this purpose, it addresses the concept of «globalization» or «globalizations», and also critically describes and analyzes the historic scenario in which, concretely, this confrontation takes place in Brazilian contemporary social conformation. It also examines the specificity of the concept in Latin America and in Brazil, with its negative political connotation, highlighting the «planetization» as an alternative globalization.

Key words: globalization and education; educational reform; educational policies.

1.       INTRODUÇÃO

A reconstituição da história das reformas educacionais que ocorreram no Brasil, nos últimos 25 anos, exige recuar de 2005 até o ano de 1980. Contudo, esta última data não tem maior significado na história do país, nem, muito menos na trajetória de sua educação nacional. Nessa época, a nação estava eclipsada por uma ditadura que, implantada em 1964, dominaria o país por mais de duas décadas. É verdade que, na primeira metade dos anos oitentas do século passado, ela já apresentava seus primeiros sinais de esgotamento, em um dos governos mais medíocres dentre os que os militares haviam imposto ao país. De «escancarada», a ditadura passara a «envergonhada», «encurralada» e, finalmente, «derrotada», na feliz adjetivação de Elio Gaspari (2002-2004), ao analisar os 21 anos de governos de caserna autoritários (1964-1985).

Se se arredondarem as datas, como se faz em períodos de média e de longa duração, de acordo com Fernand Braudel1, pode-se considerar, grosso modo, os meados da década de oitenta para o recuo histórico. Sabemos que os marcos históricos não se encaixam nos limites rigorosos das periodizações meramente cronológicas, mas devem ser considerados a partir da expressividade de determinados eventos que deixam conseqüências profundas e duradouras.

Nesse período, não há como desconhecer os impactos da Globalização2 nos sistemas educacionais brasileiros3. Mas, considerando-se a especificidade da História do Brasil, mormente a de seu sistema educacional, é aconselhável concentrar a atenção no que ocorreu nos últimos 20 anos4.

Na América Latina e, portanto, no Brasil, o vocábulo «globalização» tem se prestado à designação de vários fenômenos, com uma nítida predominância de um significado impregnado por uma conotação política negativa. Não há como tratar dos impactos da globalização nas reformas educacionais brasileiras sem levar em consideração as semânticas específicas, pois elas estarão presentes nos discursos dos diversos sujeitos envolvidos.

O ano de 1985 é o marco simbólico da vitória da forças democráticas brasileiras contra o poder do arbítrio militar, que já ultrapassava duas décadas. A luta da resistência democrática se travara desde a implantação da ditadura em 1964 e, durante os governos militares, muitas políticas inspiradas na globalização foram formuladas, implantadas e implementadas sob o silêncio da nação amordaçada.

De 1985 a 1996, paralelamente ao processo de organização e mobilização popular pela redemocratização do país, os educadores, em parceria com parlamentares aliados que atuavam na Assembléia Nacional Constituinte, buscaram recriar o Sistema Educacional Brasileiro que havia sido fragmentado e privatizado pelos governos da ditadura militar. Mas recriá-lo significava, além de recuperar sua integração horizontal e vertical, resgatar e aprofundar, também, seu caráter público e democratizado. É foi aí, então, que se travou a grande batalha contra a globalização, entendida negativamente pelas forças progressistas da educação.

Já o ano de 2005 foi marcado por intensos debates sobre a reforma da educação superior no Brasil, a partir de anteprojeto de lei apresentado pelo Ministério da Educação à discussão da sociedade civil organizada, para posterior encaminhamento ao Congresso Nacional. O anteprojeto foi discutido com a comunidade educacional brasileira durante quase dois anos, mas teve sua tramitação interrompida.

O primeiro mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva terminou em 2006, sem que se tivesse a menor chance de retomar a discussão do anteprojeto, já transformado em projeto de reforma do ensino superior. Inicia-se o segundo mandato de Lula, – com o Presidente tendo sido reeleito, em segundo turno5, por uma esmagadora maioria de votos sobre seu concorrente – e abre-se o novo Congresso com uma grande expectativa. Para os interessados na reforma educacional, espera-se a retomada das discussões do projeto, que teve sua tramitação paralisada desde 2005.

2.       GLOBALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO

O terceiro mundo precisa começar uma nova história da humanidade

Frrantz Fanon6

A afirmação de Fanon é uma mera vã esperança? Representa ela a bagagem retórica perdida de algum louco ou sonhador? Pode-se afirmar que não é nem o sonho de um poeta, nem o delírio de um insano, mas a categórica afirmação de mulheres e homens revolucionários que têm a utopia como horizonte.

Este texto pretende contribuir para o Projeto Globalização e Educação7, que envolve pesquisadores de quase duas dezenas de países. Este projeto de pesquisa busca compreender como a globalização afetou as reformas educacionais dos sistemas nacionais de educação, impactando desde a Educação Infantil até a Superior. Os países selecionados para o estudo original foram Argentina, Brasil, Canadá, China, Itália, Japão, Coréia, Estados Unidos, México, Portugal, Espa­nha e Taiwan. Outros países foram se integrando, pois o projeto continuaria aberto a outras adesões8.

Para desenvolvê-lo, satisfatoriamente, devemos ter referenciais tanto teóricos quanto epistemológicos comuns. Em outras palavras, precisamos saber, uns dos outros, de que «globalização» se está falando e de que métodos de pesquisa se pode lançar mão coletivamente. Então, comecemos com o significado de globalização e, logo a seguir, examinemos as possibilidades de um quadro teórico-metodológico de consenso.

2.1     Globalização ou Globalizações

Por um lado, entende-se, hoje, que a globalização é a expansão internacional das relações capitalistas de produção; a expansão internacional do modo de vida burguês e de sua visão de mundo e, finalmente, a planetarização das comunicações e das novas tecnologias. O sucesso do empreendimento burguês facilita a universalização do acordo do senso comum sobre o mito hegemônico e exclusivista da Civilização Ocidental Cristã, considerado como «processo civilizatório» terminal9.

Por outro, não há consenso quanto a ser ele um processo positivo de construção, porque muitas pessoas estão sendo afetadas pelos efeitos de sua destruição. O eventual10 sucesso econômico da globalização é certamente responsável pela destruição ambiental e pelo crescimento da desigualdade, entre outros fracassos.

A globalização criou novas conexões internacionais entre os Estados Nacionais e entre eles e o processo de acumulação capitalista global. Progressivamente, o estado Nacional foi internacionalizado. Esta internacionalização foi (e continua sendo) a internacionalização de novas obrigações, ou funções que são impostas por esse processo. A internacionalização da produção e das finanças provocou a internacionalização do aparato dos Estados, ou re-estruturou suas hierarquias, configurando outra esfera pública, outra estrutura ministerial, com evidente superioridade daqueles que tomam conta da economia (fazenda, banco central, relações internacionais etc.).

«Globalismo» foi (e é) a formulação ideológica preparada por um esforço hegemônico coletivo (Comissão Trilateral, Clube de Roma, ocde etc.), a fim de redefinir o papel do Estado Nacional, enquanto uma hiper-liberal forma estatal. Este tipo de Estado, apegado ao compromisso do pós-guerra que ligava trabalho e bem-estar, assumiu a função de mediar os interesses nacionais e a ordem global. O «globalismo» foi configurado, então, por linhas consensuais que não são explícitas, mas que são sustentadas pela ideologia dos gestores oficiais da economia global e são transferidas para o interior do ideário e das propostas dos formuladores políticas dos Governos Nacionais.

2.2     Globalização e Estado

A grande questão sobre a globalização é: Por que o Estado Liberal dos meados do século xix tornou-se o Estado de Bem-Estar nos meados do século xx, mas, ao final deste mesmo século, teve de se transformar no Estado Neoliberal? Ou seja, por que o Estado Nacional Moderno, que promovia os interesses do capital pelo laissez-faire, mudou sua performance para fortalecer a disciplina do mercado, aparentemente revelando preocupações sociais – embora sempre trabalhando, prioritariamente, de acordo com os interesses do capital – para, finalmente, terminar revelando sua verdadeira face, que tem compromisso com a desigualdade e com a tendência estrutural ao autoritarismo11?

É claro que o papel de cada Estado era (e continua sendo) determinado pelas lutas entre as forças localizadas no interior de cada formação social. Depois dos anos noventas, tornou-se impossível cumprir aquele papel sem prestar atenção à produção e às finanças internacionais. É que, nem o Estado Nacional pode manter ou desenvolver sua capacidade para resistir às pressões do capital «globalizado», nem foi possível construir ainda um consenso internacional sobre uma regulação transnacional dos mercados capitalistas. Este verdadeiro «tsunami econômico», que se abate sobre o tecido social, não pode ter suas gigantescas forças controladas. Em suma, a faca e o queijo do capital internacional é a fragilidade do Estado Nacional e o vácuo de um Estado Transnacional, ou algo parecido, que ainda não foi possível erigir.

Ao lado deste processo de destruição, a grande mobilidade do capital gera o «desempoderamento» dos governos nacionais, na medida em que se torna cada vez mais difícil para as nações imporem normas às empresas. Efetivamente, o poder dos governos tem se tornado mais e mais limitado pela regulamentação dos negócios particulares. Neste sentido, o Capitalismo Global não tem bandeiras; seu compromisso é com o lucro. Mais ainda, a globalização capitalista enfraquece a democracia pela limitação do poder dos governos nacionais e locais de exercer qualquer controle sobre a mobilidade, que dá ao capital a possibilidade de escapar de «normas onerosas», isto é, dos sistemas fiscais. «Talvez, a mais danosa contradição social da globalização seja seus impactos [negativos] sobre a democracia», como escreveu Arthur MacEwan (op. cit., p. 9).

Assim, a globalização criou novas conexões internacionais entre os Estados Nacionais e o processo capitalista de acumulação global. Progressivamente, os Estados Nacionais foram internacionalizados. Esta internacionalização dos Estados Nacionais foi a internalização de novas obrigações e funções que eles tiveram de assumir, por imposição daquele processo. O «consenso global» é transformado em política nacional, ou, em outras palavras, os interesses capitalistas das classes dominantes são transformados em políticas «públicas»12, ou melhor, estatais nacionais.

A lógica da globalização (competição capitalista internacional) é, por um lado, agir globalmente e controlar localmente. Por outro lado, como veremos mais adiante. A lógica da «planetarização», é agir localmente e pensar globalmente, para reconfigurar a nova cidadania planetária plena. Enquanto a lógica da globalização mira projetos globais, a da «planetarização», ao contrário, focaliza histórias locais.

As organizações privadas transnacionais assumiram papel tão importante na estrutura de poder de âmbito internacional, que acabaram se tornando uma «nebulosa», uma governanção sem governo. E isto aconteceu exatamente porque o mundo bi-polarizado tornou-se um mundo mono-polarizado, com um centro suficientemente grande para não se submeter a qualquer disciplina externa, mas que não é suficientemente grande para estabelecer regras consensuais para uma nova ordem. O Estado Nacional, tão forte quanto deveria ser, falhou ao tentar controlar o capital.

Será que o Estado Nacional (Burguês) pode se tornar o mediador entre as prioridades estabelecidas pelas políticas internacionais e as forças sociais internas? Ou ele continua sendo a organização da expansão da acumulação capitalista e de sua reprodução? É necessário enfatizar que as promessas da equação necessária entre o sucesso internacional do capital e o crescimento das economias nacionais falharam. Ou seja, mesmo no estrito campo econômico, a utopia neoliberal burguesa fracassou, e isto aconteceu exatamente porque «se globalização gera desigualdade, ela tende a minar o crescimento» (MacEwan, op. cit.p. 15, 19).

Que lições podem ser tiradas da análise crítica da globalização?

Em primeiro lugar, ela mudou as relações entre capital e trabalho, em todo o mundo, provocando um dos mais dramáticos e homogêneos sistemas de produção: com a redução (ou até mesmo destruição) das barreiras ao comércio e com a globalização das relações de produção, os trabalhadores estão produzindo as mesmas coisas, da mesma maneira, para os mesmos mercados, nas diferentes partes da Terra (MacEwan, op. cit., p. 20). Transferindo suas unidades produtivas e tecnologias para países do Terceiro Mundo, as «firmas globalizadas» tentam diminuir seus custos por meio da redução de salários. Agindo assim, tiveram de extinguir as fronteiras econômicas nacionais, pondo trabalhadores de diferentes nacionalidades em competição, mas, ao mesmo tempo, fortaleceram a solidariedade, dialeticamente, na medida em que criaram universos iguais do capital e das relações de trabalho. Em segundo lugar, a globalização forçou a «feminização» da mão-de-obra economicamente ativa, por uma série de fatores, dentre os quais é importante enfatizar: (i) a destruição da produção doméstica e (ii) a busca de salários mais baixos e da paz no campo da luta de classes. As altas taxas de emprego de mulheres revelam a convicção conservadora de que elas são mais pacientes e pacíficas do que os homens, e que aceitarão a submissão e, desta forma, serão mais eficientes na competitividade internacional. É muito curioso que considerem que «quanto mais paciente, mais eficiente»: os mercados livres requerem mais paciência (para sofrer) do que força de trabalho. Por outro lado, as mulheres se vinculam mais profundamente com a cultura de suas comunidades, porque elas têm sido, desde a destruição da produção doméstica, as provedoras da sobrevivência. A única alternativa possível para a sobrevivência do projeto capitalista é o «emprego pleno porque é provável que o mais poderoso programa conduza a uma melhor distribuição de renda» (id., ib., p. 24). Isto significa que, para manter o capitalismo e evitar a conquista de uma nova ordem social, a burguesia promove transformações até mesmo na «essência» deste modo de produção, a fim de não mudar o que quer que seja.

É necessário reconhecer que, para o entendimento das contradições desta verdadeira «corrida sem sair do mesmo lugar», o estudo da dinâmica das fases históricas da acumulação capitalista (liberal, monopolista, organizado e, finalmente «globalizado») é necessário em lugar do exame de suas diferentes estruturas formais (capitalismo comercial, industrial e financeiro). Lucien Goldmann estabeleceu a diferença essencial destes tipos de estudos e apontou para a relevância epistemológica do primeiro tipo13.

2.3     Globalização Alternativa

Os pensadores acadêmicos críticos têm contribuído para a construção coletiva – como pôde ser visto no Fórum Social Mundial, no Brasil e em outros países – de alternativas sociais que confrontem o colonialismo, a dependência e a exclusão imposta pela globalização tanto aos países da periferia, quanto às populações oprimidas dos países centrais.

As promessas não cumpridas da globalização em relação à justiça social e à democratização geraram reações em todo o mundo, que sublinhavam a necessidade de alternativas à globalização hegemônica, ou, pelo menos, à percepção de um caminho fora dela, ou, finalmente, um escudo contra seu processo destrutivo.

Intelectuais de variados campos científicos, de muitas nações, responderam, de forma diversificada, às questões sobre esta matéria, mas todos eles têm insistido em uma globalização adjetivada, para marcar a diferença entre «sua globalização construtiva» e a «destrutiva globalização hegemônica».

No Instituto Paulo Freire do Brasil, temos evitado qualificativos como «globalização alternativa», «outra globalização», «globalização contra-hegemônica», por causa de seu caráter defensivo que enfraquece as posições críticas e democráticas. Temos preferido o termo «planetarização», por uma série de razões, dentre as quais uma deve ser enfatizada: apesar de sua conotação ecológica, a planetarização é o eixo de nossas discussões sobre a cidadania universalizada. Por causa disso, convidamos todos os participantes do primeiro Congresso Binacional (Brasil e Portugal) das equipes do Projeto Globalização e Educação a subscreverem este «Manifesto da Planetarização».

3.       GLOBALIZAÇÃO E REFORMA EDUCACIONAL BRASILEIRA

Não há consenso quanto ao conceito de globalização, nem mesmo quanto à designação do fenômeno. Como já afirmamos, há autores, especialmente os europeus, que preferem o termo «mundialização»; outros há que fazem-no recuar há cerca de 500 anos, como é o caso do sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein.

O sociólogo português Boaventura de Souza Santos (2001, p. 93) afirmou que a globalização precisa ser considerada no plural, por causa de suas manifestações e expressões diversificadas, propondo:

[...] a distinção entre globalização de alta intensidade para os processos rápidos, intensos e relativamente monocausais de globalização, e globalização de baixa intensidade, para os processos mais lentos e difusos e mais ambíguos na sua causalidade (Teodoro, 2003, p. 94).

Para o próprio Boaventura, por um lado, a globalização de baixa intensidade ocorre no universo das trocas em que as desigualdades não são tão grandes, ou seja, em que as diferenças de poder entre os países não são tão marcantes, restando um largo espaço para as iniciativas do Estado Nacional. Por outro lado, globalização de alta intensidade tende a predominar em situações em que as trocas são muito mais desiguais e as diferenças de poder são grandes, sobrando pouco espaço para a ação desse tipo de Estado. Para ele, Economia e Política situar-se-iam no universo da globalização de alta intensidade, enquanto Educação situar-se-ia entre as atividades humanas de baixa intensidade de globalização, permanecendo um campo mais vasto para as reformas, formulação e aplicação de políticas nacionais. Entretanto, mesmo reconhecendo que esta classificação é uma poderosa e útil idéia, a especificidade da reforma educacional brasileira conduz-nos a pensar sobre a globalização hegemônica como sendo do tipo de alta intensidade. Ela apenas não é explicitada como de alta intensidade, mas está intensamente implícita na orientação das reformas e das políticas educacionais latino-americanas.

3.1     A Reforma do Sistema Educacional Brasileiro

Nos inícios dos anos oitentas do século xx, a ditadura militar começou a dar os primeiros sinais de seu esgotamento e o relativo relaxamento da censura e da repressão abriu espaço para as primeiras manifestações mais explícitas da resistência democrática. Em 1985, o país completou seu «processo de redemocratização» e, no bojo da mobilização mais geral, desenvolveu-se, quase que imediatamente, um amplo movimento social voltado para a formulação da segunda ldb da História da Educação Brasileira. Na atmosfera democrática de resgate das estruturas institucionais da nação, no contexto da Assembléia Nacional Constituinte, toda a comunidade educacional brasileira participou das discussões sobre o projeto da nova ldb, durante quatro anos, em debates e consultas que foram organizados por todo o país. Foi um longo processo, mas o entusiasmo era geral, porque, pela primeira vez na história do país, os educadores deixavam de ser meros executores e passavam a ser sujeitos da formulação de políticas em sua própria área. Finalmente, depois de muitos encontros, conferências e eventos congêneres, a sociedade brasileira chegou a um projeto de lei que, apesar de suas contradições, refletia as idéias e projeções que ela sonhara. Então, começou a verdadeira guerra nas duas casas do Congresso Nacional, em que se revelavam as agendas ocultas de muitos grupos, mormente as das elites, representadas pelos políticos que haviam se mostrado mais reticentes no movimento de discussão popular e democrática do projeto.

Pela metade da década de noventa, um professor tornou-se presidente da República, mas, infelizmente, ele e seu grupo de ex-docentes – que constituíram a então popularmente denominada «República dos Professores» – afundaram o sistema educacional brasileiro no pântano das propostas da globalização hegemônica. Neste sentido, invalidaram o processo democrático de discussão, que fora desenvolvido pela sociedade em articulação com a ala progressista do Congresso Nacional, cooptaram um senador da esquerda e lhe deram, como relator no Senado federal, a feia missão de jogar o projeto democrático de ldb na lata de lixo da história, substituindo-o por um de sua própria lavra. Os duros e demorados debates que se deram no Governo, onde se revelavam interesses profundamente antagônicos, não nos autoriza a considerar a educação como uma área de incidência da globalização de baixa intensidade.

O Governo anterior, a «República dos Professores», deixou marcas profundas de sua identidade política na educação. Aprovou a lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, com base no projeto espúrio, que substituiu o que havia sido elaborado com a participação de toda a sociedade14. E, dentre as políticas educacionais então aplicadas, cabe destaque para três. Em primeiro lugar, como os sistemas educacionais de outros países do Primeiro Mundo, transformaram a avaliação, ou melhor, os exames, em bandeira. E qual é a diferença entre os dois tipos de aferição? No Brasil, temos chamado de «avaliação» a verificação de qualquer desempenho cujo objetivo é o diagnóstico, que desencadeia uma ajuda e, portanto, a inclusão. Ou seja, como política pública, a avaliação tem de ser precedida de programas de apoio para quem acusar dificuldades nas avaliações. Ao contrário, temos usado a denominação «exames» para os processos de aferição de desempenhos com cunho explicitamente classificatório, como foi o caso do «Provão»15. Ou seja, examinava-se, ao final de um grau de ensino, para constatar posições em um score, com objetivos nítidos de identificar quem estava numa situação «boa» e quem estava numa «ruim» em relação às competências adquiridas. Neste caso, os que se encontravam em uma situação desfavorável não tinham como se recuperar de um curso já concluído e certificado. O mecanismo excludente aí presente casava-se com o objetivo, ou melhor, a tendência estrutural de uma sociedade que tem compromisso com a desigualdade. E este mecanismo foi praticamente imposto ao Ministério da Educação – diga-se de passagem, com um grande número de dirigentes que eram ex-funcionários do Banco Mundial – pelos administradores dos reajustes estruturais a que se submeteram as economias dependentes latino-americanas. Em segundo lugar, o Governo abriu as comportas do sistema educacional brasileiro ao ensino privado – não há como negar que foi a fase de maior expansão desta rede. Ocorreu um verdadeiro boom privatizador. No lugar do apoio financeiro do passado, bastou ao Governo estagnar a oferta de vagas, não socorrer as universidades públicas deterioradas, em um momento de forte tensão de uma demanda reprimida de diplomados do ensino médio16, para que ocorresse a expansão da rede de escolas superiores particulares. Finalmente, o Governo Federal desmantelou a estrutura do mec que cuidava da educação de adultos17, inibindo-a também nos estados e municípios. A tese, então defendida por seus porta-vozes, era de que o analfabetismo (com altas taxas no país) se combatia com maiores investimentos na escola regular de crianças e adolescentes, porque a escola básica era, por sua má qualidade, o grande celeiro de analfabetos «absolutos» e «funcionais».

O primeiro governo popular eleito encontrou-se diante de um «legado» de imensos problemas educacionais. Inicialmente, resgatou, como uma de suas prioridades educacionais, a Educação de Jovens e Adultos (eja), pois embora alguns de seus programas possam ser analisados criticamente, não deixou dúvidas quanto a que a educação é um direito, e, não, um serviço. Em segundo lugar, começou um programa de recuperação das universidades e iniciou uma parceria com as instituições particulares de ensino superior, no sentido de ocupar suas vagas ociosas em troca de incentivos fiscais18. Em terceiro lugar, estabeleceu, não sem resistências, um programa de políticas afirmativas, estimulando a abertura de «cotas» de vagas na ues públicas para determinados segmentos da população, que foram e são marginalizados dos benefícios da riqueza nacional, na maioria das vezes por preconceito e discriminação, como é o caso dos afrodescendentes. Finalmente, dentre outras medidas, apresentou, em dezembro de 2004, uma versão preliminar de um anteprojeto de lei de reforma do ensino superior, submetendo-o à discussão da comunidade educacional mais diretamente ligada ao setor. Em decorrência do processo de discussão e das contribuições propostas resultaram mais duas versões do anteprojeto que, finalmente, o ministro da Educação submeteu ao presidente da República, em 29 de julho de 2005, após um semestre de discussão19.

A reeleição do presidente do Partido dos Trabalhadores (pt), por mais que se atribua ao Governo, por um lado, traições ao ideário progressista-popular e, por outro, ameaças aos interesses do capital, não deixa dúvidas quanto às opções da maioria da sociedade brasileira. É claro que aí mora o perigo da assunção do populismo, não apenas como um estilo demagógico de governar, mas como categoria política que corresponde a uma espécie de ditadura incompleta e de democracia mutilada. De fato, a experiência populista no Brasil (1950-1961) demonstrou a impossibilidade de se servir a dois senhores (ao trabalho e ao capital), simultaneamente e por longo tempo. Os governos populistas se equilibram sobre um fio de navalha, porque vivem entre o fogo cruzado da esquerda, que o considera, no mínimo, revisionista e, no limite, como traidor; e o da direita, que sempre o espreita com desconfiança anti-socialista. Além disso, o populismo apresenta uma contradição estrutural em seu próprio funcionamento: se buscar mais a base social de sustentação política, corre o risco de transformar-se em outro regime (mais à esquerda do espectro político); se, voluntária ou involuntariamente, se sustenta sobre uma base social elitista, é derrotado, até mesmo como populismo. Em termos mais simples: se funcionar bem é superado pelos aliados, transformando-se em outra coisa; se funcionar mal é derrotado pelos adversários. Por esta análise, que tenta escapar das descrições superficiais sobre governos populistas, queremos afirmar que não é tão simples classificar o primeiro «Governo Lula» como populista. No caso das políticas educacionais, o problema é mais complicado ainda.

Mais do que expectativa, é preciso ter esperança, pois, segundo Paulo Freire, «a esperança é uma necessidade ontológica» (1994, p. 8). E é com base neste axioma que nos permitimos afirmar que é impossível destruir comunidades locais e nacionais – território em que se pode, mais fortemente, erigir identidades específicas. Aliás, só é possível destruí-las, quando se destroem as democracias a elas subjacentes.

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Notas

1 Historiador francês que introduziu a distinção entre curta, média e longa duração na análise histórica.
2 Será grafada, neste texto, com maiúscula, por entendermos que se trata de um fenômeno específico, com conceitos a ele referentes também específicos.
3 Aqui usados no plural porque, de fato, há vários sistemas educacionais no Brasil, até mesmo por força da autonomia dos estados e municípios, definidos como entes federados no último texto constitucional (1988). Não somente a União e os estados, como era nas constituições anteriores, mas também os municípios passaram a gozar de significativa autonomia, na medida em que passaram a ser considerados como entes da Federação. Assim, além do sistema federal e dos sistemas estaduais, passaram a existir os sistemas municipais de educação.
4 É necessário explicitar que para alguns analistas, especialmente os europeus, que preferem falar em «mundialização», o fenômeno é bem mais antigo e remontaà expansão da empresa colonial européia, dos inícios do século XV.
5 Nas eleições majoritárias brasileiras, quando nenhum candidato alcança mais da metade dos votos ou mais votos que a soma dos seus concorrentes, realiza-se um segundo turno, com a disputa reduzida aos dois candidatos mais votados.
6 Bhabha in Fanon, 2004, p. IX.
7 Este projeto é o primeiro projeto do programa de pesquisas da Universitas Paulo Freire (UNIFREIRE), congregando Institutos Paulo Freire (IPFs) de diversas partes do mundo, sob a coordenação geral do Professor doutor Carlos Alberto Torres, presidente do IPF dos Estados Unidos. Atualmente, além do Instituto Paulo Freire, originalmente fundado em São Paulo, Brasil, em 1991, outros Institutos Paulo Freire foram criados: Argentina (2003), Itália (Milan, 2001), Coréia (Seoul, 2005), Portugal (Porto e Lisboa, 1999), Espanha (Xativa e Valência, 2000), Estados Unidos (Los Angeles, 2002) e Taiwan (2003).
8 Como a que aconteceu na Reunião da Coréia, com a adesão da Rússia e a indicação da incorporação de outros, de forma a completar-se cerca de 20 grupos de pesquisadores.
9 No sentido de último, derradeiro e mais perfeito, quando, na verdade, eleé de fato «terminal» no sentido original do termo.
10 «Eventual» porque, até hoje, mesmo que nos mantenhamos, estritamente, no campo econômico, o que se tem percebido é um processo destrutivo de «criação». MacEwan afirmou: «As contradições sociais da globalização – estes fracassos sociais associados com o sucesso da expansão capitalista – não deveria causar surpresa. Mesmo como sua melhor coisa, o desenvolvimento capitalista é um processo de «destruição criativa», para usar uma famosa expressão de Joseph Schumpeter. Assim que a acumulação acontece, a competição força as empresas a serem criativas para que sobrevivam, e as firmas que não são criativas são destruídas» (1994, p. 9).
11 Ao contrário do que apregoam os corifeus do Capitalismo, não há uma relação obrigatória entre este modo de produção e a democracia burguesa; ao contrário, a extração da mais-valia relativa tem limites e a extração extra-econômica acaba por se impor, de novo, como no início do Capitalismo, particularmente pela coerção física.
12 As aspas se justificam porque as políticas do Estado Burguês Neoliberal não têm apresentado caráter público, isto é, não estão voltadas para os interesses das maiorias, mas, ao contrário, têm se caracterizado por traços profundamente particulares ou privados, porque se voltam para a satisfação dos interesses (insaciáveis) da acumulação.
13 Esta interessante discussão excede os limites deste trabalho.
14 Uma história detalhada desta tramitação pode ser verificada em Saviavi (1997).
15 Apelido popular dado ao Exame Nacional de Cursos (ENC), aplicado aos formandos dos cursos de graduação, entre 1996 a 2003, com o claro objetivo de excluir do mercado os que haviam freqüentado cursos superiores considerados «fracos». Segundo informação do Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais Anísio Teixeira (INEP), na sua última edição, em 2003, o «Provão» contou com a participação de mais de 470.000 formandos de 6.500 cursos de 26 diferentes áreas.
16 Segundo a entrevista dada à revista Exame por um ex-secretário de um importante estado da Federação e empresário do ensino à época, havia cerca de 8.700.000 jovens com um diploma de ensino médio na mão e que não tinham onde continuar seus estudos em nível superior. Descontados os exageros, o número mais realista dá uma idéia da dimensão do problema ao qual, se o Governo não desse maior atenção, seria um rico campo potencial de investimentos. E ele anunciava uma espécie de consórcio privado internacional para a criação e instalação de dezenas de campi universitários pelo país.
17 No Brasil, lamentavelmente, denominada «Educação de Jovens e Adultos» (EJA), porque adolescentes se evadem (ou melhor, são expulsos) da escola precocemente e, por isso, depois dos 14 anos de idade, viram candidatos aos cursos de EJA.
18 No Capitalismo, a lei da oferta e da procura deixa seus destroços, inclusive, na educação: o boom mencionado levou a um superdimensionamento da capacidade instalada para o poder aquisitivo daqueles milhões de jovens, também já mencionados, que demandavam vagas no ensino superior.
19 Não há como esconder uma incoerência, do ponto de vista processual, manifesta na proposição do anteprojeto pelo MEC: a reforma setorial do Ensino Superior, descolada da reforma do Sistema Educacional como um todo e antes da reforma da educação básica. Este mesmo procedimento foi duramente criticado pelos educadores da resistência democrática, dentre os quais se destacavam alguns dos propositores da reforma de hoje, quando os militares fizeram o mesmo, em 1968.


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