Gestão do pedagógico, trabalho e profissionalidade
de professoras e professores
Liliana Soares Ferreira *
SÍNTESE: Neste artigo parte-se de concepções
do trabalho e da pro-fissionalidade e propõe-se que, se forem
estudados os discursos e as práticas de professoras e professores,
poder-se-á entender o cotidiano educacional, entendendo,
também, neste universo, os professores e a gestão
do pedagógico. Entende-se que o trabalho de professoras e
professores é o fazer pedagógico, e ao realizá-lo,
acontece a gestão, as opções epistêmico-metodológicas
com as quais se produz a aula. Foram realizadas entrevistas com
vinte e duas professoras dos primeiros anos do Ensino Fundamental.
Seus discursos foram transcritos, analisados e, com base neles,
buscou-se entender a profissionalidade da professora, seu trabalho
e a sua escola. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, sob a forma
de um estudo de caso, tendo como contribuição teórico-metodológico
a Análise do Discurso (de influência francesa) e como
destaque a realização de grupos de interlocução,
nos quais pesquisadora e interlocutoras refletiram sobre educação,
profissionalidade e trabalho no espaço-tempo da escola. Para
tanto, foram considerados aspectos relevantes para se atribuir sentido
aos discursos: as relações de gênero, os discursos
sobre vocação e os elementos tempo e salário.
Com base na pesquisa realizada, destaca-se a necessidade de estudar
os discursos dos professores, enquanto fenômeno, envidando
esforços de compreensão com vistas a um entendimento,
uma compreensão dos sentidos, das contradições
e das possibilidades e como estas se revelam simbolicamente na prática
profissional de professoras e professores. Estes estudos são
significativos para que se possa continuar pensando a gestão
do pedagógico, tendo os professores como sujeitos de sua
práxis.
Palavras chave: gestão; trabalho; profissionalidade;
aula.
SÍNTESIS: En este artículo se parte de los
conceptos trabajo y profesionalidad y se propone que, si se estudian
los discursos y las prácticas de profesores y profesoras,
se podrá entender el proceso educativo cotidiano, y comprender
también, en este universo, a los profe-sores y la gestión
de lo pedagógico. Se entiende que el trabajo de profesoras
y profesores es el hacer pedagógico, y al realizarlo, ocurre
la gestión, las opciones epistémico-metodológicas
con las cuales se produce la clase. Para ello se han realizado entrevistas
con veinte dos profesoras de los primeros años de Primaria.
Sus discursos han sido transcritos, analizados y, sobre la base
de ellos, se buscó entender la profesionalidad de la profesora,
su trabajo y su escuela. Se trata de una encuesta cualitativa, bajo
la forma de un estudio de caso, que ha tenido como contribución
teórico-metodológico el Análisis del Discurso
(de influencia francesa) y se ha destacado la realización
de grupos de interlocución en los cuales encuestadora y interlocutores
reflexionaron sobre la educación, la profesionalidad y el
trabajo en el espacio-tiempo de la escuela. Para ello se consideraron
aspectos relevantes con el fin de que se atribuyese sentido a los
discursos: las relaciones de género, los discursos sobre
vocación y los elementos tiempo y salario. Basándose
en la encuesta realizada, se destaca la necesidad de que se estudie
los discursos de los profesores, como fenómeno, imprimiendo
esfuerzos de comprensión con vistas al entendimiento, a la
comprensión de los sentidos, de las contradicciones y de
las posibilidades y de cómo estas se revelan simbólicamente
en la práctica profesional de profesoras y profesores. Estos
estudios son significativos para que se pueda continuar reflexionando
sobre la gestión de lo pedagógico, considerándose
a los profesores como sujetos de su praxis.
Palabras clave: gestión; trabajo; profesionalidad;
aula.
ABSTRACT: The concepts of work and professionalism are
the starting points of this article. It is proposed that, when teachers'
discourses and practices are studied, the everyday learning process
can be understood. In this universe, teachers and pedagogical management
can be understood. We believe that the job of the teachers is a
pedagogical course of action, and when it takes place, both management
and epistemic and methodological choices entailed by the class occur.
With this purpose, we carried out twenty-two interviews with elementary
school female teachers of early grades. Their discourses have been
transcribed and analyzed, and from this standpoint, we aimed at
understanding teacher's professionalism, her job and her school.
This is a qualitative survey, presented as a case study, which has
had Discourse Analysis (of French influence) as a theoretical and
methodological contribution. We have highlighted the realization
of discussion groups in which interlocutors and researchers reflected
on education, professionalism and work in the space-time of school.
For these purposes, we considered relevant aspects with the aim
of giving sense to the discourses: gender relations, discourses
on vocation and the elements of time and wages. Based on the before
mentioned survey, we would like to highlight the need for further
study on professors' discourses as a phenomenon, making an effort
to comprehend each other considering mutual understanding, meaning
comprehension, contradictions, possibilities and how these will
unveil themselves symbolically in the practice of teachers. These
studies are important for being able to keep reflecting on the pedagogical
management, considering professors as subjects of their own practice.
Key words: management; work; professionalism; classroom.
1. Introducção
Os professores são profissionais cujas condições
de produção diferenciam-se das demais práticas
produtivas, pois, pela educação, estes seres agem
e, ao mesmo tempo, se constituem como trabalhadores, indefinidamente,
em um movimento contínuo. Por isto, a proposta deste artigo
é refletir sobre as condições de trabalho na
educação, buscando compreender um pouco melhor os
efeitos de sentidos dos professores revelados em seus discursos,
e o contexto em que estes discursos se produzem. Para tanto, parte-se
de leituras da obra de Marx (1968) e, com base na história
e na filosofia da educação, na sociologia e na reflexão
sobre o que se observa nas escolas cotidianamente e, sobretudo,
em pesquisa realizada nos anos de 2005 e 2006, na Região
Fronteira Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, busca-se apontar
possibilidades de compreensão da gestão do pedagógico
por professoras e professores. Os trechos dos discursos de professoras,
interlocutoras da pesquisa realizada, serão apresentados
como mote para os argumentos que se propõe. A referida pesquisa
configurou-se em estudo de caso, cujo objetivo foi analisar os discursos
de professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental, sobre profissionalidade,
trabalho e escola e buscar a compreensão de seus discursos
a partir de seu local de trabalho, onde são e agem como professores,
tendo a Análise do Discurso (de inspiração
francesa) como suporte. Acredita-se que, mediante a reflexão
sobre o trabalho que realizam e sobre sua profissionalidade, professoras
e professores elaboram seus projetos individuais e, em decorrência,
também os projetos coletivos de gestão do pedagógico.
É preciso explicitar, inicialmente, a utilização
dada às categorias trabalho e profissionalidade, a fim de
delimitar as bases a partir das quais o texto é organizado.
Trabalho é toda ação humana no meio, transformando-o
de acordo com as demandas e os anseios. É essencialmente
de caráter ativo e visa a alcançar um objetivo. Portanto,
trata-se de uma atividade na qual o indivíduo investe energia,
tempo e conhecimento, produzindo um resultado. Da mesma forma, é
pelo trabalho que se compreende a história da humanidade,
pois cada ser humano e cada formação societária
constroem sua historicidade, na medida em que produz, através
do trabalho. Marx (1968), relendo a relação entre
capitalistas e assalariados, revendo diversas etapas da história
da humanidade, mostrou que as formações societárias
e os discursos são permeados por uma ideologia que sustenta
a dominação de uma classe social sobre outras, tendo
como fundo as relações de trabalho. Dada a importância
de seus escritos para a compreensão das relações
econômicas e sociais, é preciso considerar, inicialmente,
o conceito de trabalho que apresenta em sua obra O Capital:
[...] trabalho é um processo de que participam o homem
e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria
ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio
material com a natureza [
]. Põe em movimento as forças
naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e
mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes
forma útil à vida humana (Marx, 1968, p. 202).
Sabe-se que os escritos de Marx, embora tenham motivado discursos
que acusam seu fim, sua derrocada, sua superação,
mantêm-se, ainda determinantes em diversos âmbitos sociais
e por alguns críticos são considerados como uma possibilidade
de compreensão da vida social humana, mesmo após tantas
críticas. Na verdade, segundo Bensaid: "Enquanto o capital
continuar dominando as relações sociais, a teoria
de Marx permanecerá atual, e sua novidade sempre recomeçada
constituirá o reverso e a negação do fetichismo
mercantil universal" (1999, p. 12). No entanto, o capitalismo,
se considerarmos os ideais sociais que movem a humanidade, está
longe de chegar a ser "um capitalismo humano, "social"
e verdadeiramente democrático e igualitário"
(Wood, 2003, p. 250). Por isto, Wood afirma que é mais fácil
viabilizar o socialismo, sobretudo no que tange ao planejamento,
pois é utópico acreditar que se possa humanizar o
capitalismo (2003, p. 250).
Nesta perspectiva social, assim configurada, entende-se que o
trabalho dos professores é a sua própria produção
do conhecimento e a dos estudantes, continuamente, até mesmo
na aula, prática social que lhe é atribuída.
Esta produção, que só acontece na interação
mediada pela linguagem, é, portanto, subjetiva (porque só
acontece quando demandada pelos sujeitos do processo de aprender)
e subjetivante (porque acaba por constituir quem aprende, imprimindo-lhe
um modo de pensar, de ler o mundo e de interagir).
Com base nestes pressupostos, para entender o trabalho docente,
parte-se da premissa de que os professores, constituídos
por sua historicidade, pelos processos de educação
para a profissão, pelo desejo e pela relação
que estabelecem com o conhecimento, são sujeitos da ação
pedagógica. Neste sentido, entende-se a individuação
não como um esgotamento em si mesmo, mas como um estágio
de percepção do ser e de sua dependência-relação
com o meio. Agir neste meio, considerando suas potencialidades e
suas características, já é atitude do sujeito,
um indivíduo que assume o seu lugar enquanto ser, dentro
do seu meio e age. Daí porque, na individuaçao, o
processo de se constituir em sujeito e a autonomia estão
muito próximos: estar no mundo em relação com
os outros, com o Outro, implica estar ciente de ser-em-si-mesmo,
ser indivíduo, um indivíduo social, mas singular ou
singularizado a partir de seus processos historicamente constituídos.
Por isto, o tornar-se sujeito implica necessariamente individualizar-se,
tornar-se autônomo inicialmente.
Neste processo de refletir sobre si-mesmo e, assim, tornar-se
autônomo, vai definido o seu "ser professora, ser professor",
não como uma identidade apenas, mas como processo de diferenciação
em relação a outros sujeitos, na medida em que delimita
um lugar, uma diferença. Garantir este processo de diferenciação
significa ter consciência dele e refletir continuamente de
modo a entender as forças que o sustentam e, assim, agir.
Ser sujeito, para os professores, é um vir-a-ser contínuo,
pois, tanto em suas crenças, quanto em sua prática,
estão em relação ao social, num constante devir,
por ser subjetivo e participante de formações sociais.
Há, no entanto, nestas formações sociais determinadas
crenças traduzidas em modelos de comportamentos esperados.
Espera-se dos professores que conheçam, que saibam agir,
saibam "ensinar". Esta é a sua identidade. Esta
identidade revela-se e consubstancia-se no que denomino gestão
do pedagógico. Sabe-se que, no âmbito da escola, há
processos de gestão do pedagógico, incluindo a elaboração
do Projeto Pedagógico institucional. Refiro-me, entretanto,
a um outro nível de gestão do pedagógico, que
considero basilar para este da escola: a elaboração
e produção da aula, por parte da professora, do professor.
Esta gestão, produzida e significada no coletivo, é
realizada individualmente, tendo os professores, sua profissionalidade
como referências.
Relacionando estes argumentos aos discursos, destaco que a Professora
09 (uma das interlocutoras da pesquisa realizada) ressaltou que
cabe aos profissionais liderar, decidindo, propondo e garantido
as condições da práxis pedagógica que,
para ela, é ensinar. Ensinar de modo a valorizar o estudante.
Deste modo, acabou por caracterizar o que estou denominando gestão
do pedagógico. Esta perspectiva apresenta nuances diferentes
da apresentada pela Professora 01, pois, quando lhe perguntei qual
era o trabalho de uma professora, afirmou: "É de sempre
tentar interagir com o aluno e tentar buscar junto". Diferente
também da Professora 19, que considera que seu trabalho é
garantir o bem-estar dos estudantes, enquanto aprendem:
Trabalho de um professor [...] (4 seg) o que faz um professor
[...] eu acho que um professor precisa principalmente fazer o
aluno se sentir feliz, precisa se sentir seguro. A criança
precisa estar segura no ambiente que está. A gente precisa
passar essa segurança pra ele, pra que ele consiga aprender,
pra que ele se sinta bem no ambiente que ele está porque
não só [...] não só o professor precisa
estar bem pra desempenhar o papel, o aluno também precisa
estar bem pra ele conseguir aprender, eu acho que este é
o nosso papel de transmitir essa segurança para ele, e
deixar ele, quanto mais tranqüilo e mais feliz possível,
para que o aprendizado seja cada vez melhor (Professora 19).
Todos os discursos destacam um lugar social para o trabalho dos
professores, porém são lugares diferenciados. Entendo
que, em compatibilidade com a concepção de que os
professores são profissionais da educação,
este lugar social é o de gestor do pedagógico, da
produção da aula, o que implica em prática
da linguagem. No entanto, a argumentação de que a
educação implica interação entre sujeitos:
sujeito-estudante e sujeitos professores, através da linguagem,
é bastante rara nos discursos das entrevistadas. De modo
geral, atêm-se à perspectiva tradicional de educação,
defendendo que os professores ensinam e o estudante aprende, ressaltando
que os professores transmitem conhecimento. Não que esta
perspectiva esteja em desuso, ou seja, rechaçada. Ao contrário,
percebe-se presente nas escolas e utilizada, mesmo sem uma reflexão
sobre seus supostos.
Aos professores, uma vez sujeitos, cabe entender a demanda por
mais conhecimentos profissionais, entendê-la e agir em acordo
com crenças e valores elaborados no coletivo, mas determinantes
da sua individualidade, sem se fixar em modelos pré-determinados,
ao contrário, refletindo sobre eles. Neste processo, vai
produzindo sua própria subjetividade como um viajante, transitando
por lugares e elaborando em si marcas transitórias, modificáveis
sempre que a reflexão assim o permitir. A propósito,
reflexão é categoria bastante utilizada nos meios
educacionais. Seu sentido aqui se refere a ser capaz de centrar-se,
pensar sobre si mesmo e sobre o mundo, tanto de forma a entender
suas evidências quanto suas intencionalidades e simbologias.
Para tanto, faz-se necessário não só conhecimento,
mas produzir modificações a partir do conhecido. Há
muito se sabe que refletir e não produzir mudanças
esvazia-se, não garante continuidade ao processo de produzir
sentidos de vida. Da mesma forma, a modificação consiste
em intervenção no social, ou seja, consiste em possibilitar
que as sustentações das reflexões possam se
tornar cada vez mais conhecidas e, assim, referenciadores, marcos
delimitadores da subjetividade.
O destaque ao comprometer-se com a práxis pedagógica
diária encontrei-o no discurso da Professora 13, ao referir-se
ao trabalho na escola:
O trabalho do professor é organizar as dúvidas
dessas crianças de séries iniciais [...] eu me refiro
[...] organizar as dúvidas, fazer com que eles sistematizem
o conhecimento, diferentes saberes, e propiciar uma [...] uma
segurança, uma autonomia maior de vir a ser um sujeito,
que [...] um sujeito crítico que perceba que ele pode,
que ele faz a diferença, na sociedade que ele vive, né?
Que não vislumbre só o individualismo , o eu, ´eu
preciso, é meu, eu quero´, né? A vida é
muito mais do que o meu umbigo, né? Isso é muito
bonito. Eu acho que no momento que a gente começa a clarear
isso na cabeça das crianças, a desmistificar um
pouco esse individualismo que tem na sociedade, eles terão
futuro melhor também, porque, na verdade, eu vejo que,
que [...] que eu vivo em uma época de conflito, né?
Há muitas mudanças e a geração que
vai vir, de repente, eles já vão estar mais equilibrados,
né? (Professora 13).
Atenta ao real, a professora sabe que existe um distanciamento
entre o utópico e o cotidiano, porém não se
omite: "[...] eu vivo em uma época de conflito, né?"
(Professora 13) Ela observa o seu entorno, entende ser um momento
em crise de valores, contudo, acredita em si e em seu trabalho:
"[...] a desmistificar um pouco esse individualismo que tem
na sociedade, eles terão futuro melhor também [...]"
(Professora 13). Neste sentido, a Professora sustenta uma proposta
factível, se considerado o sentido atribuído ao contexto.
Lúcida, sem ser pessimista, coerente com sua leitura, ela
deseja contribuir na alteração de um real a lhe preocupar.
Ao ler e reler seu discurso, é possível lembrar as
palavras de Paulo Freire, na oportunidade que, exilado, registrou
sua experiência com os círculos de alfabetização:
"É fundamental, contudo, partirmos de que o homem, ser
de relações e não só de contatos, não
apenas está no mundo, está com o mundo. Estar com
o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser
o ente de relações que é" (1994, p. 47).
Creio ser esta uma ação mais conseqüente. Entretanto,
não foi a essência do discurso da maior parte das entrevistadas.
Ao contrário, parece ser difícil explicitar o agir
pedagógico, atribuindo-lhe um sentido e, do mesmo modo, revelando
suas posições discursivas o que, em última
análise, é se comprometer pela palavra ou, pelo menos,
saber que sua palavra não explicita o seu fazer. Deste modo,
as entrevistadas, em maioria, descrevem o fazer pedagógico
como algo no qual é apenas colaboradora e, como tal, não
necessita ser profissional, apenas agir de modo a dar conta do lugar:
"Tudo, tudo, o trabalho do professor é orientar, assim
[...] orientar não como um conselheiro, orientar [...] orientar
para os saberes, orientar como compreender o conteúdo"
(Professora 10). Sabe-se que quem orienta, não necessita
participar, elaborar, mediar a ação pedagógica.
Além disto, o lugar de quem orienta é dado pelo instituído,
age em nome da lei, não a representa. É um não-agir,
uma não-profissionalidade, embora afirme como o sendo. A
mesma abordagem é encontrada no discurso da Professora 12,
ao ser indagada sobre qual é o seu trabalho na escola: "(Silêncio)
É, é ensinar, seria ensinar, né? Passa disso,
né? Tem horas que o professor tem que ser mãe, tem
que ser [...] (risos), tem que ser de tudo, não só
[...] psicólogo. Não é [...] eu acho que é
tudo" (Professora 12).
Todas estas expectativas emanadas do social, somadas às
expectativas dos sujeitos-professores, seu ambiente cultural, a
literatura a seu respeito compõem um conjunto de sentidos
que delimita seu vir-a-ser e revelam-se no cotidiano escolar sem
que haja uma reflexão, muitas vezes, sobre sua amplitude
e influência no agir docente.
2. A escola e a profissionalidade dos professores
Uma referência ao trabalho do professor precisa considerar,
inicialmente, a existência de duas abordagens: a profissionalização
e a profissionalidade. A profissionalização refere-se
aos processos de educação no âmbito das licenciaturas
e da educação continuada, das competências e
das habilidades profissionais, do salário e da carreira.
A profissionalidade diz respeito ao exercício competente,
responsável da profissão e ao compromisso político
e ético com o trabalho. Optou-se por profissionalidade por
denotar este vir-a-ser, este renovar-se na interação
entre os sujeitos, nos processos de educação continuada,
na prática pedagógica diária, como se pretende
explicitar a seguir.
O espaço-tempo de trabalho dos professores é a escola
(nas suas mais diversas manifestações, desde o modelo
escolar tradicional, até as escolas itinerantes, os cursinhos,
a educação a distância). Enquanto a es-cola,
até a Idade Moderna, era, normalmente, também a casa
ou a igreja, não se dissociava o trabalho daquele que ensina
do trabalho daquele que, por exemplo, prega, cuida, acompanha, é
pajem. No entanto, com a diferenciação entre as instituições,
causada pela Revolução Industrial, a partir da qual,
fábrica, escola, igreja, moradia tornam-se específicos
lugares para práticas sociais também específicas,
o trabalho escolar passa a apresentar características diferenciadas,
que o distinguem das práticas educativas familiares ou clericais.
Da mesma forma, os professores, que eram o preceptor, ou o pastor,
ou até mesmo alguém da família, passam a ter
outra aparência: contratados para acompanhar e educar estudantes
enquanto os demais integrantes da família estão na
fábrica, trabalhando. Passam, então, da condição
de mestre (trabalhador individual, contratado por uma família)
para a condição de professores coletivos (contratados
por uma escola, por uma comunidade), perdendo, com isso, o controle,
a coordenação de seu trabalho: agora, assalariados,
são executores de uma proposta da escola (Ferreira, 2001,
2006).
Por isso, a categoria trabalho é determinante na análise
de quem são os professores nesta sociedade e seu lugar como
profissionais. Para tanto, precisa-se ter em mente que a mera preocupação
com a freqüência a cursos, simpósios, oficinas,
congressos etc não garante a profissionalização
dos professores. Licenciar-se não quer dizer constituir-se
profissional da educação. Tornar-se profissional inclui
mais que apenas competências, inclui a integração
em um grupo de trabalhadores cuja característica comum é
o objeto de trabalho: o conhecimento. É estar integrado em
um sistema organizado do qual participam outros trabalhadores da
educação, que buscam refletir e agir em prol de sua
própria condição de trabalhador. Implica, sobretudo,
a reflexão-ação que se procede sobre e a partir
do trabalho pedagógico. Em suma: os professores são
trabalhadores que agem em situações interativas, nas
quais fazem uso de suas racionalidades, tanto instrumentais quanto
comunicativas, a fim de produzir saberes, em conjunto com outros
sujeitos. Por isto, é um sujeito da produção
de conhecimentos, caracteristicamente dotado de reflexão.
Na área educacional, jamais se teve tanta necessidade de
redefinir as perspectivas pedagógicas com o intuito de acompanhar
um tempo de sucessivas alternâncias conceituais. Na verdade,
objetiva-se uma possibilidade de se pensar e de encaminhar a educação,
tendo em vista que se volta para o cerne da prática pedagógica:
a prática da linguagem por sujeitos constituídos.
É claro que o conceito de educação que está
pressuposto aqui é de ser uma ação interativa
entre sujeitos. Educação implica sempre interação:
pela linguagem os sujeitos se entendem e, juntos, entendem o mundo.
Em suma, a escola referida aqui está pensada a partir de
parâmetros que superam a mera reprodução da
divisão do trabalho, aquele lugar onde práxis e conhecimento
são dissociados, onde o gerenciamento é similar ao
da fábrica, reproduzindo também a necessidade que
a fábrica tinha de disciplinar para garantir a continuidade
do processo produtivo.
Pensa-se em uma escola gerada por seus aspectos instituintes,
gestada democraticamente, com participação de todos
os envolvidos na prática educativa. Um espaço no qual
os professores tenham oportunidade de restabelecer suas capacidades,
agindo de forma a planejar e mediar a produção do
conhecimento sem estarem alijados ou mesmo inibidos com relação
a suas capacidades lingüísticas. Enfim, um espaço
onde se pratique uma pedagogia emancipatória, capaz de permitir
que os sujeitos se tornem, efetivamente, críticos capazes
de apontar alternativas para suas demandas. Para tanto, parece que
um dos caminhos é redimensionar o trabalho dos profissionais
da educação. Tradicionalmente, os professores são
apresentados, na literatura pedagógica, como profissionais
que, desde o advento do tipo de Gutemberg e a conseqüente popularização
do livro, não produzem o saber que divulgam. Vale dizer:
com o advento do livro, os professores tornaram-se reprodutores
dos saberes produzidos por outros. Recuperar a condição
de produtor do saber com o qual trabalha, ou seja, recuperar a condição
de mestre, através da pesquisa, é fundamental para
se redimensionar os professores, devolvendo-lhe o lugar de sujeito
da ação educativa, redimensionando o trabalho pedagógico
e a escola. Nas palavras de Marques é a reconstrução
das condições de profissionalidade dos professores,
que busca um "entendimento teórico e compartilhado,
de novas competências e de posicionamentos sociais, éticos
e políticos em outros níveis de coerência e
de facticidade" (Marques, 1992, p.37).
Há vários caminhos a serem trilhados. Por exemplo,
reconquistar a crença no trabalho dos educadores e redimensionar
a atuação da escola para se assegurar a todos o direito
à educação é um dos grandes desafios
que precisa ser enfrentado para que se possa olhar para o futuro
diferentemente.
Uma das perspectivas é, dentro da escola, considerar a
pesquisa como pressuposto pedagógico, uma opção
pautada pela liberdade de escolha e pela crença em uma ação
educativa alicerçada na atividade conjunta dos sujeitos envolvidos.
Da mesma forma, esta opção exige o abandono das velhas
crenças orientadoras da caracterização dos
professores como detentores de um saber e do estudante como aquele
que não sabe e precisa saber. Por isto, esta opção
pela pesquisa não é simples, pois implica em quebrar-se
antigas e enraizadas formas de agir e, sobretudo, de pensar, em
educação.
3. Constatações Provisórias
As entrevistas foram reveladores de sentidos de profissionalidade
e trabalho em educação pautadas em certa ingenuidade.
A professora, integrante do grupo de interlocução
e representante de um grupo maior, o das professoras de anos iniciais,
ainda se justifica a partir de ar-gumentos que denotam crença
em vocação, em doação, em vez de evidenciar
sua profissionalidade. Parece sentir certo desconforto quando necessita
caracterizar-se como profissional, preferindo mostrar-se como uma
contribuinte social, alguém cuja missão é auxiliar
na promoção de vida melhor para os estudantes.
Desvelar estes sentidos, refletir sobre tais configurações
é necessário e urgente, a fim de garantir à
professora o seu reencontro com uma profissionalidade ora mitificada.
Sem este reencontro fica difícil pensar em projeto de gestão
pedagógico nem individual, nem institucional. Os sentidos
embasam quaisquer propostas; sem eles, o profissional repete-se,
parecendo gravitar no vazio de sua profissionalidade.
Bibliografia
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de uma aventura crítica. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
FERREIRA, Liliana S. (2001): Educação e História.
3.ª ed. Ijuí: Editora Unijuí.
- (2006) Profissionalidade, trabalho e educação
no discurso de professoras dos anos iniciais do ensino fundamental.
Tese de Doutorado, UFRGS.
FREIRE, Paulo (1994): Educação como prática
da liberdade. 22.ª reimpressão. São Paulo: Paz
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MARQUES, Mario Osorio (1992): A formação do profissional
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MARX, Karl (1968): O capital. O processo de produção
capitalista, vol. 1, tomo 1. Rio de Janeiro: Editora Civilização
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MEIKSINS WOOD, Ellen (2003): Democracia contra capitalismo: a
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Paulo: Boitempo Editorial.
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