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OEI - Ediciones - Revista Iberoamericana de Educación - Número 27

Número 27
Reformas educativas: mitos y realidades / Reformas educativas: mitos e realidades

Septiembre - Diciembre 2001 / Setembro - Decembro 2001

Portugal, 1995/2001: reflexões sobre democratização e qualidade na educação básica

Ana Benavente (*)

Síntesise: Entre 1995 e 2001 Ana Benavente foi Secretária de Estado de Educação de Portugal.

Como tal, responsabilizou-se pela concepção e definição das estratégias que adotaram as políticas educativas no ensino básico durante face às tendências internacionais, e identificar as exigências, dificuldades e empecilhos que, longe de serem exclusivas de Portugal, podem encontrar-se nos sistemas educativos de muitos outros países.

A partir da descrição da situação da educação portuguesa ao longo do século xx, e tentando não fazer críticas às políticas prévias a 1995 nem defender as postas em prática durante seu mandato, o artigo centra seu interesse na explicação do papel que a educação passou a jogar no contexto das políticas públicas.

Idéias ou princípios tais como a educação em tanto núcleo duro da atividade governante; a escola como bem social; democratização e/ou qualidade, podem ser entendidas como os desafios aos que procurou fazer frente a reforma da educação em Portugal e dos que a autora dá testemunha neste trabalho.

Síntesis:Entre 1995 y 2001 Ana Benavente fue Secretaria de Estado de Educación de Portugal.

Como tal, fue la responsable de la concepción y definición de las estrategias que adoptaron las políticas educativas en la enseñanza básica durante ese período.

En este artículo intenta analizar esas políticas a la luz de las tendencias internacionales, e identificar las exigencias, dificultades y trabas que, lejos de ser exclusivas de Portugal, pueden encontrarse en los sistemas educativos de muchos otros países.

A partir de la descripción de la situación de la educación portuguesa a lo largo del siglo xx, e intentando no hacer críticas a las políticas previas a 1995 ni defender las puestas en práctica durante su mandato, el artículo centra su interés en la explicación del papel que la educación pasó a jugar en el contexto de las políticas públicas.

Ideas o principios tales como la educación en tanto núcleo duro de la actividad gubernativa; la escuela como bien social; democratización y/o calidad, pueden entenderse como los desafíos a los que procuró hacer frente la reforma de la educación en Portugal y de los que la autora da testimonio en este trabajo.

(*)Secretária de Estado da Educação de 1995 a 2001. Deputada à Assembleia da República. Investigadora na Universidade de Lisboa, Portugal.

1. Introdução

Este texto centra-se nalguns aspectos das políticas educativas relativas ao ensino básico, tanto na sua concepção como nas estratégias para a sua concretização que se desenvolveram entre 1995 e 2001, anos durante os quais fui responsável por estas áreas.

Que opções, que dificuldades e bloqueios, que resultados e que perspectivas em medidas de luta contra a exclusão e na construção de processos de profunda mudança organizacional e pedagógica?

Não se trata de criticar políticas anteriores a 1995 ou de defender medidas posteriormente adoptadas. Não se trata, tão pouco, de um balanço ou da avaliação global de efeitos positivos ou perversos. Tal avaliação não é ainda possível, pois exige outro tempo; neste momento, parece-me mais útil e interessante analisar as políticas à luz das tendências internacionais e identificar exigências, dificuldades e bloqueios que seguramente partilhamos, nos universos educativos, com muitos outros países.

No último quarto de século, as questões ligadas à educação têm sido consideradas como estratégicas e decisivas para o desenvolvimento e modernização do país. Existe, neste domínio, um défice crónico, devido a opções políticas do «Estado Novo» que durante cerca de 50 anos (1926 a 1974) manteve Portugal fora dos processos que marcaram a Europa e que se traduz ainda hoje.

Tanto nos baixos níveis de educação e de qualificação como nos modestos indicadores de qualidade educativa, quando comparados com os países industrializados. Em meados do século xix, mais de 80% da população portuguesa era iletrada. No início do século xx, a situação mantinha-se praticamente inalterada, ao passo que países como a Espanha e a Itália, que partiam de uma posição idêntica, apresentavam já taxas de analfabetismo da ordem dos 50%. Nos anos sessenta, o analfabetismo literal rondava ainda os 60%, valor que baixou para cerca de 11% no início da década de 90. Mais importante ainda, a população escolar cresce de um quarto de milhão no início do século xx para dois milhões no final do século. Por que tantos números nesta introdução? Porque importa referir o legado de mais de um século e meio de baixíssimo investimento em educação e a singularíssima posição de Portugal, quer por referência aos países do norte industrial e «protestante», quer por contraste com os países latinos e católicos do sul. Estes, como hoje sabemos, tiveram um desempenho superior ao nosso, mesmo em contextos políticos e ideológicos semelhantes, como é o caso de Espanha. A multiplicação por oito, entre o início e o fim do século xx, do número de portugueses que frequentam a escola traduz, não apenas uma mudança de escala na escolarização, mas a imposição do modelo escolar; nos anos noventa, a instituição escolar é reconhecida, aceite e apesar de muito criticada, é muito desejada. Desde a Revolução de 1974, as políticas educativas aumentando embora, progressivamente, o investimento em educação, foram sendo desiguais e assimétricas, partilhando as dinâmicas e as dificuldades de uma democracia recente, procurando dar respostas a problemas de oferta, de acesso e de sucesso educativo sem projectos coerentes e continuados.

O ano de 1986 marca a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, texto que define a sua arquitectura, finalidades e objectivos, de acordo com a Constituição da República. Só então se tornou obrigatória a escolaridade básica de nove anos. Este dado é revelador da situação educativa portuguesa, que entra nos anos noventa sem que a escolaridade de nove anos seja efectiva para todas as crianças e com elevados índices de abandono e de insucesso escolar. Aliás, o censo de 1991 revela que quase 60% dos cidadãos não ultrapassa o 4º ano de escolaridade. A nossa relação com a escola e o saber está longe de estar resolvida.

2. A educação, "paixão" e prioridade

Em 1995, o XIII Governo Constitucional assumiu que a educação e a formação fariam parte do «núcleo duro» da actividade governativa, criando mesmo um Conselho de Ministros específico para a coordenação entre a Educação, a Cultura, a Ciência e Tecnologia, a Juventude e o Trabalho e Formação Profissional.

A educação foi afirmada como uma «paixão» e uma prioridade, de modo a ultrapassar o atraso português no espaço de uma geração.

O slogan relativo à paixão trouxe a educação para a primeira linha da comunicação social e da atenção da opinião pública. Trata-se de uma situação singular: os governos democráticos incluem sempre a educação nas suas preocupações, porém torná-la uma prioridade no centro das políticas é um exercício corajoso e necessário embora arriscado. É corajoso porque em educação os resultados visíveis e reconhecidos não são fáceis de obter e exigem, em geral, muito tempo (que raramente se adequa aos ritmos da vida política); a prioridade atribuída à educação pré-escolar e à educação básica é também corajosa porque todos sabemos que outros graus de ensino (o ensino superior, por exemplo) e outros públicos, têm um maior poder social, exercem pressões mais fortes sobre as instâncias oficiais e são, por isso, em geral, politicamente mais influentes. Só a decisão de atribuir investimentos, meios e recursos ao ensino básico pode assegurar a sua melhoria.

Assim como na investigação educativa houve, durante muito tempo, temas «maiores» e «menores», o mesmo acontece na acção social. E não é um acaso histórico que a docência tenha, por tradição, um estatuto social e remuneratório superior no ensino superior (como a palavra indica) do que no ensino básico. O tempo dirá se esta opção deu frutos; apesar de haver, desde já, dificuldades onde é possível identificar (é o caso do 1º ciclo, correspondente aos 4 primeiros anos de escolaridade, rede de escolas muito descentralizada que, apesar de algumas melhorias, está longe de dispor dos meios necessários ao papel decisivo que tem na educação de todos), não duvido da importância simbólica e material, social e profissional desta opção; o país olhou para as suas escolas, de todos os níveis de ensino como nunca antes o fizera. Mas, afirmar a educação como uma «paixão» e prioridade é também um exercício arriscado. Em primeiro lugar, porque aumenta muitíssimo as expectativas quanto à resolução dos problemas e à rapidez das soluções; em segundo, porque em educação os interesses são muito diversos e difíceis de conciliar, sendo mesmo, por vezes, antagónicos, o que gera desagrado junto aos parceiros que não se consideram satisfeitos com as soluções; em terceiro lugar, a prioridade à educação exige que se possa manter um elevado ritmo de investimento, pois trata-se de um sector «gastador» e os recursos «nunca são suficientes»; finalmente, a escola, apesar da sua grande continuidade e permanência é tributária (e contribui para...) das transformações sociais e os desafios são constantes; é difícil, senão impossível atingir uma satisfação plena, quando se resolvem uns problemas, logo outros se manifestam, de natureza económica, social e cultural; trata-se de um domínio «pouco compensador» em política. Em Portugal, com os baixos níveis de qualificação da população adulta, será longo o tempo para a obtenção de resultados escolares comparáveis com sociedades que há decénios consolidaram a sua escolaridade obrigatória e que têm práticas sociais mais reconhecidas pela cultura letrada. Contudo, é necessário investir na escola e na educação percebendo que, embora não se trate de «ilhas» imunes às características e contradições da sociedade, têm o seu papel específico e decisivo de bem social; constituem investimento e recurso para uma sociedade mais competitiva, mais culta, mais livre, com mais cidadania.

Em resumo, é um exercício arriscado porque as estratégias participadas são por força lentas, as medidas raramente são «espectaculares» e os seus efeitos só se fazem sentir a médio e longo prazo. As mudanças educativas exigem tempo, muito tempo, continuidade e suporte. Ora a opinião pública e a comunicação social estão sempre mais atentas aos desacordos e dificuldades do que aos avanços, sobretudo quando são lentos e modestos; estão sempre prontas a reclamar resultados imediatos e a duvidar dos processos internos à escola, o que não contribui para um ambiente durável de confiança. Sabemos que a escola é, pela sua natureza institucional, depositária da reprodução de práticas e de valores; sabemos que os parceiros que têm maior capacidade de intervenção pública defendem, em geral, a escola que conheceram e na qual tiveram sucesso, e desconfiam das inovações em que os seus filhos seriam «cobaias». Todos gostariam que a escola fosse «melhor», mas é muito difícil conseguir acordos quanto ao que isto significa e quanto a medidas concretas e ao tempo necessário para que melhorem os resultados. Numa situação de prioridade à educação, surge um novo paradoxo: os pedidos sociais à escola multiplicam-se (da educação sexual à educação ambiental, da guarda das crianças à ocupação de tempos livres) revelando o papel importante que todos lhe atribuem, mas, ao mesmo tempo, a escola é acusada de não ser capaz de corresponder cabalmente a todos esses pedidos; esta crítica constante não contribui para o ambiente de responsabilização e de motivação necessário para a construção de novas respostas. Já nos anos setenta, Michael Huberman, na sua síntese notável sobre «Como se processam as mudanças em educação» (UNESCO, Paris, 1973) referia esta dificuldade: como mudar quando a desconfiança da opinião pública não favorece a inovação? quando os inovadores não são reconhecidos? quando se esperam da escola novas práticas imediatamente consolidadas e capazes de «provar» que são melhores do que as anteriores em resultados de médio prazo?

3. A escola, um bem social

Considerando que, em matéria educativa, um consenso alargado é uma condição importante para o sucesso das políticas pois garante suporte e continuidade a opções capazes de promover a educação e a formação, o Ministério da Educação elaborou um «Pacto Educativo para o futuro» (Ministério da Educação, Lisboa, 1996). Este texto centrou-se nas grandes orientações programáticas, nos princípios, prioridades e compromissos bem como nas acções prioritárias para os alcançar. O convite aos múltiplos parceiros interessados para um debate público sobre os caminhos da mudança e a definição e procura de um amplo conjunto de interlocutores, rompiam com políticas de gabinete centradas no próprio Ministério da Educação. O Pacto visava promover um debate público sobre educação, suscitar a discussão alargada sobre a política educativa, já que «a educação é uma questão pública e uma ambição nacional», «um assunto de todos» e, mais importante ainda, assumia a mudança educativa como devendo basear-se na transformação apoiada e sustentável das organizações e das práticas, através de mudanças graduais centradas nas escolas e nas comunidades.

Os objectivos estratégicos definidos no Pacto eram os seguintes:

O Pacto formulava ainda compromissos para acção em torno da descentralização, da valorização das escolas, do desenvolvimento da educação pré-escolar, da melhoria da qualidade educativa, da formação permanente, do papel dos professores e do financiamento da educação. Os parceiros eram identificados para cada área de actividade (sindicatos, associações, instituições, colectividades, autarquias, ministérios, etc.). Realizaram-se reuniões com todos e, na Assembleia da República, o Pacto foi apresentado como um compromisso nacional a ser (criticamente) celebrado de modo a assegurar suporte e continuidade às políticas educativas do país, evitando as rupturas e bloqueios do passado recente.

Apesar de acordos vários e dalguns protocolos parcelares para trabalho conjunto, não foi possível fazer do Pacto um texto de compromisso. Ou porque não fazia parte da nossa tradição política e alguns confundiam consenso com conformismo; ou porque os objectivos eram vagos (diziam alguns) ou porque temiam outros ainda perder algum controlo da negociação directa com o Ministério, ou porque se receava a perda de espaço crítico, o certo é que o Pacto não constituiu, de modo explícito, um texto de referência pública duradoura. Nas palavras de A. Santos Silva (in A. Teodoro (coord.), Pacto Educativo: Aspirações e Controvérsias, Lisboa, Texto Editora, 1996), Ministro da Educação em 2000/2001, o Pacto não pretendia chegar a contratos formais, pois do que precisamos é de um contrato social, «um contrato que se vai fazendo, exigindo que se coloque a educação na agenda pública (...)». E acrescenta: «não o era já antes deste Pacto? A pergunta crítica faz todo o sentido, porém a minha resposta é negativa. Pois justamente não era a educação e a formação, na sua globalidade sistémica, que estava em questão na opinião pública e nas pressões sociais sobre a governação política, mas apenas os problemas parciais que, quer em razão da sua maior visibilidade imediata, quer em razão da especial sensibilidade das procuras, quer em razão de interesses profissionais localizados, quer em razão da sua maior rentabilidade, em termos de leitura político-partidária, sindical ou mediática, adquiriam sobrerrepresentação no espaço público e afunilavam a decisão e a administração política»; era o caso do acesso ao ensino superior, as propinas universitárias, a carreira dos professores, a expansão do ensino superior privado, etc. Estas questões têm toda a sua legitimidade, evidentemente, mas só o debate geral permite trazer para a primeira linha das preocupações temas cujos protagonistas são bastante silenciosos (a educação básica e a educação de adultos, por exemplo). Na verdade, a grande desconfiança de muitos tinha a ver com a já tradicional (e por vezes bem cruel) distância entre os discursos e as práticas, entre as intenções e as políticas.

As orientações acima referidas foram sendo traduzidas em medidas concretas, com ritmos diversos e diferentes sublinhados, embora possa dizer-se que os colegas são hoje, na vida educativa portuguesa, muito mais numerosos e activos. Entre outros exemplos, temos as associações científicas e pedagógicas de professores (constituídas em conselhos para o acompanhamento das transformações no ensino básico e secundário), a consagração da participação dos pais na vida das escolas (e correspondentes reivindicações), a criação de conselhos locais de educação em numerosos concelhos do país (estruturas de coordenação das políticas locais).

Em 1995, o país tinha uma consciência surda dos seus problemas educativos. Com a realização e publicação do l.º Estudo Nacional de Literacia (de que fui coordenadora –Estudo Nacional de Literacia, Fundação Calouste Gulbenkian/Conselho Nacional de Educação, Lisboa, 1996), e cujos resultados impressionaram e com as políticas desde então desenvolvidas, a educação tornou-se tema quotidiano nos jornais; a escola básica despertou o interesse de muitas instituições de ensino e investigação; numerosos projectos locais traduzem o interesse de organizações sociais e culturais na vida educativa. Pais, autarcas e outros elementos das comunidades são hoje parceiros de pleno direito na educação. Não será este um resultado menor da nossa «paixão»!

4. Democratização e/ou qualidade?

O entendimento de que a educação e a formação são indispensáveis para mais igualdade e justiça, podendo atenuar a reprodução das desigualdades de geração em geração e do seu papel decisivo na construção de uma sociedade mais moderna e competitiva, com mais cidadania, levou o Governo a atribuir particular importância à educação pré-escolar e à educação básica. E isto porque «um bom começo vale para toda a vida». Consideramos a escola a instituição mais generosa da democracia, capaz de assegurar a qualidade de aprendizagens para todos, de se modernizar e adequar à sociedade de informação e do conhecimento sem ficar prisioneira do dilema que o senso comum repete e que vários estudos desmentem: ou democratização com perda de qualidade ou qualidade com selecção social. Sob a forma de uma simples pergunta, joga-se aqui uma questão central da escola nas sociedades democráticas. Afirmam uns que se trata de uma fatalidade, de um efeito perverso semelhante ao que R. Boudon analisou, mostrando que a procura de diplomas por um grande número de alunos, pelo seu valor social, tinha como efeito a desvalorização desses mesmos diplomas (L’inégalité des chances, Paris, A. Colin, 1973). Assim, quantos mais têm acesso à escola, menos se aprende... Foi-se criando a ideia de que a democratização do acesso trazia fatalmente consigo a falta de rigor e de exigência, o facilitismo e a ignorância.

Investigadores como Ch. Baudelot e R.Establet (Le niveau monte, Paris, Seuil, 1989) mostraram que se trata de uma afirmação que não corresponde à verdade; com efeito, compara realidades incomparáveis, utilizando como referência os saberes escolares formais tradicionais e apelando ao passado para responder ao presente e ao futuro; das novas tecnologias às línguas estrangeiras, há hoje outras exigências de saberes e competências, novos modos de estar e de agir.

Conciliar a igualdade de oportunidades com a exigência e o rigor foi a nossa aposta. Os preconceitos sociais neste domínio são muito fortes; a defesa da inclusão dos alunos é frequentemente feita em termos que reduzem a escola à simples função de «guarda»; a defesa da exigência, por seu turno, mitifica um modelo de ensino pensado para um universo escolar demograficamente reduzido, socialmente homogéneo e proveniente das classes média e alta, modelo que já há trinta anos era produtor de exclusão e que é impossível de transpor para a sociedade de hoje.

Em 1997 teve lugar uma interessante polémica nas páginas dos jornais entre sociólogos e analistas políticos; defendiam uns que a escola ensina cada vez menos, que «os alunos são cada vez mais ignorantes» e que a responsabilidade pertence aos «filhos de Rousseau», com as suas pedagogias promotoras do facilitismo; contestavam outros os preconceitos e a ausência de «cientificidade» de tais afirmações, prisioneiras de um passado «supostamente ideal»; comparavam-nos a alguém que tivesse tomado um combóio nos anos sesenta, adormecido entretanto e «acordado nos anos noventa sem dar-se conta que o combóio não é o mesmo, os passageiros não são os mesmos e a própria companhia transportadora é outra» (A. M. Magalhães e S. R. Stoer, Orgulhosamente filhos de Rousseau, Porto, Profedições, 1998).

Na escuta do país, partindo dos diagnósticos, das orientações e dos nossos próprios compromissos, prosseguimos o objectivo de melhorar a escola básica, com igualdade de oportunidades, exigência e rigor; as estratégias, numa perspectiva de mudanças graduais, centraram-se nas escolas e em boas práticas (muitas vezes já existentes e testadas até nos seus resultados). Com realismo e sem fatalismos, considerando que o tempo das «grandes reformas» já passou. E por quê? Por várias razões. Primeiro, porque não basta legislar para mudar a escola; o Estado tem que reequacionar o seu papel, garantindo condições materiais e organizativas para uma efectiva igualdade de oportunidades; deve estimular a autonomia das escolas e a divulgação de boas práticas, assegurando o suporte e apoio a iniciativas descentralizadas e diversas; tem que assumir um papel regulador de modo a que a diversidade de projectos de escolas e a sua autonomia não se traduzam em novas desigualdades e assimetrias. Depois, o tempo das grandes reformas já passou porque se sabe hoje que o núcleo duro da transformação pedagógica, o mais difícil e, porventura, o mais decisivo, reside nas práticas pedagógicas (ou seja, nas respostas das escolas às desigualdades e diversidades sociais). Este é um dos grandes obstáculos à mudança educativa. As intervenções quantificáveis são mais fáceis de avaliar de imediato (aumento da oferta, criação de novas instituições, aumento do número de diplomados, etc.), as realizações materiais impressionam e são irrefutáveis (novas escolas, bibliotecas, equipamentos em novas tecnologias, laboratórios, etc.) enquanto as transformações na organização e gestão das escolas bem como as mudanças de lógicas curriculares e de práticas pedagógicas aparecem como questões internas e de menor relevância social. E, no entanto, não é possível transformar a escola e os seus resultados sem que a organização pedagógica se altere, sem que a escola se torne uma «organização que aprende», sem a constituição de equipas e de projectos educativos, sem interrogar os tempos escolares, sem inovar no domínio da gestão curricular e das pedagogias (que só poderão assegurar as aprendizagens para todos se se «diferenciarem», na terminologia de Philippe Perrenoud (La pédagogie différenciée: des intentions à l’action, Paris ESF, 1997). Em terceiro lugar, o tempo das «grandes reformas» já passou porque, após decénios em que as autoridades definiam e planificavam as mudanças e os seus calendários, mudanças que os professores deviam «aplicar», como se a «sociedade mudasse por decreto» (na terminologia de Michel Crozier), reconhece-se na actualidade que a mudança das escolas, num mundo complexo e imprevisível, precisa de todos, nomeadamente dos professores e das dinâmicas inovadoras que se constróem no âmbito local. Como diz Fr. Cros (Les écoles innovantes, OCDE/CERI, Paris, 1999), «a maioria das inovações que se desenvolvem actualmente nos países ocidentais nascem dos actores que ‘interpretam’ as orientações das políticas nacionais. Quando dizemos ‘interpretam’, referimo-nos a negociações e jogos entre as políticas oficiais e as forças do terreno». O observatório europeu das inovações em educação e formação e os recentes trabalhos conduzidos pela OCDE/CERI sobre «L’Ecole de demain» revelam que, para além das diversidades nacionais, se encontram aspectos comuns tanto no plano estrutural como no plano temático e nos actores envolvidos.

A importância dos profissionais e dos diversos protagonistas educativos não menoriza o papel dos governos; antes obriga a uma reformulação das responsabilidades e das intervenções e a políticas lucidamente assumidas e continuadas. E isto porque se o tempo das «grandes reformas» acabou, foi também porque hoje conhecemos melhor os processos de mudança educativa e nenhum deles pode fazer a economia dos seus directos intervenientes.

Como já referi, desde a elaboração da Lei de Bases do Sistema Educativo Português (1986), momento marcante para a consolidação de orientações genéricas, o país havia conhecido processos de «reforma do sistema educativo» no sentido clássico; alteraram-se então programas, assim como processos de avaliação, criou-se uma rede de escolas profissionais privadas num subsistema paralelo ao ensino público, testaram-se novas fórmulas para uma maior descentralização na gestão do sistema e de autonomia das escolas. Também no ensino superior se assistiu um crescimento da oferta (com recurso a universidades privadas, até então praticamente inexistentes em Portugal) e a uma diversificação de instituições: universidades e institutos politécnicos (assinale-se que um dos objectivos das escolas superiores de educação, integradas no ensino superior politécnico, foi o de assegurar uma melhor formação inicial de professores do ensino básico).

Em 1995, face a uma situação caracterizada por tensões com os parceiros educativos em vários graus de ensino, medidas anunciadas e por concretizar, processos não consolidados e até em ruptura, iniciou-se uma nova fase. Antes de a caracterizar quanto às áreas que este texto aborda, torna-se necessário abrir um parêntese quanto à prioridade à educação básica. É evidente que, em educação, as prioridades não são absolutas. Assim, a centração no ensino básico não significou, na acção do governo nem significa, na análise das políticas, uma menor atenção aos outros graus de ensino e outras dimensões educativas.

A educação constitui um sistema interligado; para a melhoria da educação básica, é indispensável a formação de professores, que se faz no ensino superior; o aumento dos níveis educativos da população exige mais e melhor ensino secundário, bem como mais e melhor ensino superior e respostas adequadas de educação-formação permanente dos adultos. As políticas educativas não resultam sem haver políticas sociais articuladas (na área da exclusão social, da formação profissional, do trabalho e emprego, etc.). A ciência e a tecnologia têm nas escolas o seu espaço privilegiado. Muitos outros exemplos mostram que nenhum grau educativo vive sozinho ou pode desligar o seu «destino» do sistema educativo e do país. Ainda assim, a prioridade à educação básica inverteu as políticas habituais (em geral mais centradas no ensino superior ou em pontos críticos e estrangulamentos conjunturais do sistema). Das principais iniciativas que marcaram a acção do XIII governo a partir de 1995, continuadas no XIV governo, destacarei as seguintes:

Diversos acordos e iniciativas conjuntas foram tomadas com o Ministério do Trabalho e Solidariedade (responsável pela luta contra o trabalho infantil e a exclusão social como também pela formação profissional em contexto de trabalho), do mesmo modo com o Ministério da Ciência e Tecnologia, procurando desenvolver o ensino experimental, tanto nos equipamentos como nas práticas e na utilização de novas tecnologias de informação e comunicação. A formação contínua de professores consagrou modalidades centradas em projectos inovadores, em círculos de estudo (acompanhando as práticas) e em oficinas pedagógicas. Desenvolveu-se um programa (Programa Boa Esperança) de apoio às boas práticas, no sentido de assegurar condições favoráveis a projectos inovadores já consolidados e capazes de produzir materiais, de divulgar realizações e de apoiar iniciativas semelhantes noutras escolas. Elaborou-se, a partir da experiência de escolas da periferia urbana, uma Carta de Direitos e Deveres dos Alunos, procurando corrigir comportamentos através de actividades educativas e não através da exclusão (dos já socialmente excluídos, como tantas vezes acontece). O lançamento de um processo participado para a elaboração de legislação sobre gestão e autonomia das escolas envolveu professores, pais e autarcas, com destaque para a criação de conselhos locais de educação, órgão de coordenação de políticas locais, de iniciativas conjuntas e de participação social na vida educativa local. A promoção da cidadania nas escolas foi entendida como uma questão transversal, presente em todos os espaços e actividades da escola, pelo que uma das medidas cívicas porventura mais determinantes terá sido a de construir «escolas completas». Aos cubos de cimento, aos conjuntos de salas de aula apressadamente construídos nos últimos anos para assegurar a resposta ao crescimento de efectivos (dado o prolongamento da escolaridade obrigatória,) construíram-se, a partir de 1995, escolas com projectos de arquitectura específicos segundo as zonas do país, escolas com conforto, espaços desportivos, refeitórios, bibliotecas, mediatecas, salas de docentes e de alunos, gabinetes de trabalho, laboratórios, num investimento sem precedentes.

A Lei de Bases do Sistema Educativo foi alterada de modo a consagrar o mesmo nível de formação académica para todos os docentes (licenciatura), da educação pré-escolar ao ensino superior.

Muitas outras medidas se concretizaram para a melhoria da vida educativa e para uma maior confiança social na educação, com destaque para a avaliação externa dos alunos no 4º, 6º e 9º anos —avaliação aferida—, abrangendo progressivamente a totalidade dos alunos e das escolas (em português e matemática) e a «avaliação integrada das escolas» que analisou diversos aspectos da organização, funcionamento e resultados de um elevado número de escolas.

Neste contexto de grande ambição, entusiasmo e realismo, centrar-me-ei agora em dois temas (que considero exemplares quanto às potencialidades e dificuldades de melhoria da escola básica): as medidas imediatas contra a exclusão e a reorganização curricular do ensino básico.

5. A exclusão escolar

A luta contra o abandono escolar e o insucesso era urgente, mas isso não significava desligar as respostas das necessárias transformações de fundo da escola básica. Assim, lançou-se de imediato, em 1996, um conjunto de medidas contra a exclusão; ao mesmo tempo, iniciou-se um processo participado de reorganização curricular no ensino básico, com o envolvimento voluntário e progressivo das escolas, que só em 2001 foi consagrado num decreto-lei e generalizado, nos seus aspectos formais e de orientação, a todas escolas. As mais emblemáticas das medidas imediatas foram os «currículos alternativos» para alunos e grupos em situação de exclusão, bem como a criação de «territórios educativos de intervenção prioritária» e ainda programas destinados a jovens adolescentes pouco escolarizados (em parceria com a formação profissional).

5.1. Os territórios educativos de educação prioritária

O reconhecimento das dificuldades com que se deparam muitas escolas, quer em zonas de isolamento rural, quer nos meios urbanos e suas periferias, levou-nos a criar os «territórios educativos de intervenção prioritária». Esta medida, inspirada nas «zones d’action prioritaires» em França, tal como nos Estados Unidos, partia de experiências já realizadas em zonas suburbanas e de forte presença de imigrantes; essas experiências, a que eu própria estivera ligada no início dos anos noventa, mostravam que era possível articular recursos, mobilizar todos os parceiros educativos e levar as escolas a ter em conta as necessidades específicas dos alunos, conquistando-os para as aprendizagens, abrindo o espaço escolar a novas actividades (nomeadamente na área artística e desportiva) e atenuar os fenómenos de exclusão.

Acresce que, em Portugal, a escolaridade obrigatória tem outro problema: constituída por três ciclos, os alunos mudam de escola no final dos primeiros 4 anos (1º ciclo) transitando para escolas básicas de 2º e 3º ciclos e, por vezes até, para escolas do 2º ciclo, indo depois para escolas do 3º ciclo que têm também ensino secundário. Estas discontinuidades, desarticulações e até rupturas criam dificuldades adicionais aos alunos, sobretudo aos escolarmente mais frágeis. Por esta razão, um dos desafios foi, a partir de 1995, encontrar modos operacionais e pedagogicamente relevantes de harmonizar os três ciclos e de acompanhar e apoiar os momentos de transição.

Os objectivos dos «territórios» foram e são os seguintes: melhorar o ambiente educativo e a qualidade das aprendizagens dos alunos; integrar os três ciclos da escolaridade obrigatória, articulando-os com a educação pré-escolar e com a formação, criar condições para ligar a escola à vida activa e coordenar as políticas educativas numa determinada área geográfica e adequá-las à comunidade.

As escolas viveram assim processos de abertura, de interrogação crítica e de «agrupamento» de escolas numa determinada zona, em torno de projectos e de objectivos comuns. Os professores dispunham de horas para estes projectos, receberam recursos acrescidos, meios materiais, reduziram-se os efectivos de alunos por turma, criaram-se mecanismos para uma maior continuidade do corpo docente (sendo a mobilidade exagerada de professores um dos problemas da nossa realidade educativa) e, segundo as circunstâncias, formaram-se e recrutaram-se jovens mediadores, flexibilizaram-se currículos, de modo a elaborar projectos concretos de luta pela inclusão e pelas aprendizagens. A acção social e a saúde, como também outros serviços e entidades locais, pais e autarcas constituíram um conselho pedagógico de cada «território».

As escolas propuseram-se de modo voluntário para a criação de «territórios», junto às autoridades locais e os professores, que se mantiveram nessas escolas.

O número de territórios, das iniciais dezenas em 1996/97, foi crescendo, de modo controlado. Com efeito, entretanto, preparavam-se medidas estruturais relativas à autonomia e gestão das escolas, prevendo os «agrupamentos» de escolas da educação pré-escolar e dos três ciclos do ensino básico e a criação de órgãos de participação social na vida educativa.

As dificuldades foram várias: a coordenação entre serviços, difícil de conseguir, os recursos, sempre insuficientes, as dificuldades reais de meios sociais muito carenciados. Mas os efeitos positivos também foram muitos; desde logo, a «solidariedade» e atenção a contextos difíceis; a articulação de recursos entre escolas próximas; o acompanhamento dos alunos na transição entre ciclos; o desenvolvimento de respostas originais (algumas das quais viriam a ser integradas na reorganização curricular do ensino básico) e a mobilização dos parceiros educativos para a melhoria educativa. Para além dos efeitos positivos junto dos professores e funcionários, dos alunos e pais e da comunidade, consagrados em diversos relatórios de avaliação, os «territórios educativos de intervenção prioritária» foram percursores de um vasto processo de reordenamento da rede escolar, de autonomia e gestão das escolas e de participação social. Assim, uma medida contra a exclusão tornou-se pioneira na construção de soluções que vieram a ser consagradas (Decreto-Lei n.º 115-A/98) para todas as escolas.

5.2. Os currículos alternativos

Partindo da Lei de Bases do Sistema Educativo, da Declaração Mundial sobre Educação para todos (UNESCO, Jomtien, 1990) e do abandono e insucesso no ensino básico, criou-se, em 1996, a possibilidade de elaboração de currículos que «com o mesmo nível escolar e assegurando as aprendizagens fundamentais» garantissem a resposta a alunos em situação de insucesso escolar repetido e em risco de abandono (Despacho 22/SEEI/96). Reconhecendo a heterogeneidade das populações escolares e a rigidez da nossa oferta, considerámos que não podíamos aceitar que milhares de jovens abandonassem a escola sem concluir a escolaridade obrigatória; era preciso, por isso, encontrar medidas imediatas para evitar tal situação, enquanto se preparavam transformações estruturantes, capazes de flexibilizar os currículos e de os adequar às necessidades de todos.

Para evitar que se elaborassem projectos muito pobres e minimalistas ou que, nalguns casos, sacrificassem-se aprendizagens fundamentais, as propostas das escolas eram apresentadas e aprovadas pelos serviços regionais e centrais do Ministério da Educação. Um conselho de acompanhamento, atento a estes projectos, realizava balanços anuais. Muitas escolas aderiram com entusiasmo; numerosas visitas efectuadas em todo o país foram mostrando projectos de sucesso, jovens reconciliados com a escola, originalidade de soluções, formações profissionais integradas.

Em 1999/2000 constituíram-se, a nível nacional, 497 turmas, frequentadas por cerca de 6.000 alunos, e o sucesso educativo foi de 82%.

A criação dos currículos alternativos foi uma das medidas que mais polémica pública suscitou. Sindicatos de professores e especialistas das Ciências da Educação insurgiram-se contra uma «escola de 2ª categoria», contra a desigualdade de tratamento e a discriminação, temendo o fim da «educação para todos». Criticou-se a «simplificação» de conteúdos e matérias escolares, alguns «viram» nestes currículos «o estado a que a escola havia «chegado». Estranhamente, na minha opinião, foram os que mais críticas fisseram à escola tradicional e que mais se disseram preocupados com a exclusão, que mais atacaram os currículos alternativos. Este debate passou ao lado das escolas, mais realistas e empenhadas em encontrar soluções concretas contra o abandono escolar.

Os currículos alternativos foram sendo esquecidos pela opinião pública; ou porque as escolas os integraram e não fizeram eco das críticas, ou porque se reconheceu que, entre uma situação de exclusão e as aprendizagens fundamentais com obtenção do diploma de escolaridade obrigatória, não havia que hesitar, ou ainda porque os críticos se tranquilizaram face à reorganização curricular que, na sua flexibilidade, assegura às escolas maior liberdade de organização e evita medidas «de excepção».

6. Reorganizar o ensino básico: a gestão flexível dos Currículos

Em 1996/97, paralelamente ao debate e elaboração de um novo quadro de administração, gestão e autonomia das escolas, iniciou-se o processo de reflexão participada sobre os currículos do ensino básico, procurando que os professores dos três ciclos analisassem criticamente a organização curricular e a sua gestão. Um papel importante foi atribuído às associações cientificas e pedagógicas de professores.

O objectivo foi o de envolver progressivamente as escolas na gestão autónoma o processo de ensino/aprendizagem, tomando como referência os saberes e as competências nucleares a desenvolver pelos alunos no final de cada ciclo e no final da escolaridade básica, adequando-às necessidades diferenciadas de cada contexto escolar e podendo contemplar a introdução no currículo de componentes locais e regionais.

Surgiam assim novas perspectivas: uma maior autonomia das escolas ao invés da rigidez curricular tradicional; 0rompia-se a aliança entre igualdade como sinónimo de uniformidade, considerando que a igualdade se constrói na diversidade de respostas; centrava-se a educação nas competências a construir e não nos conteúdos programáticos (sendo estes os seus suportes, pois não se constróem competências no vazio); formulavam-se competências transversais, relacionadas com os processos de aquisição, comunicação e utilização dos conhecimentos, promovendo a capacidade de aprendizagem ao longo da vida. Estas competências transversais chamavam a atenção para o facto de o currículo não poder ser uma soma de disciplinas sem articulação entre si. Explicitava-se uma nova concepção de currículo, enquanto conjunto de experiências, situações de aprendizagem e competências de modo a conseguirmos «cabeças bem feitas» em vez de «cabeças muito cheias» (Ph. Perrenoud, Construire des compétences dès l’école, Paris, ESF, 1997). Esta questão situa-se no centro dos problemas da escola de hoje: como resolver o dilema entre o tempo escolar, limitado, e os conhecimentos cada vez mais vastos? Desenvolver competências não significa que se renuncia à transmissão de conhecimentos mas há, sem dúvida, uma opção a fazer: adicionar cada vez mais conhecimentos em cada área do saber ou mudar de lógica, assegurando, com os saberes nucleares, a construção de competências que permitem uma relação positiva e mais autónoma com o conhecimento? Em numerosos países, França, Bélgica, Canadá, por exemplo, esta questão é central nas transformações da escola. Assim acontece em Portugal: queremos uma escola mais humana, criativa e inteligente, capaz de assegurar o desenvolvimento integral dos seus alunos; queremos professores com autonomia para tomar decisões em áreas-chave do currículo, integrados em estruturas de trabalho colegial; queremos uma maior implicação da comunidade educativa no desenvolvimento de projectos que visam mais qualidade e pertinência das aprendizagens. Abandona-se assim, pela primeira vez, a tradição das reformas que começam por alterar os programas em longos debates sobre conteúdos; nesses debates confrontam-se sempre tendências diferentes dentro de cada disciplina, «guerras» relativas ao estatuto de cada uma delas e às horas que ocupam (determinantes para os postos de trabalho). Tarefa gigantesca, não assegura, por si só, a democratização e qualidade das aprendizagens; trata-se, muitas vezes, de uma mudança de tipo 1, em que «as coisas mudam e ficam na mesma» (na terminologia conhecida de P. Watzlawick e da teoria da mudança de Palo Alto); recompõem-se conteúdos mas não se alteram os processos de aprendizagem nem se interroga o sentido social dos saberes.

A nossa estratégia foi a seguinte: envolver escolas num processo voluntário de gestão curricular a partir de novas concepções e de práticas flexíveis. Cada escola elaborou um projecto adequado ao seu contexto; definiram-se suportes e referências comuns, nomeadamente as competências dos alunos no final de cada ciclo, os núcleos fundamentais de saberes para todos, um elenco de disciplinas e três novas áreas transversais não curriculares. A carga horária global era e é também idêntica, mas as escolas têm maior liberdade de distribuir e gerir esses tempos.

Do trabalho destas escolas, cujo número foi aumentando ao longo de quatro anos (10 no primeiro ano, 33 no segundo, 93 no terceiro e 184 no quarto, dos três ciclos e em todo o país), foi sendo revisto e melhorado o projecto que, em 2001, foi consagrado na lei (Decreto-lei ME/6/2001) e proposto a todas as escolas no ano lectivo 2000/2001. É curioso, mas muitas escolas que participaram voluntariamente neste processo foram escolas em zonas difíceis, algumas com problemas de natureza material, embora com professores preocupados com a necessária mudança educativa. Esta estratégia teve várias vantagens: basear nas escolas, em situação real, as transformações de lógicas curriculares; testar a exequibilidade das propostas, sem fantasias desligadas das práticas; melhorar e enriquecer o desenho curricular e as condições para o seu desenvolvimento, de modo a ultrapassar resistências e bloqueios; criar uma rede de escolas capazes de constituir um precioso recurso de formação e de apoio a outras escolas em territórios próximos; constituir um banco de materiais e de experiências úteis para outros professores; criar confiança no processo de melhoria da vida escolar; demonstrar a diferença entre um novo quadro curricular —que o governo aprovou em 2001— para todas as escolas enquanto conjunto de orientações e de condições que balizam o trabalho das escolas, e a gestão curricular que não se cria por decreto e que leva muito tempo a aprender.

Trata-se, pela primeira vez, de ensaiar uma política curricular com alguma coerência entre os normativos e as condições de realização no terreno. Pretende-se pôr as escolas a pensar e a questionar a sua função, a olhar para o currículo, não como um texto fixo a cumprir de forma sagrada e uniforme, mas antes como um texto aberto que é preciso encher de significado e de sentido em função das necessidades e desafios que o contexto da escola coloca aos professores, como profissionais de uma educação de qualidade e, portanto, promotora de sucesso para todos (L. Alonso, O projecto de gestão do currículo em questão, Noésis, I.I.E., Lisboa, 2001).

Mostras de materiais, elaboração de catálogos de recursos, círculos de estudos, encontros locais, regionais e nacionais foram alimentando o processo em que os testemunhos e experiências dos professores tiveram um papel relevante. O processo continua e será preciso tempo para saber quais os efeitos finais porém não tenho dúvidas que se virou uma página na escola básica portuguesa.

Democratização e qualidade são duas faces de uma mesma moeda; não nos interessa uma escola para todos sem efectivas e relevantes aprendizagens. Só assim poderemos alterar os indicadores que, em cada estudo internacional, revelam a debilidade dos resultados escolares. Assim aconteceu em Dezembro de 2001 com os resultados do PISA (OCDE) que, mais uma vez, colocou Portugal em posições muito modestas quanto às competências dos alunos. Claro que estes grandes estudos internacionais comparam sociedades muito diversas e em diferentes momentos do seu desenvolvimento, mas não deixam de interrogar o papel específico da escola e os seus resultados. Temos que reconhecer que a escola, como está organizada, não tem sido capaz de lidar com os problemas e situações da sociedade actual. É, em muitos dos seus aspectos, uma escola do passado, plena de contradições, com dificuldade em responder aos actuais desafios. E não chega equipar as escolas com novas tecnologias. A qualidade depende, em grande medida, do cruzamento de vários factores, nomeadamente o desenvolvimento curricular, o desenvolvimento organizacional e o desenvolvimento profissional dos docentes; só assim se criarão condições para a melhoria da qualidade das aprendizagens dos alunos.

A preocupação com a democratização e a qualidade leva-me a sublinhar ainda dois aspectos da reorganização curricular do ensino básico actualmente em curso em Portugal:

Das três novas áreas curriculares destaco o «estudo acompanhado» como sendo possível de fazer mais pela efectiva democratização do que muitos discursos e boas intenções. Segundo muitos jornais, trata-se da medida «mais bem recebida por alunos e por pais». Esta área, com duas horas por semana, no mínimo, visa ajudar e promover a aquisição pelos alunos de métodos de estudo e trabalho que lhes permitam realizar com maior autonomia a sua aprendizagem e desenvolver a capacidade de aprender a aprender. Esta área pressupõe que, por exemplo, aprender a consultar diversas fontes de informação, a elaborar sínteses ou a organizar trabalhos, individuais e de grupo, constitui uma componente importante do trabalho a realizar na escola. Esta «vive» do trabalho que os alunos realizam fora dela, o que constitui factor de desigualdade; trabalhos de casa, explicações, sistematização de saberes, são decisivos numa escola em que as aulas são dominantemente expositivas, centradas na informação e em que não há tempo, na aula, para o trabalho dos alunos.

Haverá sempre estudo e aprofundamento para além da escola; contudo, na escolaridade básica obrigatória o trabalho fundamental tem que ser assegurado na escola; por outro lado, é imprescindível que os alunos aprendam a estudar, a ter autonomia na procura, selecção e utilização da informação cada vez mais numerosa e mais dispersa, a adquirir ferramentas de trabalho e metodologias que lhes permitam continuar a aprender para além da instituição; trata-se aqui de aprendizagens significativas «das que não se esquecem nas férias». Será esta, seguramente, uma estratégia adequada à formação ao longo da vida que só se conseguirá se a escola se transformar. Com efeito, todos concordam com a «formação permanente», mas a escola continua a afastar muitos alunos de quaisquer estudos posteriores; ou porque não aprenderam ou porque não gostaram de aprender ou ainda porque se convenceram que não eram capazes de continuar a aprender. Por tal motivo, a formação ao longo da vida exige que a escola motive para a aprendizagem. Também a educação para a cidadania encontra, nesta reorganização curricular, uma nova importância no estudo acompanhado (poderá haver plena cidadania sem autonomia e competências para continuar a aprender?); na área de projecto, que articula saberes de várias disciplinas em torno de problemas actuais (poderá haver cidadania sem capacidade de estudo e de intervenção?); no tempo disponível, para que cada director de turma, de acordo com as propostas dos alunos, assegure informação e organize a reflexão sobre questões do mundo actual. A educação para a cidadania vive-se em cada momento e em todos os espaços da escola, mas encontra aqui um reforço explícito.

Quanto aos tempos escolares, a inovação consistiu em interrogar a rígida organização em aulas de 50 minutos (que alguns professores agrupavam, quando era possível, para utilizarem outras metodologias e realizarem trabalhos com os alunos).

Uma das características da instituição escolar (como das outras instituições, aliás) é a de «naturalizar» a sua organização; as aulas de 50 minutos não são «naturais», correspondem a uma construção histórica de que se conhecem as razões e os objectivos, em tempos de classes muito numerosas e de raros meios de informação e de fontes de saber. Hoje, a situação é muito diferente e as aulas expositivas têm que constituir momentos de informação articulados com outras metodologias centradas no trabalho individual e de grupo dos alunos; pesquisas, consultas, resolução de problemas, escrita e análises críticas, perguntas e debates, sistematização e aprofundamento de saberes devem ter o seu lugar nas aulas. Desde logo, é uma revalorização do espaço-aula e do trabalho docente; depois, criam-se condições para a utilização efectiva de novas tecnologias que não podem ser um simples «complemento»; finalmente, as aulas passam a ser o lugar e o tempo da aprendizagem escolar por excelência. Assim, as escolas envolvidas na gestão curricular flexível organizaram o seu trabalho em aulas de 90 minutos (e outras variantes organizativas) e essa solução foi consagrada na lei, assegurando a liberdade das escolas na gestão do tempo.

Esta «inovação» foi das que mais polémica provocou, revelando a interiorização do modelo pedagógico mais uniforme e tradicional. Muitos pais e professores consideraram a medida impraticável e contraproducente, argumentando que «não é possível exigir aos alunos destas idades uma hora e meia de concentração na mesma pessoa e sobre a mesma matéria», como se esse modo de trabalho fosse o único imaginável. Também houve alunos preocupados com o «aborrecimento» suplementar que anteviam em aulas mais longas. Foi interessante constatar que os receios de quem estava «de fora» eram desmentidos pelos testemunhos e pela avaliação de pais, professores e alunos das escolas que já praticavam o novo desenho curricular.

Em 2001/2002, com a generalização da reorganização curricular, será interessante conhecer as soluções encontradas e as resistências dos que não alteram os seus modos de trabalhar. Em todo o caso, as escolas que desde 1987 «romperam» a rigidez da gestão horária, avaliam positivamente a sua experiência; temos aqui uma «pequena-grande» decisão, decerto óbvia, com baixos custos e capaz de levar a transformações qualitativas muito importantes.

Resta saber, nas palavras de Ph. Perrenoud (op. cit. 1997), se estamos perante «reformas do terceiro tipo», que vão para além das estruturas e dos programas e que tocam nas práticas de ensino. «A mudança da escola —acrescenta o mesmo autor— apoia-se em tentativas precedentes e procura dar mais um passo». O debate actual só é possível porque, desde há um século, os defensores da escola nova e das pedagogias activas questionam as relações entre os saberes e as práticas sociais, o sentido do trabalho escolar, a ausência de projecto.

Apesar de ser um caminho necessário, não deixará de se confrontar com múltiplas dificuldades, desde as resistências ideológicas às rotinas instaladas. É preciso aceitar que as práticas, as atitudes, as representações e as identidades precisam de muito tempo para se transformarem e que precisam de condições materiais, simbólicas, pedagógicas e profissionais que apoiem os processos de mudança. Acresce ainda que a formação inicial de professores está longe de integrar estas concepções e continua, na maior parte dos casos, centrada no «aluno ideal», abstracto e inexistente, pouco consistente com o desenvolvimento da profissionalidade docente.

6. Em síntese

Em Portugal é preciso reconhecer que as políticas coerentemente definidas desde 1995 têm tido ritmos e até destinos diversos, o que constitui um obstáculo suplementar à mudança educativa. Deste modo, a educação pré-escolar desenvolveu-se com critérios de qualidade e assegura hoje a educação de cerca de 80% das crianças de cinco anos; as medidas contra a exclusão, articuladas com políticas sociais —como a criação do rendimento mínimo garantido que levou para a escola muitos jovens e adultos— atingiram os seus objectivos; a autonomia e gestão das escolas prossegue, mas a ritmo muito mais lento do que desejável; a transferência de competências para o nível local encontrou obstáculos (nomeadamente financeiros) que bloquearam, por agora, essa transferência; a revisão curricular do ensino secundário (prevista para 2002/2003) poderá ser suspensa dada a actual crise política e as novas eleições para o Parlamento e o governo no próximo mês de Março de 2002; no ensino básico a situação é desigual, pois ao investimento na educação pré-escolar e nas escolas completas do 2º e 3º ciclos, mantêm-se muitas escolas do 1º ciclo em situação de desvantagem; alterou-se o nível da formação de professores, articulou-se a sua gestão com a dos outros dois ciclos do ensino básico, mas os edifícios dependem das autarquias locais e os seus equipamentos e recursos estão longe de ser satisfatórios; a reorganização curricular do ensino básico generalizou-se e prossegue e, mesmo se não atingir toda a sua ambição, transformou em aspectos menos visíveis mas decisivos a vida de muitas escolas. Temos modos de avaliação coerentes com os currículos e uma avaliação externa dos alunos capaz de aferir os resultados, de modo a regular eventuais disparidades que resultem da diversidade de soluções. Os resultados da avaliação aferida no ensino básico, devolvida a cada escola e agrupamento de escolas com dados concretos e propostas de reflexão sobre as competências dos alunos, os seus níveis e dificuldades, constitui um precioso auxiliar da acção pedagógica até hoje inexistente.

Para além das críticas de que sempre foi objecto, a escola continua a enraizar-se em duas convicções que marcam as nossas sociedades: a de que se pode mudar o mundo e as «mentalidades» educando melhor as pessoas, e a de que as sociedades são suficientemente maleáveis para permitir a transformação das escolas (W. Hutmacher, Les écoles innovantes, OCDE/CERI, Paris, 1999). São estas convicções que movem os políticos, os profissionais e os colegas educativos que investem nas reformas, regulações e melhorias da educação.

As análises de A. Giddens referentes à globalização e suas consequências, às transformações dos modos de vida e de relação entre os homens e a natureza, aos impactes das novas tecnologias na organização social e na esfera individual, ao risco e à imprevisibilidade do nosso futuro, questionam o papel da instituição escolar.

Os mais recentes cenários elaborados para o futuro das escolas (What schools for the future? OCDE/CERI, Paris, 2001), formulando uma grelha de análise entre cenários desejáveis e/ou prováveis e indesejáveis e/ou improváveis, considera que os mais desejáveis e prováveis são os se centram na «re-escolarização», isto é, na transformação das escolas. Elevado nível de confiança e de financiamento público, diversidade organizacional e desenvolvimento profissional dos docentes em escolas «capazes de aprender», qualidade e equidade aparecem no centro desta transformação. Afastam-se, como menos desejáveis e prováveis, as perspectivas de «desescolarização», presentes nalguns discursos da direita liberal e o reforço do statu quo, o reforço de uma escola selectiva, rígida e centrada nas necessidades do mercado. Para a «refundação» da instituição escolar os obstáculos identificados são muitos e o caminho a percorrer longo e difícil. É, sem dúvida, um dos maiores desafios das democracias. Desafio que vale a pena, pois, em qualquer circunstância, o mais importante são as pessoas (Programas do XIII e XIV governos constitucionais).

Se é verdade que só em 1999-2000 Portugal atingiu os 100% de escolarização até aos 15 anos de idade, concretizando assim a decisão da Lei de Bases do Sistema Educativo, temos «20 anos para vencer 20 décadas de atraso educativo» e há condições para chegarmos a resultados positivos. A universidade deixou de ser o único centro das atenções; a prioridade à educação básica, a avaliação interna e externa, o ensino secundário como regulador do sistema, a valorização das componentes técnicas, profissionais e artísticas no ensino superior aberto a novos públicos, fazem parte da nossa realidade. A sociedade do conhecimento e a economia do saber exigem o espírito inovador e a capacidade de correr riscos, a flexibilidade e a responsabilidade das pessoas e das organizações. A sociedade actual exige uma escola inteligente, capaz de assegurar a igualdade de oportunidades e a qualidade das aprendizagens. Sabemos o que não se deve fazer e já sabemos muito do que é preciso fazer. Consolidar o caminho já iniciado e valorizar os progressos obtidos, aceitar que é preciso tempo, que é necessário o trabalho e a participação de todos e que só há fatalismos quando por eles nos deixamos vencer, eis um programa de acção que é preciso continuar.

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