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Revista Iberoamericana de
Educación - Número 26
SÍNTESE: Neste texto, o autor propõe uma abordagem da relação entre a televisão e as crianças na qual são entendidas não como clientes ou meros destinatários das mensagens das instituições sociais, mas como seus parceiros e interlocutores. Apresenta depois alguns resultados de uma investigação realizada com cerca de 800 crianças em idade escolar, realizada em diferentes meios sócio-geográficos do Norte de Portugal, para pôr em destaque a diversidade de situações e de contextos em que ocorre a experiência de vida dos mais pequenos, bem como alguns desafios que se colocam no plano da intervenção, para quem se quer envolver em dinâmicas que visem superar impasses e dificuldades identificadas.
SÍNTESIS: En este texto el autor propone estudiar la relación que existe entre la televisión y los niños, en la cual éstos últimos son considerados no como meros destinatarios de mensajes de las instituciones sociales, sino como compañeros e interlocutores. Presenta después algunos resultados de una investigación realizada con cerca de 800 niños en edad escolar, realizada en diferentes medios sociogeográficos del norte de Portugal, para destacar la diversidad de situaciones y de contextos en los que se produce la experiencia vital de los más pequeños, así como ciertos desafíos existentes en el plan de intervención, para quien se quiere involucrar en dinámicas que busquen superar problemas y dificultades identificados.
(*) Professor associado e director do Departamento de Ciências da Comunicação do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho (Braga, Portugal) e ex-jornalista e editor de educação do diário português Jornal de Notícias.
Um investigador que se dê ao trabalho de estudar os discursos produzidos, ao longo das últimas décadas, sobre a relação entre os meios de comunicação e as crianças e os jovens deparará, muito provavelmente, com constantes dignas de atenção.
Uma das hipóteses para tal meta-análise consiste na ênfase que é recorrentemente colocada, de um modo mais ou menos sofisticado, no «paradigma dos efeitos» ou do «impacto». Trata-se de uma perspectiva relevante e susceptível de iluminar a compreensão de certo tipo de fenómenos, mas que, tornada hegemónica, torna-se redutora da complexidade sócio cultural que analisa e, potencialmente, é produtora de enviesamentos que podem ter consequências funestas.
Subjacente a tal paradigma, encontra-se um modelo ou esquema que impregna a cultura ocidental desde os tempos mais remotos e que constitui, ao fim e ao cabo, um dispositivo de poder, de características assimétricas, transferencial e unidireccional. Paulo Freire (1972), nos ensaios que publicou sobre a «concepção bancária da educação», reflectiu de forma pertinente sobre esta dimensão e um outro autor latino-americano com quem muito tenho aprendido, Mario Kaplún, sublinhou o paralelismo que tem existido entre os modelos transmissivos dominantes quer no campo da comunicação quer da educação. Ao meditarmos na crueza da caracterização que estes autores desenvolvem, poderemos ser levados a pensar que a realidade, hoje em dia, já está longe do retracto produzido. E, todavia, ao vermos quão diminuto é o lugar e quão inaudível continua a ser a voz das crianças (etimologicamente, os infantes «in-fans» são aqueles que não falam), teremos de ser mais prudentes acerca da efectiva tradução prática das reiteradas declarações de princípios e das intenções subjacentes às sucessivas reformas dos sistemas educativos ou comunicacionais.
É que, para ser concreto, tal efectividade carece da participação activa de todos os actores, cada qual no seu papel. Ora aquilo que verificamos, particularmente no que diz respeito às crianças, é que elas são tomadas, na esmagadora maioria das situações, mais como figurantes, assistentes ou espectadoras, do que como parceiras e actrices. Mais como destinatárias e alvos do que como agentes e interlocutoras. Continua a perdurar uma dificuldade real de considerá-las como «pessoas» e não apenas pelos seus papeis sociais de «alunos», de «filhos», de «consumidores» ou de «telespectadores».
É claro que não faz sentido contrapor um pólo a outro, uma vez que qualquer um deles é, a um tempo, produtor e produto do outro. Isto é: a pessoa vai-se construindo em boa medida pela pertença e integração em diferentes quadros socializadores e, reciprocamente, vai contribuindo, através da mesma inserção, para a configuração desses mesmos quadros. Mas reconhecer «as pessoas que moram nos alunos» 1 (ou nos filhos, nos consumidores, etc.) significa dar-lhes espaço próprio, convidá-las para um jogo, dispor-se a fazer com elas um caminho. O que é diferente de desenhar e pôr em prática planos, medidas, políticas e iniciativas «para elas».
Ir por este caminho, como atitude cívica e como prática científica, não implica inverter as coisas e menosprezar a relevância dos papeis sociais. Teses de teor nostálgico e apocalíptico, como aquelas que foram propostas por autores como Postman (1982) ou Meyrowitz (1985), podem ser vistas como alertas contra um processo de «infantilização» da sociedade e de demissão generalizada dos adultos. Mas não resgatam o lugar dos mais novos na vida social. Pelo contrário, reforçam objectivamente uma ordem social em que elas não contavam ou não podiam fazer ouvir a sua voz.
O movimento em prol dos direitos das crianças, que teve o seu apogeu em 1989, quando foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU a Convenção dos Direitos da Criança, consagrou, nessa magna carta, uma sensibilidade relativamente generalizada, em especial no que se refere aos chamados «direitos de protecção» e aos «direitos de provisão» ou de bem-estar. Porém, como fazem notar diversos analistas, no que tange aos «direitos de participação», ela representa sobretudo um desejo e um horizonte de acção e intervenção a vários níveis, com muito caminho ainda para ser andado.
A Convenção estipula, no seu artigo 12º que «os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhes digam respeito, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade».
Por sua vez, o artigo seguinte estabelece:
«A criança tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie, sem considerações de fronteiras, sob forma oral, escrita, impressa ou artística ou por qualquer outro meio à escolha da criança».
Tal reconhecimento do direito de acesso e uso da palavra e da expressão por parte das crianças, nomeadamente nas matérias que lhes dizem directamente respeito, deveria ter repercussões não apenas no domínio do social mas igualmente na própria investigação. Com efeito, também nos terrenos da pesquisa a infância foi como que naturalizada, tomada como categoria universal e homogénea, dada como evidente por si mesma, realidade óbvia que todos conhecem e de que todos percebem. É contra essa tendência que se vem a afirmar, em décadas recentes, uma significativa corrente de estudos históricos e sociológicos sobre a infância, orientados ora na perspectiva do estudo dos quotidianos e das culturas das crianças (Corsaro, 1997), ora na perspectiva do estudo da infância como elemento da estrutura social e das políticas de infância (Qvortrup et al. 1994; Sgritta, 1997). Esta corrente de estudos, recentemente consagrada como secção autónoma na Associação Internacional de Sociologia, sustenta que a infância não pode ser abordada apenas por aquilo que as instituições adultas dela esperam (adultos em potência, em devir), mas também como grupo específico que produz e reproduz a vida social. Ou seja, as crianças merecem ser consideradas e estudadas não apenas pelo que hão-de ser, mas também pelo que são, através dos respectivos modos de expressão, das formas de sociabilidade, das redes de interacção, dos modos diferenciados de se apropriarem do espaço, do tempo e dos recursos disponíveis, das suas visões de si mesmas e do mundo em que vivem, daquilo que pensam e esperam dos adultos e do mundo que estes edificaram.
Têm sido estes os princípios norteadores do trabalho que tenho desenvolvido, no contexto português, quer como investigador no campo específico da compreensão das práticas televisivas no quadro da vida quotidiana das crianças, quer como professor de disciplinas de educação para a comunicação social, em cursos de formação inicial, contínua e especializada de professores e educadores. São reflexões e conclusões desse trabalho docente e de investigação que aqui partilho, com o intuito de estabelecer diálogos e debates que me façam avançar na aprendizagem e compreensão da vida e do mundo.
No quadro deste texto, darei particular atenção a uma faceta que marca os quotidianos das crianças, que é a experiência mediatizada que é proporcionada pela utilização dos meios de informação e comunicação e, de modo particular, da televisão. Devo notar que entendo estes meios como configuradores de um ecossistema informativo e não apenas como um conjunto (ou um fluxo) de conteúdos, um somatório de suportes ou de dispositivos tecnológicos.
Tal como me tem parecido necessário romper com uma ideia naturalista e homogénea de infância, para atender às configurações, dinamismos e contradições patentes neste grupo social, também considero fundamental estudar as práticas televisivas das crianças não isoladamente, mas perspectivadas no contexto mais vasto das suas práticas sociais quotidianas. É que a televisão não existe numa redoma ou num vazio sócio-cultural. As formas de apropriação do meio televisivo e os respectivos contextos de recepção são complexos e socialmente diversos. Por outro lado, as relações sociais dos telespectadores são, ao mesmo tempo, configuradas pela presença da TV e configuradoras dos usos, rotinas e preferências de que esses telespectadores dão conta.
Um aspecto a considerar na abordagem da problemática da relação entre as crianças e a televisão prende-se com as representações comuns sobre o meio televisivo, condicionantes das visões e dos discursos (que nem sempre das práticas) de pais e educadores. Essas representações são, em geral, «mediocêntricas» e caracterizam-se por: a) lamento sobre o excessivo tempo ocupado com a televisão, considerado a miúdo um desperdício; b) crença no efectivo poder modelador das mensagens mediáticas, com independência dos contextos e situações da sua recepção, por regra não tidos em consideração; c) preocupação primordial com uma dimensão julgada crítica das mensagens televisivas, a saber, a violência (deixando mais ou menos na sombra outras questões 2 como os apelos ao consumo através da publicidade ou o desvendamento de aspectos da vida adulta, como os comportamentos sexuais); d) sentimento de que a difusão da televisão significou uma perda ou privação relativamente a uma ordem social e a estilos de vida que se considera terem existido antes do seu aparecimento (hábitos de leitura, diálogo familiar, maior convivência, etc).
O estudo que realizei, com cerca de 800 crianças dos 8 aos 11 anos, no Norte de Portugal, incluiu diferentes meios socioculturais e geográficos e teve por base uma combinação de diferentes processos de recolha de informação: entrevistas de grupo, um diário sobre a vida quotidiana preenchido durante uma semana e um questionário sobre actividades de tempo livre e televisivas (Pinto, 2000a). Os trabalhos de campo foram realizados tendo a escola básica do 1º Ciclo como espaço privilegiado de acção. Dentre as principais conclusões, destaco as seguintes:
Os aspectos que acabo de referir adquirem outra luz quando contextualizados e confrontados com o tecido denso e polifacetado que é a vida quotidiana das crianças. Tomando ainda como referência notas conclusivas do estudo a que me venho reportando, alguns dados merecem realce. O primeiro é o de que a brincadeira continua a ter um lugar central na vida infantil, quer como realidade efectiva do quotidiano quer como sonho e desejo 4. A própria escola, que é muito valorizada na voz e nos escritos das crianças, não é a escola que os adultos vêem e que começa com a entrada na sala de aula e acaba com o toque de saída. Não; é sobretudo a escola do antes e depois das aulas e a escola dos intervalos, espaço-tempo do jogo, do relacionamento, da emulação, da aprendizagem, e, principalmente, da vivência da autonomia. A aula é como um andaime que abre a possibilidade de uma construção muito mais vasta do que o currículo formal. Isso dizem de forma eloquente os aprendizes, enfatizando ao excesso aquilo que os formadores têm dificuldade em ver.
Outro ponto merecedor de olhar atento refere-se à diversidade de experiências de actividades que as crianças desenvolvem. Encontramos, neste âmbito, uma enorme disparidade de situações e de matizes, fundamentais para entender o «ofício de criança». O principal contraste ocorre entre a exploração do trabalho infantil, designadamente em certos meios rurais em que persiste, além da necessidade económica, a descrença no valor do investimento na formação escolar, e, por outro lado, a sobre-ocupação do dia a dia das crianças, em especial as urbanas das classes médias e médias-altas, com uma multiplicidade de actividades formativas extra-escolares. Num caso, temos a imagem do trabalhador-criança, explorado como mão de obra barata. No outro, temos o «yuppie» que vai da escola para a natação, desta para o inglês e daqui para a catequese.
Entre tais extremos, muitas crianças indicam uma enorme variedade de actividades de ajuda em casa, mais no campo do que na cidade. O que ressalta, neste contexto, é o modo como a representação tradicional dos papeis sexuais já se encontra construída em idades como os oito ou nove anos: as crianças do sexo feminino aparecem predominantemente envolvidas em tarefas dentro de casa e as do sexo masculino em tarefas fora de casa. Mesmo quando os rapazes relatam o que fazem em casa, são por vezes eloquentes a indicar a quem compete o pelouro da tarefa realizada 5.
Mais interessante é verificar a importância do contexto na ponderação do significado de cada actividade para as crianças. Assim, uma tarefa pode ser dura e penosa se for realizada por imposição paternal, mas ser considerada interessante e bem-vinda se ocorrer a ajudar os vizinhos, na companhia de colegas 6. Este aspecto torna ainda mais evidente a necessidade de escutar as crianças e não dar como adquirido aquilo que não passa, por vezes, de uma aparência, de uma conjectura ou convicção dos adultos.
Por conseguinte, procurar compreender o lugar da televisão e de outras actividades com ela relacionadas, tal como os vídeos e os videojogos a partir deste texto polifacetado e diverso, em que se tem em conta a panóplia de cenários e de modos de os habitar e construir, bem como as formas de apropriação e as experiências de construção de sentido, eis o que me parece essencial para não ficarmos por visões simplistas e redutoras. Quinze anos depois da publicação de um estudo marcante de David Morley nesta direcção, temos de dizer, como ele dizia em 1986, que «continuamos a saber muito pouco acerca do modo como as crianças e as famílias interagem com a TV e a usam no seu dia a dia» (1986: 18).
Muitas crianças daquelas com quem trabalhei não tinham tempo nem condições para serem crianças. Umas porque marcadas por uma vida de tal modo trabalhosa e exigente que a escola chegava a ser um tempo de respiro e um espaço de quase descanso. Outras porque envolvidas tão intensamente em actividades ditas de ocupação de «tempos livres» que acabavam por ficar quase sem tempos para elas próprias. Entre estes dois pólos, encontrava-se uma gama variada de situações bem ilustrativa desse facto básico que é a diversidade de vicissitudes em que as crianças fazem a experiência da infância. E é necessário dizer que, para uma parte substancial, em particular nos meios mais distantes dos centros urbanos, a televisão continua a constituir uma «janela aberta sobre o mundo» e uma fonte de aprendizagens que as crianças não deixam de enfatizar. Aprender a cantar e a falar a própria língua e línguas estrangeiras 7, a conhecer o que vai pelo mundo, a aprender «coisas úteis para a vida», a saber mais do mundo animal e dos problemas do meio ambiente, eis múltiplos sinais do que, para muitas delas, representa a frequentação regular da televisão, verdadeiro contraponto da visão negativista e por vezes fundamentalista de muitos educadores e intelectuais.
De um modo geral, pode dizer-se que a experiência televisiva das crianças continua a ficar à porta da sala de aula. Muitos professores sentem que os mais pequenos já estão suficientemente seduzidos pela TV, para a escola estar a centrar nela ainda mais a sua atenção 8. É provável que o «telelixo» que nos anos mais recentes se tem acumulado nos diferentes canais, sobretudo os de natureza comercial, tenha vindo contrariar uma tendência para a abertura da escola à utilização dos meios de comunicação como recurso pedagógico e como texto para ler e interrogar o mundo. Porém, o mais certo é que os professores, em linhas gerais, não se sentem à vontade para abordar os media e, o que é mais importante, descobrem a cada momento que, em certos sentidos, os seus alunos lhes levam avanço no conhecimento e à-vontade sobre as matérias ligadas com as tecnologias e as ofertas televisivas.
Os cursos de formação de professores e educadores, quer na formação inicial, quer na formação contínua, só em parte incluem esta dimensão nas suas ofertas e, quando o fazem, abordam os media predominantemente do ponto de vista das tecnologias da informação e comunicação (TIC). Trata-se, nesses casos, mais de aplicar as TIC à actividade de ensino-aprendizagem do que de compreender o campo dos media, as lógicas que o informam, as tendências que nele se detectam, as linguagens a que recorrem, os interesses e mundividências que o caracterizam, as contradições que o trespassam, os usos sociais e formas de apropriação a que dão lugar, os direitos e deveres dos cidadãos perante eles, entre vários outros aspectos.
O envolvimento que tenho tido na educação para os media ao nível da formação inicial e especializada de professores tem reforçado em mim a ideia de que o eixo fundamental deste trabalho educativo e cultural não devem ser tanto os media, mas a comunicação. É o desenvolvimento de competências e de práticas comunicativas que deveria ser procurado (González, 2000: 99) ao nível individual e grupal e, para além, a promoção de uma cultura de comunicação na escola, na família, no movimento ou associação local.
A participação na concepção e produção de meios de comunicação escolares ou comunitários, se for assumida com uma clara intencionalidade pedagógica e cívica, pode constituir uma experiência profundamente enriquecedora e um importante laboratório de tomada de consciência sobre o próprio campo mediático. Por outro lado, quando estes meios de comunicação são pensados não para si mesmos e de forma isolada, mas procurando o que é novo e importante indagando sobre os problemas e anseios das pessoas, poderão tornar-se numa alavanca decisiva do despertar e da acção colectivos. Como tive oportunidade de observar noutra ocasião (Pinto, 2000b), não há maior contra-senso do que a existência de um meio de comunicação numa escola que funciona assente na incomunicação, quando não na falta de transparência e até no regime do medo (e da auto-censura).
Além disso, a criação e animação de jornais murais, de rádios escolares ou comunitárias, de jornais impressos ou electrónicos, constituem uma forma de dar a voz às crianças e adolescentes, de criar contextos de aprendizagem responsável da liberdade de expressão e da consciência cívica e política. Isto num modelo educativo que, nas palavras de Mario Kaplún (1977), «pone como base del proceso de enseñanza/aprendizaje la participación activa de los educandos; que los considera como sujetos de la educación y ya no como objetos-receptáculos; y plantea el aprendizaje como un proceso activo de construcción y de re-creación del conocimiento». E assim voltamos à preocupação, formulada na parte inicial deste texto, de reconhecer «as pessoas que moram nos alunos» e o direito que lhes assiste de tomarem a palavra, de passarem de meros clientes a parceiros e interlocutores.
Tudo isto é válido e relevante não apenas ao nível da educação escolar ou de outras instâncias de formação, mas também ao nível das políticas autárquicas e da vida das comunidades locais e das relações de vizinhança. A vida agitada e desgastante de um cada vez maior número de famílias, aliada à preocupação crescente por uma formação multimensional e de qualidade para os seus filhos, torna patente o contributo das políticas locais e autárquicas. Espaços, tempos e modalidades de oferta que vão de encontro às necessidades das famílias pressupõem respostas colectivas. A avaliar pelo que se passa em Portugal, algo se vai fazendo neste sentido, embora a um ritmo ainda insuficiente e nem sempre com a orientação desejável. É que as crianças primeiros interessados no assunto raramente são chamadas a pronunciar-se sobre as políticas e as iniciativas pensadas para elas. Ora, quem nos diz que elas, quando convidadas e desafiadas para tal, não são capazes de dar contributos relevantes? A instituição de assembleias consultivas de crianças, ao nível das câmaras municipais (prefeituras, etc.) ou a nível de bairro, que os políticos e outros responsáveis se habituassem a escutar e perante as quais tivessem de prestar contas, poderia ser uma importante escola de participação e formação cívica. Quando os cidadãos são chamados a escolher os seus representantes, é necessário confrontá-los com as suas responsabilidades no que respeita ao lugar que estão dispostos a dar às crianças, nas medidas de política que propõem relativas às necessidades das famílias e colectividades locais. A existência de alternativas interessantes e motivadoras para as crianças nas quais os pais, por razões de segurança ou outras, tivessem gosto em deixar os filhos participar, constituiria uma forma de atenuar o peso que a televisão continua a ter na vida quotidiana das gerações mais jovens e, de um modo geral, na vida das comunidades locais.
Rui, o aluno-padeiro Rui vive numa zona rural montanhosa do Norte com a mãe, o padrasto, um irmão e uma irmã. Já com 13 anos, frequenta ainda o quarto ano de escolaridade, tudo indicando, pelo relato que nos faz do seu quotidiano, que as aulas constituem, ao fim e ao cabo, uma espécie de intervalo numa vida de trabalho intenso que, bem vistas as coisas, parece mais própria de um adulto. As aulas começam às 8.30h, mas quando chega à escola, o Rui já realizou uma das suas tarefas diárias: foi vender pão numa aldeia vizinha, trabalho que faz de segunda a sexta-feira. Levanta-se pelas 6.30h ou mesmo antes e, com o cesto à cabeça, chova ou faça sol, percorre, umas vezes sozinho, outras vezes com a irmã, uns bons quilómetros para distribuir o pão de casa em casa. As referências que faz às actividades escolares, que o ocupam cerca de cinco horas por dia, são escassas, ao contrário do que se verifica com as outras ocupações com que gasta o tempo. Apenas diz: «vim para a escola» ou, na melhor das hipóteses: «joguei à bola e vim para a sala». Almoça por volta das 13.30h com os restantes membros da família, à excepção do padrasto, que nunca é referido em nenhuma outra circunstância ou actividade. Na parte da tarde, uma multiplicidade de tarefas o espera: partir, carregar e acastelar lenha; ir ao monte buscar fetos e fagulha para a cama dos animais; dar de comer ao porco e às galinhas; ajudar a mãe a arrumar a cozinha; ajudar a avó a buscar a mercearia; ir distribuir o farelo para o gado; sachar as cebolas e as couves; carregar mato para a estrumeira; carregar terra para a horta, etc. A maior parte destas actividades desenvolve-as antes do jantar, que tem lugar entre às 21 e às 21.30h, porém algumas delas são executadas mesmo depois, como tratar dos animais ou ajudar a arrumar a cozinha. Por duas ou três vezes surgem referências aos deveres escolares e, episodicamente, fugidias alusões a brincadeiras com o irmão. Em casa de Rui não há televisão, apesar dele confessar que gosta muitíssimo de ver os seus programas o que, podemos deduzir, acontece poucas vezes. (O receptor de rádio que existe em casa nunca é mencionado). Não se estranha, assim, que, pelas 22 horas, ele se vá deitar, que o dia seguinte começa com o cantar do galo. O fim de semana é para esta criança-adolescente ligeiramente distinto dos restantes dias. Em primeiro lugar, porque não há escola. E se o sábado ainda é dia de trabalho, o domingo é mais folgado: levanta-se mais tarde (8.30), toma banho e vai para «a doutrina». Por vezes, pode dar um passeio, como aconteceu no domingo do diário, em que foi «passear para S. Bento» [da Porta Aberta]. No meio de um quotidiano em que o que é norma para muitas outras crianças é excepção para o Rui, não é de espantar que as referências que faz àquilo que mais lhe agrada no correr dos dias seja o brincar com o irmão e jogar futebol com os colegas (na escola, presumivelmente). Com uma excepção: gostou muito de ir ajudar a avó a fazer as compras à mercearia. Com tantas e tão cansativas tarefas, nem resta tempo para sonhar com o diferente e o novo. Quando lhe foi pedido que indicasse o que gostaria muito de fazer nos seus tempos livres, se para tal tivesse possibilidade, Rui optou por deixar o espaço em branco. Como quem diz, pelo silêncio, que a pergunta não faz muito sentido para quem quase não tem tempos livres. O seu sonho era vir a ser, um dia, «guarda da cadeia». Renata: a barbie e a TV Renata habita no centro da cidade de Braga, tem nove anos e frequenta o quarto ano. O pai é técnico ligado ao sector eléctrico, mas não vive em casa. Quem lá mora com ela é a mãe, que é engenheira, um amigo da mãe, um irmão e também... o cão. Renata tem uma vida muito ocupada. Tem aulas às 8.30, mas levanta-se por volta das sete, uma vez que, além de lavar-se, vestir-se e tomar o pequeno almoço, tem ainda de ir buscar o pão à padaria e passear o cão antes de ir para as aulas. A parte da tarde é ocupada de modos diferentes, uma vez que variam as actividades de dia para dia. Vejamos um dos dias: «Almocei com um amigo da minha mãe e fiz os deveres da escola. Depois fui à natação, mas estava fechada. Voltei para casa e brinquei com as minhas vizinhas. Mais tarde, entre às seis e a hora de jantar, fui à padaria e passear o cão. Depois, tirei a louça da máquina e depois fui jogar computador». Entre os hobbies de Renata está ouvir música, brincar com a «barbie» e ler livros. Aliás, quando for grande, ela gostava muito de ser escritora. Além da natação, anda também na educação musical, onde recebe fundamentos para ser capaz de tocar piano, instrumento que tem em casa. No domingo, passou a manhã toda na cama e almoçou sozinha. Brincou, depois, com umas vizinhas e foi ao Porto visitar umas pessoas amigas. Em sua casa, além de dois aparelhos de TV, situados um na sala e outro no quarto dos filhos (ficamos sem saber se é no dela ou no do irmão), há ainda videogravador, rádio, computador e telefone. Renata, porém, vê em média muito menos televisão que a maioria das crianças da sua idade: uma hora nos dias úteis e perto de três horas no fim de semana. A TV é claramente uma realidade secundária na sua vida: deduz-se que vê, de vez em quando, quando está a jantar, à noite. Entre um programa televisivo e o piquenique, é evidente que não hesitava e saía com as suas amigas. E então se tivesse oportunidade de praticar patinagem aquilo que sonhava fazer nos seus tempos livres aí é que não haveria televisão que a prendesse. |
Bibliografia
Albero-Andres, M. (1994): Children and television: an eco-socio-cognitive perspective. Comunicação apresentada no Congresso da Associação Mundial de Sociologia. Alemanha, julho de 1994.
Corsaro, W. (1987): The sociology of childhood. Thousand Oakes, Pine Forge Press.
Freire, P. (1972): Pedagogia do oprimido. Porto, Edições Afrontamento.
González, J. L. (2000): «Perspectivas de la Educación para los Medios, en la Escuela de la Sociedade de la Comunicación», en Revista Ibero-Americana de Educação, núm. 24.
Kaplún, M. (1997): «De medio y fines en comunicación», in ChasquiRevista Latinoamericana de Comunicación, núm. 58, junio de 1997. <http://www.comunica.org/chasqui/kaplun.htm/>.
(1998): Una pedagogía de la comunicación. Madrid, Ediciones de la Torre.
Meyrowitz, J. (1985): No sense of place: the impact of electronic media on social behavior. Nova Iorque-Oxford, Oxford University Press.
Morley, D. (1986): Family television: cultural power and domestic leisure. Londres, Comedia.
ONU (1989): Convenção dos direitos da criança. Aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989.
Pinto, M. (2000): A televisão no quotidiano das crianças. Porto, Edições Afrontamento, 2000a.
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Postman, N. (1982): The disappearance of childhood. Nova Iorque, Delacorte Press.
Qvortrup, J., y otros (1994): Childhood matters: social theory, practice and politics. Aldershot, Avebury.
Sgritta, G. B. (1997): «Inconsistencies: Childhood on economic and political agenda». Comunicação apresentada na International Conference Childhood and Childrens Culture, organizada pelo South Jutland University Centre e a Odense University, em Esbjerg, Dinamarca, 30 de Maio a 2 de Junho, 1997.
Notas
1 Título de um livro editado em 2000 pelas Edições ASA (Porto), da autoria de Juan Carlos Tedesco, Manuel Pinto, José Machado Pais e Ana Paula Relvas, sob a coordenação de Joaquim Azevedo.
2 A trilogia violência-sexo-publicidade, que condensa os campos acerca dos quais se exprime a maioria das objecções mais comuns à televisão e/ou à respectiva programação, apresenta graus de consenso social variáveis de época para época, de sociedade para sociedade e no interior de cada sistema social. O tema da violência parece ser hoje o que reúne o maior denominador comum de preocupações, pelo menos daquelas que se exprimem publicamente. Não se estranha, assim, que, nas tomadas de posição política, seja a violência a matéria mais sensível e sistematicamente referida, quando na legislação em vigor, no caso português, aquelas três matérias são objecto de uma atenção equivalente (com alguma ênfase até nas possíveis incidências das mensagens publicitárias nas crianças).
3 Embora os normativos oficiais privilegiem o chamado horário normal (aulas de manhã e de tarde), com frequência o excesso de alunos, os interesses pessoais dos docentes e/ou a pressão das próprias famílias levam à adopção de horários só durante a manhã ou só durante a tarde.
4 Confirmando pesquisas desenvolvidas na região de Barcelona por Magda Albero-Andres (1994), continuam a ser de uma enorme variedade os jogos e as brincadeiras das crianças estudadas, mantendo, em vários casos, características de sazonalidade e, o que é ainda mais interessante, dando continuidade aos jogos dos pais e avós, mesmo que sob a capa de novas nomenclaturas e ingredientes.
5 Assim, por exemplo, um rapaz dirá que «ajudou» a sua irmã a lavar a loiça e não que ele e a irmã realizaram tal tarefa
6 De resto, este ponto permite chamar a atenção para uma questão metodológica que se põe no estudo da vida quotidiana. De facto, não basta contabilizar actividades, as suas sequências e os tempos por elas ocupados. É que, por um lado, há actividades simultâneas; por outro, há modos socialmente diferenciados de experienciar as mesmas actividades; e, além disso, muita da vida quotidiana nem sequer se pode categorizar de modo linear no conceito difuso de «actividade». Há a necessidade de recorrer a outraschaves de análise que permitam dar conta, por exemplo, das passividades, sofridas ou procuradas, do não-dito ou do não facilmente enunciável, do sonho acordado, entre muitos outros aspectos.
7 Em Portugal os programas estrangeiros por norma não são dublados em português, mas legendados.
8 Na altura da Guerra do Golfo, recordo-me do caso de uma criança que passava grande parte do dia sozinha em casa e que chegou à escola preocupada, porque tinha ouvido a notícia de que os árabes poderiam atingir a Península Ibérica com mísseis lançados a partir do Norte de África. Diante desta inquietação, a professora encerrou ali o assunto, sublinhando que, perante tantas horas de imagens de guerra, pelo menos a escola seria um espaço de paz.
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