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OEI - Ediciones - Revista Iberoamericana de Educación - Número 25

Número 25
Profesión docente / Profissão docente

Enero - Abril 2001 / Janerio - Abril 2001

Formação inicial de profesores para a educação básica: uma (re)visão radical

Guiomar Namo de Mello (*)

O imaginário popular tem alguma razão ao descrever a atuação do professor com o ditado perverso que diz: —«quem sabe faz, quem não sabe ensina».

SÍNTESE: Sob o pressuposto de que a formação inicial e continuada de professores é a prioridade a atender na educação brasileira neste início do século xxi, o presente trabalho pretende contribuir para a necessária mudança no conteúdo e desenho da educação superior de professores para a educação básica. Reconhecendo que a formação inicial é apenas um componente de uma estratégia mais ampla de profissionalização do professor, indispensável para implementar uma política de melhoria da educação básica. O trabalho finaliza propondo a criação de um sistema nacional de certificação de competências docentes e a priorização da área de formação de professores nas políticas de incentivo, fomento e financiamento.

SÍNTESIS: Bajo el presupuesto de que la formación inicial y continua de profesores es la prioridad a atender en la educación brasileña en este inicio del siglo xxi, el presente trabajo pretende contribuir para el cambio necesario el contenido y diseño de la educación superior de profesores para la educación básica. Reconociendo que la formación inicial es solamente un componente de una estrategia aún más amplia que la profesionalización del profesor, es indispensable para implementar una política de mejoras de la educación básica. El trabajo finaliza proponiendo la creación de un sistema nacional de certificación de competencias docentes y la prioridad del área de formación de profesores en las políticas de incentivo, fomento y financiamiento.

(*) Diretora Executiva da Fundação Victor Civita e membro do Conselho Nacional de Educação, Brasil.

1. Contexto: porque é urgente reformular a teoria e a prática da formação de professores no Brasil

Durante os anos 80 e 90 o Brasil deu passos significativos no sentido de universalizar o acesso ao ensino fundamental obrigatório, melhorando o fluxo de matrículas e investindo na qualidade da aprendizagem desse nível escolar. Mais recentemente agregam-se a esse esforço o aumento da incorporação de crianças de 6 anos ao sistema educacional e a expansão do ensino médio.

Democratização do acesso e melhoria da qualidade da educação básica vêm acontecendo num contexto marcado pela modernização econômica, pelo fortalecimento dos direitos da cidadania e pela disseminação das tecnologias da informação, que impactam as expectativas educacionais ampliando o reconhecimento da importância da educação na sociedade do conhecimento.

Em resposta a essas expectativas, desde a década de 80 os sistemas de ensino público e privado vêm passando por processos de reforma educacional, em âmbito estadual, local ou mesmo de unidades escolares. Algumas dessas iniciativas de reforma têm sido mais abrangentes atingindo todos os componentes do processo educativo, outras dirigem-se apenas a alguns deles.

Com a promulgação da Lei 9394/96, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (ldb), que incorporou as experiências e lições aprendidas ao longo desses anos, inicia-se uma nova etapa de reforma. Nos marcos da flexibilidade, do regime de colaboração recíproca entre os entes da federação e da autonomia dos entes escolares, a nova LDB consolidou e tornou norma uma profunda ressignificação do processo de ensinar e aprender: prescreveu um paradigma curricular no qual os conteúdos de ensino deixam de ter importância em si mesmos e são entendidos como meios para produzir aprendizagem e constituir competências nos alunos.

Na sucessão da ldb os órgãos educacionais nacionais estão desenvolvendo um esforço de regulamentação e implementação do novo paradigma curricular. No âmbito do Conselho Nacional de Educação foram estabelecidas, em cumprimento do mandato legal desse colegiado, as diretrizes curriculares nacionais para a educação básica. Por seu caráter normativo as diretrizes são genéricas, focalizam as competências que se desejem constituir nos alunos, deixando ampla margem de liberdade para que os sistemas de ensino e as escolas definam conteúdos ou disciplinas específicas.

No âmbito do executivo o mec elaborou um currículo nacional —os parâmetros curriculares do ensino fundamental e do ensino médio— além de referenciais curriculares para educação infantil, educação indígena e educação de jovens e adultos. Todo esse trabalho está disponibilizado em caráter de recomendação a todos os sistemas e escolas.

Estados, municípios e escolas estão, por sua iniciativa, adotando as providências necessárias à organização de seus currículos de acordo com o novo paradigma disposto na ldb e nas normas nacionais. Observando as diretrizes nacionais essas iniciativas se beneficiam tanto dos parâmetros e referenciais preparados pelo mec quanto da assistência técnica de universidades, instituições de estudos e pesquisas, e organizações não governamentais do setor educacional.

A implementação da reforma curricular está envolvendo e envolverá ainda mais, em diferentes graus, distintos segmentos do setor educacional brasileiro. Considerando a complexidade do sistema federativo do país e sua enorme diversidade, esse processo está ocorrendo com muito mais consenso do que dissenso. Duas razões estão contribuindo para a construção desse consenso: o contexto econômico e cultural, que impõe a revisão dos conteúdos do ensino; e a ldb, que atua como fator de coesão. Na medida em que as principais respostas para essa revisão foram contempladas na lei, os vários âmbitos ou instâncias de sua regulamentação e execução estão empenhados em implementá-la.

Se a aprovação da ldb marca o final da primeira geração de reformas educacionais, as diretrizes e parâmetros curriculares estão inaugurando a segunda geração, que tem duas características a serem destacadas: (a) não se trata mais de reformas de sistemas isolados senão que de regulamentar e traçar normas para uma reforma de educação de âmbito nacional; (b) atinge, mais que na etapa anterior, o âmago do processo educativo, isto é, o que se pretende que o aluno aprenda, o que ensinar e como ensinar.

A etapa que ora se inicia, se implementada em suas conseqüências mais profundas, deverá mudar radicalmente a educação básica brasileira ao longo das duas, três primeiras décadas do terceiro milênio. Para gerenciá-la de modo competente é preciso que todos os envolvidos construam uma visão de longo prazo e negociem as prioridades.

2. Formação de professores: distorções e oportunidades

A divisão entre o professor polivalente e o especialista por disciplinas teve na educação brasileira um sentido burocrático-corporativo. Pedagogicamente não há nenhuma sustentação consistente para uma divisão que em parte foi causada pela separação histórica entre dois caminhos de formação docente: o normal de nível médio e o superior1.

Por motivos também históricos houve um momento, em meados dos anos 70, em que a formação do professor das séries iniciais do ensino fundamental passou a ser feita também em nível superior. Mas, mantendo a segmentação tradicional, o «locus» dessa formação não foi o mesmo das licenciaturas e sim os cursos de pedagogia nas faculdades de educação.

A distância entre o curso de formação do professor polivalente, situado nos cursos de Pedagogia e Faculdades de Educação, e os cursos de licenciatura nos departamentos ou institutos dedicados à «filosofia», às «ciências», e às «letras», imprimiu àquele profissional uma identidade pedagógica esvaziada de conteúdos2.

Não é justificável que um jovem recém saído do ensino médio possa preparar-se para ser professor de primeira a quarta série em um curso que não aprofunda nem amplia os conhecimentos previstos para serem ensinados no início do ensino fundamental. Nem é aceitável a alegação de que os cursos de licenciaturas «não sabem» ou «não têm vocação» para preparar professores de crianças pequenas.

É também difícil de justificar que para lecionar até a quarta série do ensino fundamental o professor domine os conteúdos curriculares dessas séries apenas em nível de ensino médio, enquanto para lecionar a partir da quinta em diante do ensino fundamental e médio seja necessário um curso superior de 4 anos. Da mesma forma é raro que os formadores de formadores justifiquem o currículo de graduação das licenciaturas de futuros professores, em função daquilo que ele deverá ensinar no ensino fundamental e médio.

Na perspectiva de uma educação básica que deverá ser de pelo menos 11 anos e universalizada para todos, essa divisão precisa ser questionada, em busca de uma visão de formação do professor da educação básica como um todo. Além disso, do ponto de vista legal é possível existirem professores especialistas desde o início do ensino fundamental, até mesmo na educação infantil. Da mesma forma é possível existirem professores polivalentes nas séries terminais do ensino fundamental e até no ensino médio. Do ponto de vista pedagógico esta é uma decisão que deve ser tomada no âmbito do projeto pedagógico dos sistemas de ensino ou das escolas.

As diretrizes curriculares constantes da ldb e das normas que a regulamentam dão maior ênfase às competências do que às disciplinas, abrindo com isso amplas possibilidades de organização interdisciplinar, de definição de conteúdos transversalizados que não correspondem a disciplinas tradicionais de realização de projetos de ensino. Esse paradigma novo vai começar a romper com o modelo disciplinarista que repousa sobre a divisão das licenciaturas no ensino superior.

A localização institucional das licenciaturas na estrutura do ensino superior e particularmente das universidades, cria um divórcio entre a aquisição de conhecimentos nas áreas de conteúdos substantivos e a constituição de competências para ensinar esses conteúdos a crianças, adolescentes ou adultos com atraso escolar3.

O único aspirante ao magistério que ingressa no ensino superior com opção clara pelo ofício de ensinar é o aluno dos cursos de magistério de primeira a quarta série do ensino fundamental. A estes, na maior parte dos cursos, não é oferecida a oportunidade de seguir aprendendo os conteúdos ou objetos de ensino que deverá ensinar no futuro. Aprende-se a prática do ensino mas não a sua substância.

Os especialistas ingressam no ensino superior de formação de professores com a expectativa de serem biólogos, geógrafos, matemáticos, lingüistas, historiadores ou literatos, dificilmente professores de biologia, de geografia, de línguas ou de literatura. Os cursos de graduação são ministrados num contexto institucional longínquo da preocupação com a educação básica, que não facilita nem mesmo a convivência com pessoas e instituições que conhecem a problemática desta última. Os professores formadores que atuam nesses cursos, quando das instituições de qualidade, estão mais preocupados com suas investigações do que com o ensino em geral, quanto mais o ensino na educação básica.

No caso do professor polivalente, a preparação se reduz a um conhecimento pedagógico abstrato esvaziado do conteúdo a ser ensinado. No caso do especialista, o conhecimento do conteúdo não toma como referência sua relevância para o ensino de crianças e jovens. Assim como as situações de aprendizagem que o futuro professor vive não propiciam a articulação desse conteúdo com a transposição didática. Em ambos os casos a «prática de ensino» também é abstrata porque desvinculada do processo de apropriação do conteúdo a ser ensinado.

Para cumprir a LDB na letra e no espírito será necessário reverter essa situação. Se a lei manda que o professor de educação básica construa em seus alunos a capacidade de aprender e de relacionar a teoria com a prática em cada disciplina do currículo, como poderá ele realizar essa proeza preparando-se num curso de formação docente no qual o conhecimento de um objeto de ensino, o conteúdo, que corresponderia à teoria, foi desvinculado da prática, que corresponde ao conhecimento da transposição didática ou do ensino desse objeto de ensino?

Enquanto a educação básica é um serviço majoritariamente do setor público, a formação de professores para a educação básica vem sendo realizada com importante aporte do setor privado. No sul e sudeste este é largamente majoritário. Nas demais regiões do país é expressivo embora não seja majoritário em virtude da grande presença de instituições de ensino superior estaduais e, em menor número, municipais.

Não há avaliação da qualidade dos resultados desses cursos de preparação docente, sejam eles públicos ou privados, porque a formação de professores tem sido tratada como qualquer outro curso de nível superior, sem considerar seu papel estratégico para todo o sistema educacional do país4. Como os demais cursos superiores, eles são previamente autorizados e reconhecidos. Nunca passaram por avaliação a posteriori da aprendizagem dos estudantes aferida pelas competências necessárias para ser professor da educação básica brasileira5.

Essa situação dá origem a algumas distorções graves: (a) nas regiões em que a oferta de cursos de formação docente é predominantemente privada, o poder público, que mantém a educação básica, garante o mercado de trabalho dos egressos do ensino superior privado sem dispor de mecanismos eficientes de controle da qualidade desses professores; (b) nas regiões em que os cursos de formação de professores são predominantemente públicos, estaduais, o poder público pode financiar com recursos da educação básica a formação de seus professores, o que caracteriza um duplo financiamento das instituições estaduais de ensino superior.

A distorção é ainda maior quando se considera que os sistemas públicos de educação básica, estaduais e municipais, gastam volumes consideráveis de recursos em capacitação de professores, que são anualmente pagos às mesmas instituições de ensino superior privadas e públicas, para refazerem um trabalho que não foi bem feito durante a formação inicial dos professores.

A única e importante vantagem do modelo atual é sua sustentabilidade financeira. As grandes universidades públicas federais e estaduais, nas quais o custo/ aluno é alto, dedicaram-se muito mais, proporcionalmente, às carreiras superiores «nobres» como medicina, engenharia, direito, arquitetura. Entre essas carreiras nunca se incluiu a formação de professores para a educação da maioria. Por esta razão, há várias décadas os futuros professores, geralmente originários das camadas médias e médias baixas, ou arcam com os custos de sua própria formação profissional no setor privado ou recorrem ao ensino superior estadual, quase sempre de custo e qualidade inferiores ao federal ou aos estaduais «nobres».

Diante das demandas de uma reforma educacional como a que se está iniciando, essa situação pode representar uma oportunidade histórica. Seria inviável para o poder público financiar a preços das universidades «nobres» a formação de seus professores de educação básica que já se contam em mais de milhão. Com um volume de recursos muito menor, um sistema misto de custos baixos tanto públicos quanto privados, configura um ponto estratégico de intervenção para promover melhorias sustentáveis a longo prazo na escolaridade básica.

No futuro o país vai precisar de bons professores, que substituam os hoje existentes. Essa necessidade deverá expressar-se num fluxo que a médio prazo vai repor integralmente o plantel docente hoje existente. Toda e qualquer melhoria na formação desse fluxo de mais de um milhão e meio de professores vai representar um ensino melhor para dezenas de milhões de alunos durante os 25 que durarem a carreira de cada geração de professores.

É urgente desde já investir na organização de um sistema nacional de credenciamento de cursos e certificação de competências docentes radicalmente diferente do atual processamento de autorização e reconhecimento de cursos superiores em geral; apoiar escolas avaliadas e credenciadas com assistência técnica e financeira; condicionar o exercício do magistério à conclusão de curso em instituição credenciada e à avaliação para certificação de competências docentes.

Medidas dessa natureza teriam custos financeiros relativamente pequenos se comparados aos que são necessários para arcar com os ônus do fracasso escolar: recuperação da qualidade da aprendizagem; aceleração da escolaridade e regularização do fluxo de matrícula dos milhões de alunos atendidos por professores provenientes de cursos de formação de má qualidade.

No futuro, a boa qualidade dos professores pode eliminar os custos de organização dos grandes empreendimentos de capacitação ou educação continuada destinados a ensinar àqueles que, se tivessem aprendido a aprender, poderiam ser auto-gestores de sua própria atualização profissional. Com professores bem preparados a educação continuada poderia ser quase que inteiramente realizada na escola, sem a parafernália dos grandes encontros de massa, que os tornam eventos de interesse maior para a hotelaria do que para a educação.

Os organismos formuladores de políticas, os financiadores de projetos de reforma, as universidades e outras instituições sociais precisam se dar conta e levar a conseqüências práticas esse fato óbvio: no caso brasileiro, o investimento em formação de professores pode ser o de melhor rentabilidade ou melhor relação custo-benefício para a melhoria da educação básica. Esse é um cálculo que deverá ser feito na priorização dos estudantes que terão acesso a linhas de crédito para financiar seus cursos superiores.

3. Proposta de diretrizes pedagógicas: conseqüências da simetria invertida entre formação e exercício profissional

A mudança nos cursos de formação inicial de professores terá que corresponder, em extensão e profundidade, aos princípios que orientam a reforma da educação básica, mantendo com esta uma sintonia fina. Não se trata de criar modismos mas de buscar modalidades de organização pedagógica e espaços institucionais que favoreçam a constituição, nos futuros professores, das competências docentes que serão requeridas para ensinar e fazer com que os alunos aprendam de acordo com os objetivos e diretrizes pedagógicas traçados para a educação básica.

A educação escolar é uma política pública endereçada à constituição da cidadania. Quando forma médicos contribui para o sistema de saúde da mesma forma que a preparação de cineastas é a contribuição da educação para o desenvolvimento da arte cinematográfica. Quando se trata de professores a educação está cuidando do desenvolvimento dela mesma, para que possa continuar contribuindo para a medicina, a engenharia, as artes e todas as atividades que exigem preparação escolar formal, além de sua finalidade de constituição de cidadania.

A situação de formação profissional do professor é invertidamente simétrica à situação de seu exercício profissional. Quando se prepara para ser professor ele vive o papel de aluno. O mesmo papel, com as devidas diferenças etárias, que seu aluno viverá tendo a ele como professor. Por essa razão, tão simples e óbvia quanto difícil de levar às últimas conseqüências, a formação do professor precisa tomar como ponto de referência a partir do qual orientar a organização institucional e pedagógica dos cursos, a simetria invertida entre a situação de preparação profissional e o exercício futuro da profissão. As diretrizes que se seguem procuram levar às últimas conseqüências essa característica, buscando tornar coerente a formação do professor com a simetria existente entre essa formação e o futuro exercício da profissão.

Uma primeira conseqüência é a de que a educação inicial de professores deve ter como primeiro referencial as normas legais e recomendações pedagógicas da educação básica. Os professores não são necessários para qualquer projeto pedagógico mas sim para aqueles que vão ser executados sob a orientação normativa das diretrizes curriculares nacionais e sob a recomendação dos parâmetros e planos curriculares formulados pelo mec, pelos sistemas públicos de ensino e pelas escolas particulares. Os modelos ou instituições de formação docente que interessam ao país são portanto aqueles que propiciam ou facilitam a constituição de um perfil de profissional adequado para essa tarefa.

Ninguém facilita o desenvolvimento daquilo que não teve oportunidade de desenvolver em si mesmo. Ninguém promove a aprendizagem de conteúdos que não domina nem a constituição de significados que não possui ou a autonomia que não teve oportunidade de construir. É portanto imprescindível que o professor que se prepara para lecionar na educação básica demonstre ter desenvolvido ou tenha a oportunidade de desenvolver, de modo sólido e pleno, as competências previstas para os egressos da educação básica, tais como as estabelecidas nos artigos 22, 27, 32, 35 e 36 da ldb e nas diretrizes curriculares nacionais da educação básica. Isto é condição mínima indispensável para qualificá-lo como capaz de lecionar na educação infantil, no ensino fundamental ou no ensino médio.

Muitos dos jovens que hoje saem da educação básica e ingressam no ensino superior não satisfazem essa condição mínima. É preciso que a formação docente propicie a esses jovens a oportunidade de refazer o percurso de aprendizagem que não foi satisfatoriamente percorrido na educação básica para fazer deles bons professores, que no futuro contribuam para a melhoria da qualidade da própria educação básica.

Essa afirmação, aparentemente redundante, tem o objetivo de evidenciar que a formação inicial de professores constitui o ponto nevrálgico a partir do qual é possível reverter a qualidade da educação como um todo. É como se ao tocá-la fosse mais fácil provocar uma reação do sistema como um todo, gerando um efeito em cascata: um círculo virtuoso de efeitos mais duradouros.

Assim entendida como componente estratégico da melhoria da qualidade da educação básica, a formação inicial de professores define-se como política pública. Embora não seja necessário que o poder público a execute diretamente, é indispensável que ele estabeleça critérios de financiamento, padrões de qualidade e mecanismos de avaliação e acompanhamento.

Referenciada nas competências a serem constituídas na educação básica, a formação inicial dos professores para atuarem na mesma educação básica deve levar em conta os princípios pedagógicos estabelecidos nas normas curriculares nacionais: a interdisciplinaridade, a transversalidade e a contextualização, a integração de áreas em projetos de ensino, que constituem hoje mandados ou recomendações nacionais.

Observe-se que «levar em conta» neste caso não significa apenas dar informações sobre contextualização, interdisciplinaridade, transversalidade e outros princípios. A simetria invertida de situações de formação e exercício profissional, reclama que a aprendizagem dos conteúdos dos cursos superiores de formação de professores seja presidida pelos mesmos princípios filosóficos e pedagógicos que a lei manda praticar na educação básica.

Mas o país também precisa de diversidade curricular que dê conta de sua complexidade e diversidade cultural, social e econômica. Daí que os cursos de formação docente terão que ter também como referência os planos curriculares e projetos pedagógicos dos sistemas de ensino públicos e privados e, sempre que possível, das próprias escolas. Isso poderá estimular o surgimento de diversidade de modelos de formação de professores, com maior adequação às necessidades e características das regiões e dos diversos alunados.

A consideração radical da simetria invertida entre situação de formação e de exercício, não implica em tornar as situações de aprendizagem dos cursos de formação docente mecanicamente análogas às situações de aprendizagem típicas da criança e do jovem na educação média.

Não se trata de infantilizar a educação inicial do professor, mas de torná-la uma experiência isomorfa à experiência de aprendizagem que ele deve facilitar a seus futuros alunos, ou seja, um aprender que permite apropriar-se de estruturas comuns abstraindo as diferenças de conjuntura.

Trata-se principalmente de reconhecer que a aprendizagem pode ser mais ou menos estruturada mas não descontextualizada e compartimentalizada em disciplinas estanques. E esta afirmação é verdadeira tanto para o futuro aluno desse professor quando ele estiver lecionando na educação básica, como para este aluno de hoje, futuro professor da educação básica, que está cursando a formação docente inicial em nível superior. Isso, é claro, coloca o problema da formação de formadores.

O isomorfismo tem portanto duas conseqüências importantes. A primeira é deixar claro que na formação docente está em jogo uma dupla relação entre teoria e prática. A segunda refere-se ao papel da investigação ou da pesquisa nesses cursos.

Uma das relações entre teoria e prática na formação do professor, deve ocorrer no âmbito da área de conhecimento especializado. Ora, se no futuro será necessário que o professor desenvolva em seus alunos a capacidade de relacionar a teoria com a prática, é indispensável que na sua formação os conhecimentos especializados que está constituindo sejam contextualizados. Isto é, promova uma permanente construção de significados desses conhecimentos com referência à sua aplicação, sua pertinência em situações reais, sua relevância para a vida pessoal e social, sua validade para a análise e compreensão de fatos da vida real.

Esse tipo de relação entre teoria e prática, decisiva para o professor porque ele terá que refazê-la com seus alunos, é relevante para qualquer situação de formação profissional: o aluno da licenciatura em matemática, por exemplo, tem que compreender o significado e a função dos vários anos de cálculo integral a que é submetido, mesmo que não se destine ao magistério da matemática.

Mas há outra relação entre teoria e prática que é específica da formação do professor: a aprendizagem da transposição didática do conteúdo, seja ele teórico ou prático. A prática do curso de formação docente é o ensino; portanto, cada conteúdo que é aprendido pelo futuro professor no seu curso de formação profissional, precisa estar permanentemente relacionado com o ensino desse mesmo conteúdo na educação básica.

Isso implica em um tipo de organização curricular que em todas as disciplinas do curso de formação permita também: (a) a transposição didática do conteúdo aprendido pelo futuro professor; (b) a contextualização do que está sendo aprendido na realidade da educação básica. Usando o mesmo exemplo acima, é imprescindível que o aluno da licenciatura de matemática compreenda qual é a relevância que tem o cálculo integral para o ensino da matemática na educação básica como um todo.

De acordo com esse princípio, desde o primeiro ano e em todas as disciplinas de uma licenciatura especializada, por exemplo a de Língua Portuguesa, o exercício de transposição didática do conteúdo e a prática de ensino deveria estar lado a lado, ministrada pelo mesmo professor ou por outro professor de matemática que também é especialista em ensino de matemática.

A dupla relação entre teoria e prática dá dois significados próprios ao papel da pesquisa na formação do professor. O primeiro deles é negativo: a competência para fazer pesquisa pura na área de conhecimento de sua especialidade não é relevante para a formação do professor, ainda que os conhecimentos produzidos pela investigação da área substantiva o sejam, e muito.

O segundo significado é afirmativo: a competência para fazer pesquisa em sua área de especialidade aplicada ao ensino, de refletir sobre a atividade de ensinar e formular alternativas para seu aperfeiçoamento é indispensável para o futuro professor. Com isso se pretende significar que o objeto por excelência da pesquisa nos cursos de formação docente é o ensino e a aprendizagem do conteúdo dos componentes curriculares da educação básica. Isso faz da transposição didática o campo de estudos por excelência dos cursos de formação docente: partindo do currículo do ensino fundamental e médio que o professor terá de operar, quais são os conhecimentos que ampliam, aprofundam, dão relevância e pertinência aos conteúdos que deverão ser ensinados pelo professor e aprendidos pelo aluno?

Para dar aula de ciências da 1a à 8a série do ensino fundamental, o que um professor precisa saber de química, física ou biologia? Com que profundidade? Qual o enfoque metodológico adequado ao estatuto epistemológico dessas ciências, aos objetivos que se têm ao ensiná-las na educação básica, que é educação de cidadania e não de especialistas, e à criança e jovem que vivem neste mundo de hoje? Uma vez compreendida a transposição didática, quais as escolhas mais sábias para ensinar e aprender os conteúdos transpostos? Eis aí um mundo de questões relevantes que a pesquisa didática não tem abordado no Brasil.

A insistência com a relação teoria e prática decorre do conceito de competência: esta se constrói em situação, não é conhecimento de muito, menos conhecimento sobre, mas é conhecimento que pode ser mobilizado para agir e tomar decisões em situações concretas. Situações da vida real envolvem sempre um componente imponderável e imprevisível. No ensino isso é mais do que verdadeiro.

Como todos os profissionais o professor precisa fazer ajustes permanentes nas suas ações. Mas o professor, como o médico, o cirurgião, o «performer» de palco, muitas vezes lida com situações que não se repetem nem podem ser cristalizadas no tempo aguardando um novo «insight» ou discernimento de nova alternativa de ação. Boa parte dos ajustes têm que ser feitos em tempo real ou em intervalos relativamente curtos, minutos e horas na maioria dos casos —dias ou semanas na hipótese mais otimista— sob risco de passar a oportunidade de intervenção no processo de ensino e aprendizagem.

Além do tempo, que limita a periodicidade dos ajustes, os resultados das ações de ensino são previsíveis apenas em parte. O contexto no qual se efetuam é complexo e indeterminado, dificultando uma antecipação exata do produto final. A prática docente não tem a exatidão do experimento científico e é por esta razão que seu «ethos» não é o do investigador acadêmico. Ao contrário, ensinar requer dispor e mobilizar conhecimentos para improvisar, intuir, atribuir valores e fazer julgamentos que fundamentem a ação mais pertinente e eficaz possível.

Ensinar é, por excelência, uma atividade relacional: para coexistir, comunicar, trabalhar com os outros é necessário enfrentar a diferença e o conflito. Acolher e respeitar a diversidade, tirar proveito dela para melhorar sua prática, aprender a conviver com a resistência, os conflitos e os limites de sua influência, fazem parte da aprendizagem necessária de ser professor.

Mas ensinar é também uma atividade altamente indeterminada ou altamente determinada por fatores que escapam ao controle de quem ensina. O projeto educativo e a ação cotidiana, a intenção e o resultado na sala de aula, na escola, no sistema e na política educacional, sempre guardarão alguma distância, maior ou menor. Ensinar, portanto, exige aprender a inquietar-se e a indignar-se com o fracasso sem deixar destruir-se por ele.

Essas competências traçam o perfil do profissional denominado reflexivo pela literatura recente: um profissional cuja atuação é inteligente e flexível, situada e reativa, produto de uma mistura integrada de ciência, técnica e arte, caracterizada por uma sensibilidade de artista referida como artistry. A tarefa é um saber-fazer sólido, teórico e prático, criativo a ponto de permitir ao profissional decidir em contextos instáveis, indeterminados e complexos, caracterizados por zonas de indefinição, tornando cada situação uma novidade que exige reflexão e diálogo com a realidade.

O profissional reflexivo é também aquele que sabe como suas competências são constituídas, é capaz de entender sua própria ação e explicar porque tomou determinada decisão, mobilizando para isso os conhecimentos de sua especialidade. A reflexão nesse caso identifica-se com a meta-cognição dos processos em que o profissional está envolvido nas situações de formação e exercício.

Para a formação do professor esse aspecto é crucial. A hipótese neste caso é a de que ao compreender seu próprio processo de aprendizagem e constituição de competências, o futuro professor estaria mais preparado para compreender e intervir na aprendizagem de seu aluno no futuro. Para dar sustentação a esse processo o futuro professor deveria aprender sobre desenvolvimento e aprendizagem de modo integrado com os demais conhecimentos do currículo de formação docente.

A prática deverá estar presente desde o primeiro dia de aula do curso superior de formação docente, em tempo real, por meio da presença orientada em escolas de educação infantil e ensino fundamental e médio, ou de forma mediada pela utilização de vídeos, estudos de caso, depoimentos e quaisquer outros recursos didáticos que permitam a reconstrução ou simulação de situações reais.

O que hoje se entende por estágio deverá, sempre que as condições permitirem, ser equivalente à «residência» para a profissão médica: a culminância de um processo de prática que se dá pelo exercício profissional pleno, supervisionado ou monitorado continuamente por um tutor ou professor experiente que permita a retro-informação imediata, ao futuro professor, dos acertos e falhas de sua atuação. Idealmente, no caso do professor de ensino público, o estágio poderia corresponder ao período probatório de ingresso na carreira docente, desde que o exame de ingresso no curso de formação satisfizesse aos requisitos formais do concurso público.

A importância da prática decorre do significado que se atribui à competência do professor para ensinar e fazer aprender. Competências são formadas na prática; portanto, isso deve ocorrer necessariamente em situações concretas, contextualizadas. Mas é preciso cuidar para que não se processe nova fragmentação. O termo prática na formação do professor tem três sentidos complementares e inseparáveis.

O primeiro refere-se à contextualização, relevância, aplicação e pertinência do conhecimento das ciências que explicam o mundo da natureza e o mundo social; em segundo lugar, o termo prática identifica-se com o uso eficaz das linguagens como instrumentos de comunicação e de organização cognitiva da realidade natural e social; em terceiro lugar, a prática tem o sentido de ensinar, referindo-se à transposição didática do conhecimento das ciências, das artes e das letras para o contexto do ensino de crianças e adolescentes em escolas de educação básica.

A competência docente não pode prescindir do domínio em extensão e profundidade de um ou mais dos conteúdos curriculares previstos para o ensino fundamental e médio, a ponto de compreender, aplicar e julgar a relevância. Relacionar seus conceitos básicos e, como parte inseparável desse domínio de conteúdo especializado, saber fazer a transposição didática do mesmo para situações de ensino e de aprendizagem da educação básica. Além de competências de gerência do ensino e aprendizagem, discernimento para decidir quais conteúdos devem ser ensinados, em que seqüência e com que tipo de tratamento.

Mas, independemente de seu conhecimento especializado, é preciso lembrar que o professor em formação é um egresso da educação básica. Dela saiu, espera-se, tendo constituído os conhecimentos, as competências e as habilidades básicas para ser um cidadão produtivo. Cidadania é antes de mais nada um exercício de polivalência. Essa polivalência ele pode e deve transferir para seu exercício profissional, abrindo-se portanto aos conhecimentos das demais áreas curriculares, interagindo com seus colegas para estabelecer relações entre sua especialidade e as outras disciplinas a fim de estar propício a praticar a interdisciplinaridade.

Em outras palavras: uma vez constituída a capacidade de continuar aprendendo e a compreensão do mundo físico e social no ensino médio (objetivos do ensino médio, última etapa da educação básica), o professor deverá saber fazer relações significativas entre os conhecimentos especializados adquiridos no curso de formação de nível superior e os conhecimentos das demais áreas ou disciplinas do currículo da educação básica, trabalhando assim de maneira interdisciplinar e favorecendo em seus alunos a compreensão das relações entre as várias áreas do conhecimento.

Nessa perspectiva abre-se, com as novas diretrizes do ensino médio, uma grande oportunidade de trabalho criativo para os cursos desse nível escolar na modalidade normal. A grande vantagem dos cursos normais de nível médio é a oportunidade —nem sempre bem aproveitada— de levar os alunos a aprender conteúdos e aprender a ensiná-los de modo integrado e polivalente. Essa qualidade é a que se pretende transportar para o ensino superior pelo menos para a formação inicial, em nível superior, de professores de crianças pequenas até 10 ou 11 anos de idade. Essa é a razão mais forte para denominar essa nova modalidade de Curso Normal Superior, nome importante porque pleno do significado que tem para a educação o tradicional Curso Normal.

Se a simetria invertida for levada a sério, a interdisciplinaridade é, em princípio, possível para todos os professores, ou melhor, a resistência à interdisciplinaridade estará sendo vencida. Na verdade é muito plausível supor que a percepção de uma incompetência básica na especialidade do outro leve o professor a sentir-se ameaçado pelo trabalho interdisciplinar o que mais uma vez recomenda uma etapa básica no curso de formação em que se recuperem ou consolidem os conhecimentos do ensino médio.

O professor polivalente ou especialista, neste segundo caso, independentemente de sua área de especialidade, deve dominar a Língua Portuguesa, a Matemática, a Informática e as linguagens de expressão artística, pelo menos no mesmo grau previsto para os egressos da última etapa da educação básica. Deve ser capaz de empregar as linguagens como recurso de auto-aprendizagem e de utilizá-las na sua atividade docente, como meio de comunicação com o aluno e como recurso capaz de ajudar este último, dentro de sua área de especialidade, a organizar cognitivamente a realidade, construir o conhecimento e negociá-lo com os outros.

Se aceitamos a premissa de que o sentido da profissão docente não é ensinar mas fazer o aluno aprender, supomos que para que o professor seja competente nessa tarefa é importante dominar um conjunto básico de conhecimentos sobre desenvolvimento e aprendizagem. Esse domínio deve estar no nível de aplicação dos princípios de aprendizagem no contexto da sala de aula; compreender as dificuldades dos alunos e trabalhar a partir delas; contextualizar o ensino de acordo com as representações e conhecimentos espontâneos dos alunos; envolvê-los na sua própria aprendizagem.

A competência implica sempre em articulação de diferentes conhecimentos. No caso do professor isso significa organizar conhecimentos de conteúdo especializado, de didática e prática de ensino, de fundamentos educacionais e de princípios de aprendizagem em um plano de ação docente consistente com o projeto pedagógico da escola. Também participar da elaboração deste último sabendo trabalhar em equipe e estabelecer relações de cooperação dentro da escola e com a família dos alunos.

A competência docente requer também mobilizar conhecimentos e valores em face da diversidade cultural e étnica brasileira, das necessidades especiais de aprendizagem, das diferenças entre homens e mulheres, de modo a ser capaz não só de acolher as diferenças como de utilizá-las para enriquecer as situações de ensino e aprendizagem em sala de aula.

O professor competente não se limita a aplicar conhecimentos mas possui características do investigador em ação: é capaz de problematizar uma situação de prática profissional, de mobilizar em seu próprio repertório ou no meio ambiente os conhecimentos para analisar a situação, de explicar como e porquê toma e implementa suas decisões, tanto em situações de rotina como diante de imprevistos, revelando capacidade de metacognição de seus próprios processos e de transferência da experiência para outras situações; consegue fazer previsões, extrapolações e generalizações a partir de sua experiência, registrá-la e compartilhá-la com seus colegas.

Finalmente, mas sem esgotar o elenco das competências a serem desenvolvidas pelos cursos de formação, é importante mencionar que a profissionalização do professor depende de sua competência em fazer avaliações, realizar julgamentos e agir com autonomia diante dos conflitos e dilemas éticos de sua profissão, e de ser capaz de gerenciar seu próprio desenvolvimento profissional por meio de um processo de educação continuada.

4. Proposta de diretrizes institucionais: diversos «locus», uma só missão

O arranjo institucional adequado para a formação de professores será aquele que conseguir construir ao longo do curso o perfil profissional docente que o país necessita para implementar a reforma da educação básica, consubstanciada em suas diretrizes curriculares nacionais, nos parâmetros curriculares recomendado pelo mec e nas ações de implementação iniciadas por estados e municípios.

É indispensável que os professores em preparação para lecionar nos anos iniciais do ensino fundamental dominem de modo mais abrangente e aprofundado os objetos de ensino: Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Naturais, História e Geografia. Portanto, será necessário que o modelo do normal de nível médio seja construído agora em termos de nível superior, aproveitando o conhecimento e a experiência dos formadores de professores que se situam nos cursos de licenciatura tradicionalmente dedicados à formação do especialista.

A diversidade curricular e de projetos pedagógicos será bem-vinda, observada essa missão dos cursos de preparação docente. Concretamente essa missão estará satisfeita se os projetos pedagógicos dos cursos propiciarem que a experiência de aprendizagem dos futuros professores se caracterize segundo os aspectos citados a seguir:

5. Por um sistema nacional de certificação de competências para professores

Além do componente curricular propriamente dito, que diz respeito à organização pedagógica do curso de formação, é indispensável que o país pense ou repense os critérios de autorização dos cursos, de avaliação dos egressos e de avaliação do desempenho do professor já em exercício.

Essa política precisa ser de âmbito nacional, como nacionais são e devem continuar sendo os processos de autorização e avaliação de cursos. Como toda política nacional, na dinâmica federativa brasileira é indispensável que ela seja liderada pela União e formulada com a participação dos diferentes níveis e âmbitos interessados.

Vale dizer que uma política nacional de formação de professores precisa ancorar-se em consensos construídos no âmbito de organismos normativos como o cne e de coordenação de políticas como o consed e a undime, além das agências formadoras e das representações não sindicais do setor educacional e outros segmentos sociais interessados.

O primeiro sobre o qual deverá ser estabelecido consenso refere-se ao caráter nacional da formação de professores. Só uma coesão firme em torno da natureza da formação docente como interesse da nação, poderá dar significado pleno, forte e com eficácia prática às diretrizes, referenciais ou recomendações sobre o currículo e a organização pedagógico-institucional dos cursos de formação.

O segundo ponto de consenso deverá ser sobre o credenciamento de cursos e de certificação de competências6. É preciso que fique claro que, se a formação de professor deve ser uma política nacional, o credenciamento e a certificação também devem estar nesse âmbito, uma vez que os diplomas expedidos têm validade para todo o país.

Esses acordos é que darão legitimidade às diretrizes curriculares e a qualquer proposta de avaliação de cursos ou egressos que venha a ser formulada. Independentemente do desenho específico desses componentes da política, tais acordos têm enorme significado.

Em primeiro lugar, significam que o país reconhece que a formação de professores precisa com urgência ser considerada uma política da União, como uma das prioridades da reforma e melhoria da educação básica. Como política nacional terá de ser detalhada e implementada por organismos próprios, com protagonismo indispensável das instituições formadoras, mas também dos gestores educacionais públicos e privados das três esferas responsáveis pela provisão de educação básica.

Em segundo lugar, esses acordos políticos significam que, uma vez consensuado um padrão de qualidade nacional, ninguém poderá ser professor se seu desempenho revelar competências profissionais inferiores ao padrão nacional.

E, finalmente, significam que as diretrizes curriculares terão que assegurar princípios de organização pedagógica e curricular comuns para todo o país, qualquer que seja a região, o «locus» institucional ou a esfera federativa em que ocorra, aí incluídas as universidades que, em sua autonomia, poderão dar quaisquer cursos de formação docente mas que, para efeitos de exercício do magistério, terão de oferecer cursos que cumpram as diretrizes curriculares nacionais.

O desenho e implementação de um sistema desse tipo requer investimentos financeiros e técnicos e fontes de financiamento permanentes que assegurem regularidade, transparência e independência das agências ou organismos avaliadores. Mas os benefícios que resultariam para a educação básica com procedimentos tecnicamente sustentáveis, institucionalmente transparentes e politicamente estáveis de avaliação de cursos e competências de egressos dos cursos de formação docente, compensam os investimentos financeiros e políticos necessários.

O maior benefício seria o de assegurar formação de melhor qualidade para os professores da educação básica das próximas décadas, dentro dos princípios legais, diretrizes normativas e recomendações nacionais e estaduais. Com isso se pode esperar não só a melhoria da qualidade como a plena implementação da reforma da educação básica que se está iniciando.

Um benefício secundário mas significativo seria eliminar do país os cursos de fundo de quintal, de péssima qualidade e grande procura por parte de alunos que buscam a certificação fácil. A conclusão de cursos desse tipo, que poderiam até continuar existindo, não teria validade nem para obtenção do diploma nem para a obtenção de registro ou outra forma de autorização do exercício profissional.

Um impacto mais controverso seria promover a seleção natural das instituições privadas e públicas que têm vocação e disposição para formar a professores com seriedade e qualidade, disponibilizando para estas instituições suporte financeiro e técnico que lhes permitissem melhor alcançar esse objetivo ou aperfeiçoarem seus resultados, por meio de um sistema mais competitivo de acesso aos recursos.

Reconhecem-se tanto os riscos reais de um sistema desse tipo quanto os fantasmas ideológicos que povoam o armário de velharias das hostes educacionais. Mas é inevitável perguntar se o receio de adotar uma solução tão evidente, não é maior que os impasses políticos que ela causaria. Um país com um sistema de formação docente de má qualidade cuja única vantagem é a sustentabilidade financeira, precisa colocar a iniciativa privada trabalhando pela educação básica de melhor qualidade.

Do ponto de vista político, o processo de acordo sobre as diretrizes de formação podem servir de estímulo para a discussão —quem sabe até mesmo de algum novo acordo— sobre planos de carreira. Esse assunto ainda não se esgotou no país e o problema do excesso de cartorialismo continua existindo na definição de planos de carreira nos quais títulos formais e tempo de serviço terminam tendo maior peso para a promoção e a melhoria salarial do que resultados obtidos na escola e nos alunos.

Na educação profissional a certificação de competências é considerada uma resposta para a velocidade de mudança nos processos e formas de organização do trabalho. Pode ser considerada para ingresso e percurso no mercado de trabalho avaliando a flexibilidade e laborabilidade ao longo do desenvolvimento profissional, quando exigências de periodicidade para certificar novas competências ou recertificar as já constituídas. No caso da carreira docente esse processo poderá ser de grande impacto para aferir a atualização e educação continuada do professor e ao mesmo tempo parametrizar o ingresso, a progressão na carreira e a remuneração do docente.

Numa proposta mais ousada, o curso de formação e o processo de certificação de competências poderiam ser considerados, a exemplo do que ocorre nos iufm7 franceses, estágios iniciais ou probatórios da própria carreira docente, com remuneração inicial ou não. Uma vez em operação um sistema nacional de credenciamento de cursos e certificação de competências com legitimidade e credibilidade, nada impediria que sistemas estaduais ou municipais adotassem os resultados produzidos nesse processo para efeito de organizar seus planos de carreira e até mesmo de ingresso, respeitadas é claro as exigências legais.

6. Prioridade à formação de professores nos sistemas de fomento e financiamento

A melhoria qualitativa da profissionalização do professor da educação básica deve incluir ainda, além da formação inicial e da certificação de competências, mecanismos que priorizem a área de formação docente nos programas de crédito educativo para estudantes, fomento de estudos e pesquisas, e estudos pós-graduados no país e no exterior.

Para implementar essas prioridades, no entanto, é preciso dispor de critérios claros, consensuados e objetivos. No que diz respeito ao fomento de estudos e pesquisas, é preciso promover linhas de investigação, bolsas de estudo no país e no exterior, e programas de pós-graduação ou de pesquisa que focalizem o ensino como objeto de estudo. Essas linhas de fomento têm que estar articuladas com as diferentes áreas do conhecimento, não com a pedagogia ou não apenas com esta última.

Como já foi observado, a investigação didática —entendida em seu sentido mais literal como o estudo das relações entre o domínio de um campo de saber e o ensino desse conhecimento a crianças e jovens que precisam construir sua cidadania e identidade— é uma temática inexplorada na pesquisa educacional brasileira.

É preciso cobrar dos estudos pedagógicos que não limitem seu objeto de estudo à atividade do aluno e do professor, sem um sólido quadro teórico que leve em conta qual é e qual deve ser o conteúdo do ensino, e, portanto, o conteúdo da formação do professor e da aprendizagem do aluno. Este viés, responsável por um ativismo pedagogista que ilusoriamente induz a pensar que o ensino é moderno porque é «ativo», baseia-se num conceito limitado da didática. De fato, desde Erasmo na Idade Média, didática não é a escolha do método ou técnica de ensino, ainda que esta etapa final seja muito importante, mas o que a antecede: o estudo da relação entre aquilo que o professor sabe ou deve saber e aquilo que precisa ser aprendido pelo aluno.

No Brasil está bastante disseminada a concepção de que o conhecimento se constrói, e em situações socialmente determinadas. Essa teoria, que é em princípio benéfica para a educação, não deve no entanto substituir os estudos sobre como se organiza a situação de aprendizagem para que o aluno construa ou reconstrua o conhecimento. A ausência desta segunda parte do construtivismo revela a falsa noção de que a situação de ensino precisa ser desestruturada ou inestruturada para ser construtivista, o que seria a negação da didática.

No que diz respeito ao crédito educativo a prioridade para os alunos que se dirigem ao magistério já é uma política adotada pelo mec. Falta a ela no entanto um sistema de credenciamento dos cursos que condicionem o crédito educativo àquelas instituições públicas e privadas que satisfaçam os padrões básicos de qualidade definidos pelo acordo entre as diferentes instâncias educacionais.

Notas:

1 Não foi por acaso que a essa segmentação correspondeu uma segmentação de gênero, fazendo do magistério das séries iniciais do ensino fundamental uma atividade quase que apenas feminina.

2 Embora existam exceções, a crítica se aplica à grande maioria dos cursos ou programas de educação inicial de professores.

3 Essa não foi a opção de muitos países europeus e latino-americanos. Nestes últimos, os «Institutos de Formação Docente», como são comumente conhecidos no Uruguai, na Argentina, no Chile, entre outros, ou as Escolas Normais Superiores tais como existem até hoje no México, foram as instituições encarregadas de formar professores de crianças e adolescentes. Diga-se mesmo que esse modelo institucional no caso da França, existe não apenas para professores como para outras áreas profissionais como Administração, Engenharia, Medicina, ficando reservado à Universidade a preparação de cientistas, filósofos, mestres de letras, com ênfase na investigação científica, como aliás, foi a inspiração da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras no Brasil, primeiro locus institucional de ensino superior responsável pela formação de professores, que se retalhou em departamentos com a Lei 5540/68.

4 Só em 1999 o inep realizou o Exame de Avaliação de Cursos (provão), em algumas licenciaturas.

5 Em muitas ocupações os organismos que controlam o exercício profissional procuram zelar, a seu modo, pela qualidade dos cursos de formação. É o caso da Ordem dos Advogados —oab— dos Conselhos Regionais de Medicina e de Engenharia – crms e creas. Alguns chegam até mesmo a fazer exames para autorizar a prática da profissão que representam. O tamanho, a complexidade e a fragmentação do setor educacional impediu a existência desse tipo de controle de qualidade de cursos e egressos, feita por órgãos profissionais. Pela natureza da atividade docente, o controle de seu exercício na educação básica constitui uma atividade que precisa de maior protagonismo do poder público, até porque é o setor governamental quem absorve a maior parte dos professores formados no ensino médio ou superior.

6 Essa expressão não se refere a nenhuma proposta de modelo para o Brasil, uma vez que é algo novo a ser discutido e consensuado. A expressão credenciamento é uma tentativa de tradução do termo «accreditation» tal como o usado pelo ncate –National Council of Accreditation of Teacher Education–. Já o termo certificação de competência foi tomado do parecer que estabelece as diretrizes curriculares para a educação profissional e pode referir-se ao tipo de atividade desenvolvida pelo nbpts –National Board of Professional Teaching Standards–, e outros órgãos semelhantes como o ofsed –Office of Standards in Education–, da Inglaterra.

7 Instituts Universitaires de Formation de Maîtres.

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