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Revista Iberoamericana de
Educación - Número 20
As mudanças profundas pelas quais vem passando o mundo, nesta segunda metade do século, produziram transformações na prática social e no trabalho. A educação, que por muito tempo as desconheceu, não pôde mais ficar alheia a elas. Por isso verificamos em todo o planeta uma grande inquietação nos meios ligados ao setor educacional, provocando reformas que buscam sua adequação às novas exigências.
A educação dita secundária ou secundária superior, a que corresponde o ensino médio no Brasil, é a grande questão com que se debatem atualmente os sistemas educacionais. Como conciliar os objetivos de preparação para o prosseguimento de estudos, de preparação para o trabalho e de desenvolvimento pessoal nos cânones contemporâneos? Que vínculos estão sendo estabelecidos entre a educação geral e a educação profissional? Os grandes desafios que esses sistemas enfrentam assumem na realidade brasileira características específicas de um país que está passando por grandes transformações. Os sistemas educacionais estão obsoletos quer na sua concepção, quer nas possibilidades de trajetos que oferecem ou ainda no estágio tecnológico em que se encontram, embora que haja exceções. A estrutura educacional e o modelo de oferta têm que ser construídos de forma bastante flexível para atender a diferentes situações no tempo e no espaço, considerando tanto as rápidas mudanças tecnológicas e as necessidades da vida cidadã como as tendências regionais e do mercado internacional.
(*) Ruy Leite Berger Filho é Secretário de Educação Média e Tecnológica, Ministério da Educação, Brasil.
Recentemente, se estamos falando em tempo no contexto da educação, o Brasil aprovou uma nova lei de diretrizes e bases da educação, a Lei 9.394 de 20 de Dezembro de 1996, conhecida como LDB ou Lei Darci Ribeiro. Ela estabelece dois níveis para a educação: a educação básica e a educação superior; duas modalidades: a educação de jovens e adultos e a educação especial; e uma modalidade complementar: a educação profissional.
A educação básica é estruturada pela educação infantil para crianças de 0 a 6 anos, o ensino fundamental obrigatório, com oito anos e o ensino médio, de três anos. A educação superior é constituída de cursos seqüenciais, cursos de graduação e de pós-graduação. A educação profissional é definida como complementar à educação básica, portanto a ela articulada, mas podendo ser desenvolvida em diferentes níveis, para jovens e adultos com escolaridade diversa.
A educação profissional tem como objetivos não só a formação de técnicos de nível médio, mas a qualificação, a requalificação, a reprofissionalização para trabalhadores com qualquer escolaridade, a atualização tecnológica permanente e a habilitação nos níveis médio e superior. A educação profissional deve levar ao «permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva».
A Lei Darci Ribeiro, a LDB, altera a identidade estabelecida para o ensino médio, contida na Lei 5.692/71, cujo 2º grau se caracterizava por uma dupla função: preparar para o prosseguimento dos estudos e habilitar para o exercício de uma profissão técnica. Essa identidade fica alterada quando se determina que a educação escolar, e conseqüentemente o ensino médio, deve vincular-se ao mundo do trabalho e à pratica social (parágrafo 2º do Art. 1º). Esta conotação dá maior abrangência ao segmento ensino médio, somada ao fato de que este segmento do ensino é a etapa final da educação básica, oferecendo agora, de forma articulada, o que antes tinha finalidades dissociadas uma educação equilibrada, com funções para todos os educandos, pois que prevê:
As considerações gerais sobre a legislação indicam a necessidade de construir novas alternativas de organização curricular, comprometidas, de um lado, com o novo significado do trabalho no contexto da globalização e, do outro, com o sujeito ativo, a pessoa humana que se apropriará desses conhecimentos para aprimorar-se no mundo do trabalho e na prática social.
Há, portanto, necessidade de se romper com os paradigmas tradicionais para que se alcancem objetivos propostos para a educação básica e para a educação profissional. Tornou-se corrente afirmar que o conhecimento é hoje o principal fator da produção. Aprender a aprender coloca-se, assim, como competência fundamental para inserção numa dinâmica social que se reestrutura continuamente. A perspectiva da educação deve ser, pois, desenvolver os meios para uma aprendizagem permanente, que permita uma formação continuada, tendo em vista a construção da cidadania.
Ao preconizar o aprender a aprender, consideram-se as rápidas transformações geradas pelo progresso científico e tecnológico, as novas formas de atividade econômica e social e a decorrente necessidade de uma educação geral suficientemente ampla, mas que possibilite aprofundamento numa determinada área de conhecimento. A educação geral fornece as bases para continuar aprendendo ao longo da vida. Ela é de extrema importância para o desenvolvimento de aptidões que possibilitem enfrentar novas situações, privilegiando a aplicação da teoria na prática e enriquecendo a vivência da ciência na tecnologia e destas no social, por seu significado no desenvolvimento da sociedade contemporânea.
A base nacional comum da educação básica deve conter a dimensão de preparação para o trabalho, de tal modo que uma sentença matemática, expressão do conhecimento científico, possa ser instrumento para a solução de um problema concreto, dando conta da etapa de planejamento, gestão ou produção de um bem, do conhecimento ou de um serviço. Do mesmo modo, se a linguagem verbal deve ser valorizada quando aplicada à expressão estética, à apreciação de um texto jornalístico, informativo ou opinativo, ela serve também à compreensão de um comando ou instrução clara, precisa, objetiva; assim também a Biologia oferece os fundamentos para análise do impacto ambiental de uma solução tecnológica, ou para a prevenção de uma doença profissional. Enfim, não há solução tecnológica sem uma base científica e, por outro lado, soluções tecnológicas podem propiciar a produção de um novo conhecimento científico.
Essa educação geral, que permite tanto buscar e criar informações como usá-las para solucionar problemas concretos, é preparação para o trabalho e para o exercício da cidadania. Na verdade, qualquer competência requerida no exercício profissional, seja ela psicomotora, sócio-afetiva ou cognitiva é um refinamento das competências básicas. Essa educação geral permite a construção de competências que se traduzem em habilidades básicas, técnicas ou de gestão.
Dentro dessa concepção de educação, as competências e habilidades requeridas são as mesmas para atingir os objetivos primordiais, sejam elas o desenvolvimento pessoal e da cidadania, a preparação básica para o mundo da produção e o domínio dos instrumentos para continuar aprendendo.
As opções de educação secundária mais freqüentemente adotadas pelos sistemas educacionais podem ser divididas em três grupos básicos, com algumas variantes dentro de cada um deles.
A primeira categoria é aquela que estabelece duas vias, uma no sentido do prosseguimento de estudos e outra no sentido de preparação para o trabalho, sem equivalência entre elas. Esta é a opção alemã e da última reforma educativa espanhola, por exemplo.
A segunda categoria busca conciliar todas as vertentes através de uma multiplicidade de ofertas bastante diferenciadas entre si, mas com equivalência para fins de prosseguimento de estudos, como é o caso dos modelos francês, austríaco e português.
A terceira via, que se vem configurando mais recentemente, propõe uma educação geral com uma forte presença do segmento científico e tecnológico e a complementaridade da educação profissional, em escolas ou nas empresas: tendências da educação secundária argentina e, de forma especial, da israelense.
Esta última categoria é a que mais se identifica com a proposta brasileira, desde que:
O Brasil optou por esta terceira categoria. Rompeu com um modelo que preconizava a solução conciliatória entre os objetivos de preparar para o prosseguimento de estudos e a formação para o trabalho num ensino de segundo grau profissionalizante. A educação profissional foi definida como complementar a uma vertente ao mesmo tempo terminal e propedêutica.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 9.394/96, se constitui num marco para a educação profissional. As leis de diretrizes e bases anteriores, ou as leis orgânicas para os níveis e modalidades de ensino, sempre trataram da educação profissional apenas parcialmente. Legislaram sobre a vinculação da formação para o trabalho a determinados níveis de ensino, como educação formal, quer na época dos ginásios comerciais e industriais, quer posteriormente através da Lei 5.692/71, com o segundo grau profissionalizante.
Na atual lei, o Capítulo III do Título V «Dos níveis e das modalidades de educação e ensino» é totalmente dedicado à educação profissional, tratando-a na sua inteireza, como parte do sistema educacional. Neste novo enfoque a educação profissional tem como objetivos não só a formação de técnicos de nível médio, mas a qualificação, a requalificação, a reprofissionalização de trabalhadores de qualquer nível de escolaridade, a atualização tecnológica permanente e a habilitação nos níveis médio e superior. Enfim, regulamenta a educação profissional como um todo, contemplando as formas de ensino que habilitam e estão referidas a níveis da educação escolar no conjunto da qualificação permanente para as atividades produtivas. Embora a lei não o explicite, a educação profissional é tratada como um subsistema de ensino.
Mais uma vez aparece na Lei de Diretrizes e Bases, no Art. 39, a referência ao conceito de «aprendizagem permanente». A educação profissional deve levar ao «permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva». E mais uma vez, também, destaca a relação entre educação escolar e processos formativos, quando faz referência à integração entre a educação profissional e as «diferentes formas de educação», o trabalho, a ciência e a tecnologia. O parágrafo único deste artigo e os artigos 40 e 42 introduzem o caráter complementar da educação profissional e ampliam sua atuação para além da escolaridade formal e seu locus para além da escola. Finalmente, estabelece a forma de reconhecimento e certificação das competências adquiridas fora do ambiente escolar, quer para prosseguimento de estudos, quer para titulação, de forma absolutamente inovadora em relação à legislação preexistente.
Essas disposições, regulamentadas pelo Decreto 2.208, de 17 de Abril de 1997, trazem mudanças significativas para a nossa tradição de educação profissional, principalmente para o ensino técnico.
Este Decreto descreve os objetivos da Educação Profissional dentro dos pressupostos apresentados, prescrevendo que esta modalidade de educação é um ponto de articulação entre a escola e o mundo do trabalho; que tem a função de qualificar, requalificar e reprofissionalizar trabalhadores em geral, independente do nível de escolaridade que possuam no momento do seu acesso; que ela habilita para o exercício de profissões quer de nível médio, quer de nível superior; e, por último, que ela atualiza e aprofunda conhecimentos na área das tecnologias voltadas para o mundo do trabalho.
De acordo com os objetivos estabelecidos, define os níveis da educação profissional: básico, destinado a trabalhadores jovens e adultos, independente de escolaridade, com o objetivo de qualificar e requalificar; um segundo nível, o técnico, para alunos jovens e adultos que estejam cursando ou tenham concluído o ensino médio; e o terceiro, nível tecnológico, que dá formação superior, tanto graduação como pós-graduação, a jovens e adultos.
Isso posto, o Decreto trata da organização curricular. O nível básico, como educação não formal, qualificante mas que não habilita, não deve ter base curricular estabelecida formalmente. A educação profissional de nível técnico tem organização curricular própria, independente do currículo do ensino médio. Assim sendo, esta modalidade de educação profissional será sempre concomitante ou posterior à conclusão do ensino médio, mantendo, contudo, vínculo de complementaridade.
Resumindo: a educação básica mantém uma relação de complementaridade com a educação profissional, que deve qualificar «jovens e adultos com capacidades e habilidades gerais e específicas para o exercício de atividades produtivas». Esta capacitação objetiva, em níveis diferentes: qualificar, reprofissionalizar e atualizar jovens e adultos com qualquer nível de escolaridade; habilitar profissionais matriculados ou egressos do ensino médio ou da educação superior; especializar e aperfeiçoar profissionais em áreas afins.
Grande parte dos perfis profissionais propostos pelo setor produtivo apresenta características muito vinculadas à formação geral do trabalhador, no sentido de que ele tem que ter uma forte base humanística, científica e tecnológica e competências para tomada de decisão, para o trabalho em grupo e para se adequar às constantes mudanças que se processam no mundo do trabalho. A educação profissional precisa ser, portanto, sempre complementar à educação básica, tanto no nível básico onde o aluno pode até não ter a escolaridade obrigatória completa, mas deve melhorar suas habilidades básicas e ser estimulado à conclusão do ensino fundamental regular ou supletivo, quanto nos níveis técnico ou tecnológico, para os quais é exigida a conclusão do ensino médio.
Após definir esse vínculo com a educação básica, o Decreto 2.208/97 admite o aproveitamento de até 25% do total da carga horária obrigatória do ensino médio, desde que essas horas tenham sido dedicadas à formação geral que mantenha vínculos com competências e habilidades requeridas na habilitação profissional que o aluno venha eventualmente a cursar. Assim, por exemplo, os princípios de matemática financeira, ou estudos de língua portuguesa mais voltados para uma redação formal, o domínio de uma língua estrangeira, ou ainda, algumas noções básicas de direito do trabalho; enfim, aquilo que, compreendido como parte da educação geral do indivíduo, já estabelece uma ponte com a educação profissional, poderá ser na educação profissional considerado como currículo cumprido.
Outro aspecto regulamentado é o que estabelece responsabilidades quanto à estrutura curricular, ou seja, a quem compete o que na organização da estrutura curricular para a Educação Profissional. A União, através do Conselho Nacional de Educação, por proposta do Ministério da Educação, estabelece diretrizes curriculares nacionais que devem descrever competências e habilidades básicas, por áreas do setor produtivo, e indicar a carga horária mínima necessária para a obtenção de uma habilitação profissional em cada uma dessas áreas. Aos sistemas de ensino federal e estaduais cabe estabelecer o currículo básico, deixando, no caso da educação profissional, 30% da carga horária mínima para que as escolas possam renovar permanentemente seus currículos, independente de prévia autorização de qualquer órgão normativo o que deverá agilizar as adequações da escola às demandas colocadas pelo avanço do conhecimento e pelas transformações do setor produtivo.
Um outro aspecto inovador, no mesmo caminho da flexibilidade, é a possibilidade de organização curricular por módulos, que implica a possibilidade de saídas intermediárias e viabiliza uma educação recorrente.
Além disso, o Decreto 2.208/97 frisa que é necessária a criação de mecanismos institucionais permanentes para fomentar a articulação entre escolas, trabalhadores e empresários, ou seja, para que os setores educacionais e produtivos atuem organicamente no sentido de definir, estabelecer e rever as competências necessárias às diferentes áreas profissionais.
A atual LDB determina que as habilitações de técnico de nível médio tenham validade nacional. Para evitar estrangulamento de processos para a abertura de novos cursos em busca da aprovação do Conselho Nacional de Educação, o Decreto prevê a criação de currículos experimentais, aprovados pelo sistema de ensino competente, os quais, após avaliação e aprovação dos resultados pelo Ministério da Educação, ouvido o Conselho Nacional de Educação, poderão ser regulamentados, conferindo validade nacional a seus diplomas.
A LDB prevê e o Decreto regulamenta a criação de mecanismos de certificação de competências pelos sistemas federal e estaduais de ensino. Essa medida faculta ao trabalhador, no exercício de uma atividade profissional, receber um certificado de reconhecimento das suas competências, obtido através de exame, mesmo sem ter a escolaridade formal correspondente. Entretanto, para ser habilitado como técnico, ele deverá necessariamente ter concluído ou concluir o ensino médio.
Os princípios norteadores da educação profissional devem ser a flexibilidade e a laborabilidade.
O Art. 7º do Decreto 2.208/97 estabelece que «para a elaboração das diretrizes curriculares para o ensino técnico deverão ser realizados estudos de identificação do perfil de competências necessárias às atividades requeridas, ouvidos os setores interessados, inclusive trabalhadores e empregadores».
A abordagem das atividades produtivas que constituem o mundo do trabalho leva a identificar três grandes segmentos: produção de bens, produção de conhecimentos e produção de serviços. Essas atividades produtivas são as bases em que se assentam as diretrizes curriculares nacionais. Cada um desses segmentos bens, conhecimentos e serviços tem processos próprios, ou seja, demandam funções específicas, que realizam operações segundo determinadas normas, métodos e técnicas. Os diferentes processos produtivos guardam entre si semelhanças e dessemelhanças, e sobre as semelhanças é que se constituem as grandes áreas profissionais.
Por outro lado, os processos produtivos de cada área profissional se desdobram em funções e sub-funções, e a partir destas últimas é que são identificadas as competências e habilidades, construídas sobre as bases tecnológicas a elas referenciadas.
Portanto, a definição de competências e habilidades e das bases tecnológicas requeridas para a formação de um profissional devem estar embasadas em uma análise do processo produtivo de cada área profissional. A descrição das etapas deste processo, das funções e sub-funções a serem desempenhadas pelos trabalhadores, deve ser objeto de investigação por técnicos em elaboração curricular, articulados com profissionais do setor ou área de produção. O desenho deste quadro permitirá, então, que se estabeleçam as competências, ou seja, as operações mentais sócio-afetivas, psicomotoras ou cognitivas que precisam ser desenvolvidas pelos estudantes, numa ótica para a qual saber fazer não é resultado de uma instrução mecanicista, mas de uma construção mental que pode incorporar novos saberes, viabilizando uma requalificação e uma reprofissionalização em função das mudanças econômicas e tecnológicas.
Os projetos curriculares ganham em organicidade, flexibilidade e adequação às atividades produtivas. A normalização nacional será constituída por matrizes construídas por áreas profissionais, e não por cursos ou habilitações, com a descrição das competências e habilidades requeridas aos trabalhadores de cada área. Os sistemas de ensino devem complementar essas matrizes, revestindo-as de características próprias da economia, do avanço tecnológico e da sociedade local. As escolas estabelecerão seus projetos curriculares próprios, por habilitação ou área, por disciplinas ou módulos, com a possibilidade de fazer alterações, sem prévia autorização, em pelo menos 30% da carga horária mínima obrigatória.
Na organização curricular por módulos, os conhecimentos serão agrupados estruturalmente, possibilitando saídas intermediárias e retornos para reorientação e/ou complementação, garantindo maior flexibilidade à educação profissional, permitindo ao aluno cursar um ou mais módulos, receber um certificado de qualificação, ingressar no mercado de trabalho e retornar à escola para complementar o seu curso. Ao final, um conjunto de módulos gerará um diploma de habilitação para os portadores do certificado de conclusão do ensino médio.
A regulamentação estabelecida pelo Decreto 2.208/97 prevê que a educação profissional de nível técnico será complementar ao ensino médio, podendo se dar de forma concomitante ou seqüencial a ele. É necessário, entretanto, que se estabeleça para cada uma das áreas o momento a partir do qual a concomitância poderá se dar em função dos conhecimentos, competências e habilidades da educação geral que são requeridos para o início do curso técnico. Isto será referido, juntamente com a carga horária mínima, quando da descrição de cada área.
É importante ressaltar que o nível básico da educação profissional, ainda que seja educação não formal e, portanto, não sujeita à regulamentação, deve ter na formulação de seus currículos a mesma perspectiva do nível técnico. A metodologia para construção curricular é a mesma; entretanto, deve cuidar também das competências constituídas na educação básica. O fato de não ter vínculos com um nível de escolaridade não quer dizer que não deva preocupar-se com ela. A oferta de cursos do nível básico, quando necessário, deve articular-se com a elevação da escolaridade dos trabalhadores. Programas que melhorem as condições de inserção no mercado de trabalho não podem desconsiderar que a educação básica é condição necessária de laborabilidade.
O agrupamento das atividades profissionais em áreas é sempre arbitrária, embora não imotivada. O critério que foi adotado para a construção das áreas baseou-se na análise do processo de produção das diferentes atividades econômicas e das competências cuja construção são requeridas para os profissionais que nelas atuam. O princípio da semelhança do processo produtivo e das competências determinou a agregação das áreas.
A educação profissional precisa ser sempre complementar à educação básica, de caráter geral. Grande parte dos perfis profissionais propostos pelo setor produtivo apresentam características muito vinculadas à formação geral do trabalhador, no sentido de que ele precisa ter uma forte base humanística, científica e tecnológica, e competências para tomada de decisão, para o trabalho em grupo e para a adequação às constantes mudanças que se processam no mundo do trabalho.
Foi desenvolvida, também, uma nova concepção para o ensino médio, aprovada pelo Conselho Nacional de Educação em Junho de 1998. A constituição de competências cognitivas, afetivas e sociais que promovam o desenvolvimento pessoal e qualifiquem o jovem para o trabalho e para vida em sociedade é a finalidade da educação básica consensuada pela sociedade brasileira, em particular seus educadores, na lei maior que estabelece as diretrizes e bases da educação.
Entendendo que essas finalidades expressam um conjunto de competências que são a base que a educação média deve solidificar e sobre a qual é possível construir com sucesso a identidade, a profissionalidade e a cidadania. O ensino médio integra a educação básica como oportunidade de significar experiências e conhecimentos novos e adquiridos anteriormente para aprender a aprender, a problematizar, a refletir sobre a realidade e a negociar significados com outros. Competências que são as mais necessárias para avançar com sucesso na vida cidadã e nos demais momentos da educação.
Apesar de situar-se no âmbito da educação geral, o ensino médio não será generalista ou academicista. Ao contrário, as finalidades e características que os anos de conclusão da educação geral vêm assumindo nas sociedades contemporâneas às quais as normas de organização do ensino médio recém adotadas no Brasil procuram contemplar requerem que esse nível educativo seja voltado para a constituição de competências cognitivas, afetivas e sociais necessárias tanto para continuar estudando como para ingressar no mundo do trabalho, recomendando que o currículo organize-se de forma a superar a dualidade entre as duas alternativas.
O ensino médio, assim, deve propiciar ao mesmo tempo educação geral e preparação básica para o trabalho. Para que isso seja alcançado, duas condições se fazem necessárias:
diversificados quanto aos conteúdos, focalizando áreas ou núcleos de conhecimento que respondam às necessidades da produção de bens, serviços e conhecimentos e dos indivíduos ou grupos de indivíduos;
unificados quanto às competências cognitivas, afetivas e sociais a serem constituídas com base nesses conteúdos diversificados, de modo a dar educação geral e comum para todos.
porque deverá permitir a apropriação de conhecimentos que são úteis ou necessários para um determinado ramo ou área profissional daí a necessidade de diversificar os currículos;
porque levará à constituição de competências que são indispensáveis em todas as profissões daí a necessidade de centrar e unificar a proposta curricular em torno de competências cognitivas afetivas e sociais gerais.
O pressuposto dessa perspectiva é o de que competências gerais e comuns podem ser constituídas a partir da apropriação de conhecimentos diversificados; portanto, os conteúdos curriculares não são fins em si mesmos mas meios para atender às necessidades que alunos heterogêneos têm de preparação para o trabalho, de acesso à cultura, de compreensão do mundo, de exercício da cidadania.
Articulando-se o modelo de educação profissional com a concepção de ensino médio, é possível identificar os princípios pedagógicos que deverão orientar a organização curricular e a forma de tratamento dos conteúdos de cada um deles.
Nas profissões em geral os conhecimentos e competências de tipo geral e de tipo profissional distribuem-se num mesmo contínuo; a relação entre eles é de concomitância, por um lado, e de afinamento por contextualização, por outro: os primeiros devem ser alcançados por todos os concluintes da educação básica; os segundos, profissionais específicos, são indispensáveis àqueles entre os concluintes da educação básica que escolheram a preparação para uma área profissional específica.
Formação por competências e inovações educacionais. Este é um tema instigante. No Brasil não temos ainda nenhuma experiência de práticas pedagógicas inovadoras na formação por competências. Estamos iniciando um processo de construção de referências curriculares baseadas em competências. Mas esta é uma questão que já nos colocamos: como se dará na escola o processo de educação profissional para estas matrizes referenciais? Não deverá ser o mesmo que temos, com certeza. Deveremos testar possibilidades. Entretanto, temos contato com outros que também vêm pensando nisto. Muito recentemente encontramos referências a alguns trabalhos que trazem reflexões interessantes.
Inicialmente vou seguir o referencial de Perrenoud, apropriando-me de um de seus textos de forma livre1. Um roteiro de sete pontos nos parece muito afinado com a concepção e o trajeto que traçamos para nossa reforma.
A educação profissional deve formar para o processo produtivo, e cada curso está referido a uma área específica da atividade laboral, a um processo de produção. A análise deste processo é o primeiro passo que nos parece ser razoável para a definição de como deve ser a construção das condições de preparação para o exercício de atividades neste processo. O caminho que tomamos foi o de criar uma metodologia de análise dos processos de trabalho que gerasse uma matriz de funções e sub-funções para cada uma das áreas ou famílias profissionais previamente definidas, e em seguida construir uma matriz de competências e habilidades. A análise das semelhanças e diferenças nas competências descritas confirmaria ou alteraria as áreas. Trabalharam nesta etapa alguns poucos professores e profissionais da área sob a coordenação (questionamento e organização) de um consultor. Os professores e o consultor partiam desta matriz para ampliá-la com um quadro dos saberes ou bases tecnológicas envolvidas na construção das competências e habilidades neste momento, e dos saberes ou bases científicas e instrumentais requeridas para a formação profissional.
Com uma matriz preparada seguem-se os seminários de validação que envolvem professores, trabalhadores e empregadores, representações sindicais dos dois últimos e entidades reguladoras e fiscalizadoras do exercício profissional.
Ainda que não houvéssemos tido acesso então ao texto já citado de Perrenoud, tentamos superar ou clarear dificuldades por ele apontadas, tais como:
O resultado deste processo é uma matriz de competências a serem construídas pelos alunos da educação profissional ao longo de sua formação. O conhecimento da descrição do processo de trabalho não garante uma formação adequada; o que o faz é uma matriz de competências bem construída.
Entendemos por competências os esquemas mentais, ou seja, as ações e operações mentais de caráter cognitivo, sócio-afetivo ou psicomotor que, mobilizadas e associadas a saberes teóricos ou experienciais, geram habilidades ou um saber fazer. Portanto, o conhecimento em profundidade e a análise detalhada das funções do processo de produção permitem especificar que competências devem ter sido construídas por um profissional para realizar uma atividade. Entretanto, estas competências, embora se refiram a esquemas mentais mais globais, devem ser contextualizadas em cada área profissional em uma primeira instância e em cada sub-função profissional na prática pedagógica. O risco que se corre nesta etapa é tentar abstrair tanto que se fique na generalidade ou detalhar tanto que se confunda competência com tarefa.
O referencial de competências deve ser instrumento permanente de trabalho da escola e do professor, sendo entendido como uma linguagem comum e central do processo educativo e não como uma lista abstrata que precisa estar presente no «plano de curso» e no «plano de aula», mas não no cotidiano escolar. Ele deve ser o roteiro permanente para se definir os problemas que serão propostos aos alunos e o parâmetro para a avaliação do processo pedagógico, pelo desempenho do aluno e pela análise do trabalho.
Uma excelente matriz referencial de competências de nada vale se o projeto pedagógico para a formação não for organizado em torno dela. A lógica da educação profissional deve ser a da mobilização para a construção das competências necessárias para a atividade a ser desenvolvida pelos alunos. Este processo garante um aprender a aprender e um aprender a fazer. Daí dizer Perrenoud que «um plano de formação profissional não é o de dar lugar a todos os tipos de disciplinas, mas de implantar dispositivos de formação que permitam construir, realizar e avaliar competências»2.
Isto não quer dizer que nesta formação não há lugar para os saberes, mas sim que eles se mobilizam de fato para os alunos, como tal, se forem incorporados antropofagicamente pela construção e pelo desenvolvimento de competências. Caso contrário, este saber não o é para o aluno. Isto quer dizer que não há uma assimilação prévia dos conteúdos para posterior incorporação e uso; estas coisas acontecem juntas. Não há porque antecipar respostas antes que os alunos elaborem as perguntas. Não há porque dissertar para depois praticar. É num determinado contexto, de forma interdisciplinar, que os conhecimentos se constróem. A problematização do contexto gera a necessidade de conhecimentos, que se reportam a um corpo organizado de saber para resolver o problema, ou seja, para construir um saber fazer.
Um projeto pedagógico de qualidade para a educação profissional deve surgir de um corpo de professores que reconheça às competências, o «direito de gerência» sobre o processo educativo.
Construir uma pedagogia para a educação profissional baseada em competências é superar um currículo concebido como uma seqüência de conteúdos para organizar um desenho curricular baseado em problemas.
Há centros de educação profissional que trilham este caminho de forma radical; sem preparação teórica prévia expõem os estudantes a problemas que devem ser resolvidos, inicialmente simples e fictícios, progredindo mais complexos e reais.
Podemos caminhar nesta direção sem fazer uma mudança tão radical. Poderíamos organizar nossos projetos dando lugar à identificação e solução de problemas. Algumas iniciativas, como o trabalho centrado em empresas virtuais ou em unidades pedagógicas de produção, favorecem o surgimento de questões a serem resolvidas pelos estudantes individualmente ou, de preferência, em grupos. Este procedimento favorece a mobilização de competências e conhecimentos já construídos em novas situações, o que cria um novo quadro referencial que permite o desenvolvimento das competências já adquiridas, a construção de novas e a apropriação de novos conhecimentos.
Identificar carências, lacunas e mobilizar-se para preenchê-las é uma ótima oportunidade para desenvolver estratégias de superação das dificuldades e de busca e seleção de informações. Enfim, precisamos encontrar trajetos pedagógicos que propõem a integração dos recursos em situação real ou realista, com dados faltantes ou aproximativos, conhecimentos incertos, prazos, resistências, desacordos entre profissionais, entraves institucionais.
Das mais complexas questões pedagógicas a maior é a relação teoria/prática. A presença de práticas laboratoriais e estágios finais não supera essa dicotomia. A pedagogia da alternância é uma tentativa de superação melhor que as práticas atuais, que representam um progresso mas não resolvem o problema. A contextualização, a aprendizagem por problemas e a garantia da mesma equipe de formadores nos diferentes espaços e tempos da formação, é a melhor forma de articulação.
As práticas laboratoriais pensam uma integração por demonstração ou aplicação de conhecimentos teóricos já adquiridos, artificializando o processo de trabalho e a própria construção do conhecimento. Os estágios de final de curso, além de partirem dos mesmos princípios, não oferecem oportunidade pedagógica de integração, uma vez que depois dele não há retorno, é o mundo do trabalho. Não há mais tempo para discussão, reflexão e retomada do processo de aprendizagem na escola.
A alternância supera estes princípios, mas não consegue dar conta da desintegração e falta de formação dos formadores. Funciona, por um lado, como aplicação do conhecimento já adquirido e, por outro, como levantamento de dados para os momentos seguintes.
A proposta que fazemos é a da construção de competências e apropriação de conhecimentos no processo controlado, coordenado e estruturado de resolução de problemas reais ou realistas no espaço da construção pedagógica com equipes que tenham-se organizado partindo dos pressupostos acima descritos nos cinco pontos anteriores, e com uma integração baseada no ponto que se segue.
A diversidade é a marca da contemporaneidade, porque temos alunos e necessidades no e do trabalho cada vez mais heterogêneos. Os alunos têm projetos pessoais, trajetos educacionais e experienciais diferentes. A vida civil e o mundo da produção, dentro dela, se complexificaram muito. A diversidade da oferta de trajetos formativos, de desenhos curriculares e de práticas pedagógicas, é a possibilidade de darmos conta da complexidade e da heterogeneidade.
A modularização é, na verdade, uma estratégia de atendermos a esta diversidade. Ela possibilita que numa estrutura escolar, que trabalha com base no coletivo, tenhamos a possibilidade de caminhos diferenciados de formação, saídas intermediárias e recorrência no processo e no projeto individual de formação.
Como fazer educação profissional sem os profissionais? A parceria entre a escola e o mundo do trabalho é uma necessidade para a concretização desta concepção de educação profissional. Equipes conjuntas da escola e da área de produção devem estar permanentemente laborando para construir um processo de trabalho pedagógico que crie condições de qualidade na formação, sem que isso signifique uma anulação da diferenciação de papéis entre os atores das duas áreas: professores e profissionais. Professores são, acima de tudo, agentes de mobilização, conhecedores do processo de aprendizagem, e, portanto, organizadores deste processo e agentes de sistematização das aprendizagens realizadas. Profissionais das áreas são formuladores de problemas, reguladores do processo e estimuladores de inovações. O planejamento é conjunto. O processo pedagógico deve ser simultâneo, articulado.
Não gostaria que entendessem o que aqui tratamos como um receituário ou um modelo, mas como um roteiro para aprofundamento, experimentação, discussão e revisão. Nestes tempos de mudança precisamos fazer um esforço grande de identificação de questões e de sistematização de propostas para solucioná-las. O nosso texto faz parte deste esforço. Não houve tempo de maturação plena destas idéias. Acredito que se coletivamente fizermos tentativas de aprofundamento, crítica e proposição, poderemos logo construir projetos de prática escolar interessantes para evoluirmos no sentido de encontrarmos uma educação profissional de qualidade.
(1) PERRENOUD, Philippe. «A qualidade de uma formação profissional é executada primeiramente em sua concepção». Texto de uma intervenção no Encontro dos profissionais da saúde. CEFIEC. Marseille. Novembro de 1997. Tradução para uso como texto de trabalho.
(2) PERRENOUD, Philippe. Op. cit.
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