La Revista Iberoamericana de Educación es una publicación monográfica cuatrimestral editada por la Organización de Estados Iberoamericanos (OEI) |
Está en:
OEI -
Ediciones -
Revista Iberoamericana de
Educación - Número 22
«A ciência (...), longe de mecanizar o artista ou o profissional, arma a sua imaginação com os instrumentos e recursos necessários para os seus maiores vôos e audácias».
Anísio Teixeira
(Apud, BRANDÃO &
MENDONÇA, 1996)
SINTESE: A pesquisa que originou a esta reflexão encontrou elementos teóricos que, fundamentados nas bases empíricas e teorizações prévias, permitem à autora propor a possibilidade de desenvolver uma autêntica Pedagogia da Educação Infantil, à que ela prefere denominar Pedagogia da Infância, que terá, então, como objeto de preocupação as próprias crianças; os seus processos de constituição como seres humanos em diferentes contextos sociais, a sua cultura, as suas capacidades intelectuais, criativas, estéticas, expressivas e emocionais. Esta pedagogia trascenderia os conhecimentos didáticos resultantes de uma ação pedagógica escolar geral e dos processos de ensino-aprendizagem que não resultam adequados para analisar aqueles espaços pedagógicos não-escolares, tão freqüentes na atenção dos meninos e meninas de 0 a 6 anos.
Síntesis: La investigación que dio origen a esta reflexión encontró elementos teóricos que, fundamentados en bases empíricas y teorizaciones previas, permiten a la autora proponer la posibilidad de desarrollar una auténtica Pedagogía de la Educación Infantil, a la que ella prefiere denominar Pedagogía de la Infancia, que tiene como objeto de preocupación a los propios niños y niñas; sus procesos de constitución como seres humanos en diferentes contextos sociales; sus culturas; sus capacidades intelectuales, creativas, estéticas, expresivas y emocionales. Esta pedagogía trascendería los conocimientos didácticos resultantes de una acción pedagógica escolar general y de los procesos de enseñanza-aprendizaje que no resultan adecuados para analizar los espacios pedagógicos no-escolares, tan frecuentes en la atención de los niños y niñas de 0 a 6 años.
(*) Eloisa Acires Candal é Coordenadora Geral dos Pesquisadores de Nee0a6 (Núcleo de Estudos e Pesquisas da Educação de 0 a 6 anos) da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, e Coordenadora do GT7-ANPED (Grupo de Trabalho 7, educação infantil) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação.
A reflexão aqui apresentada resulta da pesquisa «A pesquisa em Educação Infantil no Brasil: trajetória recente e perspectivas de consolidação de uma pedagogia» cuja análise do conjunto da produção analisada, que teve como objeto a educação da criança pequena, revelou construções teóricas que, sustentando-se em bases empíricas e teorizações anteriores, vêm permitindo a identificação de um conjunto de «regularidades e peculiaridades» que suscitam novas frentes de investigações. Os construtos já identificados pelas pesquisas analisadas, permitem afirmar a possibilidade e o nascimento de uma Pedagogia da Educação Infantil que passa a analisar criticamente o real, a partir de uma reflexão sistemática que ganha corpo, procedimentos e conceituações próprias.
Sem pretender recuperar aqui toda uma extensa trajetória de discussão sobre o objeto e o estatuto científico da Pedagogia, minha tentativa será de estabelecer uma aproximação a respeito dos limites e perspectivas de uma Pedagogia da Educação Infantil como um campo de conhecimento em construção1.
Desta maneira, parto do princípio de que uma Pedagogia da Educação Infantil caracteriza-se por sua especificidade no âmbito da Pedagogia (em seu sentido mais amplo), uma vez que a meu ver o objeto desta está essencialmente ligado à toda e qualquer situação educativa (como organização, estruturas implícitas, práticas, etc.). De fato, em sua trajetória o campo pedagógico não tem contemplado suficientemente a especificidade da educação da criança pequena em instituições não-escolares tais como a creche e a pré-escola.
Não é novo falar de uma «didática pré-escolar»; o próprio aparecimento da pré-escola no Brasil se deu sob as bases da herança dos percursores europeus que inauguraram uma tradição na forma de pensar e apresentar proposições para a educação da criança nos «jardins de infância», diferenciadas das proposições dos modelos escolares. O modelo minuciosamente proposto por Froebel orientou muitas das experiências pioneiras no Brasil, a exemplo do Jardim de Infância Caetano de Campos, tal como mostra o recente estudo de Kuhlmann Jr. e Barbosa. (in: Kuhlmann Jr., 1998, p. 8) Modelos como o de Montessori e Decroly também integram grande parte das práticas que proliferaram entre nós com o aparecimento das pré-escolas nos âmbitos públicos e privados, mesmo já na década de sessenta. Porém, como já disse anteriormente, estes modelos, influenciados por uma Psicologia do Desenvolvimento, marcaram uma intervenção pautada na padronização. Neste sentido, não se diferenciaram da escola tradicional ao constituírem práticas de homogeneização. Apesar de suscitarem a busca de uma pedagogia para a criança pré-escolar, mantiveram as mesmas intenções disciplinadoras, com vistas a enquadramento social através de práticas e atividades que se propunham mais adequadas à pouca idade das crianças.
O novo, em relação a esta tradição, apresenta-se por meio de uma produção recente que resulta de influências teóricas e contextuais antes não colocadas. Mudam as formas de fazer e de pensar a educação da criança de 0 a 6 anos, que passa a se dar em instituições educativas, estabelecendo-se como um novo objeto das Ciências Humanas e Sociais. A identificação da construção de uma Pedagogia da Educação Infantil como um campo particular do conhecimento pedagógico, revelada pela trajetória das pesquisas recentes analisadas, situa-se inicialmente também no âmbito da Pedagogia. Desta forma, nos interessa discutir a sua própria delimitação como campo científico.
De acordo com Mazzotti (1996, p.3), a Pedagogia «tem sido tomada ora como tecnologia, ora como ciência, ora como filosofia aplicada», e raramente como uma ciência autônoma que examinaria as práticas pedagógicas. Isto porque não se aceita que uma prática possa dar origem a uma ciência ou ser uma ciência.
Esta mesma perspectiva é reforçada pelo pesquisador italiano Riccardo Massa (1997) quando afirma que enquanto a Pedagogia se prender a valores e ideologias, ela se reduz à Filosofia e quando se refere apenas a técnicas e relações, reduz-se à Didática ou à Psicologia, respetivamente. Para ele, a Pedagogia tem um estatuto específico que tem como objeto os sistemas de ações inerentes às situações educativas um objeto muito material que permite à Pedagogia se colocar como uma teoria de estrutura implícita à experiência educativa (Massa, 1997). Desta maneira, seu relacionamento com as outras áreas deve ser de apropriação de todos os aspectos de outros campos a ela relacionados, «sem complexo de inferioridade». A Pedagogia pode afirmar-se pelo estudo da experiência educativa, recolocando-se como ciência da Educação. O que se vê hoje é que as mais diferentes práticas sociais recorrem à Pedagogia: «Paradoxalmente a Pedagogia morre, mas é tudo pedagogizado (excessivamente)»2 (Massa, 1997).
De fato, se por um lado a Pedagogia é destituída de autonomia por aqueles que consideram a impossibilidade de se estatuir um conhecimento científico de base prática, por outro temos assistido a uma construção da Pedagogia como forma de consolidar seu estatuto e dar conta de uma demanda concreta de organização das práticas e das experiências educativas humanas, mas que é essencialmente diferente delas.
Cabe à Pedagogiaarticular o conhecimento prévio e as experiências práticas na construção do conhecimento novo, dando voz aos sujeitos envolvidos com o problema e permitindo ao pesquisador uma posição de compartilhamento que eu chamaria de diferenciada. Diferenciada porque entre os conhecimentos prévios e aqueles obtidos no decorrer da pesquisa (incluindo a voz dos sujeitos sobre a questão), o pesquisador se mantém no lugar daquele que se diferencia, como diz Gouveia (1994, p.68) «por trazer um conhecimento de quem pode e deve ir além do senso-comum, modalidade esta que é respeitada mas deve ser superada, exatamente onde a pesquisa possibilita ultrapassar a mera inserção prática».
Assim, se podemos concordar que a Pedagogia não seria uma ciência porque «uma ciência é um campo de conhecimentos e procedimentos que tem autonomia epistemológica» (Freire apud Nogueira, 1994), concordaremos também que todo conhecimento científico é de fato um conhecimento em constante movimento, independente do grau de «acabamento» de cada campo científico ou de cada ciência. Tanto as ciências que estão em processo de constituição quer dizer de constituir um estatuto teórico bem definido, como aquelas consideradas «acabadas»3, mantêm uma permanente elaboração no sentido de estabelecer normas e interpretações que exigem uma construção constante de suas leis, através de processos de definição/redefinição e estruturação/reestruturação de suas bases teóricas que apontam para a descoberta de novos fenômenos.
Por isso, tomarei aqui como princípio fundamental, como o fez Mazzotti (1996, p.15), que é possível constituir uma ciência da prática educativa, que se coloca como a própria condição de refletir, que se efetiva através e por meio das diversas Ciências Sociais e Humanas: «pode-se dizer que a tessitura apresentada pelas Ciências do Homem possibilita a exposição dos limites do fazer educativo, mas não é suficiente para estabelecer a efetividade do fazer educativo».
Entendo que a produção de cada uma das áreas das Ciências sobre o fenômeno educativo além de referirem-se ao objeto próprio, constituem-se em contribuições para o campo educativo. Porém, esses conhecimentos dependem de uma elaboração específica conseqüente, que se configura como o próprio objeto de produção do campo educativo. De acordo com Freitas (1995, p.39):
A Pedagogia opera em nível qualitativo próprio, que difere de cada uma das ciências que lhe dão suporte na compreensão do fenômeno pedagógico. Reduzir a Pedagogia ao domínio de cada uma destas ciências de fundamentos dilui seu objeto de estudo e impede um tratamento do fato pedagógico no seu nível qualitativo próprio.
A centralidade de uma ciência pedagógica se põe como forma de captar o caráter dinâmico das práticas educativas, como práticas sociais que são, e como possibilidade de dar conta de sua dimensão praxiológica, que tem para além da descrição e da explicação uma preocupação indicativa e uma produção de saberes caracterizados como instrumentos de ação.
Nóvoa (in: Pimenta, 1996, p. 74), autor português que tem se dedicado ao debate das ciências da educação e da formação dos educadores, ao se referir aos desafios atuais impostos ao universo educativo diz:
Doravante, não é mais admissível uma acção pedagógica que não se paute, desde a organização de programas à sua realização e avaliação, por enquadramentos científicos e teóricos e por desenvolvimentos metodológicos extremamente elaborados do ponto de vista conceptual e praxiológico.
A Pedagogia, como a ciência da educação, distingue-se radicalmente da atividade educativa em si por definir-se como o conjunto de estudos sobre a educação e pela reflexão sistemática sobre a prática: Assim, a Pedagogia, como estudo sistemático, toma como ponto de partida a prática como objeto inconcluso e histórico, e a ela retorna (Pimenta, 1996, p. 39-70).
O objeto do campo da Pedagogia define-se, pois, como o ato pedagógico em determinada situação no caso da educação infantil este objeto define-se pelo contexto das relações educacionais-pedagógicas e não pela análise de cada um dos fatores determinantes da educação da criança de forma isolada. Por exemplo: os processos gerais de desenvolvimento da criança interessam à Psicologia; já a educação da criança na creche como um contexto de desenvolvimento é de interesse particular da Pedagogia, que a partir do conhecimento psicológico observa, descreve, analisa e critica a intervenção pedagógica.
Sobre a particularidade do estudo pedagógico concordam até mesmo aqueles que, como Anísio Teixeira (In: Brandão & Mendonça, 1997, p. 202), distinguem a educação da ciência, situando nas chamadas ciências-fontes a responsabilidade por:
(...) dar um caráter mais científico à ação desenvolvida no campo educativo». Para ele, «nenhuma conclusão científica é diretamente transponível em regra operatória no processo de educação. Todo um outro trabalho tem de ser feito para que os fatos, princípios e leis descobertos pela ciência possam ser aplicados na prática educacional.
A Educação de posse dos «instrumentos e recursos necessários» pode então projetar «seus maiores vôos e audácias». Desta forma, o que se coloca então como plausibilidade de constituição do campo educativo é, sem dúvida, a criação e o desenvolvimento de pesquisas multidisciplinares, em que a produção do conhecimento possa ser o resultado de diferentes olhares sob um mesmo fenômeno4. Neste processo de investigação cabe à Pedagogia justamente o estudo das relações educativas, seus mecanismos de ação e estruturas subjacentes, inevitavelmente inconclusas e dotadas de um elemento utópico, como característica fundamental do fenômeno educativo. O que caracteriza a investigação educacional é, como dizia Sacristán (1978, p.165 -166), o fato dela ir «perseguindo a sombra que ela mesma tem que ir criando». Esta peculiaridade estabelece definitivamente a união teoria-prática na Pedagogia.
A própria ação nos proporciona as pistas para penetrar num objeto tão complexo. Essa ação não pode reduzir-se ao espontaneísmo, porém, nunca deverá ser uma realização proveniente das diretrizes de um plano rigidamente travado, e sim de um programa que se vá orientando à medida em que confronta as realizações com as própria previsões.
Entendo que uma colaboração disciplinar na investigação educacional depende deste caráter utópico (não no sentido idealista ou salvacionista, mas como perspectivação das possibilidades educacionais desejadas), e da conexão entre a investigação e a prática pedagógica inerentes aos projetos educativos em constante transformação, típicos de um fenômeno que se caracteriza como prática social histórica.
As origens da Pedagogia na modernidade, como disciplina, são marcadas por orientações teóricas de alguns de seus predecessores (Herbart, Dewey, Claparède), que traziam, de uma forma geral, dois princípios comuns: a necessidade da alimentação de estudos pedagógicos por disciplinas auxiliares, e a crença no atrelamento da prática pedagógica à Psicologia para aprender com ela «procedimentos experimentais, bem como seu objeto e destinatário privilegiado: a criança» (Warde, p.330 In: Freitas (org.), 1995).
Acompanhando a trajetória da constituição da Pedagogia, os estudos que se propuseram a tomar a infância como objeto, desde a Pedologia5 até a moderna Psicologia Infantil foram, de fato, sofrer uma grande mudança no foco de suas atenções com o advento da universalização da escola e das demandas práticas daí decorrentes. A criança passa a ser o aluno e o foco das preocupações do ensino e da aprendizagem, tendo em vista especialmente a aquisição dos conhecimentos já produzidos, num momento em que ainda não se pôs em pauta a aprendizagem como um processo construtivo.
Atualmente a fronteira dos debates entre os educadores brasileiros sobre a própria definição deste campo, quando toma como principal objeto o ensino no âmbito da Didática, limita-se às instituições escolares, deixando de fora inclusive toda uma pedagogia relativa aos movimentos sociais que também estabelecem relações tipicamente pedagógicas nas mais diferentes práticas sociais.
As pesquisas pedagógicas têm tomado como ponto de partida a própria definição da Didática e de seu objeto, traçando uma delimitação que a situa no âmbito das relações de ensino-aprendizagem. Desta delimitação depende o entendimento do que há de geral na Didática e o que se coloca nas Didáticas Específicas.
No conjunto das reflexões feitas sobre esta especificidade entre os especialistas da área, Magda B. Soares (apud Warde, 1995), no início dos anos 80, procura definir o objeto da Didática e da Prática de Ensino. Para ela, a prática de ensino remete-se à especificidade de cada área de conhecimento a que se refere e, «à Didática caberia estudar a aula, procurando analisá-la e descrevê-la como um fenômeno que apresenta certas peculiaridades e regularidades, independente da diversidade de contextos em que se dá, e da diversidade de conteúdos que nela se desenvolvem», atribuindo, porém, à Didática Geral a função de subsidiar «o professor a compreender a ação pedagógica no contexto escolar e não apenas restrito ao processo ensino-aprendizagem».
Esta definição, ao extrapolar os limites do ensino, abre a possibilidade de relacionarmos o objeto da didática com aquele que vem a ser o objeto da educação infantil, e que caracteriza a educação da criança de 0 a 6 anos em instituições de educação e cuidado.
Para isto, faz-se necessário, em primeiro lugar, destacar que a creche e a pré-escola6 diferenciam-se essencialmente da escola quanto às funções que assumem num contexto ocidental contemporâneo. Particularmente, na sociedade brasileira atual, estas funções apresentam em termos de organização do sistema educacional e da legislação própria contornos bem definidos. Enquanto a escola se coloca como o espaço privilegiado para o domínio dos conhecimentos básicos, as instituições de educação infantil se põe sobretudo com fins de complementaridade à educação da família. Portanto, enquanto a escola tem como sujeito o aluno, e como o objeto fundamental o ensino nas diferentes áreas, através da aula; a creche e a pré-escola têm como objeto as relações educativas travadas num espaço de convívio coletivo que tem como sujeito a criança de 0 a 6 anos de idade (ou até o momento em que entra na escola). A partir desta consideração, conseguimos criar um marco diferenciador destas instituições educativas: escola, creche e pré-escola, a partir da função social que lhes é atribuída no contexto social, sem estabelecer necessariamente com isto uma diferenciação hierárquica ou qualitativa. Apesar da qualidade da educação não ser aqui diretamente objeto de preocupação, é, no entanto, uma preocupação inicial desta pesquisa.
Fixada a diferenciação supra referida podemos por ora, então, afirmar que o conhecimento didático (resultante de uma ação pedagógica escolar geral e do processo ensino-aprendizagem em particular) não é adequado para analisar os espaços pedagógicos não-escolares. Isto não significa que o conhecimento e a aprendizagem não pertençam ao universo da educação infantil. Todavia, a dimensão que os conhecimentos assumem na educação das crianças pequenas coloca-se numa relação extremamente vinculada aos processos gerais de constituição da criança: a expressão, o afeto, a sexualidade, a socialização, o brincar, a linguagem, o movimento, a fantasia, o imaginário, ... as suas cem linguagens7. Não é, portanto, o objetivo final da educação da criança pequena, muito menos em sua versão escolar8, mas apenas parte e conseqüência das relações que a criança estabelece com o meio natural e social, pelas relações sociais múltiplas entre as crianças e destas com diferentes adultos (e destes entre si). Este conjunto de relações que poderia ser identificado como o objeto de estudo de uma «didática» da educação infantil, é que, num âmbito mais geral, estou preferindo denominar de Pedagogia da Educação Infantil ou até mesmo mais amplamente falando, de uma Pedagogia da Infância, que terá, pois, como objeto de preocupação a própria criança: seus processos de constituição como seres humanos em diferentes contextos sociais, sua cultura, suas capacidades intelectuais, criativas, estéticas, expressivas e emocionais.
É um fato que permanece o problema relativo aos conhecimentos específicos. Se não do ponto de vista do ensino, pois não é objetivo da educação infantil ensinar conteúdos, pelo menos o problema se coloca do ponto de vista da formação dos professores de creche e de pré-escola, pois a se considerar a multiplicidade de aspectos, saberes e experiências exigidos pela criança, coloca-se em questão quais domínios necessariamente devem fazer parte da formação do professor neste âmbito9.
As peculiaridades da criança nos primeiros anos de vida, antes de ingressar na escola fundamental, enquanto ainda não é «aluno» mas um sujeito-criança em constituição, exige pensar em objetivos que contemplem também as dimensões de cuidado e outras formas de manifestação e inserção social próprias deste momento da vida. Estes objetivos não são antagônicos aos do ensino fundamental, principalmente se considerarmos as crianças de 7 a 10 anos alunos das séries inicias. Considero, inclusive, que estes objetivos (e muitos outros definidos para a creche, a pré-escola e o ensino fundamental) tenham elos comuns. Ousaria até dizer que uma mesma orientação nesses níveis poderia favorecer o rompimento com parâmetros pedagógicos estabelecidos apenas a partir de uma «infância em situação escolar», incorporando parâmetros resultantes das novas formas de inserção social da criança em instituições educativas tais como a creche e outras modalidades nesta faixa etária. Alguns exemplos destes novos parâmetros seriam o fortalecimento da relação com a família na gestão e no projeto pedagógico, bem como a ênfase nos âmbitos de formação relacionados à expressão e às artes.
Não é por acaso que prefiro o termo educar no contexto da educação infantil. Este termo parece dar um caráter mais amplo que o termo «ensinar» que, em geral, refere-se mais diretamente ao processo ensino-aprendizagem no contexto escolar. Como já disse, o aspecto cognitivo privilegiado no trabalho com o conteúdo escolar, no caso da educação infantil, não deve ganhar uma dimensão maior do que as demais dimensões envolvidas no processo de constituição do sujeito/criança, nem reduzir a educação ao ensino. De fato, a meu entender, isto deveria valer também para as séries iniciais do ensino fundamental, embora seja o «ensino» o seu objetivo precípuo.
Na educação das crianças menores de 6 anos em creches e pré-escolas, as relações culturais, sociais e familiares têm uma dimensão ainda maior no ato pedagógico. Apesar do compromisso com um «resultado escolar» que a escola prioriza e que, em geral, resulta numa padronização, estão em jogo na Educação Infantil as garantias dos direitos das crianças ao bem-estar, à expressão, ao movimento, à segurança, à brincadeira, à natureza, e também ao conhecimento produzido e a produzir10. Se tomar a escola como local privilegiado para a formação significa partir do «conhecimento do mais sistemático e desenvolvido» para entender «o menos sistemático e desenvolvido» (Freitas, 1995, p.38), fazer o movimento inverso pode revelar características e peculiaridades de outros contextos educativos em processo de constituição. Esta convicção me leva a compreender que cada uma destas instituições (escola e pré-escola) detêm especificidades próprias relacionadas a sua história, organização, finalidade, etc., que merecem abordagens específicas.
Apresentando componentes de interesse comum, esses espaços educativos relacionados à educação e a criança, independentemente de sua limitação etária (escolar ou não), necessitam, a meu ver, estabelecer um maior diálogo, que pode inclusive potencializar as influências no sentido inverso do que tem se dado tradicionalmente, ou seja, da educação infantil para a escola, já que o aluno é antes de tudo a criança em suas múltiplas dimensões.
Por ora a predominância que os estudos da educação brasileira dão à escola, indica a necessidade de enfatizar os contextos não-escolares, neste caso a educação infantil, ainda como forma de fortalecimento e definição de um campo particular, sem perder de vista, contudo, esses relacionamentos mais genéricos, pois o estudo de uma «Pedagogia da Educação Infantil» não pode desvincular-se do âmbito ao qual pertencem, uma «Pedagogia da Infância» e a Pedagogia de maneira geral uma vez que ela mesma inclui diferentes sujeitos e diferentes contextos educativos como bem alerta Riccardo Massa11: «A Pedagogia não se preocupa só com a criança.(...) ( Massa, 1997, entrevista).
Cabe então, indagar, a esta altura da discussão: Valeriam para a educação infantil parâmetros pedagógicos escolares estabelecendo-se apenas diferenciais relativos à faixa etária?
Minha tendência neste momento é responder que não, uma vez que a tarefa das instituições de educação infantil não se limita ao domínio do conhecimento, assumindo funções de complementaridade e socialização relativas tanto à educação como ao cuidado, e tendo como objeto as relações educativas-pedagógicas12 estabelecidas entre e com as crianças pequenas (0 a 6 anos).
De fato, a multiplicidade de fatores que estão presentes nestas relações, sobretudo nas instituições responsáveis pelas crianças pequenas, exigem um olhar multidisciplinar que favoreça a constituição de uma Pedagogia da Educação Infantil, e tenha como objeto a própria relação educacional-pedagógica expressa nas ações intencionais que, diferentemente da escola de ensino fundamental, envolvem além da dimensão cognitiva, as dimensões expressiva, lúdica, criativa, afetiva, nutricional, médica, sexual, etc. Acredito que a extensão desta perspectiva pode influenciar a escola e passar a constituir uma Pedagogia da Infância (0 a 10 anos). Mas fiquemos alertas. Por se referir a instituições educativas, toda Pedagogia da Educação Infantil traz à tona as velhas ambivalências: liberdade-subordinação, dependência-autonomia, atenção-controle, inerentes à relação infância e Pedagogia.
Acredito que há algo de genérico no conhecimento pedagógico que sempre estará em relação com suas dimensões mais particulares e vice-versa. A acumulação da produção científica da educação infantil certamente traz para a Pedagogia questões que são pertinentes aos seus problemas gerais. O mesmo se pode afirmar, portanto, sobre o relacionamento de dimensões específicas entre si, que também têm uma influência na constituição do campo de conhecimento estudado.
BRANDÃO, Zaia e Mendonça, A. W. (org.): Por que não lemos Anísio Teixeira. (Coleção da Escola e Professores), Rio de Janeiro, Ravil, 1997.
FREITAS, Luís C.: «A questão da Interdisciplinariedade: notas para a reformulação dos cursos de pedagogia». Educação e Sociedade. 10, nº 33, pp. 105-131, ago-1989.
FREITAS, Luís C.: «Notas sobre a especificidade do pedagogo e sua responsabilidade no estudo da teoria e prática pedagógica». Educação e Sociedade, ano 7, nº 22, pp. 12-19, set./dez.-1985.
FREITAS, Luís C.: «Projeto histórico, ciência pedagógica e didática». Educação e Sociedade, nº 27, pp. 122-140, set-1987.
FREITAS, Luís C.: «Teoria pedagógica: limites e possibilidades». Série Idéias. São Paulo, F.D.E., pp.37-46, 1995.
FREITAS, Marcos Cézar (org): História Social da Infância no Brasil. Cortez Editora/USF, São Paulo, 1997.
GOUVEIA, Aparecida J.: «A pesquisa sobre educação no Brasil: de 1970 para cá». Cadernos de Pesquisa. São Paulo, nº 19, dez-1976.
GOUVEIA, Aparecida J.: «Notas a respeito das diferentes propostas metodológicas apresentadas». Cadernos de Pesquisa. São Paulo, nº 49, pp. 67-70, mai-1994.
KUHLMANN, Jr., Moysés.: Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre, Mediação, 1998.
KUHN, Tomás S.: A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Editora Perspectiva, 1992.
MASSA, Riccardo.: La fine della pedagogia nella cultura contemporanea, Unicopli, Milano, 1988.
MASSA, Riccardo.: Instituzioni di Pedagogia e scienza dell educazione, Laterza, Roma-Bari, 1990.
MASSA, Riccardo.: Entrevista. Gravada em vídeo, outubro de 1997, Florianópolis-S.C.
MAZZOTTI, Tarso B.: Estatuto de cientificidade da Pedagogia. In: Pimenta, S. G. (coord.) Pedagogia, Ciência da Educação? São Paulo. Ed. Cortez, pp.13-37, 1996.
MEC/SEF/DPE/COEDI.: Propostas pedagógicas e currículo em educação infantil. Brasília, 1996.
NOGUEIRA, Adriano M .(Org.): Contribuições da Interdisciplinaridade para a ciência, para a educação e para o trabalho sindical. Petrópolis, RJ, Vozes,1994.
PIMENTA, Selma.G. Pedagogia, Ciência da Educação? São Paulo, Cortez Editora, 1996.
WARDE, Miriam: O papel da pesquisa na pós-graduação em educação. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, nº 73, pp. 67-75, mai-1990.
WARDE, Miriam: O estatuto epistemológico da didática. Série Idéias. São Paulo, F.D.E, pp. 46-53, 1995.
SACRISTÁN, José. G.: «Explicación, norma y utopía en las ciencias de la educación». In: Escolano A. y otros. Epistemología y educación. Salamanca, Ed. Sígueme, 1978.
Índice Revista 22 Educación inicial Educação inicial |
|
Revista Iberoamericana de Educación |
Buscador |
Mapa del
sitio | Contactar
|
Página inicial OEI |
Organización Para la Educación, |