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 ISSN: 1022-6508

Está en: OEI - Revista Iberoamericana de Educación - Número 32

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 Número 32: Mayo - Agosto 2003 / Maio-Agosto 2003

Escuela y medios de comunicación / Escola e meios de comunicação

  Índice número 32 

O cinema do feitiço contra o feiticeiro

Leonardo Carmo (*)

Síntese: Este artigo investiga as possibilidades da inserção do cinema na sala de aula sob dois enfoques: um filosófico, discutindo o cinema na educação, e outro pragmático, teorizando a prática educativa do cinema em sala de aula. Propõe construir um modelo de análise do filme a partir de conceitos elaborados pelo pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940), como espaço imagético e como técnica interna da obra de arte. Dialoga com os teóricos Marc Ferro e Fredric Jameson e os diretores Glauber Rocha (1939-1981) e Jean-Luc Godard, para construir uma inteligibilidade do cinema aplicado à educação. Procura superar a dicotomia entre cinema comercial e cinema de arte, defendendo a tese que entretenimento e conhecimento não se excluem. Entende que as contribuições da História, da Antropologia, da Sociologia sobre o cinema, podem enriquecer uma teoria do cinema do ponto de vista da educação ou de uma pedagogia da imagem e do som. Vê o cinema inserido no processo de produção capitalista e se propõe a analisar o fetichismo para se livrar do fetiche.

Síntesis: Este artículo investiga las posibilidades de la inserción del cine en la clase bajo dos enfoques: uno filosófico, discutiendo el cine en la educación, y el otro pragmático, teorizando la práctica educativa del cine en la clase. Propone construir un modelo de análisis de la película desde conceptos elaborados por el pensador alemán Walter Benjamin (1892-1940), como espacio imagético y como técnica interna de la obra de arte. Dialoga con los teóricos Marc Ferro y Fredric Jameson y los directores Glauber Rocha (1939-1981) y Jean-Luc Godard, para construir una inteligibilidad del cine aplicado a la educación. Busca superar la dicotomía entre el cine comercial y el cine artístico, defendiendo la tesis de que entretenimiento y conocimiento no se excluyen. Entiende que las contribuciones de la Historia, de la Antropología, de la Sociología sobre el cine pueden enriquecer una teoría del cine desde el punto de vista de la educación o de una pedagogía de la imagen y del sonido. Ve el cine inserto en el proceso de producción capitalista, y se propone analizar el fetichismo para librarse del fetiche.

Por que cinema e escola? A resposta a essa pergunta remete às indagações sobre as possibilidades educativas do cinema, e, especificamente, sobre a importância dele na mudança das práticas pedagógicas da matriz curricular. O cinema conduz a um novo enfoque dos conteúdos dessa matriz, porque implica na mudança de percebê-los, de avaliá-los e de entendê-los. O cinema (imagem e som) modifica os processos de transmissão de conhecimentos dessa matriz, tradicionalmente apoiados na leitura e na escrita. Falar de cinema na escola implica pensar uma política audiovisual para o ensino formal, seja ele público ou privado.

O uso do cinema na escola exige uma discussão de caráter filosófico: as relações entre cinema e educação. E uma discussão de caráter pragmático: o uso do cinema como agente no processo de ensino e aprendizagem na rotina escolar.

Assim, a pergunta inicial pode ser reestruturada nos seguintes termos: o cinema pode melhorar a escolarização no ensino fundamental, médio e superior? Como utilizar do ponto de vista pedagógico o cinema? Ou, que práticas pedagógicas inspiram o cinema? Isto nos leva a outras questões: um filme exibido no ensino superior pode ser projecionado para o ensino fundamental? Os filmes devem ser exibidos de acordo com a escolaridade ou a faixa etária?

As possibilidades educacionais do cinema e o seu aproveitamento na atividade escolar orientam-nos para uma resposta afirmativa. A arte cinematográfica contribui para disseminar a arte e a cultura, e pode exercer influência positiva nos estudantes. A esperança é que o cinema, pela sua natureza afetiva, abra as portas da percepção para o prazer da descoberta das disciplinas das Ciências Sociais, da Literatura, da Filosofia, da Física, da Biologia ou da Química.

O cinema como prática pedagógica pode fazer o aluno a se interessar pelo conhecimento, pela pesquisa, de modo mais vivo e interessante que o ensino tradicional, apoiado em aulas expositivas e seminários. O porquê do cinema na escola só se justifica se ele desperta o interesse pelo ensino no sentido tradicional, e, ao mesmo tempo, mostra novas possibilidades educacionais apoiadas na narrativa cinematográfica.

O que tentaremos responder é o como fazer isso. Claro, essa resposta depende de um esforço coletivo, não é obra autoral. Na verdade, é um trabalho de pesquisa e deve envolver as diversas áreas do conhecimento.

Nos limites deste artigo, tentaremos esboçar uma contribuição que tente sistematizar uma visão da educação e da escola no viés da arte cinematográfica. Nesta tentativa, consideraremos que a educação e a atividade escolar serão reorientadas do cinema.

Dito de uma maneira mais simples, em grifo nosso, o cinema torna-se um a priori. A arte, e a arte cinematográfica, serão consideradas como metaeducação. A primeira tese desse texto é que os meios de comunicação alteram a percepção e a recepção da educação como um todo, e da escolar em particular.

Precisamos construir uma teoria visando a conceituar cinema e educação do ponto de vista dos meios de comunicação de massa ou da cultura da mídia. É preciso contemplar práticas cinematográficas e contar com as reflexões dos seus diretores para fundamentarmos uma teoria mais ampla da Educação, uma teoria em que a imagem seja o elemento primordial no processo de ensino e aprendizagem. É necessário que tenhamos uma pedagogia da imagem e do som. Uma pedagogia dos espaços imagéticos dos meios de comunicação.

Tentarei esboçar uma visão filosófica do cinema, e, em seguida, refletir sobre a prática de exibição de filmes em sala de aula. A isso estou chamando de cinema como sala de aula. O cinema na escola exige uma visão mais ampla que essa que utiliza as imagens como recurso ilustrativo de conteúdos didáticos. A imagem deverá ser a fonte do conhecimento, da reflexão.

Essa abordagem filosófica das possibilidades educacionais do cinema será fundamentada, num primeiro momento, nas formulações de Walter Benjamin. Ele é um dos primeiros pensadores a afirmar que o cinema é um poderoso instrumento de educação das massas. No ensaio A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, de 19361, encontramos diversas teses que conduzem para uma análise do cinema como um instrumento de emancipação política.

Esse ensaio discute a perda da aura da obra de arte com a invenção da fotografia e do cinema. O surgimento das técnicas de reprodução alteram radicalmente o conceito e a natureza da obra de arte. E é nessa perspectiva que durante décadas este estudo vem sendo digerido. Não vamos reproduzir aqui essa discussão, de resto muito conhecida do público interessado em filosofia da arte.

Nossa proposição é direcionar é investigar esse ensaio como um dos fundamentos para a construção de uma teoria do cinema aplicada à educação. O próprio Benjamin não desenvolveu isso de modo satisfatório. Ele toca no problema sem aprofundá-lo. Queremos utilizar suas intuições como oxigênio para investigarmos e apontarmos um caminho que efetive uma prática pedagógica apoiada na arte cinematográfica.

Para Benjamin, o cinema se situa no contexto de “teses sobre as tendências evolutivas da arte, nas atuais condições produtivas”2. Creio que as teses apontadas nesse ensaio ainda não foram devidamente avaliadas no viés da educação. De início, podemos afirmar que, para Benjamin, a distinção entre arte e mercadoria ou cinema de arte e cinema de massa não faz o menor sentido. Ao abandonar a idéia de aura na obra de arte, o pensador alemão introduz um novo conceito para a valoração dos objetos estéticos da indústria do entretenimento.

Benjamin fala do conceito de refuncionalização como uma nova atribuição da obra de arte. A obra de arte refuncionalizada não tem mais como preocupação central o ideal de beleza. A idéia do objeto artístico analisado com o valor de culto cede espaço ao valor de exposição. O que interessa na obra de arte é a sua função social. Um filme tem de ser discutido do ponto de vista de sua comunicação, informação, distração, publicidade, propaganda e educação. Estes conceitos vão orientar o valor artístico de uma determinada obra. A sua valoração estética será definida pela sua função social e política. O que interessa é saber se um filme foi bem ou mal realizado politicamente, se ele clarifica, informa, comunica o seu tema, como o diretor conduz seu tema para a massa.

O que está implícito é que Benjamin não separa conhecimento e entretenimento. A refuncionalização introduz uma dimensão filosófica nos entulhos da cultura de massa. A filosofia, entendida como a verdade imanente do objeto, sai da abstração acadêmica e ganha o mercado, o cotidiano das ruas. Analisar um filme ou pensá-lo no viés da educação escolar é não ignorar que estamos lidando com uma forma de arte embutida na forma de mercadoria.

Benjamin nos dá um princípio pedagógico: “Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento quanto para a intuição”3. O que está sugerido aqui e o que o próprio Benjamin não desenvolve é o método para esse procedimento. Este princípio retira a massa da condição de vítima, da passividade. Igualmente, não demoniza o mercado e o seu questionamento não é tratado como utopia. Ao fetiche da mercadoria, Walter Benjamin responde com o conceito de imagem dialética, também imprescindível na sua análise da obra de arte e do cinema. Mas não discutiremos esse conceito neste artigo.

Esse talvez seja o aspecto mais polêmico do ensaio de Benjamin. Para muitos pensadores, ele vê a arte cinematográfica com excessivo otimismo e ingenuidade. Ele mesmo nos adverte dos perigos e dos equívocos cinematográficos. O que não impede de reivindicarmos para o cinema possibilidades revolucionárias. Isso se torna complicado quando sabemos que, para Benjamin, a arte revolucionária está ligada à idéia de vanguarda.

No entanto, um exame cuidadoso deste e de outros ensaios autoriza pensarmos que o cinema, um produto da indústria cultural, apresenta uma crítica social pertinente. Essa crítica depende da maneira como olharmos para a obra de arte. A construção desse olhar baseia-se numa pedagogia da imagem ou numa pedagogia dos espaços imagéticos.

Em 1934, Benjamin pronuncia em Paris a conferência O autor como produtor. Junto com Pequena história da fotografía, este estudo desenvolve o mesmo tema que o ensaio da reprodução técnica da obra de arte. Creio que estes ensaios se encaminham para uma teoria da mídia na ótica de Benjamin. Problematizando a questão do autor nas relações capitalistas de produção e focalizando, sobretudo, a questão autoral da literatura, ele observa: “Em vez de perguntar: como se vincula uma obra de arte com as relações de produção da época [...] gostaria de perguntar como ela se situa dentro dessas relações?”4.

Essa formulação de Benjamin nos oferece uma metodologia para a análise das obras de arte e o seu caráter progressista ou reacionário. O que eu estou propondo é deslocar essa pergunta do terreno da literatura para o campo cinematográfico. Essa pergunta vai direto ao problema porque trata da questão da técnica interna da obra de arte. O autor utiliza ou é utilizado pelas técnicas de reprodução? Como essas técnicas interferem no processo criativo e mais exatamente na questão do autor? Visto deste ângulo, fica claro que não podemos considerar – e aqui estou me referindo ao caso do cinema especificamente –, que as técnicas cinematográficas sejam meramente ilusionistas. A distração, a mudança da ação, não exclui nos filmes comerciais as possibilidades da crítica social e política.

Estes ensaios de Benjamin costuram uma teoria da mídia que vem beneficiando pensadores originais como Marc Ferro e Douglas Kellner. Percebemos essa teoria quando esses estudiosos investigam as relações do cinema com a história ou a influência da indústria cultural na construção da opinião pública, como no caso da Guerra do Golfo, por exemplo.

Benjamin oferece argumentos e o esboço de uma metodologia para considerarmos o cinema numa perspectiva da educação. Entendo educação como o processo de desmistificação da história e da ideologia dominantes. A educação seria aquele processo narrativo que, através da escolarização, culminaria num sujeito crítico. Não vou discutir nos limites deste texto o conceito de sujeito crítico com todos os prós e contras existentes. Afirmo que estes ensaios apontam para a análise dos filmes como matéria educativa.

Podemos seguir, ao menos, dois caminhos. Um aberto por cineastas com posições políticas críticas e progressistas: Jean-Luc Godard, Pier Paolo Pasolini e Glauber Rocha. Estes autores podem ter seus filmes analisados da ótica de como se situam dentro das relações de produção da época. Essa época ultrapassa a cronologia para se inserir num conceito de tempo mais amplo e complexo: o da modernidade. A moldura para a análise fílmica, seguindo Benjamin, é o tempo da modernidade, o tempo da fantasmagoria, o novo sempre-igual.

O outro caminho seria o de considerarmos nessa mesma moldura o chamado cinema de massa ou cinema comercial. Creio que uma ambição do educador é falar para amplas camadas da população. Nessa perspectiva, o cinema de massa vem ao encontro do professor que pretende dar uma nova dinâmica quer no processo de escolarização, quer no processo educacional.

No ensaio da reprodução da obra de arte, Benjamin propõe a elaboração de uma estética materialista. O filme é uma mercadoria. A análise mercadológica do filme é o que nos interessa enquanto educadores e professores. No ensaio O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia5, Benjamin fala do conceito de espaço imagético, um espaço construído inteiramente de imagens, da racionalidade técnica. Penso o imagético como conceito operatório eficaz na análise fílmica, orientado para a educação das massas. O imagético circunscreve o que podemos chamar de uma pedagogia da imagem e do som. E pode ser aplicado aos diversos gêneros cinematográficos.

Educar pelo cinema ou utilizar o cinema no processo escolar é ensinar a ver diferente. É educar o olhar. É decifrar os enigmas da modernidade na moldura do espaço imagético. Cinéfilos e consumidores de imagens em geral são espectadores passivos. Na realidade, são consumidos pelas imagens. Aprender a ver cinema é realizar esse rito de passagem do espectador passivo para o espectador crítico.

O cinema é uma prática social que colabora com a construção do imediatismo mítico do presente. No enfoque de Benjamin, o cinema pode colaborar para destruir esse imediatismo, esse continuum cultural que prolonga o tempo do novo sempre-igual. O filme é uma fantasmagoria que pode destruir o fantasmagórico. O cinema pode ser um feitiço contra o feiticeiro. Entender a feitiçaria do cinema é um processo educacional que leva a recusa do mito, supera a alienação, destrói o fetiche da mercadoria.

Em uma das passagens destes ensaios, Benjamin diz que o capitalismo é um sonho mítico que ocorreu na Europa no século xix. Este sonho engendra o sonho da alienação, o qual sonhamos com os olhos abertos. A arte, em particular a cinematográfica, deve nos fazer despertar deste sonho, contribuir para virar feitiço contra o feiticeiro.

Um exemplo desse feitiço imagético é o filme “Jurassic Park”, intitulado no Brasil de “O parque dos dinossauros”. Habitualmente, Steven Spielberg é desancado como diretor de sucessos comerciais. Seus filmes seriam puro entretenimento e nenhum conhecimento pode surgir de sua filmografia. Para nós, este filme demonstra a proposta do espaço imagético como categoria de análise fílmica. A utilização da tecnologia para uma crítica da racionalidade técnica.

As personagens do “Jurassic Park” têm alta escolaridade. Allan Grant e Ellie Satller são doutores em paleontologia e paleobotânica; Ian Malcolm, um matemático do caos e que representa o novo paradigma da ciência, rompendo com o modelo positivista da neutralidade do sujeito observando, controlando o objeto. Um advogado que representa os investidores do projeto e John Hammond, o proprietário do parque dos dinossauros, uma espécie de Fausto agora às voltas com a biotecnologia. E, claro, os netos de Hammond.

O espectador é levado para um espaço imagético de 70 milhões de anos atrás. A clonagem de plantas pré-históricas e dinossauros é o pretexto para discutirmos a racionalidade técnica, os limites da ética científica. A incursão a este mundo perdido, romanticamente descrito por sir Arthur Conan Doyle, é agora um milagre da técnica.

A direção da câmera é didática. Ela nos ensina a como ver o ecossistema do período jurássico pela ótica dos personagens. Na seqüência em que os visitantes chegam ao parque e que são surpreendidos pela presença de um dinossauro, Spielberg atua como um professor. Ele ensina o público a ver e a ouvir aquele fantasmagórico ambiente recriado pela tecnologia cinematográfica.

Nessa sequência, três jipes deslocam os visitantes em direção à sede do projeto do “Jurassic Park”. Num determinando momento, John Hammond é focalizado em close dizendo: “isso não poderia estar aqui”. Os jipes interrompem sua marcha e vemos o doutor Allan Grant virar o rosto lentamente para ver o que está acontecendo. Ele se surpreende com o que vê. Seu rosto é a imagem, é o mapa da surpresa. Seus olhos pulam para fora das órbitas e ele tira de modo desajeitado os óculos do rosto.

Atônito, ele vira a cabeça da namorada, a doutora Ellie Sattler, que fica literalmente de boca aberta. Então, vemos um dinossauro herbívoro; no entanto, só o vemos depois que os olhos experientes de Grant e Sattler contemplam esse milagre da clonagem. Em seguida, temos a visão de Ian Malcolm. Ele é uma espécie de Groucho Marx da ciência. Seu ceticismo e sua humildade se contrapõem ao senso comum de John Hammond. Ele desconfia da manipulação genética e ironiza a capacidade humana de controlar a natureza. No jipe, a câmera o mostra entre a incredulidade e a irritação, diante do provável êxito de John Hammond, a proeza da clonagem de uma espécie extinta.

Essa seqüência tem contraponto quando visualizamos em outro jipe o advogado, cujo olhar parece o tilintar de moedas diante dos lucros que virão do “Jurassic Park”. O motorista de um dos jipes permanece de óculos escuros e debruçado sobre o volante, indiferente aos comentários e ao braquiossauro que está diante dele. Este motorista é o espectador passivo. Ele simboliza a atitude de como o tolo e o sábio olham para a mesma árvore. A câmera meticulosa de Spielberg, nessa seqüência, é reforçada quando John Hammond revela ao doutor Grant que existe um T. Rex clonado no parque. Ellie Sattler perde o fôlego. Allan Grant fica zonzo e vomita diante dessa revelação. O que vemos ali é o olhar de profissionais que conhecem o perigo real e imediato de ter dinossauros ao seu redor. O olhar de John Hammond é o de um menino caprichoso, vaidoso diante do feito. Fausto vendeu a sua alma ao Demônio, porém, não sabe exatamente o que vendeu nem mesmo o que está manipulando. O olhar do motorista é indiferente, e o advogado tem um olho clínico, digamos, da mercadoria que vai lhe trazer lucros. A voracidade do capital é tão aterradora quanto um dinossauro.

Em outra seqüência, durante o almoço, os visitantes discutem sobre as descobertas da ciência e a legitimidade da clonagem dos dinossauros. Trata-se de uma discussão sofisticada, de uma maneira inteligente de iniciar estudantes e o público em geral no complexo tema das realizações científicas.

A discussão é refinada, erudita, e ao mesmo tempo alcança a massa. Possui mérito tanto para a educação quanto para a escolarização devidamente trabalhada em sala de aula, porque, se fosse uma controvêrsia entre especialistas, meia dúzia de espectadores e apenas a comunidade científica poderiam desfrutar deste filme. Entretanto, a posse desses conteúdos não se dá de modo intuitivo. É preciso racionalizar.

O problema é a passividade do espectador, que, sem cultura cinematográfica, sem posse dos instrumentos e dos procedimentos da linguagem da sétima arte, não assimila as possibilidades comunicativas do cinema. É necessário aprender a ler as imagens. E aqui entra o trabalho do educador, do professor. Neste filme, vemos que o cinema pode cumprir um papel saudável e esclarecedor no processo de escolarização. Não há como compreender a comunicação imagética sem o pensamento, sem o esforço intelectual. O acesso fácil às imagens não quer dizer um fácil entendimento de suas formas.

Adotar uma atitude de desprezo diante de fenômenos comerciais significa compartilhar e alimentar a alienação de amplas camadas da população perante um produto que pode iniciá-la num repertório intelectual sofisticado.

Entendendo na perspectiva do espaço imagético que “Jurassic Park” é uma metáfora sobre a monstruosidade da razão, corporificada no T. Rex, o domínio sobre a natureza, talvez a mais fantasmagórica das ilusões humanas, é o tema deste filme, que, como muitos outros da industria cultural, reúne de modo exemplar o entretenimento e o conhecimento.

Ainda podemos dissecar esse filme na ótica de Ian Malcolm, interpretado por Jeff Goldblum, o mesmo cientista do fantasmagórico “A mosca”, de David Cronenberg. Ele é também o cientista que encontra o vírus que vai aniquilar os alienígenas de um filme que revela a defensividade norte-americana: “Independence Day”. Armas e biologia alimentam o imaginário do cinema americano. Não por acaso George Bush ordenou o ataque contra o Iraque justificando a invasão com o pretexto dos EUA ser o alvo potencial de armas químicas e biológicas. Uma seqüência neste filme mostra um general ordenando despejar uma bomba atômica sobre a costa leste americana. Ele diz solenemente que se o Planeta não for dos terráqueos, tampouco será dos alienígenas. Na reforma agrária cósmica, os Estados Unidos não vão dialogar com o movimento de os-sem-planeta.

Essa mesma alegoria de dominação, sob o disfarce do entretenimento, aparece em “Homens de preto”. Estes homens protegem a Terra contra a escória do Universo. O inimigo temido e superinteligente é uma barata! Em “Independence Day” os invasores têm forma de gafanhotos. A representação do outro neste e outros filmes pode servir de tema educacional para ver como a alteridade é vista pela maior potência do mundo.

Educar é ir além das aparências. Educar significa reconhecer aquilo que o historiador Marc Ferro6 chama de não-visível nas imagens. Ferro criou um eficaz modelo de análise fílmica. Ele revela que no cinema a história surge como contra-história, uma história crítica da historiografia oficial. Para Ferro, a contra-história no cinema está condicionada ao processo de produção do filme. A produção é que determina a negatividade do filme, o que vai lhe conferir maior ou menor grau de adesão ou recusa ao status quo. Considero discutível esse modelo.

A sociologia do cinema desenvolvida por Marc Ferro é uma contribuição efetiva no universo da educação, e, em particular, no campo da história. Creio que o modelo de Ferro cabe tanto no “Solaris” de Tarkovsky quanto na refilmagem de Steven Soderbergh. A história é um mito que precisamos decifrar. Esse mito se materializa em obras independentes do caráter da produção. Aliás, quanto mais inocente ou ingênuo é um filme, tanto mais suspeito. Creio que o não- visível das imagens vai além da produção alternativa ou se ela está inserida num esquema industrial. Aliás, filmes que em aparência confirmam o sistema devem ser desmistificados no processo educacional, no processo escolar. Fredric Jameson7 é outro teórico importante, cujas contribuições podem fortalecer a idéia de um cinema na escola.

Fredric Jameson estuda a luta de classes em filmes como “Um dia de cão”, o historicismo em “O iluminado” e o “Tubarão”. Analisa a dimensão política em filmes de Hitchcok. Também ele lida com as verdades histórias e filosóficas ocultas nos entulhos da indústria cultural. Entendo que megaproduções como “Jurassic Park” oferecem uma visão crítica das relações de produção da época em que vivemos. O que quero dizer é que o não-visível nas imagens aparece também em produções da indústria cultural. Essas obras podem ser lidas de outra maneira, podem ser apropriadas por um olhar crítico. Um filme feito para enfeitiçar pode nos despertar do sonho. E o primeiro feitiço do qual temos que nos libertar é o chamado cinema de massa, cinema comercial. Este não presta à educação. A teoria do cinema aplicado à educação deve incorporar uma espécie de antropofagia visual: comer as imagens e devolvê-las criticamente num processo pedagógico que vise à autonomia do sujeito.

Outro exemplo vem da família “Flinstones”. Esta película de entretenimento apresenta uma visão distorcida e natural da evolução humana. Caixas eletrônicos, vasos sanitários, pias, boliche, modelos de automóveis caros e baratos, jornais e previsão do tempo, são os ingredientes de uma contínua evolução da história que culmina no capitalismo em seu estágio atual. O passado da humanidade nada mais é que um ensaio para o nosso presente. O passado é uma narrativa que consolida o lucro no presente. Tudo o que fizemos foi aprimorar os utensílios domésticos e os meios de comunicação; contudo, a matriz é o lucro, o capital. Nos “Flinstones” temos, além do “Rock Donald’s”, personagens de gravata, indumentárias de grife, adereços como gravatas e homens barbeados! O ponto alto dessa fantasmagoria histórica é a existência de empresa em plena época da propriedade coletiva dos meios de produção! A plaqueta, na porta do escritório, com o nome de Fred Flinstone que o diga.

Num sentido que não nos interessa, este filme é educativo para os padrões do sistema americano. Para os consumidores de imagens além do entretenimento, ele educa no sentido de uma aceitação desse sistema. Numa utilização crítica do cinema no processo educacional, ele pode ser contraposto aos primeiros trinta minutos de “2001”, de Stanley Kubrick, e à “Guerra do fogo”, de Jean-Jacques Annaud, filmes mais próximos de uma visão antropológica da sociedade. O professor pode exibir na íntegra e, em seguida, trechos selecionados destes filmes, e propor exercícios aos estudantes, a passagem do espectador passivo ao espectador crítico.

Mesmo os filmes comerciais contribuem no processo de escolarização. Precisamos desenvolver teorias críticas na direção de uma teoria da mídia, que, sem excluir o caráter mercadológico da arte, favoreça a emancipação dos sentidos. O imagético em “Flinstones”, “2001” e a “Guerra do fogo”, produzem um saudável choque de conceitos numa revisão dos valores mais básicos da existência. Esses filmes esnobados pela crítica cinematográfica são exemplares de um modelo de apropriação de filmes no processo educacional, numa perspectiva de educação dos sentidos.

“O planeta dos macacos” é exemplar nesse caso. A ficção encontra na técnica cinematográfica um espaço privilegiado para suas representações visionárias. Franz Werfel não viu que o clássico “Viagem à lua”, de Georges Meliés, já fazia uso das possibilidades do cinema de exprimir, por meios naturais, o que ele mesmo chama de incomparável capacidade de persuasão, o luminoso, o sobrenatural.

A fusão arte e ciência, ciência artística ou arte científica, possibilitada pela criação da linguagem cinematográfica, não se esgota nos lucros das bilheterias do modelo norte. O cinema reúne entretenimento e conhecimento, e assim é que os filmes comerciais proporcionam também elementos para uma reflexão da sociedade.

Em “O planeta dos macacos”, Tim Burton diverte o público e autoriza o espectador crítico a questionar a sociedade americana. O filme é um modelo de como os Estados Unidos usam a indústria cinematográfica para reafirmar sua hegemonia sobre o planeta dos homens. Este filme é mais um exemplo da defensividade do Tio Sam, quando o assunto é quem manda ou quem pode vir a mandar no mundo. O mundo da fantasia é freqüentemente o mundo real.

Tim Burton abre os letreiros com imagens de macacos que ironicamente lembram os afrescos da cultura grega clássica. Na seqüência, depois dos olhos de um macaco, surge a estação espacial Oberon, no ano 2029, silenciosa no escuro e na imensidão cósmica, onde ó único ponto de luz é o Sol, perdido na desolação magnífica do Universo. Em algum lugar, um planeta azul, dominado pelo homo sapiens.

Os astronautas realizam pesquisas rotineiras com macacos criados geneticamente, até que um deles é perdido durante uma investigação de uma tempestade eletrostática. Leo Davidson (Mark Wahlberg), um astronauta afetivo que treina o chipanzé Péricles, não se conforma com o acontecido e sai em busca do mascote. A partir daí, entramos vertiginosa e confusamente no criativo território ficcional do escritor francês Pierre Boulle.

Leo Davidson cai numa floresta tropical, e quando abre os olhos já está correndo ao lado de outros humanos, fugindo de algo ameaçador, sinistro, que ecoa das selvas. Macacos caçam homens, os aprisionam, maltratam e matam, enquanto o espectador permanece em suspense pela ágil direção de Tim Burton.

Leo Davidson é o espectador aprisionado numa coleira que entra numa habitação primeva, misto de cidade e floresta. O macaco dominador ainda não conheça a vida urbana e sua tecnologia, não ultrapassa lanças, espadas e cavalaria. O astronauta recua da era espacial para a escuridão das trevas, um espaço inimaginável onde o homem ocupa lugar inferior na escala zoológica.

Se em “O planeta dos macacos”, dirigido por Franklin J. Schaffener, o cenário era a Guerra Fria com a ameaça da bomba atômica, o contexto histórico deste novo planeta dos macacos é o do mundo pós-muro de Berlim, ameaçado pelo terrorismo do Estado, como é anunciado em “A senha”, protagonizado por John Travolta. Leo Davidson vivencia um terror pré-domínio do átomo, a selvageria dos macacos, arremedo brutal da violência humana. Qualquer parentesco entre homens e macacos é mera insinuação.

A ficção de Pierre Boulle para ganhar veracidade, não se distancia do real ou pelo menos do real conhecido. Os macacos têm senadores, defensores dos seus direitos (como se fossem direitos humanos), crianças caprichosas, traficantes, mercadores e macacas vaidosas que favoráveis a cirurgias e tratamentos em clínicas estéticas! A dimensão civilizada dos macacos é, claro, semelhante a dos humanos. Há até discussões metafísicas entre os macacos: os humanos teriam alma?

Entre estes personagens caricatos de comportamentos solidários ou abusivos está os Estados Unidos. Essa subversão antropológica só encontra eco no “O homem que caiu na terra”, de Nicholas Roeg (1972), uma ficção científica insólita e desconhecida do público.

Leo Davidson retorna ao espaço para cair novamente no planeta dos macacos, onde o modelo civilizador e redentor dos símios é Abraham Lincoln com a cara do general Thade. Ao final do filme, os macacos saltaram dos cavalos para o controle do tráfego aéreo! Leo Davidson está ainda mais atônito, mas o espectador não precisa temer! É necessário mais que macacos guerreiros para derrotar os humanos, sobretudo se esse homem é um herói do cinema hollywoodiano.

Fundamental na sociedade dos macacos – e na humana – é a figura do general. É entre Leo Davidson e o crudelíssimo líder dos macacos que a metáfora fílmica de Tim Burton se mostra atual. O general Thade é Tim Roth, o mesmo ator cativante no papel de Charlie Marlow em “A maldição da selva”, adaptação de Nicholas Roeg, romance de Joseph Conrad, “O coração das trevas”.

Tim Burton, ao seu modo, nos leva ao coração das trevas, ao enigma da origem das espécies, pois os macacos têm tanto as sagradas escrituras quanto eruditos que criticam a superstição popular que Semos retornará. Thade pensaria como Heráclito que o mais belo símio é feio, a se confrontar com o gênero humano? Daí sua percepção política de que os macacos precisam eliminar para sempre os homens?

Ou ainda, nesta metáfora fílmica sobre o futuro, os macacos seriam os africanos, os árabes, os palestinos, os latino-americanos? Macaco é o não norte-americano? O enigma da palavra Calima confirma que os macacos são mesmo resultado de experiências científicas que deram certo, talvez, até demais. O final messiânico, um chipanzé surge de uma nuvem brilhante numa pequena nave espacial construída pelo homo sapiens. Semos é produto da engenharia genética! Derrotado, Thade é um macaco assustado!

O problema que se observa para o historiador se observa também para o cineasta, para o educador: como contar uma estória, como contar a história no cinema? Qual a proximidade entre a narrativa cinematográfica e a narrativa histórica? A fabulação de Tim Burton, embora irônica, não escapa do lugar comum, e nem poderia, de que a única história possível é a dos vencedores, ainda que no cinema, na ficção, e, os donos da indústria cinematográfica são, ao mesmo tempo, os senhores da história contemporânea. A história dos macacos é só um desenrolar e um acidente do progresso técnico e científico da humanidade. Essa defesa da história, isto é, da narrativa cinematográfica legitimando uma visão de mundo, é recorrente e o espectador pode-se lembrar, repito, de dois filmes conhecidos: “Homens de preto”, agentes especiais que agem contra escória do Universo, e “Independence Day”, quando o feriado do 4 de julho transforma-se num feriado mundial, dia de libertação da humanidade, comandada pelo presidente dos Estados Unidos.

O filme não deve funcionar como suporte para conteúdos desta ou daquela disciplina. O filme deve o conteúdo à matriz do conhecimento. Nessa perspectiva, o cinema é uma sala de aula. A sala de aula é o filme. Não se trata de deslocar para o espaço da sala de aula o vídeo, o DVD ou um projetor. Estes recursos têm sido utilizados na sala de aula de modo mecânico, ilustrativo, o que conduz à inércia do pensamento. A questão é se apropriar da narrativa cinematográfica no processo da escolarização.

Nossa definição de cinema entende que esta é uma práxis social orientada pelo e para o mercado. A escola vai se apropriar desses produtos culturais para seus fins específicos. A educação proporcionada pelo cinema é uma educação informal. O cinema, ou pelo menos o cinema no modelo hegemônico, que é o norte-americano, educa segundo as regras de um mundo social alienado. Entretanto, é preciso reconhecer que a própria indústria cinematográfica apresenta suas fissuras, e que temos nos Estados Unidos, se assim podemos chamar, um cinema de dissidência, um cinema de esquerda.

Creio que o exemplo mais radical deste cinema é o “Clube da luta”, de David Fincher, uma revolta contra o cartão de crédito. Este filme utiliza elementos da violência cinematográfica para fazer uma crítica da violência que é o estilo de vida americano baseado no consumismo. O mau êxito nas bilheterias de o “Clube da luta”, mesmo com um ator consagrado como Brad Pitt, mostra que a rejeição do público americano para com esse filme é, no fundo, uma recusa a uma autocrítica do sistema, dos valores que norteiam a vida nos Estados Unidos. Talvez este filme possa ser utilizado como um modelo pedagógico que critica a pedagogia institucionalizada naquele país.

O fato é que o filme reascende a fogueira da maligna influência do cinema sobre os espectadores. E aqui caímos sobre o óbvio: sem cultura cinematográfica não se pode analisar esta fita ou outra qualquer. Proponho uma leitura rápida desse filme como um instrumento de desalienação dos sentidos.

“Clube da luta” trava um combate direto contra o feitiço da mercadoria. O gigantesco sistema de produção e troca capitalista transformou tudo e todos numa fantasmagoria. O filme é uma recusa ao feitiço, à feitiçaria imagética da sociedade do espetáculo. Essa recusa é uma luta de boxe na arena do cinema americano. Uma luta desse porte parece um delírio esquizofrênico. Lutar contra o sistema é dar provas de doença, de insanidade. Melhor é submeter-se à mediocridade que domina a mídia, os congressistas, as corporações, o sistema educacional e os jovens em escala mundial.

“Clube da luta” nasce em “Easy Rider”. Os motoqueiros de Dennis Hopper, assassinados por racistas no sul dos Estados Unidos, renascem nas peles de Jack e Tyler Durden. Eles fazem a viagem radical da luta contra o estilo de vida americano, que só pode terminar numa explosão que arrasa o centro financeiro do país em Nova York. À medida que os pobres do filme recusam a feitiçaria, cresce a revolta contra o feiticeiro. A violência estilizada do filme é uma crítica à violência real que caracteriza o cotidiano norte-americano.

A mesma temática está em “Trainspotting”, de Danny Boyle, que não é um filme sobre drogas, mas uma sarcástica narrativa sobre os estragos da sociedade de consumo nos corações e nas mentes dos humilhados e ofendidos do mundo yuppie e pós-moderno. É uma narrativa daqueles que não podem comprar ou consumir o feitiço.

A sociedade da abundância não criou a liberdade. Liberdade é a abolição da necessidade. “Clube da luta” poderia ter o roteiro assinado por Dostoievsky, o atormentado romancista russo. O filme relembra “Week-End”, de Jean-Luc Godard, inesquecíveis fotogramas de um colossal engarrafamento da sociedade capitalista num fim de semana.

Ou a pirotécnica explosão em “Zabriskie Point”, de Antonioni. A mansão estilhaçada, indo pelos ares no acompanhamento musical do Pink Floyd. Sobre o que fala o “Clube da luta”? Fala da recusa radical da sociedade do espetáculo. É uma ópera hiper-realista sobre as estruturas econômicas que chocaram o homem unidimensional. O filme não é um elogio da violência. É um contraditório manifesto contra um sistema que colocou a economia e não a felicidade como o principal objetivo do homem.

Creio que esses filmes podem ser analisados como modelos de uma pedagogia crítica em relação a uma pedagogia institucional, e que seria exemplificada por filmes de final feliz. É necessário que esses filmes sejam elucidados por um olhar crítico que contribua com o processo de ensino e aprendizagem mediado pelo cinema.

Do ponto de vista metodológico, a noção de espaço imagético pode ser aplicada tanto a filmes nitidamente comerciais como a filmes, digamos alternativos, em face à indústria cultural. A educação pelo cinema deve se beneficiar quer de Godard quer de Spielberg.

Um filme filosófico é “Waking Life”, de Richard Linklater. Este filme é exemplar no que se refere ao cinema como sala de aula. Psicologia, antropologia, política, economia, filosofia oriental, existencialismo e pós-modernismo constituem o cardápio dessa torrente de imagens num balanço da tradição cultural do ocidente. O caráter multidisciplinar da imagem em “Waking Life” é um momento de rara felicidade para o professor. Professores de diversas disciplinas podem utilizar esse filme em suas atividades. É uma bela maneira de iniciarmos o espectador passivo no universo crítico das imagens. E o filme retoma um tema que percorre o interior deste texto: trata-se de despertar do sonho, dos sonhos inclusive engendrados pelas teorias revolucionárias.

Digamos que a educação deve seduzir e ser seduzida pelo discreto charme do fotograma. Estamos argumentando aqui que o cinema tem sido um valioso campo de trabalho para cientistas que investigam a relação arte e sociedade no contexto da indústria cultural. As categorias de “imagem visível e imagem invisível”, de eficácia comprovada em produções como “Astérix e Obelix contra César”, dirigido por Claude Zidi. Nos fotogramas a batalha é contra os romanos. Na realidade, contra o domínio cultural americano. Se Marc Ferro elabora uma metodologia própria, Fredric Jameson dialoga com Theodor Adorno. Douglas Kellner tem ido mais além da teoria crítica de Frankfurt. A crítica da mídia está sendo decifrada e enriquecida em textos culturais como “Top Gun”, “Poltergeist” ou “Beavis e Butt Head”.

No Brasil foi publicado “A história vai ao cinema”, em que vinte produções nacionais: “Dona flor e seus dois maridos”, “O homem que virou suco”, “Memórias do cárcere”, entre outros, são visitados por historiadores brasileiros. O ponto em comum nesse leque de abordagens, diremos, é a contribuição do salto de qualidade do espectador passivo para o espectador crítico. Uma nova crítica cinematográfica está nascendo. As contribuições pioneiras do cinema em Walter Benjamin estão ganhando cada vez mais espaço na reflexão acadêmica. Jean-Luc Godard ou Jean-Marie Straub, são úteis na construção do cinema como sala de aula. A noção do cinema e da sala de aula como meios de reflexão da sociedade ganha aliados no esforço para a consolidação das possibilidades educacionais do cinema.

O filósofo americano Stanley Cavell afirma que no cinema aparecem os temas filosóficos por excelência. Cientistas sociais já descobriram que as imagens em movimento podem ser lidas à luz dos conceitos de clássicos como Weber, Simmel e Deleuze.

O discreto charme do fotograma está renovando a teoria do conhecimento. Na sala de aula ou na pizzaria, depois de uma sessão de cinema, especialistas e leigos querem captar nos fotogramas o pensamento em movimento. Dar-se ao trabalho de pensar nesses tempos de conformismo e banalização maciços seja, talvez, a maior contribuição da educação junto a um ensino de qualidade.

A sala de aula deve ser considerada como um espaço imagético. Espaços da realidade ou da fantasia, da racionalidade econômica e burocrática da vida administrada. Espaços de uma objetividade que é a morte da alma e da curiosidade, a falência do estímulo e da criatividade diante do mistério da existência.

A sala de aula já vem incorporando, vem sofrendo, a intervenção dos meios de comunicação de massa com a utilização de jornais, revistas, programas de televisão. Porém, é preciso ver que esses meios podem ser considerados como salas de aula, como espaços de transformação de consciência, de aquisição de conhecimentos; que eles dependem de uma pedagogia crítica, e que o sucesso dessa pedagogia crítica depende de como vamos ver e ouvir os produtos da indústria cultural8.

Um filme é um local em que questões sociais são discutidas segundo valores explícitos ou implícitos do diretor, da estória, das condições de produção. Se as condições de produção condicionam o filme, é possível reconhecer diretores que, mesmo atuando segundo as convenções do mercado, tentam ir mais além de representações singelas da sociedade.

Se a sala de aula é um espaço da discussão e da reflexão, o filme é este mesmo espaço ampliado em uma escala maior, em que seus procedimentos formais e narrativos passam a ser a linha condutora do viés educacional.

Creio que “Matrix” é um filme que traz essas ambigüidades de reificação e desalienação dos sentidos. “Matrix” pode ser lido da perspectiva da alegoria da caverna de Platão. A tecnologia e as trucagens do filme têm esse duplo aspecto do encantamento, e, ao mesmo tempo, do atuar contra o feiticeiro. Podemos argumentar que o diálogo de Platão é, sem discussão, superior ao filme. Entretanto, o que interessa é utilizar o filme para lermos Platão. Utilizar o cinema para uma redescoberta da literatura filosófica tão necessária e imprescindível no processo escolar, na educação para a cidadania.

A educação necessita lançar um olhar crítico sobre o cinema. Precisa se libertar da crítica especializada e construir seu próprio corpo teórico visando a fins específicos. O cinema é um meio de reflexão da sociedade. Esse meio só depende dos educadores para atender fins educacionais. Depende do que se entende por educação com utilização de recursos midiáticos.

O cinema cada vez mais é objeto de estudos e teses acadêmicas. Muitos educadores se esforçam para a construção de um olhar cinematográfico que possa na renovação das práticas pedagógicas. Ciência artística ou arte científica, conjugação da razão e da imaginação, do rigor e da intuição, o cinema deve ser o agente de uma nova educação que dote o sujeito de uma razão sensual, isto é, de uma razão estética que saiba debruçar sobre si mesma e saiba explorar as possibilidades de um mundo melhor, de uma sociedade de não-excluídos.

Falar do olhar cinematográfico é falar do olhar de diretores. É falar do olhar destes diretores sobre esses seus países e sobre o mundo. É falar da recepção dessas obras em diferentes contextos históricos, políticos, econômicos. Marc Ferro sugere que o espectador descubra onde está o filme na sociedade e onde a sociedade está no filme. O cinema apresenta uma visão plural, complexa, densa; mobiliza razão e imaginação. Mobiliza o afeto e o intelecto. Em “Twister” temos dois modelos de cientistas. Um que segue cegamente seus instrumentos científicos para compreender o fenômeno dos tornados; e o outro, que, dispondo dos mesmos equipamentos, não dispensa a intuição e entende que o homem é parte da natureza, ele mesmo parte daquela tormenta. Talvez seja este um modelo de aluno a ser sugerido em sala de aula. Um modelo de homem a ser consolidado na edificação de uma sociedade outra. A sala de aula cinematográfica deve oportunizar que os alunos tenham uma cosmovisão do mundo, da sociedade em que vivemos, e entender que as relações de produção de nossa época informam sobre o sentido e significado do nosso presente.

O cineasta brasileiro Glauber Rocha (1939-1981) mostra que o cinema é como uma ciência antropológica moderna, e também psicanálise da história e da cultura, podendo ter visão totalizante do homem no espaço e no tempo. O cinema é instrumento de análise da história. Glauber fez um cinema que privilegia o homem e não o lucro. Para ele, o cinema e a educação estão ligados à idéia de uma revolução. Nele encontramos outras formulações indispensáveis para pensarmos o cinema aplicado à educação, sobretudo uma educação numa perspectiva revolucionária. E, para ele, a revolução é uma estética. Glauber postula o surgimento de duas formas concretas de uma cultura revolucionária. Essa cultura estaria apoiada numa épica e numa didática que devem funcionar ao mesmo tempo no processo revolucionário. Para o diretor de “Der Leone Has Sept Cabezas”, a didática deve alfabetizar, informar, educar, conscientizar as massas ignorantes e as classes médias alienadas.

A épica, ainda segundo o autor de “Cabezas cortadas”, deve provocar o estímulo revolucionário. Nessa ótica, a didática será científica. A épica será uma prática poética que terá de ser revolucionária do ponto de vista estético para que projete revolucionariamente seu objetivo ético.

A educação, para Glauber Rocha, deve ser subvertida por uma poética cinematográfica. Essa poética, imanente à estrutura narrativa do cinema, está disponível no mercado e apresenta qualidades variadas de diretor para diretor, de filme para filme, de produção para produção.

O contexto dessa formulação em Glauber Rocha está no seu questionamento das opções do intelectual do mundo subdesenvolvido, entre ser um esteta do absurdo, um nacionalista romântico ou um criador de uma cultura revolucionária.

Claro, a reflexão de Glauber ultrapassa projetos educacionais específicos para se inserir num contexto maior da Educação, já que este processo projeta em cada homem um criador que, de posse consciente e informada de todos os seus instrumentos mentais, possa fazer a revolução das massas criadoras. A massa alienada, utilizando-se do cinema como sala de aula, encontra nesse meio de comunicação um aliado para se pensar criticamente o imediatismo histórico.

O cinema de Glauber é a construção de uma gramática cinematográfica de ruptura com a sociedade do espetáculo, com a alienação dos sentidos. Não é nosso propósito analisar a filmografia deste diretor, mas o de indicá-lo como um dos cineastas cuja práxis cinematográfica é direcionada para uma ruptura com o naturalismo do mundo e da sociedade. O que interessa é a teoria cinematográfica de Glauber, que, orientada para objetivos revolucionários (estéticos, sociais, econômicos, políticos), fecunda a reflexão da educação como práxis transformadora dos homens no individual e no coletivo.

O aproveitamento dessas reflexões no âmbito da escola é um desafio que permanece para educadores, professores e pensadores críticos. Historiadores brasileiros têm buscado no cinema inspiração para suas aulas. As relações entre cinema e História do Brasil é objeto de reflexão em filmes como “Ilha das flores”, de Jorge Furtado, “Dona Flor e seus dois maridos”, de Bruno Barreto, “O invasor”, de Beto Brant, “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, “Pixote” ou “Carandiru”, de Hector Babenco. Estes filmes deitam um olhar crítico sobre a sociedade brasileira, e precisam ser descobertos pelos processos e práticas pedagógicas.

Podemos dizer o mesmo do cinema iraniano ou do cinema chinês. A recepção desses filmes nos seus respectivos países e no exterior mobiliza, pela experiência estética, uma reflexão dos pilares dessa sociedade. Esse pensar a sociedade sobre o cinema reforça a idéia do filme como sala de aula. O filme educa no sentido que amplia e questiona nosso conhecimento dos contextos em apariência familiares e facilmente nomeáveis.

Correntes e movimentos cinematográficos como o novo cinema alemão ou inglês das décadas de 70, ou o cinema novo no Brasil em meados da década de 50 até o início dos anos 70, podem ser avaliados como filmes educativos. Educativos no sentido que filmes como “Eat the Rich”, de Tony Richardson (1972), antecipam a reflexão acadêmica sobre o fenômeno da globalização. Isto é, questionam a fantasmagoria da história contemporânea. Se entendermos a educação como um processo questionador de valores e de construção de identidades, o cinema pode mostrar as clivagens desse processo.

O olhar cinematográfico enriquece nosso olhar sobre a educação e sobre o processo escolar. O cinema pode ser definido como uma educação informal, que necessita de uma metodologia para melhor aproveitamento na sala de aula. O cinema atua como um elemento de aprimoramento cultural e intelectual dos docentes e dos discentes. E, ao mesmo tempo, problematiza para além da ciência da história o uso do cinema no campo da educação. E assim retornamos ao tema deste texto: Por que cinema e escola?

Pensar a contribuição do cinema na educação é buscar o pensamento, a filmografia deste ou aquele diretor, e inseri-lo no processo educacional. Jean-Luc Godard fez mais pela educação no sentido tradicional e usando o cinema como meio de reflexão. Entretanto, sua aplicação no processo educacional, as possibilidades educativas do cinema de Godard, continuam assustando muitos educadores. E este é o desafio: como Godard e outros podem ser lidos pela narrativa escolar?

Muitas de suas formulações poderiam ser levadas adiante pelos educadores ou pela Academia; porém, o cinema continua enfrentando obstáculos para uma inserção arrojada, quer na filosofia e na sociologia da educação, quer na elaboração de novos métodos de ensino e aprendizagem. E talvez seja este o segredo do cinema na escola: a educação é um cinema de invenção, de invenção permanente.

Essa é uma questão inevitável para todos aqueles que problematizam as relações cinema-educação. Em “Godard 1985-1999”9, o cineasta diz que o cinema o levou a perceber que tinha uma história pessoal enquanto indivíduo. E que essa é uma dívida que ele tem para com o cinema. Podemos pensar o processo educacional como um processo de descoberta de si. Uma linguagem artística afetiva à qual o público tem acesso de modo geral. Contudo, é necessário deixar claro que o cinema não abole nem propõe o abandono da lousa. O processo educacional tem tomado consciência que a lousa foi ampliada para a tela do cinema, para o televisor, para a telinha do computador, para a web, para o outdoor, para a camiseta impressa com silkscreen, para a tatuagem e para a indumentária punk.

O contraponto do cinema é a televisão. No Brasil, a televisão, com poucas exceções, tem servido à deseducação das massas. Pensar a televisão, outro influente espaço imagético, é pensar uma mídia específica que demanda uma abordagem particular; porém, de uma maneira reducionista, se o cinema estimula o pensamento, a televisão o paralisa. Se o espaço imagético cinematográfico é conflituoso, na televisão ele é conciliador. Se no cinema a questão do tempo surge como um conceito problemático que é preciso resolver, na televisão o tempo inexiste.

Enquanto o cinema, mesmo com produções ruins provoca o raciocínio, mobiliza o pensar, a televisão empobrece esteticamente os sentidos, aliena de modo taxativo. Tudo isso precisa ser discutido na perspectiva de uma política audiovisual para as escolas públicas sobretudo.

Quisemos mostrar neste texto, de forma ambiciosa mas reconhecendo os limites dessa ambição, que o cinema na escola necessita de uma teoria consistente e aplicável. E que a tarefa de exibir filmes na escola, modificando a prática pedagógica do ensino e da aprendizagem, é um fato em processo e uma tarefa coletiva de educadores de todas as áreas de conhecimento.

O cinema, uma arte do fetiche, do fantasmagórico, pode eliminar o feiticeiro e o feitiço. A educação tem papel primordial nesse processo.

Bibliografia

Benjamin, Walter (1993): Obras escolhidas 1, magia e técnica, arte e política, São Paulo, Editora Brasiliense.

Bolle, Willi (1986): Walter Benjamin – Documentos de Cultura – Documentos de Barbárie, São Paulo, Cultrix, Edusp.

Jameson, Fredric (1995): As marcas do visível, Rio de Janeiro, Editora Graal.

Oliveira, Luis Miguel (1999): Godard 1985-1999, Lisboa, A Coelho Dias.

Rocha, Glauber (1978): A Revolução do cinema novo, Rio de Janeiro, Embrafilme.

Soares, Mariza de Carvalho (2001): A História vai ao cinema, São Paulo, Editora Record.

Notas

(*) Coordenador do Programa Ação Cultural nas Escolas, Secretaria de Estado da Educação de Goiás, Brasil.

1 A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 165.

2 Op. cit., p. 166.

3 Op. cit., p. 170.

4 O autor como produtor, p. 122.

5 Op. cit., p. 106.

6 Cinema e história (1993): Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra.

7 A teoria crítica de Jameson está no ensaio “Reificação e utopia na cultura de massa”, in As marcas do visível (1995): Rio de Janeiro, Edições Graal.

8 Embora não seja o objeto deste artigo, considero exemplos de espaços imagéticos a obra de Jimi Hendrix e John Lennon. No Brasil, compositores como Arnaldo Antunes e Tom Zé, entre outros, constroem novos espaços sonoros e imagéticos de compreensão do mundo, razão de sua exclusão da programação usual.

9 “Godard 1985-1999” (1999): em entrevista a Serge Daney, p. 17, Coelho Dias, Lisboa.


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