O cinema do feitiço contra o feiticeiro
Leonardo Carmo (*)
Síntese: Este artigo investiga as possibilidades
da inserção do cinema na sala de aula sob dois enfoques:
um filosófico, discutindo o cinema na educação,
e outro pragmático, teorizando a prática educativa
do cinema em sala de aula. Propõe construir um modelo de
análise do filme a partir de conceitos elaborados pelo pensador
alemão Walter Benjamin (1892-1940), como espaço imagético
e como técnica interna da obra de arte. Dialoga com os teóricos
Marc Ferro e Fredric Jameson e os diretores Glauber Rocha (1939-1981)
e Jean-Luc Godard, para construir uma inteligibilidade do cinema
aplicado à educação. Procura superar a dicotomia
entre cinema comercial e cinema de arte, defendendo a tese que entretenimento
e conhecimento não se excluem. Entende que as contribuições
da História, da Antropologia, da Sociologia sobre o cinema,
podem enriquecer uma teoria do cinema do ponto de vista da educação
ou de uma pedagogia da imagem e do som. Vê o cinema inserido
no processo de produção capitalista e se propõe
a analisar o fetichismo para se livrar do fetiche.
Síntesis: Este artículo investiga las posibilidades
de la inserción del cine en la clase bajo dos enfoques: uno
filosófico, discutiendo el cine en la educación, y
el otro pragmático, teorizando la práctica educativa
del cine en la clase. Propone construir un modelo de análisis
de la película desde conceptos elaborados por el pensador
alemán Walter Benjamin (1892-1940), como espacio imagético
y como técnica interna de la obra de arte. Dialoga con los
teóricos Marc Ferro y Fredric Jameson y los directores Glauber
Rocha (1939-1981) y Jean-Luc Godard, para construir una inteligibilidad
del cine aplicado a la educación. Busca superar la dicotomía
entre el cine comercial y el cine artístico, defendiendo
la tesis de que entretenimiento y conocimiento no se excluyen. Entiende
que las contribuciones de la Historia, de la Antropología,
de la Sociología sobre el cine pueden enriquecer una teoría
del cine desde el punto de vista de la educación o de una
pedagogía de la imagen y del sonido. Ve el cine inserto en
el proceso de producción capitalista, y se propone analizar
el fetichismo para librarse del fetiche.
Por que cinema e escola? A resposta a essa pergunta remete às
indagações sobre as possibilidades educativas do cinema,
e, especificamente, sobre a importância dele na mudança
das práticas pedagógicas da matriz curricular. O cinema
conduz a um novo enfoque dos conteúdos dessa matriz, porque
implica na mudança de percebê-los, de avaliá-los
e de entendê-los. O cinema (imagem e som) modifica os processos
de transmissão de conhecimentos dessa matriz, tradicionalmente
apoiados na leitura e na escrita. Falar de cinema na escola implica
pensar uma política audiovisual para o ensino formal, seja
ele público ou privado.
O uso do cinema na escola exige uma discussão de caráter
filosófico: as relações entre cinema e educação.
E uma discussão de caráter pragmático: o uso
do cinema como agente no processo de ensino e aprendizagem na rotina
escolar.
Assim, a pergunta inicial pode ser reestruturada nos seguintes
termos: o cinema pode melhorar a escolarização no
ensino fundamental, médio e superior? Como utilizar do ponto
de vista pedagógico o cinema? Ou, que práticas pedagógicas
inspiram o cinema? Isto nos leva a outras questões: um filme
exibido no ensino superior pode ser projecionado para o ensino fundamental?
Os filmes devem ser exibidos de acordo com a escolaridade ou a faixa
etária?
As possibilidades educacionais do cinema e o seu aproveitamento
na atividade escolar orientam-nos para uma resposta afirmativa.
A arte cinematográfica contribui para disseminar a arte e
a cultura, e pode exercer influência positiva nos estudantes.
A esperança é que o cinema, pela sua natureza afetiva,
abra as portas da percepção para o prazer da descoberta
das disciplinas das Ciências Sociais, da Literatura, da Filosofia,
da Física, da Biologia ou da Química.
O cinema como prática pedagógica pode fazer o aluno
a se interessar pelo conhecimento, pela pesquisa, de modo mais vivo
e interessante que o ensino tradicional, apoiado em aulas expositivas
e seminários. O porquê do cinema na escola só
se justifica se ele desperta o interesse pelo ensino no sentido
tradicional, e, ao mesmo tempo, mostra novas possibilidades educacionais
apoiadas na narrativa cinematográfica.
O que tentaremos responder é o como fazer isso. Claro, essa
resposta depende de um esforço coletivo, não é
obra autoral. Na verdade, é um trabalho de pesquisa e deve
envolver as diversas áreas do conhecimento.
Nos limites deste artigo, tentaremos esboçar uma contribuição
que tente sistematizar uma visão da educação
e da escola no viés da arte cinematográfica. Nesta
tentativa, consideraremos que a educação e a atividade
escolar serão reorientadas do cinema.
Dito de uma maneira mais simples, em grifo nosso, o cinema torna-se
um a priori. A arte, e a arte cinematográfica, serão
consideradas como metaeducação. A primeira tese desse
texto é que os meios de comunicação alteram
a percepção e a recepção da educação
como um todo, e da escolar em particular.
Precisamos construir uma teoria visando a conceituar cinema e educação
do ponto de vista dos meios de comunicação de massa
ou da cultura da mídia. É preciso contemplar práticas
cinematográficas e contar com as reflexões dos seus
diretores para fundamentarmos uma teoria mais ampla da Educação,
uma teoria em que a imagem seja o elemento primordial no processo
de ensino e aprendizagem. É necessário que tenhamos
uma pedagogia da imagem e do som. Uma pedagogia dos espaços
imagéticos dos meios de comunicação.
Tentarei esboçar uma visão filosófica do cinema,
e, em seguida, refletir sobre a prática de exibição
de filmes em sala de aula. A isso estou chamando de cinema como
sala de aula. O cinema na escola exige uma visão mais ampla
que essa que utiliza as imagens como recurso ilustrativo de conteúdos
didáticos. A imagem deverá ser a fonte do conhecimento,
da reflexão.
Essa abordagem filosófica das possibilidades educacionais
do cinema será fundamentada, num primeiro momento, nas formulações
de Walter Benjamin. Ele é um dos primeiros pensadores a afirmar
que o cinema é um poderoso instrumento de educação
das massas. No ensaio A obra de arte na época de sua reprodutibilidade
técnica, de 19361,
encontramos diversas teses que conduzem para uma análise
do cinema como um instrumento de emancipação política.
Esse ensaio discute a perda da aura da obra de arte com a invenção
da fotografia e do cinema. O surgimento das técnicas de reprodução
alteram radicalmente o conceito e a natureza da obra de arte. E
é nessa perspectiva que durante décadas este estudo
vem sendo digerido. Não vamos reproduzir aqui essa discussão,
de resto muito conhecida do público interessado em filosofia
da arte.
Nossa proposição é direcionar é investigar
esse ensaio como um dos fundamentos para a construção
de uma teoria do cinema aplicada à educação.
O próprio Benjamin não desenvolveu isso de modo satisfatório.
Ele toca no problema sem aprofundá-lo. Queremos utilizar
suas intuições como oxigênio para investigarmos
e apontarmos um caminho que efetive uma prática pedagógica
apoiada na arte cinematográfica.
Para Benjamin, o cinema se situa no contexto de teses sobre
as tendências evolutivas da arte, nas atuais condições
produtivas2.
Creio que as teses apontadas nesse ensaio ainda não foram
devidamente avaliadas no viés da educação.
De início, podemos afirmar que, para Benjamin, a distinção
entre arte e mercadoria ou cinema de arte e cinema de massa não
faz o menor sentido. Ao abandonar a idéia de aura na obra
de arte, o pensador alemão introduz um novo conceito para
a valoração dos objetos estéticos da indústria
do entretenimento.
Benjamin fala do conceito de refuncionalização como
uma nova atribuição da obra de arte. A obra de arte
refuncionalizada não tem mais como preocupação
central o ideal de beleza. A idéia do objeto artístico
analisado com o valor de culto cede espaço ao valor de exposição.
O que interessa na obra de arte é a sua função
social. Um filme tem de ser discutido do ponto de vista de sua comunicação,
informação, distração, publicidade,
propaganda e educação. Estes conceitos vão
orientar o valor artístico de uma determinada obra. A sua
valoração estética será definida pela
sua função social e política. O que interessa
é saber se um filme foi bem ou mal realizado politicamente,
se ele clarifica, informa, comunica o seu tema, como o diretor conduz
seu tema para a massa.
O que está implícito é que Benjamin não
separa conhecimento e entretenimento. A refuncionalização
introduz uma dimensão filosófica nos entulhos da cultura
de massa. A filosofia, entendida como a verdade imanente do objeto,
sai da abstração acadêmica e ganha o mercado,
o cotidiano das ruas. Analisar um filme ou pensá-lo no viés
da educação escolar é não ignorar que
estamos lidando com uma forma de arte embutida na forma de mercadoria.
Benjamin nos dá um princípio pedagógico: Orientar
a realidade em função das massas e as massas em função
da realidade é um processo de imenso alcance, tanto para
o pensamento quanto para a intuição3. O que está sugerido aqui e
o que o próprio Benjamin não desenvolve é o
método para esse procedimento. Este princípio retira
a massa da condição de vítima, da passividade.
Igualmente, não demoniza o mercado e o seu questionamento
não é tratado como utopia. Ao fetiche da mercadoria,
Walter Benjamin responde com o conceito de imagem dialética,
também imprescindível na sua análise da obra
de arte e do cinema. Mas não discutiremos esse conceito neste
artigo.
Esse talvez seja o aspecto mais polêmico do ensaio de Benjamin.
Para muitos pensadores, ele vê a arte cinematográfica
com excessivo otimismo e ingenuidade. Ele mesmo nos adverte dos
perigos e dos equívocos cinematográficos. O que não
impede de reivindicarmos para o cinema possibilidades revolucionárias.
Isso se torna complicado quando sabemos que, para Benjamin, a arte
revolucionária está ligada à idéia de
vanguarda.
No entanto, um exame cuidadoso deste e de outros ensaios autoriza
pensarmos que o cinema, um produto da indústria cultural,
apresenta uma crítica social pertinente. Essa crítica
depende da maneira como olharmos para a obra de arte. A construção
desse olhar baseia-se numa pedagogia da imagem ou numa pedagogia
dos espaços imagéticos.
Em 1934, Benjamin pronuncia em Paris a conferência O autor
como produtor. Junto com Pequena história da fotografía,
este estudo desenvolve o mesmo tema que o ensaio da reprodução
técnica da obra de arte. Creio que estes ensaios se encaminham
para uma teoria da mídia na ótica de Benjamin. Problematizando
a questão do autor nas relações capitalistas
de produção e focalizando, sobretudo, a questão
autoral da literatura, ele observa: Em vez de perguntar: como
se vincula uma obra de arte com as relações de produção
da época [...] gostaria de perguntar como ela se situa dentro
dessas relações?4.
Essa formulação de Benjamin nos oferece uma metodologia
para a análise das obras de arte e o seu caráter progressista
ou reacionário. O que eu estou propondo é deslocar
essa pergunta do terreno da literatura para o campo cinematográfico.
Essa pergunta vai direto ao problema porque trata da questão
da técnica interna da obra de arte. O autor utiliza ou é
utilizado pelas técnicas de reprodução? Como
essas técnicas interferem no processo criativo e mais exatamente
na questão do autor? Visto deste ângulo, fica claro
que não podemos considerar e aqui estou me referindo
ao caso do cinema especificamente , que as técnicas
cinematográficas sejam meramente ilusionistas. A distração,
a mudança da ação, não exclui nos filmes
comerciais as possibilidades da crítica social e política.
Estes ensaios de Benjamin costuram uma teoria da mídia que
vem beneficiando pensadores originais como Marc Ferro e Douglas
Kellner. Percebemos essa teoria quando esses estudiosos investigam
as relações do cinema com a história ou a influência
da indústria cultural na construção da opinião
pública, como no caso da Guerra do Golfo, por exemplo.
Benjamin oferece argumentos e o esboço de uma metodologia
para considerarmos o cinema numa perspectiva da educação.
Entendo educação como o processo de desmistificação
da história e da ideologia dominantes. A educação
seria aquele processo narrativo que, através da escolarização,
culminaria num sujeito crítico. Não vou discutir nos
limites deste texto o conceito de sujeito crítico com todos
os prós e contras existentes. Afirmo que estes ensaios apontam
para a análise dos filmes como matéria educativa.
Podemos seguir, ao menos, dois caminhos. Um aberto por cineastas
com posições políticas críticas e progressistas:
Jean-Luc Godard, Pier Paolo Pasolini e Glauber Rocha. Estes autores
podem ter seus filmes analisados da ótica de como se situam
dentro das relações de produção da época.
Essa época ultrapassa a cronologia para se inserir num conceito
de tempo mais amplo e complexo: o da modernidade. A moldura para
a análise fílmica, seguindo Benjamin, é o tempo
da modernidade, o tempo da fantasmagoria, o novo sempre-igual.
O outro caminho seria o de considerarmos nessa mesma moldura o
chamado cinema de massa ou cinema comercial. Creio que uma ambição
do educador é falar para amplas camadas da população.
Nessa perspectiva, o cinema de massa vem ao encontro do professor
que pretende dar uma nova dinâmica quer no processo de escolarização,
quer no processo educacional.
No ensaio da reprodução da obra de arte, Benjamin
propõe a elaboração de uma estética
materialista. O filme é uma mercadoria. A análise
mercadológica do filme é o que nos interessa enquanto
educadores e professores. No ensaio O surrealismo. O último
instantâneo da inteligência européia5,
Benjamin fala do conceito de espaço imagético, um
espaço construído inteiramente de imagens, da racionalidade
técnica. Penso o imagético como conceito operatório
eficaz na análise fílmica, orientado para a educação
das massas. O imagético circunscreve o que podemos chamar
de uma pedagogia da imagem e do som. E pode ser aplicado aos diversos
gêneros cinematográficos.
Educar pelo cinema ou utilizar o cinema no processo escolar é
ensinar a ver diferente. É educar o olhar. É decifrar
os enigmas da modernidade na moldura do espaço imagético.
Cinéfilos e consumidores de imagens em geral são espectadores
passivos. Na realidade, são consumidos pelas imagens. Aprender
a ver cinema é realizar esse rito de passagem do espectador
passivo para o espectador crítico.
O cinema é uma prática social que colabora com a
construção do imediatismo mítico do presente.
No enfoque de Benjamin, o cinema pode colaborar para destruir esse
imediatismo, esse continuum cultural que prolonga o tempo
do novo sempre-igual. O filme é uma fantasmagoria que pode
destruir o fantasmagórico. O cinema pode ser um feitiço
contra o feiticeiro. Entender a feitiçaria do cinema é
um processo educacional que leva a recusa do mito, supera a alienação,
destrói o fetiche da mercadoria.
Em uma das passagens destes ensaios, Benjamin diz que o capitalismo
é um sonho mítico que ocorreu na Europa no século
xix. Este sonho engendra o sonho da alienação, o qual
sonhamos com os olhos abertos. A arte, em particular a cinematográfica,
deve nos fazer despertar deste sonho, contribuir para virar feitiço
contra o feiticeiro.
Um exemplo desse feitiço imagético é o filme
Jurassic Park, intitulado no Brasil de O parque
dos dinossauros. Habitualmente, Steven Spielberg é
desancado como diretor de sucessos comerciais. Seus filmes seriam
puro entretenimento e nenhum conhecimento pode surgir de sua filmografia.
Para nós, este filme demonstra a proposta do espaço
imagético como categoria de análise fílmica.
A utilização da tecnologia para uma crítica
da racionalidade técnica.
As personagens do Jurassic Park têm alta escolaridade.
Allan Grant e Ellie Satller são doutores em paleontologia
e paleobotânica; Ian Malcolm, um matemático do caos
e que representa o novo paradigma da ciência, rompendo com
o modelo positivista da neutralidade do sujeito observando, controlando
o objeto. Um advogado que representa os investidores do projeto
e John Hammond, o proprietário do parque dos dinossauros,
uma espécie de Fausto agora às voltas com a biotecnologia.
E, claro, os netos de Hammond.
O espectador é levado para um espaço imagético
de 70 milhões de anos atrás. A clonagem de plantas
pré-históricas e dinossauros é o pretexto para
discutirmos a racionalidade técnica, os limites da ética
científica. A incursão a este mundo perdido, romanticamente
descrito por sir Arthur Conan Doyle, é agora um milagre da
técnica.
A direção da câmera é didática.
Ela nos ensina a como ver o ecossistema do período jurássico
pela ótica dos personagens. Na seqüência em que
os visitantes chegam ao parque e que são surpreendidos pela
presença de um dinossauro, Spielberg atua como um professor.
Ele ensina o público a ver e a ouvir aquele fantasmagórico
ambiente recriado pela tecnologia cinematográfica.
Nessa sequência, três jipes deslocam os visitantes
em direção à sede do projeto do Jurassic
Park. Num determinando momento, John Hammond é focalizado
em close dizendo: isso não poderia estar aqui.
Os jipes interrompem sua marcha e vemos o doutor Allan Grant virar
o rosto lentamente para ver o que está acontecendo. Ele se
surpreende com o que vê. Seu rosto é a imagem, é
o mapa da surpresa. Seus olhos pulam para fora das órbitas
e ele tira de modo desajeitado os óculos do rosto.
Atônito, ele vira a cabeça da namorada, a doutora
Ellie Sattler, que fica literalmente de boca aberta. Então,
vemos um dinossauro herbívoro; no entanto, só o vemos
depois que os olhos experientes de Grant e Sattler contemplam esse
milagre da clonagem. Em seguida, temos a visão de Ian Malcolm.
Ele é uma espécie de Groucho Marx da ciência.
Seu ceticismo e sua humildade se contrapõem ao senso comum
de John Hammond. Ele desconfia da manipulação genética
e ironiza a capacidade humana de controlar a natureza. No jipe,
a câmera o mostra entre a incredulidade e a irritação,
diante do provável êxito de John Hammond, a proeza
da clonagem de uma espécie extinta.
Essa seqüência tem contraponto quando visualizamos em
outro jipe o advogado, cujo olhar parece o tilintar de moedas diante
dos lucros que virão do Jurassic Park. O motorista
de um dos jipes permanece de óculos escuros e debruçado
sobre o volante, indiferente aos comentários e ao braquiossauro
que está diante dele. Este motorista é o espectador
passivo. Ele simboliza a atitude de como o tolo e o sábio
olham para a mesma árvore. A câmera meticulosa de Spielberg,
nessa seqüência, é reforçada quando John
Hammond revela ao doutor Grant que existe um T. Rex clonado no parque.
Ellie Sattler perde o fôlego. Allan Grant fica zonzo e vomita
diante dessa revelação. O que vemos ali é o
olhar de profissionais que conhecem o perigo real e imediato de
ter dinossauros ao seu redor. O olhar de John Hammond é o
de um menino caprichoso, vaidoso diante do feito. Fausto vendeu
a sua alma ao Demônio, porém, não sabe exatamente
o que vendeu nem mesmo o que está manipulando. O olhar do
motorista é indiferente, e o advogado tem um olho clínico,
digamos, da mercadoria que vai lhe trazer lucros. A voracidade do
capital é tão aterradora quanto um dinossauro.
Em outra seqüência, durante o almoço, os visitantes
discutem sobre as descobertas da ciência e a legitimidade
da clonagem dos dinossauros. Trata-se de uma discussão sofisticada,
de uma maneira inteligente de iniciar estudantes e o público
em geral no complexo tema das realizações científicas.
A discussão é refinada, erudita, e ao mesmo tempo
alcança a massa. Possui mérito tanto para a educação
quanto para a escolarização devidamente trabalhada
em sala de aula, porque, se fosse uma controvêrsia entre especialistas,
meia dúzia de espectadores e apenas a comunidade científica
poderiam desfrutar deste filme. Entretanto, a posse desses conteúdos
não se dá de modo intuitivo. É preciso racionalizar.
O problema é a passividade do espectador, que, sem cultura
cinematográfica, sem posse dos instrumentos e dos procedimentos
da linguagem da sétima arte, não assimila as possibilidades
comunicativas do cinema. É necessário aprender a ler
as imagens. E aqui entra o trabalho do educador, do professor. Neste
filme, vemos que o cinema pode cumprir um papel saudável
e esclarecedor no processo de escolarização. Não
há como compreender a comunicação imagética
sem o pensamento, sem o esforço intelectual. O acesso fácil
às imagens não quer dizer um fácil entendimento
de suas formas.
Adotar uma atitude de desprezo diante de fenômenos comerciais
significa compartilhar e alimentar a alienação de
amplas camadas da população perante um produto que
pode iniciá-la num repertório intelectual sofisticado.
Entendendo na perspectiva do espaço imagético que
Jurassic Park é uma metáfora sobre a monstruosidade
da razão, corporificada no T. Rex, o domínio sobre
a natureza, talvez a mais fantasmagórica das ilusões
humanas, é o tema deste filme, que, como muitos outros da
industria cultural, reúne de modo exemplar o entretenimento
e o conhecimento.
Ainda podemos dissecar esse filme na ótica de Ian Malcolm,
interpretado por Jeff Goldblum, o mesmo cientista do fantasmagórico
A mosca, de David Cronenberg. Ele é também
o cientista que encontra o vírus que vai aniquilar os alienígenas
de um filme que revela a defensividade norte-americana: Independence
Day. Armas e biologia alimentam o imaginário do cinema
americano. Não por acaso George Bush ordenou o ataque contra
o Iraque justificando a invasão com o pretexto dos EUA ser
o alvo potencial de armas químicas e biológicas. Uma
seqüência neste filme mostra um general ordenando despejar
uma bomba atômica sobre a costa leste americana. Ele diz solenemente
que se o Planeta não for dos terráqueos, tampouco
será dos alienígenas. Na reforma agrária cósmica,
os Estados Unidos não vão dialogar com o movimento
de os-sem-planeta.
Essa mesma alegoria de dominação, sob o disfarce
do entretenimento, aparece em Homens de preto. Estes
homens protegem a Terra contra a escória do Universo. O inimigo
temido e superinteligente é uma barata! Em Independence
Day os invasores têm forma de gafanhotos. A representação
do outro neste e outros filmes pode servir de tema educacional para
ver como a alteridade é vista pela maior potência do
mundo.
Educar é ir além das aparências. Educar significa
reconhecer aquilo que o historiador Marc Ferro6 chama de não-visível nas imagens. Ferro criou
um eficaz modelo de análise fílmica. Ele revela que
no cinema a história surge como contra-história, uma
história crítica da historiografia oficial. Para Ferro,
a contra-história no cinema está condicionada ao processo
de produção do filme. A produção é
que determina a negatividade do filme, o que vai lhe conferir maior
ou menor grau de adesão ou recusa ao status quo. Considero
discutível esse modelo.
A sociologia do cinema desenvolvida por Marc Ferro é uma
contribuição efetiva no universo da educação,
e, em particular, no campo da história. Creio que o modelo
de Ferro cabe tanto no Solaris de Tarkovsky quanto na
refilmagem de Steven Soderbergh. A história é um mito
que precisamos decifrar. Esse mito se materializa em obras independentes
do caráter da produção. Aliás, quanto
mais inocente ou ingênuo é um filme, tanto mais suspeito.
Creio que o não- visível das imagens vai além
da produção alternativa ou se ela está inserida
num esquema industrial. Aliás, filmes que em aparência
confirmam o sistema devem ser desmistificados no processo educacional,
no processo escolar. Fredric Jameson7
é outro teórico importante, cujas contribuições
podem fortalecer a idéia de um cinema na escola.
Fredric Jameson estuda a luta de classes em filmes como Um
dia de cão, o historicismo em O iluminado
e o Tubarão. Analisa a dimensão
política em filmes de Hitchcok. Também ele lida com
as verdades histórias e filosóficas ocultas nos entulhos
da indústria cultural. Entendo que megaproduções
como Jurassic Park oferecem uma visão crítica
das relações de produção da época
em que vivemos. O que quero dizer é que o não-visível
nas imagens aparece também em produções da
indústria cultural. Essas obras podem ser lidas de outra
maneira, podem ser apropriadas por um olhar crítico. Um filme
feito para enfeitiçar pode nos despertar do sonho. E o primeiro
feitiço do qual temos que nos libertar é o chamado
cinema de massa, cinema comercial. Este não presta à
educação. A teoria do cinema aplicado à educação
deve incorporar uma espécie de antropofagia visual: comer
as imagens e devolvê-las criticamente num processo pedagógico
que vise à autonomia do sujeito.
Outro exemplo vem da família Flinstones. Esta
película de entretenimento apresenta uma visão distorcida
e natural da evolução humana. Caixas eletrônicos,
vasos sanitários, pias, boliche, modelos de automóveis
caros e baratos, jornais e previsão do tempo, são
os ingredientes de uma contínua evolução da
história que culmina no capitalismo em seu estágio
atual. O passado da humanidade nada mais é que um ensaio
para o nosso presente. O passado é uma narrativa que consolida
o lucro no presente. Tudo o que fizemos foi aprimorar os utensílios
domésticos e os meios de comunicação; contudo,
a matriz é o lucro, o capital. Nos Flinstones
temos, além do Rock Donalds, personagens
de gravata, indumentárias de grife, adereços como
gravatas e homens barbeados! O ponto alto dessa fantasmagoria histórica
é a existência de empresa em plena época da
propriedade coletiva dos meios de produção! A plaqueta,
na porta do escritório, com o nome de Fred Flinstone que
o diga.
Num sentido que não nos interessa, este filme é educativo
para os padrões do sistema americano. Para os consumidores
de imagens além do entretenimento, ele educa no sentido de
uma aceitação desse sistema. Numa utilização
crítica do cinema no processo educacional, ele pode ser contraposto
aos primeiros trinta minutos de 2001, de Stanley Kubrick,
e à Guerra do fogo, de Jean-Jacques Annaud, filmes
mais próximos de uma visão antropológica da
sociedade. O professor pode exibir na íntegra e, em seguida,
trechos selecionados destes filmes, e propor exercícios aos
estudantes, a passagem do espectador passivo ao espectador crítico.
Mesmo os filmes comerciais contribuem no processo de escolarização.
Precisamos desenvolver teorias críticas na direção
de uma teoria da mídia, que, sem excluir o caráter
mercadológico da arte, favoreça a emancipação
dos sentidos. O imagético em Flinstones, 2001
e a Guerra do fogo, produzem um saudável choque
de conceitos numa revisão dos valores mais básicos
da existência. Esses filmes esnobados pela crítica
cinematográfica são exemplares de um modelo de apropriação
de filmes no processo educacional, numa perspectiva de educação
dos sentidos.
O planeta dos macacos é exemplar nesse caso.
A ficção encontra na técnica cinematográfica
um espaço privilegiado para suas representações
visionárias. Franz Werfel não viu que o clássico
Viagem à lua, de Georges Meliés, já
fazia uso das possibilidades do cinema de exprimir, por meios naturais,
o que ele mesmo chama de incomparável capacidade de persuasão,
o luminoso, o sobrenatural.
A fusão arte e ciência, ciência artística
ou arte científica, possibilitada pela criação
da linguagem cinematográfica, não se esgota nos lucros
das bilheterias do modelo norte. O cinema reúne entretenimento
e conhecimento, e assim é que os filmes comerciais proporcionam
também elementos para uma reflexão da sociedade.
Em O planeta dos macacos, Tim Burton diverte o público
e autoriza o espectador crítico a questionar a sociedade
americana. O filme é um modelo de como os Estados Unidos
usam a indústria cinematográfica para reafirmar sua
hegemonia sobre o planeta dos homens. Este filme é mais um
exemplo da defensividade do Tio Sam, quando o assunto é quem
manda ou quem pode vir a mandar no mundo. O mundo da fantasia é
freqüentemente o mundo real.
Tim Burton abre os letreiros com imagens de macacos que ironicamente
lembram os afrescos da cultura grega clássica. Na seqüência,
depois dos olhos de um macaco, surge a estação espacial
Oberon, no ano 2029, silenciosa no escuro e na imensidão
cósmica, onde ó único ponto de luz é
o Sol, perdido na desolação magnífica do Universo.
Em algum lugar, um planeta azul, dominado pelo homo sapiens.
Os astronautas realizam pesquisas rotineiras com macacos criados
geneticamente, até que um deles é perdido durante
uma investigação de uma tempestade eletrostática.
Leo Davidson (Mark Wahlberg), um astronauta afetivo que treina o
chipanzé Péricles, não se conforma com o acontecido
e sai em busca do mascote. A partir daí, entramos vertiginosa
e confusamente no criativo território ficcional do escritor
francês Pierre Boulle.
Leo Davidson cai numa floresta tropical, e quando abre os olhos
já está correndo ao lado de outros humanos, fugindo
de algo ameaçador, sinistro, que ecoa das selvas. Macacos
caçam homens, os aprisionam, maltratam e matam, enquanto
o espectador permanece em suspense pela ágil direção
de Tim Burton.
Leo Davidson é o espectador aprisionado numa coleira que
entra numa habitação primeva, misto de cidade e floresta.
O macaco dominador ainda não conheça a vida urbana
e sua tecnologia, não ultrapassa lanças, espadas e
cavalaria. O astronauta recua da era espacial para a escuridão
das trevas, um espaço inimaginável onde o homem ocupa
lugar inferior na escala zoológica.
Se em O planeta dos macacos, dirigido por Franklin
J. Schaffener, o cenário era a Guerra Fria com a ameaça
da bomba atômica, o contexto histórico deste novo planeta
dos macacos é o do mundo pós-muro de Berlim, ameaçado
pelo terrorismo do Estado, como é anunciado em A senha,
protagonizado por John Travolta. Leo Davidson vivencia um terror
pré-domínio do átomo, a selvageria dos macacos,
arremedo brutal da violência humana. Qualquer parentesco entre
homens e macacos é mera insinuação.
A ficção de Pierre Boulle para ganhar veracidade,
não se distancia do real ou pelo menos do real conhecido.
Os macacos têm senadores, defensores dos seus direitos (como
se fossem direitos humanos), crianças caprichosas, traficantes,
mercadores e macacas vaidosas que favoráveis a cirurgias
e tratamentos em clínicas estéticas! A dimensão
civilizada dos macacos é, claro, semelhante a dos humanos.
Há até discussões metafísicas entre
os macacos: os humanos teriam alma?
Entre estes personagens caricatos de comportamentos solidários
ou abusivos está os Estados Unidos. Essa subversão
antropológica só encontra eco no O homem que
caiu na terra, de Nicholas Roeg (1972), uma ficção
científica insólita e desconhecida do público.
Leo Davidson retorna ao espaço para cair novamente no planeta
dos macacos, onde o modelo civilizador e redentor dos símios
é Abraham Lincoln com a cara do general Thade. Ao final do
filme, os macacos saltaram dos cavalos para o controle do tráfego
aéreo! Leo Davidson está ainda mais atônito,
mas o espectador não precisa temer! É necessário
mais que macacos guerreiros para derrotar os humanos, sobretudo
se esse homem é um herói do cinema hollywoodiano.
Fundamental na sociedade dos macacos e na humana
é a figura do general. É entre Leo Davidson e o crudelíssimo
líder dos macacos que a metáfora fílmica de
Tim Burton se mostra atual. O general Thade é Tim Roth, o
mesmo ator cativante no papel de Charlie Marlow em A maldição
da selva, adaptação de Nicholas Roeg, romance
de Joseph Conrad, O coração das trevas.
Tim Burton, ao seu modo, nos leva ao coração das
trevas, ao enigma da origem das espécies, pois os macacos
têm tanto as sagradas escrituras quanto eruditos que criticam
a superstição popular que Semos retornará.
Thade pensaria como Heráclito que o mais belo símio
é feio, a se confrontar com o gênero humano? Daí
sua percepção política de que os macacos precisam
eliminar para sempre os homens?
Ou ainda, nesta metáfora fílmica sobre o futuro,
os macacos seriam os africanos, os árabes, os palestinos,
os latino-americanos? Macaco é o não norte-americano?
O enigma da palavra Calima confirma que os macacos são mesmo
resultado de experiências científicas que deram certo,
talvez, até demais. O final messiânico, um chipanzé
surge de uma nuvem brilhante numa pequena nave espacial construída
pelo homo sapiens. Semos é produto da engenharia genética!
Derrotado, Thade é um macaco assustado!
O problema que se observa para o historiador se observa também
para o cineasta, para o educador: como contar uma estória,
como contar a história no cinema? Qual a proximidade entre
a narrativa cinematográfica e a narrativa histórica?
A fabulação de Tim Burton, embora irônica, não
escapa do lugar comum, e nem poderia, de que a única história
possível é a dos vencedores, ainda que no cinema,
na ficção, e, os donos da indústria cinematográfica
são, ao mesmo tempo, os senhores da história contemporânea.
A história dos macacos é só um desenrolar e
um acidente do progresso técnico e científico da humanidade.
Essa defesa da história, isto é, da narrativa cinematográfica
legitimando uma visão de mundo, é recorrente e o espectador
pode-se lembrar, repito, de dois filmes conhecidos: Homens
de preto, agentes especiais que agem contra escória
do Universo, e Independence Day, quando o feriado do
4 de julho transforma-se num feriado mundial, dia de libertação
da humanidade, comandada pelo presidente dos Estados Unidos.
O filme não deve funcionar como suporte para conteúdos
desta ou daquela disciplina. O filme deve o conteúdo à
matriz do conhecimento. Nessa perspectiva, o cinema é uma
sala de aula. A sala de aula é o filme. Não se trata
de deslocar para o espaço da sala de aula o vídeo,
o DVD ou um projetor. Estes recursos têm sido utilizados na
sala de aula de modo mecânico, ilustrativo, o que conduz à
inércia do pensamento. A questão é se apropriar
da narrativa cinematográfica no processo da escolarização.
Nossa definição de cinema entende que esta é
uma práxis social orientada pelo e para o mercado. A escola
vai se apropriar desses produtos culturais para seus fins específicos.
A educação proporcionada pelo cinema é uma
educação informal. O cinema, ou pelo menos o cinema
no modelo hegemônico, que é o norte-americano, educa
segundo as regras de um mundo social alienado. Entretanto, é
preciso reconhecer que a própria indústria cinematográfica
apresenta suas fissuras, e que temos nos Estados Unidos, se assim
podemos chamar, um cinema de dissidência, um cinema de esquerda.
Creio que o exemplo mais radical deste cinema é o Clube
da luta, de David Fincher, uma revolta contra o cartão
de crédito. Este filme utiliza elementos da violência
cinematográfica para fazer uma crítica da violência
que é o estilo de vida americano baseado no consumismo. O
mau êxito nas bilheterias de o Clube da luta,
mesmo com um ator consagrado como Brad Pitt, mostra que a rejeição
do público americano para com esse filme é, no fundo,
uma recusa a uma autocrítica do sistema, dos valores que
norteiam a vida nos Estados Unidos. Talvez este filme possa ser
utilizado como um modelo pedagógico que critica a pedagogia
institucionalizada naquele país.
O fato é que o filme reascende a fogueira da maligna influência
do cinema sobre os espectadores. E aqui caímos sobre o óbvio:
sem cultura cinematográfica não se pode analisar esta
fita ou outra qualquer. Proponho uma leitura rápida desse
filme como um instrumento de desalienação dos sentidos.
Clube da luta trava um combate direto contra o feitiço
da mercadoria. O gigantesco sistema de produção e
troca capitalista transformou tudo e todos numa fantasmagoria. O
filme é uma recusa ao feitiço, à feitiçaria
imagética da sociedade do espetáculo. Essa recusa
é uma luta de boxe na arena do cinema americano. Uma luta
desse porte parece um delírio esquizofrênico. Lutar
contra o sistema é dar provas de doença, de insanidade.
Melhor é submeter-se à mediocridade que domina a mídia,
os congressistas, as corporações, o sistema educacional
e os jovens em escala mundial.
Clube da luta nasce em Easy Rider. Os motoqueiros
de Dennis Hopper, assassinados por racistas no sul dos Estados Unidos,
renascem nas peles de Jack e Tyler Durden. Eles fazem a viagem radical
da luta contra o estilo de vida americano, que só pode terminar
numa explosão que arrasa o centro financeiro do país
em Nova York. À medida que os pobres do filme recusam a feitiçaria,
cresce a revolta contra o feiticeiro. A violência estilizada
do filme é uma crítica à violência real
que caracteriza o cotidiano norte-americano.
A mesma temática está em Trainspotting,
de Danny Boyle, que não é um filme sobre drogas, mas
uma sarcástica narrativa sobre os estragos da sociedade de
consumo nos corações e nas mentes dos humilhados e
ofendidos do mundo yuppie e pós-moderno. É uma narrativa
daqueles que não podem comprar ou consumir o feitiço.
A sociedade da abundância não criou a liberdade. Liberdade
é a abolição da necessidade. Clube da
luta poderia ter o roteiro assinado por Dostoievsky, o atormentado
romancista russo. O filme relembra Week-End, de Jean-Luc
Godard, inesquecíveis fotogramas de um colossal engarrafamento
da sociedade capitalista num fim de semana.
Ou a pirotécnica explosão em Zabriskie Point,
de Antonioni. A mansão estilhaçada, indo pelos ares
no acompanhamento musical do Pink Floyd. Sobre o que fala o Clube
da luta? Fala da recusa radical da sociedade do espetáculo.
É uma ópera hiper-realista sobre as estruturas econômicas
que chocaram o homem unidimensional. O filme não é
um elogio da violência. É um contraditório manifesto
contra um sistema que colocou a economia e não a felicidade
como o principal objetivo do homem.
Creio que esses filmes podem ser analisados como modelos de uma
pedagogia crítica em relação a uma pedagogia
institucional, e que seria exemplificada por filmes de final feliz.
É necessário que esses filmes sejam elucidados por
um olhar crítico que contribua com o processo de ensino e
aprendizagem mediado pelo cinema.
Do ponto de vista metodológico, a noção de
espaço imagético pode ser aplicada tanto a filmes
nitidamente comerciais como a filmes, digamos alternativos, em face
à indústria cultural. A educação pelo
cinema deve se beneficiar quer de Godard quer de Spielberg.
Um filme filosófico é Waking Life, de
Richard Linklater. Este filme é exemplar no que se refere
ao cinema como sala de aula. Psicologia, antropologia, política,
economia, filosofia oriental, existencialismo e pós-modernismo
constituem o cardápio dessa torrente de imagens num balanço
da tradição cultural do ocidente. O caráter
multidisciplinar da imagem em Waking Life é um
momento de rara felicidade para o professor. Professores de diversas
disciplinas podem utilizar esse filme em suas atividades. É
uma bela maneira de iniciarmos o espectador passivo no universo
crítico das imagens. E o filme retoma um tema que percorre
o interior deste texto: trata-se de despertar do sonho, dos sonhos
inclusive engendrados pelas teorias revolucionárias.
Digamos que a educação deve seduzir e ser seduzida
pelo discreto charme do fotograma. Estamos argumentando aqui que
o cinema tem sido um valioso campo de trabalho para cientistas que
investigam a relação arte e sociedade no contexto
da indústria cultural. As categorias de imagem visível
e imagem invisível, de eficácia comprovada em
produções como Astérix e Obelix contra
César, dirigido por Claude Zidi. Nos fotogramas a batalha
é contra os romanos. Na realidade, contra o domínio
cultural americano. Se Marc Ferro elabora uma metodologia própria,
Fredric Jameson dialoga com Theodor Adorno. Douglas Kellner tem
ido mais além da teoria crítica de Frankfurt. A crítica
da mídia está sendo decifrada e enriquecida em textos
culturais como Top Gun, Poltergeist ou Beavis
e Butt Head.
No Brasil foi publicado A história vai ao cinema,
em que vinte produções nacionais: Dona flor
e seus dois maridos, O homem que virou suco, Memórias
do cárcere, entre outros, são visitados por
historiadores brasileiros. O ponto em comum nesse leque de abordagens,
diremos, é a contribuição do salto de qualidade
do espectador passivo para o espectador crítico. Uma nova
crítica cinematográfica está nascendo. As contribuições
pioneiras do cinema em Walter Benjamin estão ganhando cada
vez mais espaço na reflexão acadêmica. Jean-Luc
Godard ou Jean-Marie Straub, são úteis na construção
do cinema como sala de aula. A noção do cinema e da
sala de aula como meios de reflexão da sociedade ganha aliados
no esforço para a consolidação das possibilidades
educacionais do cinema.
O filósofo americano Stanley Cavell afirma que no cinema
aparecem os temas filosóficos por excelência. Cientistas
sociais já descobriram que as imagens em movimento podem
ser lidas à luz dos conceitos de clássicos como Weber,
Simmel e Deleuze.
O discreto charme do fotograma está renovando a teoria do
conhecimento. Na sala de aula ou na pizzaria, depois de uma sessão
de cinema, especialistas e leigos querem captar nos fotogramas o
pensamento em movimento. Dar-se ao trabalho de pensar nesses tempos
de conformismo e banalização maciços seja,
talvez, a maior contribuição da educação
junto a um ensino de qualidade.
A sala de aula deve ser considerada como um espaço imagético.
Espaços da realidade ou da fantasia, da racionalidade econômica
e burocrática da vida administrada. Espaços de uma
objetividade que é a morte da alma e da curiosidade, a falência
do estímulo e da criatividade diante do mistério da
existência.
A sala de aula já vem incorporando, vem sofrendo, a intervenção
dos meios de comunicação de massa com a utilização
de jornais, revistas, programas de televisão. Porém,
é preciso ver que esses meios podem ser considerados como
salas de aula, como espaços de transformação
de consciência, de aquisição de conhecimentos;
que eles dependem de uma pedagogia crítica, e que o sucesso
dessa pedagogia crítica depende de como vamos ver e ouvir
os produtos da indústria cultural8.
Um filme é um local em que questões sociais são
discutidas segundo valores explícitos ou implícitos
do diretor, da estória, das condições de produção.
Se as condições de produção condicionam
o filme, é possível reconhecer diretores que, mesmo
atuando segundo as convenções do mercado, tentam ir
mais além de representações singelas da sociedade.
Se a sala de aula é um espaço da discussão
e da reflexão, o filme é este mesmo espaço
ampliado em uma escala maior, em que seus procedimentos formais
e narrativos passam a ser a linha condutora do viés educacional.
Creio que Matrix é um filme que traz essas ambigüidades
de reificação e desalienação dos sentidos.
Matrix pode ser lido da perspectiva da alegoria da caverna
de Platão. A tecnologia e as trucagens do filme têm
esse duplo aspecto do encantamento, e, ao mesmo tempo, do atuar
contra o feiticeiro. Podemos argumentar que o diálogo de
Platão é, sem discussão, superior ao filme.
Entretanto, o que interessa é utilizar o filme para lermos
Platão. Utilizar o cinema para uma redescoberta da literatura
filosófica tão necessária e imprescindível
no processo escolar, na educação para a cidadania.
A educação necessita lançar um olhar crítico
sobre o cinema. Precisa se libertar da crítica especializada
e construir seu próprio corpo teórico visando a fins
específicos. O cinema é um meio de reflexão
da sociedade. Esse meio só depende dos educadores para atender
fins educacionais. Depende do que se entende por educação
com utilização de recursos midiáticos.
O cinema cada vez mais é objeto de estudos e teses acadêmicas.
Muitos educadores se esforçam para a construção
de um olhar cinematográfico que possa na renovação
das práticas pedagógicas. Ciência artística
ou arte científica, conjugação da razão
e da imaginação, do rigor e da intuição,
o cinema deve ser o agente de uma nova educação que
dote o sujeito de uma razão sensual, isto é, de uma
razão estética que saiba debruçar sobre si
mesma e saiba explorar as possibilidades de um mundo melhor, de
uma sociedade de não-excluídos.
Falar do olhar cinematográfico é falar do olhar de
diretores. É falar do olhar destes diretores sobre esses
seus países e sobre o mundo. É falar da recepção
dessas obras em diferentes contextos históricos, políticos,
econômicos. Marc Ferro sugere que o espectador descubra onde
está o filme na sociedade e onde a sociedade está
no filme. O cinema apresenta uma visão plural, complexa,
densa; mobiliza razão e imaginação. Mobiliza
o afeto e o intelecto. Em Twister temos dois modelos
de cientistas. Um que segue cegamente seus instrumentos científicos
para compreender o fenômeno dos tornados; e o outro, que,
dispondo dos mesmos equipamentos, não dispensa a intuição
e entende que o homem é parte da natureza, ele mesmo parte
daquela tormenta. Talvez seja este um modelo de aluno a ser sugerido
em sala de aula. Um modelo de homem a ser consolidado na edificação
de uma sociedade outra. A sala de aula cinematográfica deve
oportunizar que os alunos tenham uma cosmovisão do mundo,
da sociedade em que vivemos, e entender que as relações
de produção de nossa época informam sobre o
sentido e significado do nosso presente.
O cineasta brasileiro Glauber Rocha (1939-1981) mostra que o cinema
é como uma ciência antropológica moderna, e
também psicanálise da história e da cultura,
podendo ter visão totalizante do homem no espaço e
no tempo. O cinema é instrumento de análise da história.
Glauber fez um cinema que privilegia o homem e não o lucro.
Para ele, o cinema e a educação estão ligados
à idéia de uma revolução. Nele encontramos
outras formulações indispensáveis para pensarmos
o cinema aplicado à educação, sobretudo uma
educação numa perspectiva revolucionária. E,
para ele, a revolução é uma estética.
Glauber postula o surgimento de duas formas concretas de uma cultura
revolucionária. Essa cultura estaria apoiada numa épica
e numa didática que devem funcionar ao mesmo tempo no processo
revolucionário. Para o diretor de Der Leone Has Sept
Cabezas, a didática deve alfabetizar, informar, educar,
conscientizar as massas ignorantes e as classes médias alienadas.
A épica, ainda segundo o autor de Cabezas cortadas,
deve provocar o estímulo revolucionário. Nessa ótica,
a didática será científica. A épica
será uma prática poética que terá de
ser revolucionária do ponto de vista estético para
que projete revolucionariamente seu objetivo ético.
A educação, para Glauber Rocha, deve ser subvertida
por uma poética cinematográfica. Essa poética,
imanente à estrutura narrativa do cinema, está disponível
no mercado e apresenta qualidades variadas de diretor para diretor,
de filme para filme, de produção para produção.
O contexto dessa formulação em Glauber Rocha está
no seu questionamento das opções do intelectual do
mundo subdesenvolvido, entre ser um esteta do absurdo, um nacionalista
romântico ou um criador de uma cultura revolucionária.
Claro, a reflexão de Glauber ultrapassa projetos educacionais
específicos para se inserir num contexto maior da Educação,
já que este processo projeta em cada homem um criador que,
de posse consciente e informada de todos os seus instrumentos mentais,
possa fazer a revolução das massas criadoras. A massa
alienada, utilizando-se do cinema como sala de aula, encontra nesse
meio de comunicação um aliado para se pensar criticamente
o imediatismo histórico.
O cinema de Glauber é a construção de uma
gramática cinematográfica de ruptura com a sociedade
do espetáculo, com a alienação dos sentidos.
Não é nosso propósito analisar a filmografia
deste diretor, mas o de indicá-lo como um dos cineastas cuja
práxis cinematográfica é direcionada para uma
ruptura com o naturalismo do mundo e da sociedade. O que interessa
é a teoria cinematográfica de Glauber, que, orientada
para objetivos revolucionários (estéticos, sociais,
econômicos, políticos), fecunda a reflexão da
educação como práxis transformadora dos homens
no individual e no coletivo.
O aproveitamento dessas reflexões no âmbito da escola
é um desafio que permanece para educadores, professores e
pensadores críticos. Historiadores brasileiros têm
buscado no cinema inspiração para suas aulas. As relações
entre cinema e História do Brasil é objeto de reflexão
em filmes como Ilha das flores, de Jorge Furtado, Dona
Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, O invasor,
de Beto Brant, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles,
Pixote ou Carandiru, de Hector Babenco.
Estes filmes deitam um olhar crítico sobre a sociedade brasileira,
e precisam ser descobertos pelos processos e práticas pedagógicas.
Podemos dizer o mesmo do cinema iraniano ou do cinema chinês.
A recepção desses filmes nos seus respectivos países
e no exterior mobiliza, pela experiência estética,
uma reflexão dos pilares dessa sociedade. Esse pensar a sociedade
sobre o cinema reforça a idéia do filme como sala
de aula. O filme educa no sentido que amplia e questiona nosso conhecimento
dos contextos em apariência familiares e facilmente nomeáveis.
Correntes e movimentos cinematográficos como o novo cinema
alemão ou inglês das décadas de 70, ou o cinema
novo no Brasil em meados da década de 50 até o início
dos anos 70, podem ser avaliados como filmes educativos. Educativos
no sentido que filmes como Eat the Rich, de Tony Richardson
(1972), antecipam a reflexão acadêmica sobre o fenômeno
da globalização. Isto é, questionam a fantasmagoria
da história contemporânea. Se entendermos a educação
como um processo questionador de valores e de construção
de identidades, o cinema pode mostrar as clivagens desse processo.
O olhar cinematográfico enriquece nosso olhar sobre a educação
e sobre o processo escolar. O cinema pode ser definido como uma
educação informal, que necessita de uma metodologia
para melhor aproveitamento na sala de aula. O cinema atua como um
elemento de aprimoramento cultural e intelectual dos docentes e
dos discentes. E, ao mesmo tempo, problematiza para além
da ciência da história o uso do cinema no campo da
educação. E assim retornamos ao tema deste texto:
Por que cinema e escola?
Pensar a contribuição do cinema na educação
é buscar o pensamento, a filmografia deste ou aquele diretor,
e inseri-lo no processo educacional. Jean-Luc Godard fez mais pela
educação no sentido tradicional e usando o cinema
como meio de reflexão. Entretanto, sua aplicação
no processo educacional, as possibilidades educativas do cinema
de Godard, continuam assustando muitos educadores. E este é
o desafio: como Godard e outros podem ser lidos pela narrativa escolar?
Muitas de suas formulações poderiam ser levadas adiante
pelos educadores ou pela Academia; porém, o cinema continua
enfrentando obstáculos para uma inserção arrojada,
quer na filosofia e na sociologia da educação, quer
na elaboração de novos métodos de ensino e
aprendizagem. E talvez seja este o segredo do cinema na escola:
a educação é um cinema de invenção,
de invenção permanente.
Essa é uma questão inevitável para todos aqueles
que problematizam as relações cinema-educação.
Em Godard 1985-19999,
o cineasta diz que o cinema o levou a perceber que tinha uma história
pessoal enquanto indivíduo. E que essa é uma dívida
que ele tem para com o cinema. Podemos pensar o processo educacional
como um processo de descoberta de si. Uma linguagem artística
afetiva à qual o público tem acesso de modo geral.
Contudo, é necessário deixar claro que o cinema não
abole nem propõe o abandono da lousa. O processo educacional
tem tomado consciência que a lousa foi ampliada para a tela
do cinema, para o televisor, para a telinha do computador, para
a web, para o outdoor, para a camiseta impressa com
silkscreen, para a tatuagem e para a indumentária
punk.
O contraponto do cinema é a televisão. No Brasil,
a televisão, com poucas exceções, tem servido
à deseducação das massas. Pensar a televisão,
outro influente espaço imagético, é pensar
uma mídia específica que demanda uma abordagem particular;
porém, de uma maneira reducionista, se o cinema estimula
o pensamento, a televisão o paralisa. Se o espaço
imagético cinematográfico é conflituoso, na
televisão ele é conciliador. Se no cinema a questão
do tempo surge como um conceito problemático que é
preciso resolver, na televisão o tempo inexiste.
Enquanto o cinema, mesmo com produções ruins provoca
o raciocínio, mobiliza o pensar, a televisão empobrece
esteticamente os sentidos, aliena de modo taxativo. Tudo isso precisa
ser discutido na perspectiva de uma política audiovisual
para as escolas públicas sobretudo.
Quisemos mostrar neste texto, de forma ambiciosa mas reconhecendo
os limites dessa ambição, que o cinema na escola necessita
de uma teoria consistente e aplicável. E que a tarefa de
exibir filmes na escola, modificando a prática pedagógica
do ensino e da aprendizagem, é um fato em processo e uma
tarefa coletiva de educadores de todas as áreas de conhecimento.
O cinema, uma arte do fetiche, do fantasmagórico, pode eliminar
o feiticeiro e o feitiço. A educação tem papel
primordial nesse processo.
Bibliografia
Benjamin, Walter (1993): Obras escolhidas 1, magia e técnica,
arte e política, São Paulo, Editora Brasiliense.
Bolle, Willi (1986): Walter Benjamin Documentos de Cultura
Documentos de Barbárie, São Paulo, Cultrix,
Edusp.
Jameson, Fredric (1995): As marcas do visível, Rio
de Janeiro, Editora Graal.
Oliveira, Luis Miguel (1999): Godard 1985-1999, Lisboa,
A Coelho Dias.
Rocha, Glauber (1978): A Revolução do cinema novo,
Rio de Janeiro, Embrafilme.
Soares, Mariza de Carvalho (2001): A História vai ao
cinema, São Paulo, Editora Record.
Notas
(*) Coordenador do Programa Ação
Cultural nas Escolas, Secretaria de Estado da Educação
de Goiás, Brasil.
1 A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica, p. 165.
2 Op. cit., p. 166.
3 Op. cit., p. 170.
4 O autor como produtor, p. 122.
5 Op. cit., p. 106.
6 Cinema e história (1993):
Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra.
7 A teoria crítica de
Jameson está no ensaio Reificação e utopia
na cultura de massa, in As marcas do visível (1995):
Rio de Janeiro, Edições Graal.
8 Embora não seja o objeto
deste artigo, considero exemplos de espaços imagéticos
a obra de Jimi Hendrix e John Lennon. No Brasil, compositores como
Arnaldo Antunes e Tom Zé, entre outros, constroem novos espaços
sonoros e imagéticos de compreensão do mundo, razão
de sua exclusão da programação usual.
9 Godard 1985-1999
(1999): em entrevista a Serge Daney, p. 17, Coelho Dias, Lisboa.
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