A educação como indústria cultural: um negócio
em expansão
Márcia Lopes Reis (*)
«A civilização atual a tudo confere um ar
de semelhança»
«A indústria cultural continuamente priva seus consumidores
do que continuamente lhes promete»
T. Adorno e M. Horkheimer:
A indústria cultural, pp. 159 e 177.
SÍNTESE: Este artigo parte do pressuposto do processo
de legitimação da educação desde as
interações com outros agentes como a cultura e suas
interfaces, a estrutura social, a economia e o próprio Estado,
para tratar do quadro complexo de funções sociais
que permeiam esta instituição típica da sociedade
moderna. Agrega-se a essa condição histórica
a constatação de que, em cada estágio de desenvolvimento,
a sociedade capitalista forma os indivíduos de que necessita
para reproduzir-se (Gramsci) em princípios que têm
sido reificados nas políticas públicas de educação.
Dentre os aspectos fundantes nas políticas públicas
de educação mais recentemente evidenciadas, pretende-se
analisar, em profundidade, as relações estabelecidas
com os processos de absorção dos meios de comunicação
de massa aqui tratados conceitualmente como parte da «indústria
cultural». Nesse início de século, a prática
educativa da «escola das novas tecnologias» passa a representar
um negócio da indústria cultural em expansão.
(*) Doutora em Sociologia, mestre em Educação, especialista
em Supervisão e Currículo, pedagoga. Atualmente participa
do Centro de Estudos de Políticas Públicas da Educação
(CEPPE) da Universidade de São Paulo, Brasil.
1. Introdução
A contemporaneidade deste início do século xxi tem
sido representada pelo desenvolvimento de algumas condições
decorrentes dos anos finais do século passado. Em seu contexto
mundial, podem ser destacadas algumas características como
o avanço tecnológico, especialmente da microeletrônica
e da biotecnologia; redefinição da estrutura e das
condições gerais de produção industrial
possibilitada pela informatização e automação
dos processos produtivos; introdução de novos materiais,
como a substituição de matérias-primas tradicionais;
aplicação de novos padrões gerenciais nas empresas;
introdução de processos produtivos poupadores
de energia; formação de novos hábitos
de consumo e segmentação do mercado consumidor com
grande capacidade de mudança em curto espaço de tempo;
flexibilização dos processos produtivos, tornando-os
capazes de responder às características segmentadas
e voláteis da demanda, entre outras características.
Estas conhecidas transformações nas relações
sociais, decorrentes das mudanças nas condições
gerais de produção apontadas como indicadores da chamada
Terceira Revolução Industrial amplamente verificados
na Europa, Japão e Estados Unidos , tiveram início
nos anos 80 e têm como resultado parcial o delineamento de
uma nova geopolítica composta pelos blocos econômicos
multinacionais. Constituídos sob a base de mercados articulados
e complementares, a formação desses blocos tem sido
acompanhada pela reconstrução em novas bases
dos padrões de produção, circulação
e consumo das economias dos países industrializados.
Essa tendência à formação de processos
de complementação econômica interpaíses
resultante da formação desses blocos ,
de modo a dar-lhes uma autonomia relativa ante outros blocos ou
países, tangencia conceitos da modernidade como, por exemplo,
o de Estado-nação, cujas questões como autonomia
e territorialidade têm sido estruturalmente redimensionadas
em seu sentido. A necessidade emergente de agregar as condições
para a composição desses blocos econômicos,
que inclui a ampliação da capacidade de absorção
das inovações e a geração de novos conhecimentos,
parece interferir na concepção das políticas
públicas desses Estados-nação. Dentre essas,
as políticas educacionais têm sido determinadas pela
premissa de que a escola deve estar conectada com as
novas exigências tecnológicas como condição
sine qua non para a formação de novos quadros
que atendam às condições de implementação
e desenvolvimento da sociedade em rede (Castells, 2001), sociedade
do conhecimento (Lévy, 1993; Minsk, 1994), sociedade da informação
(Schaff, 1978) ou, ainda, sociedade digital (Negroponte, 1995)1.
Precisamente no sentido de atender a essas demandas, uma das instituições
sociais típicas da modernidade, a escola vem absorvendo os
meios de comunicação de massa, e, mais recentemente,
as novas tecnologias da informação como parte do processo
de modernização das relações sociais.
Desse modo, em princípio, o que parece estar em jogo quando
se trata dos processos de absorção dessas ferramentas
pela escola seria o pretexto da modernização das relações
sociais, que, nessa fase de reestruturação do sistema
capitalista, é representado pela informatização/automação
das relações sociais como um todo.
Cabe ressaltar que o emprego do conceito de modernização
deve ser diferenciado do conceito de modernidade. Isso porque se
o primeiro pode ser compreendido «pelo seu toque voluntário,
e não voluntarista, chegando à sociedade por meio
de um grupo condutor, que, privilegiando-se, privilegia os setores
dominantes», ainda, segundo Faoro, «a modernidade compromete,
em seu processo, toda a sociedade, ampliando o raio de expansão
de todas as classes, revitalizando ou removendo seus papéis
sociais»2.
Haveria, assim, um certo caráter de estruturação/desestruturação
que se pode depreender dessa diferenciação da modernidade
que permite a identificação de uma contradição:
ao mesmo tempo em que para uns, apesar de suas vicissitudes, ela
amplia horizontes essencialmente positivos multiplicando relações
e o leque de escolhas pessoais, para outros é sua face excludente
que se sobressai, evidenciando o quanto suas promessas não
foram cumpridas nem o serão, devido a problemas intrínsecos.
De fato, parece haver algo significativo, sobretudo na cultura
de massa, dirigida para o lucro e à domesticação
dos sujeitos das sociedades contemporâneas. Essa condição
vem demandando repensar os efeitos das interações
entre a educação e a indústria cultural, que
abrange na contemporaneidade os meios de comunicação
de massa transformando a escola em um negócio em expansão.
2. Efeitos da relação entre a educação
e a indústria cultural: novas individualidades em formação
Compreender as relações entre a educação
e a indústria cultural demanda na atualidade considerar as
interações dos meios de comunicação
de massa na sociedade contemporânea. Notadamente, a televisão
pode ser caracterizada, desde o início desse processo, pela
promoção de reuniões diárias simuladas
entre as pessoas que se encontram em localidades e até em
continentes distintos. Trata-se de uma proximidade simulada, no
sentido de que os partícipes não se conhecem de modo
concreto, nem podem contar um com o outro.
Nesse contexto da modernidade, o indivíduo estaria rodeado
de imagens, e, portanto, só. Segundo Touraine (1994), o cenário
de aproximação entre os indivíduos, montado
a partir das novas técnicas de comunicação,
lembra um caleidoscópio: o que se vê é maravilhoso,
porém fracionado3.
Por mais que os personagens exibidos na tela do cinema e/ou da televisão
se assemelhem aos telespectadores, há uma distância
quase intransponível que os separa, a despeito de os personagens
serem apresentados como sujeitos do gênero humano4.
Para Adorno e Horkheimer (1985, p.136):
[...] a semelhança perfeita é a diferença
absoluta. A identidade do gênero proíbe a dos casos.
A indústria cultural realizou maldosamente o homem como
ser genérico. Cada um é tão-somente aquilo
mediante o qual pode substituir todos os outros: ele é
fungível, um mero exemplar. Ele próprio, enquanto
indivíduo, é o absolutamente substituível,
o puro nada, e é isso mesmo que ele vem a perceber quando
perde com o tempo a semelhança.5.
Já seria possível notar que a informatização
do trabalho incidiu diretamente nas relações entre
as pessoas. O adensamento das atividades, em alguns casos, provoca
um aumento de atribuições e de contatos pessoais para
o trabalhador; em outros, reduz a um único tipo de operação
isolada, qual seja, alimentar a máquina. Há um isolamento
físico real: a função desempenhada por um operário
dificilmente encontra correspondência nas demais, mesmo quando
estão próximos. A centralização do trabalho
informatizado é feita por um cérebro comumente desconhecido
daquele que executa, fazendo rever, desse modo, a análise
marxista sobre o processo de alienação decorrente,
em parte, da separação entre o trabalho manual e o
trabalho intelectual.
Na empresa automatizada, típica dessa fase do capitalismo,
a comunicação ocorre com maior freqüência
no sentido vertical, e, bem menos, no sentido horizontal. Essas
condições, agregadas ao fechamento de inúmeros
postos de trabalho fato que tem resultado no acirramento
das tensões e da competição , diminuem
as relações interpessoais e fortalecem o individualismo.
O diálogo, pessoalmente estabelecido, tem sido substituído
pela comunicação efetuada através de vídeo,
seja de televisão ou do computador. Ao invés das comunicações
informais existentes entre os trabalhadores, afirma-se a dependência
pelos computadores e painéis de controle, ou seja, a comunicação
em outros parâmetros: parece haver uma transição
de uma comunicação interpessoal para uma comunicação
impessoal, mediada pela máquina.
A impessoalidade e o isolamento podem ser verificados nas relações
de produção como decorrência da condição
de estarem por toda a sociedade, como apontaram Adorno e Horkheimer,
ao abordar o princípio da individualidade. Esses teóricos
analisam que, uma vez controlados os indivíduos, esses se
integrariam na universalidade sem maiores conflitos, sendo a cultura
de massa fator decisivo para a construção da natureza
fictícia da individualidade na era capitalista6:
O princípio da individualidade estava cheio de contradições
desde o início. Por um lado, a individualização
jamais chegou a se realizar de fato. O caráter de classe
da autoconservação fixava cada um no estágio
de mero ser genérico. Todo personagem burguês exprimia,
apesar do seu desvio e graças justamente a ele, a mesma coisa:
a dureza da sociedade competitiva. O indivíduo, sobre o qual
a sociedade se apoiava, trazia em si mesmo uma mácula: em
sua aparente liberdade, ele era o produto de sua aparelhagem econômica
e social [...]. Ao mesmo tempo, a sociedade burguesa também
desenvolveu em seu processo, o indivíduo [...]. A técnica
transformou os homens de crianças em pessoas. Mas cada um
desses progressos da individuação se fez à
custa da individualidade7.
Os traços que ainda resistem ao processo de homogeneização
indicam o que não foi cooptado pelas relações
dominantes, e, igualmente, as cicatrizes da mutilação
que essas mesmas relações imprimem aos homens. Essa
materialidade, na qual se vive com intensidade para o trabalho alienado,
alimenta uma cultura que se confunde com a publicidade, ou melhor,
ambas se fundem no aparato técnico com fins econômicos.
Nesse sentido, o conceito de «indústria cultural»
surge por sua natureza política e ética materialmente
embasada no processo produtivo: nas sociedades modernas, as obras
culturais e as propagandas, como o trabalho, caracterizam-se pela
repetição mecânica. Numa e noutra instância,
sob o imperativo da eficácia, a técnica parece manipular
o pró-prio homem que a criou. Havendo necessidade, combinam-se
o surpreendente e o familiar, o simples e o complexo. Para Adorno,
«a formação cultural agora se converte em uma
semiformação8
socializada, na onipresença do espírito alienado,
que, segundo sua gênese e seu sentido, não antecede
à formação cultural, mas a sucede»9
As obras de arte são popularizadas, mas nem por isso os
excluídos estão tendo acesso ao que lhes têm
sido negado. A produção em massa, juntamente com a
cultura de massa, transforma os indivíduos que a ela têm
acesso, educando-os de acordo com os parâmetros científicos.
Como resultado desse processo, pode-se observar o conceito de «semiformação»
cultural uma espécie de contraparte subjetiva da indústria
cultural que se converte em alienação. Exatamente
a constatação de que, «apesar de toda ilustração
e toda informação que se difunde (e até mesmo
com sua ajuda), a semiformação passou a ser a forma
dominante da consciência atual, o que exige uma teoria que
seja abrangente», permitiu a Adorno (op. cit., 94) a
sistematização do conceito de semicultura. Seus efeitos
e decorrências podem ser evidenciados quando se analisa a
apropriação da indústria cultural nas políticas
públicas da educação.
3. A indústria cultural nas políticas públicas
de educação
Em se tratando da sociedade brasileira, como parâmetro, a
análise sobre a concepção da escola como um
negócio da indústria cultural em expansão pressupõe
uma compreensão do lugar ocupado pela educação
como descreve Schwartzmann:
[...] quando uma sociedade se expande, a educação
parece funcionar como instrumento poderoso de mobilidade social
de novos grupos, e de incorporação de novas tecnologias
e conhecimentos à sociedade; quando as sociedades estão
estagnadas, a educação parece funcionar, sobretudo,
como elemento de seleção e discriminação
social. Sozinha ela pode menos do que se acreditava no passado;
em conjunto com outros processos de natureza social, política
e econômica, a educação pode marcar a diferenciação
entre o sucesso e o fracasso10.
Pensando desse modo, políticas públicas de educação
passaram a ser implementadas nos anos 90 de forma bastante acentuada,
com vistas à introdução dos recursos das novas
tecnologias da informação sob o escopo da modernização
das relações sociais. Deixam, com isso, transparecer
um quadro de superação do contexto de atraso e de
desigualdade social, que se acentua quando essas políticas
públicas de educação se vêem dotadas
dos meios (máquinas, técnicas e ideologia) da indústria
cultural. Isso porque, no processo da dita modernização
das relações sociais, Sobral já havia observado
que
[...] se há uma parte do Brasil que já tramita nos
caminhos da modernidade e não deve perdê-la, há
uma outra parte que ainda se encontra em outros estágios.
Assim, a constituição do social pela educação
pode se dar através da diminuição da desigualdade
social com a ampliação das oportunidades educacionais,
como também pela entrada no novo paradigma científico
e tecnológico11.
De modo genérico, em se tratando das redes públicas
e privadas de educação, a mudança desse quadro
parece apontar para uma nova prática cotidiana da escola
na qual as políticas educacionais tendem a assegurar, ao
mesmo tempo, o acesso universal à educação
básica e a apropriação dos conhecimentos demandados
por esse novo paradigma científico e tecnológico.
A esse descompasso, o caso brasileiro demonstra que a primeira questão
ainda não resolvida em função dos índices
de analfabetismo, reprovação e evasão
representa uma função precípua da rede pública
de ensino.
À rede privada, por sua vez, além do nível
de escolarização básica, a prática de
relações do processo de ensino-aprendizagem tende
a apresentar critérios de planejamento, desenvolvimento e
avaliação pautados em outro modelo de socialização
do conhecimento. Tais condições buscam viabilizar
a legitimidade das políticas públicas para a modernização
das relações sociais brasileiras via escola, de modo
a assegurar-lhes certa continuidade.
A transição para este novo modelo ou paradigma
técnico-científico tem sido atravessada pelo
processo de reformas educacionais que resultam na informatização
das relações sociais da escola, na tentativa de compor
um conjunto articulado. Neste, a ampliação da capacidade
de geração e difusão dos conhecimentos deveria
ocorrer baseada em um diálogo interno entre as desigualmente
distribuídas condições do país, frente
ao contexto «impositivo» externo de uma indústria
cultural. Isso porque se pode observar que os modelos ditados pela
indústria cultural, bem como os de indústrias culturais,
advêm sobretudo dos países que lideram o processo de
recomposição do capital.
Adorno, mais uma vez, havia apontado que «reformas pedagógicas
isoladas, embora indispensáveis, não trazem contribuições
substanciais»12. Essa análise parece fazer sentido quando são
avaliados os processos educativos e as ações governamentais
no sentido da busca da informatização das relações
da escola13.
Dentre essas ações, a mais difundida tem sido a implementação
de laboratórios de computadores nas escolas, processo que
havia começado de forma muito intensa nas escolas particulares
e que vem atingindo também as escolas públicas. Além
das iniciativas isoladas dos governos estaduais e municipais, que
já vêm acontecendo há algum tempo, o Ministério
da Educação vem implementando o Programa Nacional
de Informática na Educação (proinfo), que abrange
a rede pública de educação básica em
todo o país. Entre os anos 1997/1998 foram adquiridos e instalados
100.000 computadores nas escolas, bem como a formação
de uma rede de comunicação vinculada à educação,
interligando, para tanto, as escolas a pontos de presença
da Internet e da Rede Nacional de Pesquisa (rnp).
Observa-se que o uso educacional dos computadores em nível
básico e médio nas escolas brasileiras vem se expandindo
através de iniciativas governamentais e da iniciativa privada.
Essa iniciativa teve início na década de 80, e se
limitava à rede privada do sul do país. O fato de
que, em 1985, apenas quatro escolas públicas em todo o Brasil
utilizavam computadores em suas práticas cotidianas, denota
o avanço dessa prática pela instituição
escolar.
Dentre as experiências recentes, vale lembrar a implementação
do projeto Ciranda promovido pela Embratel , que consistiu
na realização de pesquisas sobre as possibilidades
de aplicação da utilização dos microcomputadores
nos processos de ensino-aprendizagem dos componentes curriculares
dos níveis fundamental e médio com resultados promissores.
Em 2001 o governo iniciou licitação para compra de
233 mil computadores, e implementou projeto de informatização
e universalização do acesso à Internet para
todas as escolas de ensino médio do país. O projeto
foi desenvolvido numa parceria entre o Ministério da Educação
e das Comunicações durante o ano de 2002. A meta do
governo foi a introdução de 250 mil novos computadores
que propiciaram o acesso de cerca de 7 milhões de estudantes
nesse nível de ensino.
4. Primeiras análises sobre os efeitos das relações
entre a indústria cultural e a educação
Partindo da perspectiva adotada por Adorno e Horkheimer, expoentes
da Escola de Frankfurt, seguidos por Baudrillard, a indústria
cultural era manipulativa e destruía a esfera pública
cultural e política que a burguesia construíra em
seus tempos heróicos. Sob a bandeira da democratização,
ela era a contraface totalitária da sociedade monopolista
liberal, que partilhava com o fascismo a estupidização
das massas em função da decadência do proletariado,
que fora cooptado pelo capitalismo. Como decorrência da dominação
absoluta da sociedade pela racionalidade instrumental, o processo
de dominação total em que se transformara a Ilustração
apresentava alguns resultados como descrevem Adorno e Horkheimer:
Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade
do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos
psicológicos. Os próprios produtos e entre
eles, em primeiro lugar, o mais característico, o filme sonoro
paralisam essas capacidades em virtude da própria
constituição objetiva. São feitos de tal forma
que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza,
dom de observação, conhecimentos específicos,
mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual
do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desfilam
velozmente diante de seus olhos. O esforço, contudo, está
tão profundamente inculcado que não precisa ser atualizado
em cada caso para recalcar a imaginação [...]. Quanto
mais firmes se tornam as bases da indústria cultural, mais
sumariamente fortes, pode proceder com as necessidades dos consumidores,
produzindo-as, dirigindo-as, disciplinando-as e, inclusive, suspendendo
a diversão: nenhuma barreira se eleva contra o progresso
cultural [...]. Mas a afinidade original dos negócios e a
diversão mostram-se em seu próprio sentido: a apologia
da sociedade. Divertir-se significa estar de acordo14.
A indústria cultural resultaria, ainda, no isolamento das
pessoas, e, assim, por sua atomização, dando cabo
do indivíduo racional, com todos submetidos à publicidade
e ao consumo dos mesmos produtos, frente aos quais a liberdade de
escolha nada mais é que pura ilusão. A resistência
seria o resultado inesperado da indústria cultural.
Pode-se afirmar que a indústria da cultura tem feito da
educação um produto para consumo em larga escala ao
extirpar do conhecimento toda a profundidade, transformando-a em
um fator de renda, numa fonte de mais-valia. Para tanto, há
que se manter fiel aos ditames da economia de mercado, se necessário
até transgredir alguns valores, sob pena de experienciar
o fracasso econômico15. De igual modo a outros tipos de
empresas e fábricas da atual fase do capitalismo, os modelos
ditados pela indústria cultural advêm principalmente
de países que lideram o processo de recomposição
do capital.
Os países onde as transformações na base produtiva,
organizacional e gerencial se arrastam mais lentamente, reconhecem
a moral dominante até porque já não conhecem
outra: «[...] as massas logradas sucumbem mais facilmente ao
mito do sucesso do que os bem-sucedidos. Elas têm os desejos
deles. Obstinadamente insistem na ideologia que as escraviza»16. Ainda segundo Adorno, a indústria cultural fortalece
o processo de escravização do corpo e do espírito
há muito desencadeado pelo trabalho.
Movendo-se no sentido de descobrir veios de produtividade ainda
não explorados, a sociedade capitalista manipula o conhecimento
de modo a convertê-lo em fonte rentável17. Confere-lhe um caráter econômico. Os indivíduos
convivem diariamente com a possibilidade de obtenção
de conhecimento, diga-se informação cujo fundamento
é deslocado para o consumo. O conhecimento, aquele anunciado
pelos iluministas, que as condições factuais permitem
mas a sociedade posterga, permanece como possibilidade posta entre
parênteses, ainda que uma possibilidade cada vez mais real.
A manipulação se vale do cálculo de probabilidade
para induzir o indivíduo a acreditar que as chances de ser
ele o próprio a tirar a sorte grande são reais18.
A civilização atual educa aqueles que têm acesso
a esse «capital cultural» (para empregar o termo de Bourdieu19), socializando o conhecimento no
sentido de torná-lo cada vez menos natural, institucional,
espontâneo, e obtido segundo normas, modos e convivências
sociais. O capitalismo desfere um duro golpe sobre o conhecimento,
canalizando toda sua energia propulsora para o trabalho. Nesse sentido,
a análise dos primeiros efeitos das relações
entre a apropriação da indústria cultural pela
educação denota que tem sido posta em marcha uma tal
pedagogia empresarial que molda o trabalhador, e, por
extensão o indivíduo, com a finalidade explícita
de resolver problemas imediatos de produção e implícita
de conservar a sociedade de consumo.
Nesse modelo de sociedade, as ditas políticas de modernização
das práticas educativas estão baseadas em relações
de produção que demandam a automação
das relações sociais. Exatamente nesse aspecto pode-se
notar o caráter de ruptura desse tempo, pois cabe lembrar
que não havia nos primórdios da espécie humana
forma de comunicação que dispensasse a presença
dos interlocutores em um mesmo local. A memória social, por
exemplo, sobrevivia apenas nas recordações que eram
transmitidas de uma pessoa a outra, em particular à geração
seguinte, ou depositada em objetos manufaturados. A escrita e os
meios de transporte se mostraram mais efetivos que essas primeiras
formas de transmissão da cultura (e conseqüentemente
do conhecimemto), e foram possibilitando paulatinamente a superação
das relações que estavam limitadas a espaços
específicos.
Desse modo, as tradições sociais puderam assumir
um caráter mais amplo, paralelamente à ampliação
dos territórios controlados pelos Estados políticos
definidos mais tarde como Estados-nação. As
relações à distância tiveram distinta
intensidade e velocidade, e se desenvolveram aos poucos para atender
às atividades coletivas que dependiam de comunicações
que tinham lugar fora de relações de co-presença,
que, nesse estágio, eram não-simultâneas, como
as cartas enviadas de um lugar a outro. Os meios de transporte de
tração animal e por água, posteriormente a
vapor, como navios e trens, e mais adiante com veículos como
carros e ônibus, e, sobretudo, aviões, se somaram ao
desenvolvimento do telégrafo, do rádio e do telefone,
e, mais recentemente, da rede informatizada e digitalizada para
produzir alterações de enorme impacto nas relações
sociais, as quais alteram a própria relação
entre simultaneidade e co-presença.
Com isso, emerge um tipo de prática conhecida como ação
à distância, que foi apropriada pelas políticas
públicas de educação ao propiciar as condições
de implementação da modalidade de educação
à distância. A existência dessa forma de
educação se concretiza, ou pelo menos se amplia de
modo significativo, a partir de uma midiatização
das relações sociais, que, por sua vez, decorrem dos
processos de automatização das relações
de produção, seja por telefone, televisão ou
qualquer outro meio da dita comunicação de massa.
A contemporaneidade parece estar impregnada de uma existência
que se passa em grande parte no meio dos contatos mediatos e midiatizados.
A escrita, no entanto, ao contrário do que alguns teóricos
haviam predito, parece resistir, mesmo havendo cumprido papel crucial
no início desse processo de articulação espaço-temporal
das subjetividades coletivas (grupos, Estados, organizações,
civilizações), pois segue presente em recursos midiáticos
como a Internet. Aos usuários desse meio atual da indústria
cultural cabem novos espaços, como do correio eletrônico,
da World Wide Web, dos chats, das comunidades
virtuais (Orkut), entre outros recursos disponíveis
quando da utilização das novas tecnologias da informação.
Também nessa condição, o fetiche
da mercadoria do qual se reveste o conhecimento parece
revisitado sob a condição de igualdade cultural que
disfarçadamente domina, fazendo parecer possível o
equacionamento da distância entre a representação
e o real (Lévy, 1995)20. Assim, no nível do real,
na medida em que socializa democraticamente o conhecimento, os modelos
ditados pela indústria cultural, bem como os de indústrias
culturais, advêm principalmente dos países que lideram
o processo de recomposição do capital.
A oligopolização no terreno da indústria cultural
internacional pode ser observada quando se nota, por exemplo, que
a News Corporation Ltda., pertencente ao australiano
Rupert Murdoch, com patrimônio superior a 10 bilhões
de dólares em 1999 englobando redes de tv, tv a cabo,
satélites, estúdios de cinema, editoras, jornais,
gravadoras, serviços de telefonia e informática
é emblemático disso. De igual modo, as agências
de notícias internacionais que eram em número de quatro
até o final dos anos 90, a Reuters inglesa, com patrimônio
de aproximadamente 12,5 bilhões de dólares, a France
Press e duas norte-americanas, a Associated Press e a United
Press International que controlam a produção
e a circulação mundial de notícias.
Por outro lado, os caminhos da Internet se acham praticamente fora
de controle, e podem ser vistos como potencialmente propícios
à democratização. No entanto, são muitos
os indivíduos que se acham excluídos ou desigualmente
municiados com esses recursos, o que evidentemente recria estratificações
sociais.
5. À guisa das primeiras conclusões
A constatação de que o processo de midiatização
da indústria cultural lança os seus braços
à prática educativa, tende a reforçar, mais
uma vez, o caráter de intelectuais orgânicos
a ser desempenhado pelos sujeitos/agentes da prática educativa.
A função retratada por Gramsci deve ser atualizada,
pois, embora o substrato ideológico da indústria cultural
continue sendo o liberalismo e o individualismo típicos
da modernidade inaugurada com a chamada revolução
burguesa que resultou nos meios de comunicação de
massa21 , os conteúdos ideológicos transformaram-se
de modo estrutural22.
Essa mudança pode ser observada inicialmente pelo fato de
a indústria cultural abarcar, também, a prática
educativa, e, com isso, a transmissão de modo acrítico
do princípio do individualismo na valorização
da busca do prazer imediato, do sucesso e da felicidade, em substituição
aos velhos valores éticos do capitalismo clássico,
que preconizavam o trabalho e a disciplina como indispensáveis
à construção da posteridade e à realização
da predestinação23.
O hedonismo, o narcisismo, o conformismo e o consumismo são
os valores fundantes da nova cultura mundializada que
coopta a todos ao consumo de mercadorias dentre elas a própria
prática educativa oferecidas como chaves do sucesso,
do prazer e da felicidade.
Em tempos nos quais a escola se converteu em um negócio
da indústria cultural em pleno processo de expansão,
nessa fase de reestruturação das relações
de produção, parece um grande desafio romper com o
pensamento único e o consenso estabelecido a priori
com a disciplinarização homogênea ditada pelo
mercado. Isso porque, cabe lembrar, essa tendência a conferir
a tudo um ar de semelhança esconde, de fato, diferenças
e desigualdades social e historicamente construídas, fazendo
parecer semelhantes sociedades, classes e frações
de classe muito distintas.
Na história concreta dos sujeitos, mais do que nunca cabe
à escola desvelar e difundir programaticamente as resistências
expressas de distintas formas, que no momento oferecem alternativas
ao establishment decorrente da indústria cultural.
Para tanto, os professores devem estar capacitados para lançar
mão inclusive dos próprios recursos
da indústria cultural para possibilitar que as novas gerações
venham a recriar as relações entre economia e cultura.
Bibliografia
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Postman, N. (1994): Tecnopólio: a rendição
da cultura à tecnologia, São Paulo, Nobel.
Notas
1 As análises
podem ser vistas em profundidade a partir desse autores nas seguintes
obras: M. Castells (2001): A sociedade em rede. A era da informação:
economia, sociedade e cultura, trad. Roneide Venâncio Majer,
São Paulo, Paz e Terra, vol.1; J. Elster (1990): El cambio
tecnológico, Barcelona, Gedisa; P. Lévy (ed. 34) (1993):
As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na
era da informática. Rio de Janeiro; A. Schaff (1985): A sociedade
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Conversation with Marvin Minsk about Agents Comunication of ter
ACM, July 1994, vol. 37, n.° 7. p. 8.; N. Negroponte (1995):
A vida digital, São Paulo, Companhia das Letras.
2 Ver especificamente
R. Faoro (1992): A questão nacional: a modernização,
in A Bosi (ed.): Estudos avançados, n.° 14, vol. 6, p.
9, jan./abr, São Paulo, USP.
3 A. Touraine (1994):
Crítica da modernidade, Petrópolis, Vozes.
4 A propósito
desse tema, veja a epígrafe deste artigo.
5 T. Adorno e M. Horkheimer
(1985): Dialética do esclarecimento, trad. Guido Antonio
de Almeida, Rio de Janeiro.
6 A socióloga
americana S. Turkle (1995) tem realizado pesquisas sobre os efeitos
dos jogos eletrônicos e no desenvolvimento intelectual e sócio-afetivo
de crianças e adolescentes vivendo num universo saturado
dos recursos eletrônicos da indústria cultural. Ver
especificamente Life on the Screen -Iidentity in the age of the
Internet, Nova Iorque, Simon & Shuster. Ver também A.
Pacey (1990): La cultura de la tecnología, México,
FCE, e N. Postman (1994): Tecnopólio, trad. Reinaldo Guarany,
São Paulo, Nobel.
7 T. W. Adorno e M.
Horkheimer: Dialética do esclarecimento, p. 136.
8 A expressão
«semiformação» é empregada por
Adorno, no texto Educação e Emancipação,
para designar a formação unilateral própria
da cultura capitalista.
9 T. W. Adorno (1996):
«Teoria da semicultura», in Educação e
Sociedade, ano XVIII, n.° 56, dez., p. 94.
10 S. Schwartzmann
(1991): «Educação básica no Brasil: a
agenda da modernidade», in Estudos Avançados, USP,
São Paulo, Instituto de Estudos Avançados, vol. 5,
n.° 13, jan/abril, pp. 52-53.
11 F. A. Sobral
(1993): «Educação, universidade e sociedade»
in Natureza, história e cultura: repensando o social, Porto
Alegre, PPGS/UFRGS, Cadernos de Sociologia, vol. 4, n.º especial,
pp. 105-113.
12 T. W. Adorno
(1996): op. cit.
13 A agenda pendente
em termos de universalização da educação
básica figura como uma das prioridades nas políticas
públicas desde o final dos anos 80. No entanto, as questões
quanto à qualidade do processo ensino-aprendizagem são
reiteradamente objeto de análise, como, por exemplo, a constatação
de que os dados do Programa Acelera Brasil (ação que
visa a minimizar a defasagem idade/série) indicaram que,
no início do programa, 45% de alunos baianos não sabiam
ler. Técnicos do Ministério da Educação
dizem que, em certas regiões, já se chegou a detectar
um índice de 75% de alunos matriculados na quarta série
que não liam nem escreviam. Exames feitos durante o ano de
2000 pelo Sistema de Avaliação do Ensino Básico
(Saeb) mostraram que apenas 10% dos alunos da quarta série
aprendem Matemática satisfatoriamente. Os ensinamentos de
Língua Portuguesa surtem efeito somente para 42% dos estudantes
da rede pública. Sem dúvida, cabe uma análise
sobre o critério de «ensino satisfatório»,
bem como uma metaavaliação dos instrumentos utilizados
que diz respeito a outra discussão igualmente significativa
que não caberia neste artigo.
14 T. W. Adorno
e M. A. Horkheimer (1985): dialética do esclarecimento, Rio
de Janeiro, Zahar, pp. 119-135.
15 Para Maar, em
sua obra À guisa de introdução: Adorno e a
experiência formativa, «há uma transformação
básica na chamada superestrutura, confundindo-se os planos
da economia e da cultura. A indústria cultural determina
toda a estrutura no sentido da vida cultural pela racionalidade
estratégica da produção econômica, que
se inocula nos bens culturais enquanto se convertem estritamente
em mercadorias; a própria organização da cultura,
portanto, é manipulatória dos sentidos dos objetos
culturais subordinando-os aos sentidos econômicos e políticos
e, logo, à situação vigente. Além disso,
ocorre uma interferência na apreensão da sociedade
pelos seus «sujeitos» pelo mecanismo da «semiformação»:
seja com conteúdos irracionais, seja com conteúdos
conformistas» (p. 21).
16 A. Moles et al.
(1990): Teoria da cultura de massa, Rio de Janeiro, Paz e Terra.
17 Note-se, por
exemplo, que para Adorno, em suas análises sobre a questão
da indústria cultural, «a cultura é uma mercadoria
paradoxal. É de tal modo sujeita à lei da troca que
não é nem mesmo trocável; resolve-se tão
cegamente no uso que não é mais possível utilizá-la.
Funde-se, por isso, com a propaganda, que se faz tanto mais onipotente
quanto mais parece absurda, onde a concorrência é apenas
aparente. Os motivos, no fundo, econômicos» (p. 198).
18 Deve-se aqui remeter
à segunda citação da epígrafe deste
artigo.
19 O potencial explicativo
desse conceito deve ser retomado uma vez que «a noção
de capital cultural impôs-se, primeiramente, como uma hipótese
indispensável para dar conta da desigualdade de desempenho
escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais,
relacionando o «sucesso escolar», ou seja, os benefícios
específicos que as crianças das diferentes classes
e frações de classe podem obter no mercado escolar,
à distribuição do capital cultural entre as
classes e frações de classe». M. A. Nogueira
e A. Catani (1998): Escritos de educação, Petrópolis,
RJ, Vozes, p. 73.
20 Ver especificamente
P. Lévy (1995): O que é virtual, São Paulo,
Editora 34.
21 A dita formação
da «aldeia global» pode ser vista especificamente em
M. McLuhan (1971): Os meios de comunicação como extensões
do homem understanding media, São Paulo, Cultrix.
22 Ver especificamente
A. Gramsci (1978): Os intelectuais e a organização
da cultura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
23 Ver especificamente
M. Weber (1967): A ética protestante e o espírito
do capitalismo, São Paulo, Pioneira.
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