INTRODUÇÃO
Corpo, escolarização e intervenção
pedagógica
A corporalidade, no marco da intervenção escolar,
é uma categoria que se deve desnaturalizar, desuniversalizar
e despositivar. Não se deve pensar apenas em seu componente
biológico; ela é uma construção histórica,
social e cultural. Esta condição é a que lhe
permite a realização de aproximações
situadas no exercício modelador que o social tenta sobre
o corporal.
Diversas matrizes institucionais (a escola, o esporte, o trabalho,
a religião, os meios de comunicação, as disposições
jurídicas, etc.) se desdobram dramaticamente sobre a energia
corporal. Neste marco, a escola, através do dispositivo escolarizador,
é um dos cenários «artificiais» nos que
se opera a experiência dramática da encarnação
socializadora e subjetivadora.
A crescente desatenção da educação
pública (a de todos, a dos mais, a dos pobres), assim
como o encontro massivo e intespectivo entre diferentes,
em umas condições escolares improvisadas e inequitativas,
deixa escutar barulhos que devem ser atendidos. O trabalho precoce,
o maltrato social, escolar e familiar, a exploração
sexual, a manipulação laboral e a utilização
mediática e militar de meninos e meninas, a desnutrição,
o deslocamento forçado e o envenenamento do habitat, os modelos
corporais hegemônicos, o esporte de elites [...] masificados
e extrapolados a populações em condições
indignas ou mínimas de sobrevivência são assuntos
que devem chamar a atenção da comunidade acadêmica
regional.
Tratamos com corpos no plural, com corpos diferentes, e, fundamentalmente,
com possibilidades diferentes que tecem sobre fios muito delicados,
sobre tudo para os demais. Estamos pensando,ademais, naqueles que
não vão à escola ou os que assistem à
uma escola deplorável, transformada, de maneira hipócrita,
em uma escola-jardim de infância que funciona como dispositivo
estratégico de uma cultura de contenção
corporal que tenta invisibilizar o descontentamento e o
abandono. Falemos, por exemplo, dos meninos e meninas das periferias
africanas e latinoamericanas, que se mobilizam em um exílio
intinerante interno e externo de grandes proporções;
da criançada da imigração latinoamericana e
africana nos colégios públicos das cidades européias;
dos nativos e dos imigrantes bolivianos e peruanos que assistem
às escolas públicas dos bairros pobres das urbes argentinas;
dos meninos e meninas xiacravás ou dos pertencentes
às demais etnias de «escola aberta» que vivem
esquecidos no imenso Brasil; dos meninos e das meninas mapuches
no Chile; dos milhares de meninos e de meninas das «escolas
de acolhida» do deslocamento forçado – político
ou econômico –, nos grandes centros urbanos colômbianos,
equatorianos e venezuelanos; da infância e da juventude prostituídas
das grandes urbes da região. Diríamos que para todos
eles não contam as retóricas universais tipo «o
corpo», «a corporalidade» o «todas as crianças»
iberoamericanas, latinoamericanas, ou terceiro-mundista [...]. Para
eles, as generalizações estatísticas, intelectualistas,
ou burocráticas, se transformam em um fator mais de invisibilização
social, que encubre suas demonstrações sociais marcados
por uma alta dose de inquietude e de discriminação;
aqui, essas representações demandam uma aterrissagem
desde o drama social.
Na escolaridade, em seu conjunto, as estratégias de intervenção
social e pedagógica do corporal, deve sacudirse. A inserção
da infância e da juventude em espaços e em tempos forçados,
em códigos estranhos, em valores, em sensibilidade e em emoções
que quebram a continuidade históricas e culturais, instaura
novos usos do espaço e do tempo. A mobilização
escolar é dramática em toda a área. Abrem-se
espaços-tempos que permitem novas vivências corporais,
mas que aplicam intespectivamente, vertiginosamente, novas
formas de governo corporal (às vezes não tão
novos), que em seus afãs de eficiência integradora, esquecem
que a escola não é um fim em si mesma; se reatualiza
o conceito de escola como gaiola, como «camisa integradora»,
como meio de contenção corporal. Para o caso que nos
compete, se descobrem velhos e novos problemas da escolarização;
se perfilam outros endereços e outras motivações
para nossas buscas e nossas indagações; se abrem novos
desafios para a produção acadêmico-investigativa.
O drama deve tocar à porta da escola.
Nossas construções ao redor do corporal falam de
um corpo que possuímos, que formamos e que con-formamos,
que vivenciamos e que propiciamos, que desejamos; tais construções
devem evidenciar uma reorientação à busca de
um presente e de um futuro dignos; devem superar-se os limites que
impõem aquelas narrativas estreitas sobre a relação
entre o social, o escolar e o corporal.
A configuração de um espaço-tempo crítico
traz consigo umas demandas dramáticas; os tempos não
são monocrômicos; na cidade, no bairro, na escola,
há um alguém com quem as antigas normativas, os discursos
pedagógicos e as construções categoriais não
contavam. O ambiente educativo é heterogênio e híbrido,
e a lentidão do Estado e das próprias comunidades
intelectuais e escolares (incluindo os diretivos, ao professorado,
a pais e mães) para se colocar à altura com a realidade
corporal vivida, vai se constituindo lenta mas inexoravelmente em
um fator que, diante os olhos atônitos e desconcertados de
tais atuantes, facilita a segregação, a exclusão
e o aumento da frustração daqueles e daquelas que
chegam clamando, cada vez com maior veemência justa, por sua
almejada parte.
Como é de se esperar, dada a situação crítica
pela qual atravessa a escola, o professorado e a profissão
na áera, que a pesquisa, desde o próprio interior,
esteja limitada; o professorado não tem nem tempo nem recursos
para pensar, para ver-se; além disso, a recontextualização
do conhecimento acadêmico, do produto investigativo, das reflexões
sistemáticas que se realizam nas universidades e nos centros
de pesquisa, que por si mesmos chegam ao lentamente ao conhecimento
prático escolar, agora o fazem de maneira ainda mais
exígua. Não podemos tapar o sol com as mãos;
as instituições formadoras – dos formadores
do corpo –, têm que fazer um grande esforço para
contra-arrestar as forças que tendem a quebrar sua frágil
relação com a realidade da formação
básica.
Publicações e escolas de Magistério que se
fecham; faculdades de Educação que desequilibram-se
diante da abertura dos concursos para outras profissões não
pedagógicas; a desvalorização política
da pedagogia, das artes e da educação física,
unidas à desestimulação econômica e social
para a profissão de educador, pintam um panorama escuro.
A crítica escolar investiu quase meio século em superar
a posição «conformativa» tradicional
do corpo no espaço-tempo escolar [...]. Se diz que um
setor dela se dedicou a recompor e a maquiar sutilmente as velhas
práticas de disciplinamento e de ajuste regulativo do «o
corporal»; que outro setor, acomodado e integrado, inova no
«consentimento»; que outro mais, «preso no paradoxo
da indignação política e moral», centrado
na «crítica estéril» e na representação
da «escola impossível», não quer fazer nada
para que as coisas se façam de outra maneira; alguns otimistas
localizam, além disso, um pequeno setor dessa crítica
que propugna por estabelecer uma «desescolarização
da escola», postura que – se diz – querendo romper
a modorra escolar tradicional consentida, tenta levantar as bandeiras
de outra energia corporal desde a filosofia pública que integra
os problemas do poder, da política escolar e da escola, como
possibilidades de uma esfera pública democrática que
enlace o público com os imperativos democráticos e singulares
dos mais, para lá dar a própria voz aos corpos singulares
e romper sua obrigação. Diante deste amplo panorama,
surgem muitas questões.
Quais as relações se tecem entre las representações
do corpo que subjazem no conhecimento prático daqueles que
gestionam o cotidiano incardinamento corporal, e as representações
do corpo que se produzem nas universidades por parte dos pesquisadores
e das pesquisadoras nos centros de pesquisa?
Entradas no século xxi, qual é o panorama desse
paradoxo defensivo positivo, consentido, compreensivo ou crítico-radical
sobre as representações do corpo que desejam orientar
a intervenção corporal escolar?
Que representação do corpo circula em direção
à escola básica através dos meios de comunicação,
mediante os textos e os guias curriculares oficiais, dos textos
e dos guias patrocinados pela indústria editorial?
Que representação do corpo circula nos discursos
das inovações educativas, e que relações
contêm – ou mantêm – essas representações
com aquelas que circularam nos últimos duzentos anos em nossa
região sob o manto da civilidade e da modernidade, e dentro
dos modelos pastorais, disciplinares, corretivos e psicosociológicos,
cognitivos e comunicativo-expressivos da conformação
corporal?
Que linhas de representação do corpo se impõem
na normativa escolar nas diretrizas governamentais e na formação
dos formadores corporais nas esoclas de Magistério, das faculdades
de Educação, e nas de Educação Física
e Ciências da Atividade Física e o Esporte em nossa
região?
Que rotas hegemônicas e contra-hegemônicas se desenham
no pensamento social acadêmico da área em torno à
formação e à conformação corporal?
A escola pública é um espaço com espaço,
um tempo com tempo para uma formação simples que supere
as formas tradicionais de conformação corporal
centradas na regulação e na invisibilização
dos mais?
Que dizem, para quem e com quem falam os professores e as professoras
que pesquisam sobre o corporal?
Quais são as condições da conformação
corporal daqueles e daquelas que não chegam à escola?
Desde a escola devemos fazer a pergunta pelas condições
de possibilidade do corpo vivido, do corpo que chega a nossas mãos
com a ilusão ou pressão de ser formado, mas também
daquele corpo que chega pela metade ou do que não consegue
chegar, daquele que, na intempérie da escola, é conformado
a ponta de abandono e miséria.
No espaço interno e externo da escola estão, agora
mesmo, os e as escolares, sob fogo cruzado; em seus deslocamentos
cotidianos são vítimas de campos minados, do assédio
e a exploração sexual.
O corpo sofrendo reclama o foco de pesquisa da escola. Segundo a unicef,
quatrocentos milhões de meninos e meninas no mundo não
têm a água potável; cento e quarenta milhões
não vão à escola. Milhares deles e elas são
alistados militarmente e milhões vão à escola
para poder comer ou para poder guarnecerse das inclemências
sociais.
Milhões em sua vagabundagem forçada, fugindo, vão
de escola em escola; em suas curtas e passageiras estadías
sob o teto escolar burlam, pateticamente, qualquer precisão
estatística escolar.
William Moreno Gómez
Universidade de Antioquia, Colômbia
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