Isto não é um texto
Michèle Sato *
Síntese: Este texto é metafórico
e tenta aliar os aspectos fenomenológicos da Educação
Ambiental ao itinerário
surrealista de René Magritte. Através da deformação
das imagens, busca esvaziar-se contra os obstáculos epistemológicos à transformação
de idéias, pensamentos e sentimentos. Na reforma do conhecimento, ousa
um vôo vertical de aprendizagem bachelardiana ao transbordamento de sentidos
polissêmicos. Inacabado como o ser humano, o texto reconhece que a inexatidão
pode gerar desconforto. É proposital o enredo de tramas (deformação) à guinada
político-conceitual da reformação em Educação
Ambiental.
Síntesis: Este texto es metafórico e intenta asociar los
aspectos fenomenológicos de la Educación Ambiental al itinerario
surrealista de René Magritte. A través de la deformación
de las imágenes, busca descargarse contra los obstáculos epistemológicos
debidos a la transformación de ideas, pensamientos y sentimientos. En
la reforma del conocimiento, arriesga un vuelo vertical de aprendizaje de bachiller
al desbordamiento de sentidos polisémicos. Inacabado como el ser humano,
el texto reconoce que la inexactitud puede generar incomodidad. Es intencionado
el argumento de tramas (deformación) al guiño político-conceptual
de la reforma en Educación Ambiental.
* Doutora em Ciências, docente e pesquisadora da Universidade
Federal do Mato
Grosso e da Universidade Federal de São Carlos, Brasil.
Dificilmente encontraremos uma definição hermética
acerca da Educação Ambiental (ea) e talvez nossa
labuta seja exatamente esta – permitir que ela floresça
na sua exuberância de cores e perfumes, ora machucando com
seus espinhos, ora expondo suas texturas, aromas e sentidos polissêmicos.
Sua natureza política não se despede de sua poesia
e a flor poderá ser a metáfora emprestada para caracterizar
sua natureza ontológica. Agregando campos binários
tradicionalmente percebidos como opostos, reinventa a temporalidade
instituindo o conflito ao lado da solidariedade – caos na
harmonia, e noite e dia num só quadro que revele timidez
e valentia. É emblemática a pintura de René Magritte,
um surrealista belga que em seus impérios das luzes, desafia
a racionalidade iluminista e escurece o dia com estrelas da noite
na mesma tela. Um rinoceronte escalando uma torre de cimento pode
parecer brutal à estética da arte, mas talvez tenha
sido a fonte inspiradora de Fellini, no seu grandioso filme «La
nave va», com o rinoceronte num barco, levado pelas forças
dos remos à busca da esperança.
Será possível misturar poesia com ciências? – indagariam
as mentes cartesianas que dominam o mundo da academia. Octavio
Paz responderia: «Sem dúvida». Tanto as ciências
como as artes pertencem a ordem do caos antes de serem externalizadas
pelos sujeitos. Na abstração biológica da
flor, encontraremos o sistema de comunicação de xilema
e floema de um pedúnculo, que liga os elos de folhas, caules,
raízes e frutos, produzindo o encantamento na síntese
e antítese que converte o ato epistemológico no ato
poético. Ciências e poesias necessitam romper com
a dicotomia do espírito e da matéria, permitindo
que os sujeitos da Educação Ambiental (ea) pensem
com os corações, ou seja, permitam unificar a racionalidade
na sensação, oferecendo simultaneamente, o estranhamento
ao lado do maravilhamento. Fernando Pessoa complementaria afirmando
que tanto a arte como a ciência é uma confissão
de que a vida não basta e que novos caminhos podem ser traçados
neste itinerário da vida. Faríamos como Bachelard,
no deleite de que todo conhecimento das coisas torna-se um poema.
E assim como temos as poesias ingênuas, teremos também
as de contestação política. É nesta
segunda vertente que afinamos os acordes, e resgataríamos
Paulo Leminski, em afirmar que a poesia deve estar a serviço
da utopia, pois no fundo, o que queremos é mudar a vida,
alterar as relações de propriedades, diminuir as
diferenças das classes, promover a inclusão social
e a lutar pela proteção ecológica através
dos conceitos da democracia.
A poética excita a ea para que as idéias e as emoções
fluam na liberdade do movimento, banhada em luzes e sombras das
iconografias e linguagens de cada ser. Em todo momento de nossas
vidas, há sempre um duplo olhar perceptivo: As cores da
flor que percebemos externamente – e seu aroma que penetra
internamente em nossas memórias, vivências e saberes.
Arriscamos o possível machucado de seus espinhos com a dor
expressa pelo vermelho do sangue porque vale a pena ter a memória
deste momento pela cicatriz – que se esvai com o tempo, ou
que o corpo insiste em deixar a marca pela eternidade. Nenhuma
linguagem consegue, assim, traduzir a beleza e a feiúra
da nossa existência. Pelo menos não a palavra ordinária,
porque ela é «anulada no próprio momento em
que é compreendida» (Novaes, 2005, p. 13). Contudo,
podemos recorrer à linguagem poética, porque mágica,
produz uma sensação de feitiçaria e muitas
vezes, a memória faz emergir situações sem
nenhuma aliança com a realidade. Por um estalo cerebral
quase inexplicável pela ciência, lembramos de fatos
jamais ocorridos, pois embora nunca concretizados, representam
nossos desejos jamais adormecidos. Se os sonhos podem se caracterizar
como tradução da vida real, é possível
inverter a ordem e pensar que a vida também pode ser a tradução
do sonho.
Para Bachelard (1988, p. 4), «educar é uma
atitude filosófica para alimentar sonhos». Para a
formação
do sujeito, ele orientava que era preciso mergulhar no turbilhão
de dúvidas, inquietações e incertezas. Era
necessário revolucionar o modo de organização
dos grupos, num enfoque de uma geometria diligente não euclediana;
na dinâmica dos movimentos contra a inércia newtoniana;
e na construção de saberes sem fragmentos, naquilo
que hoje intitulamos de complexidade.
Em uma conversa com Michel Foucault, René Magritte teria
dito que o olhar assemelha-se àquilo que ouvimos, experimentamos
ou interpretamos. E ele se torna o que o mundo pode nos oferecer
(Gablik, 1970). Desafiando a supremacia da dialética hegemônica
que impõe apenas uma síntese, um quadro intitulado «férias
de Hegel» foi duramente criticado por alguns filósofos,
embora Foucault tenha publicado um livro em sua homenagem. Magritte
teve uma educação burguesa, estudou arte e participou
das duas grandes guerras. No movimento natural da metamorfose,
rebelou-se contra as injustiças e poderes econômicos,
se entregando na vida de militante no Partido Comunista belga.
Seus signos revelam a tendência marxista e freudiana, na
indissociabilidade de que nem o erotismo pode escapar dos sistemas
políticos... Como todo surrealista, valorizava muito mais
a transformação do que a verdade imutável
e encerrada em miopias da exagerada racionalidade. E para além
da beleza estética, procurava com idéia fixa pintar
e repintar, pensar e repensar num ciclo atemporal da vida contra
o relógio compassado e previsível que determina as
horas, mas que não domina a temporalidade metafísica
dos desejos. Era comum, assim, a recorrência a elementos
como chapéu, aves, cachimbos, maçãs e folhas
em vários ângulos, situações e olhares.
Assumindo a idéia fixa de Magritte no campo da ea, insistimos
em democracia, inclusão social e proteção
ecológica como persistência da plataforma política,
para que além da estética da beleza, possamos acolher
também a feiúra dos erros, dos limites e das ausências,
pois os valores éticos frente ao mundo e aos seus desafios
subjacentes clamam teimosamente para serem lembrados.
Num clima dramático de exaustão, talvez pudéssemos
pintar e repintar a noção de desenvolvimento, mesmo
que o mundo falseie aos nossos pés e que a ilusão
da noite cegue nossa capacidade de dialogar com o mundo. Recriaríamos
diversas pinturas, expressas pelas esperanças em se construir
sociedades sustentáveis, onde coletivos educadores possam
ser aceitos porque há diversos saberes e não apenas
os científicos. É preciso compreender que mais que
ciência, as políticas públicas em ea podem
ser construídas através de inúmeras vozes,
e que o porto seguro nem sempre atraca navios a deriva, maremotos
imprevisíveis ou baleias com desarranjos hormonais. Isso
implica dizer que nada assevera que a questão ecologista
esteja assegurada por uma minoria militante, e que nossa luta política
está longe de estar finalizada. Ainda que na árdua
tarefa, não é preciso abandonar a esperança,
nem a poesia para se combater o apartheid étnico, o fanatismo
religioso, ou a dominação da indústria bélica,
mesmo que certas ideologias do capital mostrem que a luta esteja
perdida antes mesmo de se começar a proteger a Terra.
Como será possível transcender a herança da
Modernidade, até alcançar e exceder os limites da
própria significação pós-moderna da
ea? Na combustão da chama que acende e apaga os diversos
campos de saberes da ea, é preciso evocar a educadora ou
o educador ambiental em sua nudez, no ímpeto do silêncio
ou do vanguardismo, sem se deixar dividir pela grosseira dualidade
filosófica do sujeito e objeto – na ruptura do individualismo à construção
do coletivismo. A dominação do capital, a crise do
petróleo, as corrupções em todos os níveis,
a escassez da água, a miséria e a pobreza não
estão em esconderijos – saem das cavernas e estão
explicitamente apresentados. É necessário vencer
o medo do abismo, arriscando a sentir o aroma da flor, porque o
mundo também precisa de panfletários, poetas e loucos
que não abandonem a causa ecologista para que a Terra continue
habitável para todas as formas de vida dependente de seus
elementos circundantes.
Na poética da ea, a atenção à degradação
ambiental muitas vezes deixa escapar a injustiça social.
Por isso, é preciso reivindicar uma consciência reflexiva
de que toda miséria humana está intrinsecamente relacionada
com os impactos ambientais. Teremos o enorme desafio de transformar
a po-ética em sua dimensão política, pois
a história da civilização do Homo sapiens já comprovou
que os prejuízos dos danos ambientais recaem sempre nas
camadas economicamente desfavorecidas. De origem no apartheid ambiental
dos Estados Unidos, onde as negras e os negros são as vítimas
das violências sócio-ambientais, o movimento da Justiça
Ambiental clama pela apreensão da complexidade do mundo
sem obstruir seus limites. A beleza e a feiúra novamente
se negam, mas se exigem conjugadas. Para além de pragmatismos, é preciso
um fecundo repensar a vida, sem restos ou enigmas vazios, mas com
coragem de assumir a injustiça presente nas inúmeras
sociedades.
«Não devemos temer a claridade do dia só porque ela pode
revelar a miséria do mundo» (Magritte apud Abadie,
2003, p. 23). E porque na escuridão da noite, não há centros,
nem periferias que resistam às vozes murmurantes da consciência – os
fantasmas espreitam nos relâmpagos da mediocridade, e juntamente com
as luzes dos raios, conseguem denunciar a desventura planetária. Nem
o erotismo noturno consegue escapar das armadilhas, pois a ironia do dualismo é mais
inexaurível: as máquinas do mundo se contrapõem e se espelham
no crepúsculo da aurora que anuncia a claridade de um novo dia.
Na dimensão político-poética da ea, não
há orientações pedagógicas magistrais
de receitas prontas, cartilhas que promovam o abc de estratégias,
ou bússolas que mostrem apenas um eixo «norteador» do
Universo, senão um conjunto de tentativas e erros, com acúmulo
de dissabores e que muitas vezes nem alcançam a beleza da
flor. A educadora ou o educador ambiental situam-se, assim, num
enigmático mundo de descobertas, com dúvidas por
onde caminhar ou qual itinerário seguir. O que move a ea
não é suas temáticas abrangentes, mas localiza-se
no enredo que se trama para que o mundo se mostre extraordinário,
revelando que «o mundo não cabe no mundo e o real
não cabe no concebível» (Wisnik, 2005, p. 31).
Talvez seja esta linguagem político-poética que permita
tomar René Magritte como fonte inspiradora à ea,
pois ao pintar um cachimbo, denomina-o no paradoxo do título: «Ceci
n’est pas un pipe» (isto não é um
cachimbo). Misterioso, a literatura revela que ele odiava ser objeto
de análise ou explicação, e afirmava que antes
de se impor uma explicação de seus mistérios,
seria necessário desvendar o conceito da palavra «explicação».
Não há psicanálise que explique esta obra,
reclamava ele. De fato, a pintura não é mesmo um
cachimbo, mas apenas sua percepção projetada numa
tela. No contexto Magritteano, talvez possamos afirmar que o que
aqui está escrito não é um texto, senão
percepções submersas vindas na tela de um computador
que, apaixonadas, superam a frieza do teclado e tentam fazer emergir
a sensibilidade da ea. Para além destes olhares, Magritte
incitava o espírito crítico da dúvida. Não
será um cachimbo? Isso será mesmo um texto?
Wisnik (2005) afirma que é preciso discordar, pois o pensamento é negador
por natureza. A razão negante, ou a Filosofia do Não
de Bachelard (1996), criticam, se problematizam continuamente,
sofrem metamorfoses porque se movem.
A ea pode imergir no pensamento Bachelardiano, contornado pelo
surrealismo de Magritte nesta analogia de desejar da formação
integral dos sujeitos, via poesias e ciências, que não
depende de uma finalidade utilitária e imediata, mas que
represente um processo na formação de um mutante
que sofre se não ousar a transformação.
A linguagem passa por uma retificação conceitual
dos erros, dentro de um processo de realização que
passa por mediações experimentais através
de uma precisão discursiva. O espírito científico
nasce de uma forma livre e quase anárquica, numa dinâmica
da curiosidade e admiração (Bachelard, 1996, p. 36).
Bachelard, assim como Magritte, rompiam com o dualismo de fatos
e signos, buscando a mediação entre a história
e a poesia (filosofia do entre). Recusaram-se às
velhas pautas da generidade, ou da uniformidade, clamando pela
importância da particularização, sem contudo,
despedir-se da unidade na complexidade (filosofia do detalhe).
Esforçaram-se na compreensão transcendental do devir
e na aceitação de que os pensamentos humanos se expressam
de variadas maneiras (filosofia diferencial). Ambos lutaram
contra obstáculos epistemológicos, permitindo que
a ciência abraçasse a poesia (filosofia do contra),
na construção de novas formas de romper com a dualidade.
Mergulhados na dialética não hegemônica do
pensamento, eles visavam a construção da crítica
e da autocrítica (filosofia do não) sem medo
de erros, fronteiras ou inadvertências. E fundamentados na
incerteza e no desconhecido, assumiram riscos do caos, sem a pretensão
de dar a última palavra, ou representarem o único
modelo possível de pensamento social (filosofia aberta).
Na eloqüente tentativa de mudar o mundo, eliminando os medos
e as injustiças sócio-ambientais, é preciso
coragem de florescer superando os despenhadeiros. Haverá contradições,
sem dúvida, porque ontologicamente não somos desprovidos
de binarismos. E ainda que ta-teando no mundo, as educadoras
e os educadores ambientais emergem de suas loucuras e se comunicam
superando a fatalidade – são foragidos, mas são
poetas que se situam no mundo. Fazem intersecção
das paisagens internas e externas, procurando almas gêmeas
que compreendam a tragédia ecologista e que mergulhem em
mundos com cosmologias contraculturais.
Na recuperação fenomenológica, Wisnik (2005,
p. 34) pondera: «se no pensamento eu sou o outro de mim,
no sentimento, o outro é eu». Na vertigem transpessoal,
o eu se põe e se desloca em relação ao outro.
E corroído pela negação, só se recupera
pelo fio que resiste da dor cósmica do Universo. «Poesia
e mundo se relacionam por escaramuças, reciprocamente excludentes
e includentes, se contendo e se negando, se espelhando e se enganando» (p.
35).
A flor que abre o título deste não-texto, e que agora
caminha para sua morte, tem viés utópico num movimento
dinâmico de texturas perfumadas e de cores opacas que querem
anular a lucidez da luz. Os tecidos se soltam, se amarelam na dramática
aceitação de sua própria extinção,
denunciando o pesadelo da história de que situação
semelhante pode ocorrer com a Terra. Contudo, e assumindo a própria
contradição, não quer perder as esperanças
da sustentabilidade planetária. Busca a recuperação
em Hanna Arendt (2001), na sua consideração de que
possa existir uma produção imaterial da própria
existência. As educadoras e os educadores ambientais desejam,
enternecentemente, algo que abrigue a condição imortal
da Terra para que as renovações sejam possíveis
e que o labor do agasalho, da alimentação ou do sexo
alcancem as nuvens no céu azul de René Magritte,
porque a poética do planeta Terra deve ser eterna no pulsar
cósmico da plenitude da vida.
Bibliografia
Abadie, Daniel (ed.) (2003): Magritte, Nova York, Art Publishers.
Arendt, Hanna (2001): A condição humana, São
Paulo, Forense Universitária.
Bachelard, Gaston (1988): «A poética do espaço»,
in Abril Cultural, (os pensadores), pp. 93-266. São
Paulo.
Bachelard, Gaston (1996): A formação do espírito
científico, Rio de Janeiro, Contrapontos.
Gablick, Suzi (1970): Magritte, Nova York, Thames and
Hudson World of Art.
Novaes, Adauto (2005): «Pensar o mundo», in Poetas
que pensaram o mundo, pp. 7-18, São Paulo, Cia. das
Letras.
Wisnik, J. Miguel (2005): «Drumond e o mundo», in Adauto
Novaes (org.): Poetas que pensaram o mundo, pp. 19-64, São
Paulo, Cia. das Letras.
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