Educação para e-cidadania:
entre a reinvenção das práticas cívicase
o neo-tecnicismo
Márcia Lopes Reis *
SÍNTESE: Na ausência de um novo tipo de cidadania
perante o processo de mundialização das relações
sociais, políticas e econômicas, o discurso internacional
dos direitos humanos, agora formalmente universalizado, parece
ser o único elemento unificador com legitimidade suficiente
para promover as compensações sociais e os controles
necessários à globalização em curso
que tem resultado no redimensionamento dos Estados como nações.
Nesse cenário de crise dos Estados soberanos que, direta
ou indiretamente, tem redimensionado a forma de compreensão
da cidadania, este artigo trata das interações sociais,
que têm posto em xeque a educação, como valores
a serem promovidos: a reinvenção de outras práticas
cívicas ou tendência a um novo tecnicismo, que atribui
ao acesso às tecnologias da informação e
do conhecimento uma condição que torna secundária
a importância dos valores de uma cidadania comprometida
com os aspectos civis, políticos e sociais a serem exercidos
em uma outra utopia a ser construída - a saber - a "ágora
eletrônica".
SÍNTESIS: En la ausencia de un nuevo tipo de ciudadanía
frente al proceso de mundialización de las relaciones sociales,
políticas y económicas, el discurso internacional
de los derechos humanos, ahora formalmente universalizado, parece
ser el único elemento unificador con legitimidad suficiente
para promover las compensaciones sociales y los controles necesarios
a la globalización en curso que tiene resultado en el redimensionamiento
de los Estados como naciones. En este escenario de crisis de los
Estados soberanos que, directa o indirectamente, tienen redimensionado
la forma de comprensión de la ciudadanía, este artículo
trata de las interacciones sociales, que ponen en jeque la educación,
como valores a ser promovidos: la reinvención de otras
prácticas civiles o tendencia a un nuevo tecnicismo que
atribuye al acceso a las tecnologías de la información
y del conocimiento una condición que convierte en secundaria
la importancia de los valores de una ciudadanía comprometida
con los aspectos civiles, políticos y sociales a ser ejercidos
en otra utopía a se construir - a saber - el "ágora
electrónica".
1. Introdução
[...] toda ferramenta está impregnada
de um viés ideológico, de uma predisposição
a construir um mundo como uma coisa e não como outra, a
valorizar uma coisa mais que outra, a amplificar um sentido ou
habilidade com mais intensidade do que outros1.
A discussão em torno das relações entre a
educação e a formação para o exercício
de uma cidadania diferenciada pelas ferramentas das quais os direitos
e os deveres cívicos passam a dispor - as tecnologias da
informação e da comunicação - constitui
o cerne deste artigo. Inicialmente, a epígrafe aponta no
sentido do pressuposto de uma relação intrínseca
entre técnica e ideologia (Habermas,1987) condição
que resulta em mudanças que têm implicações
de cunho teórico e prático do que venha a ser "cidadania"
quando exercida, valendo-se dos mesmos instrumentos da "revolução
da microeletrônica" que estruturam o cenário de
mundialização do capital (Chesnais, 1997), da sociedade
informática (Schaff, 1995 ) ou do conhecimento (Castells,
1999; Lojkine, 1995).
Originária de um contexto de ascensão do conceito
de Nação, a cidadania parece revista em seus fundamentos
e, no contexto mundial, pode-se afirmar que tende a ser, em parte,
substituída pelos direitos humanos (Bobbio, 1992). Na atual
fase de desenvolvimento do capitalismo, quando se fala em e-learning,
e-governance, dentre outras novas formas de relações
sociais mediadas pelas tecnologias da informação e
da comunicação (TIC), como compreender a prática
de direitos cívicos quando levados a cabo valendo-se desses
recursos? Em que medida os direitos humanos e a cidadania convergem?
Seria possível conceber uma e-cidadania sem os riscos de
um neo-tecnicismo? Como as práticas educativas se relacionam
com as demandas para uma formação cívica nesses
novos moldes? Haveria meios de reinvenção das práticas
cívicas, ainda que modificadas, para que a convivência
humana não retorne aos modelos hobbesianos, seja o da "lei
da selva", do Homem como lobo do Homem, seja o da solução
absolutista, esmagadora dos direitos? A intenção deste
artigo é, deste modo, repensar as questões referentes
a uma dita cidadania em tempos de mundialização das
relações sociais, políticas, econômicas
e culturais, bem como analisar as tendências das interações
decorrentes desse processo com as práticas educativas.
2. Cidadania e direitos humanos como coetâneos do Estado-Nação
Um dos primeiros impasses conceituais, com implicações
na prática cotidiana, seria decorrente da análise
das pré-condições para o surgimento do conceito
de cidadania. Cabe considerar que, desde a superação
do Absolutismo com o advento dos Estados modernos, os conceitos
de soberania e cidadania são vinculados à idéia
de direitos humanos. Enquanto outros fatores como a localidade,
a identidade e a história comum influem na construção
da nacionalidade, a noção de cidadania reporta-se
à Nação como espaço de realização
individual e coletiva, politicamente organizada no Estado soberano,
nacional ou plurinacional (a Suíça, por exemplo) como
entidade que assegura os direitos, bem como o próprio Direito.
Ainda que esses direitos fundamentais não tenham sido inteiramente
assegurados - e esse início de século está
pródigo de exemplos de violação desses direitos
considerados básicos - ou ainda que nem todos os habitantes
de um Estado qualquer tenham alguma vez vivido em perfeita harmonia,
essa instituição social tem como uma de suas funções
precípuas o compromisso de assegurar esses direitos. Assim,
o Estado - administrado por representantes da própria cidadania
- mesmo quando leva seus nacionais à guerra, ou estabelece
normas coercitivas ou, ainda, cobra mais impostos, o faz no sentido
- evidenciado nas práticas discursivas - de garantir seus
direitos como cidadãos.
Interessante observar que a adoção pela Organização
das Nações Unidas (ONU) da Declaração
Universal dos Direitos Humanos deixa em segundo plano a proclamação
de direitos humanos pela Assembléia Nacional Francesa definida
como cidadania moderna até mesmo no título: "Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão". Esse título
indica que todo homem, como expressão da espécie,
tem direitos inerentes a sua natureza humana que, paradoxalmente,
são exercidos na prática da cidadania. Com linguagem
e efeitos universalizantes, a declaração da França
revolucionária redefiniu também a soberania estatal,
estabelecendo, em seu artigo 2.º, que o "objetivo político
de toda associação política é a preservação
dos direitos naturais e inalienáveis do homem" (à
liberdade, à propriedade, à segurança e à
resistência à opressão) e, no artigo 3.º,
que "a fonte fundamental de toda soberania reside na nação".
A vinculação entre cidadania e direitos humanos perpassa
também as análises da crítica marxista ao Estado
e ao Direito: as reservas de Marx aos "direitos burgueses"
consagrados nas declarações norte-americanas e francesa
do século XVIII prendiam-se à percepção
de que, ao protegerem a propriedade privada como um atributo natural
e inalienável, elas estabeleciam uma igualdade jurídica
puramente formal, legitimando a exploração capitalista
do proletariado. A cidadania política seria, pois, a seu
ver, um artifício do capitalismo para administrar a mais-valia
em territórios estanques, ocultando a luta de classes, cuja
solução seria possível com a revolução
proletária (necessariamente internacionalista). Será
importante considerar o caráter prospectivo desse teórico
quando se refere a uma cidadania que vai além das fronteiras
dos Estados-Nação.
Por sua vez, as análises não-marxistas mais influentes
da vinculação entre cidadania e os direitos humanos
advêm de Marshall (1950): após haver observado as experiências
britânica e norte-americana, identifica elementos articuladores
da cidadania moderna. Assim, os direitos civis conquistados no século
XVIII, os direitos políticos no século XIX e os sociais
no século XX seriam instrumentos legais de luta para a conquista
dos direitos econômicos e sociais sem recurso à revolução.
Ainda que em relação aos governos autoritários,
no final do século XX como no Século das Luzes, as
primeiras preocupações tenham se voltado naturalmente
para a obtenção de liberdades civis e políticas,
nos países de regime democrático o entendimento hoje
predominante no movimento em prol dos direitos humanos parece aproximar-se
bastante da interpretação de Marshall, mesmo que não
tenha sido formulada nesses termos: os direitos humanos não
abolem nem negam a idéia de luta de classes, mas são
importantes para atenuarem os malefícios sociais do capitalismo
incontrolado. A atenuação se obtém pela expansão
do conceito de direitos fundamentais e inalienáveis das tradicionais
"liberdades burguesas" - ou direitos "de primeira
geração", que exigiram do Estado apenas "prestações
negativas" - de forma a abranger também os direitos
econômicos e sociais - ou direitos de "segunda geração",
pelos quais o próprio Estado passa a ter obrigação
de realizar "prestações positivas" para
a garantia do trabalho, da remuneração justa e eqüitativa,
da proteção social, da educação gratuita,
pelo menos nos graus elementares, de condições apropriadas
de vida, em particular na esfera da saúde com a implementação
das condições de saneamento básico, por exemplo.
Num movimento contraditório, impulsionado pela globalização
incontrolada e pelo fim das ideologias alternativas ao status quo,
com o respaldo militante das teorias pós-estruturalistas,
um outro tipo de fragmentação de caráter cultural
se manifesta na exacerbação do comunitarismo simbólico
ou imaginário. Como o Estado tem se tornado aparentemente
fraco e o espaço nacional já não assegura a
realização dos direitos fundamentais de todos, a Nação
parece ter perdido, em parte, sua conotação valorativa.
Assim, foram revistos os conceitos de classe que fundamentavam os
processos de auto-identificação e têm sido relativizados
pelo consumo de massas e pela competição exacerbada
por empregos escassos, bem como a idéia de Nação
organizada em Estado, entidade sem capacidade de garantir a não-discriminação
entre seus cidadãos. O indivíduo, com isso, tende
a se identificar com outro tipo de comunidade, por raça,
religião, gênero ou orientação sexual,
por origem étnica ou nacional, diversa da maioria. Ainda
no sentido desse movimento contraditório, na Europa, crescentemente
integrada pelas instituições da União Européia,
nota-se uma acentuada revalorização de localismos
sub-nacionais, inclusive com o cultivo de línguas antes quase
extintas como o bretão no norte da França, o gaélico
na Escócia e País de Gales, ou o catalão oficializado
em toda a Catalunha. Nos EE.UU, país considerado extraordinariamente
patriótico, que funciona como pólo econômico
e estratégico do mundo globalizado, o cidadão norte-americano
orgulha-se - de modo mais acentuado do que o de outras nações
- de sua cidadania nacional. Mas ela não é única:
a identidade do cidadão norte-americano, antes marcada fortemente
como branca ou negra, protestante ou não-protestante (judia,
muçulmana, católica romana, ortodoxa, hindu ou esotérica
de mil matizes), feminina, masculina ou homossexual, nativa, hawaiana
ou asiática passa a ser vista pela descendência étnica
como "raça": brancos (euro-americanos, sobretudo
anglo-saxões) ou hispânicos (que não incluem
necessariamente os espanhóis), sendo semitas apenas os judeus,
não os árabes. Se, por um lado, esse mosaico de identidades
tem permitido às comunidades simbólicas lutarem pelo
reconhecimento de direitos particularizados (através, por
exemplo, de "ação afirmativa" ou do aprendizado
de qualquer conteúdo escolar na língua de origem),
por outro lado, ao enfraquecer a noção marshalliana
de cidadania, outras tendências parecem se configurar: a afirmação
do "direito à diferença" é positiva
quando utilizada num sentido antidiscrimatório. Se instrumentalizada,
porém, numa linha de radicalização, ou em sociedades
onde o dualismo entre os segmentos modernos e arcaicos sejam muito
acentuados, ela pode levar a impasses aos avanços sociais,
isso porque o "direito à diferença" de alguns
poderá servir de escusa à intolerância de outros.
Resultante da conjunção de fatores cujas causas iniciais
são fatores econômicos e culturais, a fragmentação
da comunidade nacional assume feições paroxísticas
quando as comunidades simbólicas de auto-identificação
se tornam fundamentalistas, em torno da religião, da etnia
ou de qualquer outro desses liames simbólicos. Até
o fim da Guerra Fria, o fenômeno parecia localizado em regiões
específicas, servindo de amálgama para alguns movimentos
antiocidentais ou contrários às forças dominantes:
os Black Muslims norte-americanos, organizados na Nação
do Islã (antípoda à "Identidade Cristã",
inspiradora da Ku-Klux-Klan); a revolução xiita do
Irã (contra o regime ocidentalizado do Xá), o exército
Republicano Irlandês (contra o domínio de Londres);
os separatistas bascos na Espanha e na França, entre outros.
No início da década de 1990, o fundamentalismo baseado
na religião manifestou-se de forma bélica sobre os
Bálcãs iugoslavos (primeiro na Croácia, em
seguida na Bósnia - e, finalmente, em Kossovo). Espalhou-se
pelo mundo muçulmano, com atentados terroristas antiocidentais
ou anti-seculares, dentro e fora dos países de origem, de
forma tão vigorosa que permitiu ao Ocidente, durante certo
tempo, assimilar o fundamentalismo à religião islâmica
(sem considerar que sua primeira e mais duradoura manifestação
na década foi cristã e européia, na Iugoslávia
pós-comunista). Neste início de século, o fundamentalismo
muçulmano não soa diferente de outros fundamentalismos
mais ou menos virulentos como hinduísta, católico,
protestante, judeu ortodoxo, ou, diante da proliferação
de seitas salvacionistas, do crescente nacionalismo pan-eslávico
na Rússia, da força persistente de bandos e partidos
de ultradireita na Europa, do res-surgimento das milícias
"nativistas" e de outros grupos militantes propagadores
de ódio (hate groups já presentes em alguns sítios
da rede mundial) que constitui parte dos novos recursos a serem
empregados no exercício da cidadania: anti-negro, anti-judeu,
anti-imigrante, anti-homossexual, anti-aborto (que defendem a vida
dos fetos colocando bombas em clínicas) nos Estados Unidos
- sem citar casos isolados, mas freqüentes, de jovens que executam
seus colegas com armas de fogo, para, em seguida, suicidarem-se
em colégios de classes abastadas.
Arendt (1987) analisou o fenômeno dos totalitarismos do século
vinte à luz, sobretudo, da destituição da cidadania
alemã pelo regime nazista e, a partir daí, definiu
a cidadania como o pertencimento a uma comunidade disposta e capaz
de lutar pelos direitos de seus integrantes, como o "direito
de ter direitos". Essa definição devidamente
atualizada no contexto da globalização - com seus
efeitos excludentes - parece apresentar resultados diferenciados:
por um lado, seguem tendo direito a ter direitos, aqueles que estão
incluídos no referido sistema, enquanto outros, os socialmente
excluídos, providos ou desprovidos de direitos políticos,
têm, em teoria, quase sempre uma cidadania política,
mas não se lhes proporciona, na prática, seus direitos.
Isso, em parte, porque não havendo uma cidadania internacional,
os direitos humanos não têm no mundo globalizado a
força instrumental identificada por Marshall para a construção
de uma cidadania a partir de Estados soberanos. No entanto, os direitos
humanos, inclusive os de primeira geração, malgrado
as reservas de Marx, sempre foram um recurso progressista, dos desprovidos
de poder, para obter modificações no status quo. Da
mesma forma que foram utilizados pela burguesia contra o Ancien
Régime e pelos trabalhadores europeus para o reconhecimento
de seus direitos, podem e devem ser apropriados em sua indivisibilidade
para a obtenção de ganhos perante os globalizados
em favor dos excluídos. Trata-se, portanto, de uma prática
diferenciada de cidadania que parece transpor os limites historicamente
impostos pelo advento do Estado-Nação, caracterizando
uma condição na qual, globalizados ou excluídos,
são assim classificados pelo acesso (ou não) aos recursos
das novas tecnologias como forma de prática cívica,
realizada muitas vezes à distância, constituindo uma
espécie de eletronic-cidadania.
3. Eletronic-cidadania: de que estamos falando?
A compreensão da definição da e-cidadania
demanda rever algumas "experiências cruciais" -
para dizer com os termos de Khun (1975) - que servem como indicadores
de crise e mudança de paradigmas, nesse caso, de exercício
da cidadania. A primeira delas ocorreu em 1998 quando o subcomandante
Marcos, na selva Lacandona, no interior do México, informou
os jornais, organizações não-governamentais
e agências de notícias de que o exército Mexicano,
por ordem do presidente Zedillo, fora autorizado a reprimir aqueles
índios da região dos Chiapas, organizados em um Exército
Zapatista de Libertação Nacional que lutava e reivindicava
o reconhecimento dos seus direitos e a propriedade das suas terras
ao governo. A ação do governo, que prometia ser um
massacre contra os insurgentes, foi abortada pelo uso da Internet.
A segunda "experiência crucial" ocorrida em fevereiro
de 2003, foi uma reação à intenção
do presidente americano, George Bush, com o apoio do governo inglês
de Tony Blair, de invadir o Iraque sob a alegação
de que o então presidente iraquiano, Saddam Hussein, guardava
armas químicas e biológicas. Diversas manifestações
contra a guerra ocorreram no mundo. A organização
não-governamental americana "MoveOn - Democracy in Action"
organizou um movimento de oposição à guerra,
preparando uma "marcha virtual a Washington" que foi divulgada
em várias páginas eletrônicas e jornais do mundo.
No dia marcado - 23 de fevereiro? dos mais diferentes países
as pessoas enviaram mensagens que superlotaram os endereços
eletrônicos, fac-símiles e telefones da Casa Branca
com mensagens contra a guerra.
A terceira experiência mais localizada - no Brasil e a partir
de 1995 - foi a implementação de uma série
de projetos de inclusão digital levadas a cabo por Organizações
Não-Governamentais que procuravam articular o conceito de
cidadania à inclusão digital, tendo como premissa
a condição de que a apropriação dos
códigos derivados das tecnologias da informação
e da comunicação se constituem em uma via para a participação
cidadã. O resultado foi o incentivo à criação
das Escolas de Informática e Cidadania pelo Brasil que buscam
atingir, principalmente, o público jovem.
Essas experiências denotam o caráter de uma prática
de cidadania levada a cabo pela abrangência de possibilidades
das TIC, sobretudo a partir da década de 1980 quando pessoas
que tinham se conhecido por meio de (tele)conferências deram
início ao processo de formação de redes como
movimentos sociais, tendo o computador como recurso predominante
nessas relações. Rheingold (1996), ao analisar os
efeitos políticos das novas tecnologias da comunicação
e da informação, apresenta duas idéias gerais
opostas em relação à previsão dos impactos
desses recursos: uma idéia é a visão utópica
da "ágora eletrônica", uma espécie
de "Atenas sem escravos", viabilizada pelas telecomunicações
e computadores acessíveis e implementados por redes descentralizadas
de fácil acesso à comunicação e à
informação; a outra combina a visão de consumidor
como mercadoria, explorando-se as informações adquiridas
e vendendo-as às empresas, com as questões relativas
à invasão da privacidade possibilitadas pelas redes
telemáticas. Em se tratando da "agora eletrônica"
ocorreria a manifestação livre da comunicação
e informação por parte dos indivíduos e grupos.
A rede de comunicações livres, informais e pessoais
se constitui em um aspecto intrínseco das sociedades democráticas,
consubstanciando-se na formação da opinião
na esfera pública:
[...] a esfera pública é, no dizer destes críticos,
aquilo que pos-suíamos enquanto cidadãos de uma
democracia, mas que perdemos com a maré da mercadorização.
A esfera pública é igualmente o foco de esperança
dos ativistas on-line, que vêem nas comunicações
mediadas por computador uma forma de revitalização
do debate aberto e generalizado entre os cidadãos, que
constitui a raiz das sociedades democráticas (Rheingold,
1996, p. 339)
Uma segunda escola de críticos fundamenta-se
no fato de que as redes interativas possam ser utilizadas como meio
de vigilância, controle e desinformação, para
além de canal de informação considerado útil.
Essa escola de críticos alerta que, quando uma pessoa utiliza
o sistema eletrônico, pistas são deixadas, constituindo
um indicador dos futuros problemas de privacidade. Por exemplo,
governos e empresas podem se valer das informações
da pessoa para finalidades diversas, como realizar uma operação
eletrônica em meio virtual. Essa escola de críticos
é denominada de panóptica, em referência à
construção proposta por Bentham (1985)2.
Uma terceira escola de críticos, da denominada escola hiper-realista,
acredita que as tecnologias da informação transformaram
a realidade em uma simulação eletrônica. A política
é vista como um filme, um espetáculo, que faz emergir
a tática romana do "pão e circo" ao nível
do hipnotismo das massas. Para estes, a hiper-realidade é
cuidadosamente elaborada para "mimar" o mundo real e extrair
dinheiro dos consumidores. Para esses hiper-realistas, a utilização
das tecnologias da informação e comunicação
torna-se poderosa conduta para o "desinformodivertimento",
e o jogo de poder que ocorre nos bastidores das redes telemáticas
provoca "[...] a substituição da democracia por
um estado mercantil global, que exerce o controle através
da manipulação do desejo, e não pelos meios
de vigilância e controle mais ortodoxos" (Rheingold,
1996, p. 358).
Uma reflexão sobre o diferencial do exercício de
uma espécie de e-cidadania não pode deixar de considerar
que o fortalecimento das práticas democráticas não
se reduz às estruturas comunicacionais eficientes e instituições
propícias à participação, mas, também,
devem envolver a motivação, o interesse e a disponibilidade
dos sujeitos em relação aos temas que dizem respeito
à sua condição de cidadãos. Ocorre que
a formação para o exercício pleno da cidadania
constituiu, ao longo de todo o século XX, tarefa precípua
da escola ao lado da preparação para o mercado de
trabalho, sendo que essa capacitação profissional
demandava o aprendizado de habilidades para operar os recursos das
novas tecnologias da informação e comunicação.
Nota-se, sobretudo nas últimas décadas do século
passado, que a própria cidadania - para ser exercida em sua
plenitude - tem, igualmente, requerido conhecimento de competências
e habilidades decorrentes do emprego dos recursos dessa revolução
da microeletrônica até então restritos às
forças produtivas.
4. Nesse cenário, qual é a função
da escola?
Inicialmente cabe lembrar que a escola - laica e gratuita - como
o conceito de cidadania e direitos humanos é coetânea
do advento dos Estados soberanos, cuja função social
tem oscilado, ao longo da modernidade, entre a promoção
das condições para produção e/ou reprodução
do status quo. Nesse contexto de um mundo globalizado, Schaff (1995)
aponta que tal sociedade - informática - tem como características
produzidas pela "revolução informacional",
a ampliação das capacidades intelectuais das pessoas,
combinadas com o processo de automatização que eliminará,
com êxito, o trabalho humano na produção e nos
serviços. Porém, essas transformações
não significarão a existência de um inevitável
cataclismo social, dado que suas conseqüências poderão
ser controladas. Para Schaff, um dos indicadores de controle das
conseqüências seria, por exemplo, o desemprego estrutural
que poderá ser combatido caso a ação dos sindicatos
e, mais particularmente, dos partidos políticos, "[...]
sejam inteligentes e não se mantenham aferrados a seus velhos
modelos e soluções, que não podem absolutamente
ser transplantados para a nova realidade" (idem, p. 32). Ainda
no processo de caracterização da dita "sociedade
informática", Schaff afirma que a inteligência
humana pode ser condicionada pela formação escolar,
especialmente durante a juventude. Isso depende diretamente dos
programas e do conteúdo das informações de
quem lê e tem acesso aos recursos das tecnologias da informação
e da comunicação. Desse modo, a formação
escolar terá sua relevância na medida em que transmite
um precioso sistema de valores socialmente aceitos. Complementa
Schaff (op.cit.) que, quanto mais o indivíduo social ascender
na esfera da superestrutura da sociedade, maior será sua
participação social, dada sua consciência dos
objetivos e as condições de escolha das várias
opções à sua frente. Em Lojkine (1995), nota-se
uma ênfase nos desafios para os sistemas de ensino, salientando
a importância de uma qualificação de alto nível,
vinculada a uma cultura geral crítica. Seja para um como
para outro teórico, o que ficaria evidente seria a idéia
de uma educação que capacite os indivíduos
para a utilização desse recurso que, mutatis mutandis,
tem um papel catalisador de novas mudanças na sociedade atual,
como pode ser considerado o acesso à escrita pelos distintos
setores das sociedades, ocorrido a partir do século XVIII:
para além da condição de um simples instrumento
ou representação do mundo material humano, nascido
da demanda do complexo militar-industrial americano, os recursos
das TIC tendem a promover um diferencial qualitativo nos processos
comunicacionais e, conseqüentemente, nas relações
que se estabelecem a partir de sua utilização. Especificamente
no caso da escola, essa constatação não parece
ser diferente e tende a ser enfatizada quando dos processos de ensino-aprendizagem
de competências, habilidades e atitudes de uma prática
de cidadania. A possibilidade de transformação decorre,
sobretudo, do fato de que
[...] aprendizagens permanentes e personalizadas através
de navegação, orientação dos estudantes
em um espaço de saber flutuante e destotalizado, aprendizagens
cooperativas, inteligência coletiva no centro das comunidades
virtuais, desregulamentação parcial dos modos de
reconhecimentos dos saberes, gerenciamento dinâmico das
competências em tempo real [...] esses processos atualizam
a nova relação com o saber (Lévy, 1999, p.
177).
Ocorre que algumas concepções sobre a função
social da escola nesse novo contexto parecem revisitar a conotação
já vivenciada por ocasião do tecnicismo. Isso porque,
para o Livro verde (Brasil, 2000), por exemplo, considerado o documento
oficial sobre o tema, educar na Sociedade da Informação,
significa muito mais do que "treinar as pessoas" para
o uso das tecnologias da informação e da comunicação:
educar significa investir na criação de competências
suficientemente amplas que lhes permitam ter uma atuação
efetiva na produção de bens e serviços, tomar
decisões em relação ao conhecimento, operar
com fluência os novos meios e ferramentas no trabalho, aplicar,
criativamente, as novas mídias em usos simples, rotineiros
ou mais sofisticados. Com isso,
"[...] as tecnologias de informação e comunicação
devem ser utilizadas também para a democratização
dos processos sociais para fomentar a transparência de políticas
e ações de governos e para incentivar a mobilização
dos cidadãos e sua participação ativa nas
instâncias cabíveis (Brasil, 2000, p. 45).
A atribuição de um potencial de mudança como
este, considerado a partir do acesso às TIC, parece desconsiderar
o paradoxo que representa a viabilização do acesso
ao conhecimento, ao mesmo tempo massificado e personalizado, de
longo alcance, que permite seu desdobramento em termos de abrangência,
ao mesmo tempo em que promove uma interface direta e estreita com
o sujeito ?tido como usuário? na maioria das situações,
inclusive de ensino-aprendizagem.
5. Para seguir o debate...
Assim, ainda que o discurso dos direitos humanos venha caracterizando
o conteúdo de uma e-cidadania, bem como as práticas
cívicas transmitidas pela escola, algumas considerações
para seguir a análise proposta se fazem necessárias:
em primeiro lugar, cabe retomar que, no processo de mundialização
do mercado, quem dispõe dos instrumentos para a conquista
de direitos não são propriamente homens e mulheres,
mas empresas e capitais. Em segundo lugar, ao revisitar o processo
histórico de constituição do conceito de cidadania,
observa-se sua intrínseca relação com a configuração
moderna dos Estados soberanos, do mesmo modo que a estrutura da
escola na sociedade contemporânea. Parecem prevalecer, assim,
as análises de Castells (op.cit., p. 440) para quem,
[...] a forma fundamental de dominação de nossa
sociedade baseia-se na capacidade organizacional da elite dominante
que segue de mãos dadas com sua capacidade de desorganizar
os grupos da sociedade que, embora constituam maioria numérica,
vêem (se é que vêem) seus interesses parcialmente
representados apenas dentro da estrutura do atendimento dos interesses
dominantes.
Os processos ligados à globalização recolocam,
desse modo, antigos temas de estudo e análises quanto à
função social da escola na preparação
para o exercício da cidadania numa escala que agora é
planetária: se essa condição tem causado profundas
mudanças estruturais até para países desenvolvidos
e de longa tradição democrática, ela se multiplica
nos países em desenvolvimento - como a maioria da América
Latina - no sentido da tendência a ampliar o enorme fosso
social que os caracteriza (como seria o caso do Brasil), observável
inclusive pela "falta de discurso". Afinal, segundo San
Martin Alonso (1995, p. 187),
[...] las diferentes tecnologías de la información
y las industrias culturales, disponen de sobrada capacidad para
que su discurso llegue a todos y todos puedan contribuir a su
elaboración. Sin embargo, es bien sabido que esta posibilidad
no pasa de la ficción, de no ir más allá
de la mera declaración de intenciones. Bien al contrario,
un componente estructural del discurso electrónico son
las "zonas de sombra", las ausencias y los silencios,
los planos en blanco, en suma, la falta de discurso.
A reinvenção do uso desses recursos pela escola no
sentido de preparação para a cidadania, representaria
uma "janela de oportunidade" com vistas à apropriação
desses meios a partir de uma profunda reflexão sobre as próprias
condições estruturantes desse cenário de intensa
desigualdade social, possibilitando assim que - ao lado de outras
instituições, não somente a escola - seja promovida
uma ação eficaz desse Estado redimensionado, também
no plano da cidadania.
Assim, as discussões em torno de posições
em favor ou contra os processos de globalização e
todas as suas decorrências, como o enfraquecimento desses
conceitos oriundos da modernidade como Estado-nação
e de cidadania, perdem força e tenderiam a indicar que cabe
à educação - ao lado de outras instituições
sociais que persistem na contemporaneidade - a busca de alternativas
para uma inserção positiva no desenvolvimento de uma
cidadania diferenciada. Até porque, a condição
de cidadão neste início de século pode ser
tipificada como um fenômeno que não é localizado,
nem no tempo nem no espaço, transcendendo algumas fronteiras
historicamente determinadas e criando outras, como as dos riscos
de um neo-tecnicismo proporcionado pela indústria cultural
que atribui uma aparente homogeneização da condição
desse sujeito nos diferentes contextos sócio-histórico-culturais
dos países.
Bibliografia
ARENDT, H. (1987): Origens do totalitarismo, São Paulo,
Companhia das Letras.
BENTHAM, J. (1985): El panóptico, Barcelona, Ediciones 62.
BOBBIO, N. (1992): A era dos direitos, São Paulo, Editora
Campus.
CASTELLS, M. (1999): Sociedade em rede, A era da informação:
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HABERMAS, J. (1987): Conhecimento e iteresse, Rio de Janeiro, Guanabara.
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Notas:
* Doutora em Sociologia, mestre
em Educação, especialista em Supervisão e Currículo
e pedagoga. Atualmente é professora titular da Universidade
Paulista, Brasil.
1- N. Tecnopólio Postman
(1994): A rendição da cultura à tecnologia,
p. 23, Nobel, São Paulo.
2- O panopticon foi concebido
pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, no final do século
XVIII, com a finalidade principal de servir como presídio.
A idéia arquitetônica do projeto permitia que os guardas
nunca fossem vistos pelos prisioneiros, que tampouco ouviriam qualquer
ruído que pudessem relacionar à presença dos
guardas. Assim, ocultos, os guardas não precisariam estar
ali o tempo todo e o custo da operação, entregue a
um particular por contrato de gestão, cairia. O prédio
nunca foi construído na época de Bentham, mas partes
da idéia foram aproveitadas em várias prisões,
uma delas em Londres e outras na Austrália, Índia,
Holanda, EE.UU, Vietnã e Cuba.
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