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 ISSN: 1022-6508

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 Número 42: Septiembre-Diciembre / Setembro-Dezembro 2006

Educación y ciudadanía / Educação e cidadania

  Índice número 42 

Educação para e-cidadania:
entre a reinvenção das práticas cívicase o neo-tecnicismo

Márcia Lopes Reis *

SÍNTESE: Na ausência de um novo tipo de cidadania perante o processo de mundialização das relações sociais, políticas e econômicas, o discurso internacional dos direitos humanos, agora formalmente universalizado, parece ser o único elemento unificador com legitimidade suficiente para promover as compensações sociais e os controles necessários à globalização em curso que tem resultado no redimensionamento dos Estados como nações. Nesse cenário de crise dos Estados soberanos que, direta ou indiretamente, tem redimensionado a forma de compreensão da cidadania, este artigo trata das interações sociais, que têm posto em xeque a educação, como valores a serem promovidos: a reinvenção de outras práticas cívicas ou tendência a um novo tecnicismo, que atribui ao acesso às tecnologias da informação e do conhecimento uma condição que torna secundária a importância dos valores de uma cidadania comprometida com os aspectos civis, políticos e sociais a serem exercidos em uma outra utopia a ser construída - a saber - a "ágora eletrônica".

SÍNTESIS: En la ausencia de un nuevo tipo de ciudadanía frente al proceso de mundialización de las relaciones sociales, políticas y económicas, el discurso internacional de los derechos humanos, ahora formalmente universalizado, parece ser el único elemento unificador con legitimidad suficiente para promover las compensaciones sociales y los controles necesarios a la globalización en curso que tiene resultado en el redimensionamiento de los Estados como naciones. En este escenario de crisis de los Estados soberanos que, directa o indirectamente, tienen redimensionado la forma de comprensión de la ciudadanía, este artículo trata de las interacciones sociales, que ponen en jeque la educación, como valores a ser promovidos: la reinvención de otras prácticas civiles o tendencia a un nuevo tecnicismo que atribuye al acceso a las tecnologías de la información y del conocimiento una condición que convierte en secundaria la importancia de los valores de una ciudadanía comprometida con los aspectos civiles, políticos y sociales a ser ejercidos en otra utopía a se construir - a saber - el "ágora electrónica".

1. Introdução

[...] toda ferramenta está impregnada de um viés ideológico, de uma predisposição a construir um mundo como uma coisa e não como outra, a valorizar uma coisa mais que outra, a amplificar um sentido ou habilidade com mais intensidade do que outros1.

A discussão em torno das relações entre a educação e a formação para o exercício de uma cidadania diferenciada pelas ferramentas das quais os direitos e os deveres cívicos passam a dispor - as tecnologias da informação e da comunicação - constitui o cerne deste artigo. Inicialmente, a epígrafe aponta no sentido do pressuposto de uma relação intrínseca entre técnica e ideologia (Habermas,1987) condição que resulta em mudanças que têm implicações de cunho teórico e prático do que venha a ser "cidadania" quando exercida, valendo-se dos mesmos instrumentos da "revolução da microeletrônica" que estruturam o cenário de mundialização do capital (Chesnais, 1997), da sociedade informática (Schaff, 1995 ) ou do conhecimento (Castells, 1999; Lojkine, 1995).

Originária de um contexto de ascensão do conceito de Nação, a cidadania parece revista em seus fundamentos e, no contexto mundial, pode-se afirmar que tende a ser, em parte, substituída pelos direitos humanos (Bobbio, 1992). Na atual fase de desenvolvimento do capitalismo, quando se fala em e-learning, e-governance, dentre outras novas formas de relações sociais mediadas pelas tecnologias da informação e da comunicação (TIC), como compreender a prática de direitos cívicos quando levados a cabo valendo-se desses recursos? Em que medida os direitos humanos e a cidadania convergem? Seria possível conceber uma e-cidadania sem os riscos de um neo-tecnicismo? Como as práticas educativas se relacionam com as demandas para uma formação cívica nesses novos moldes? Haveria meios de reinvenção das práticas cívicas, ainda que modificadas, para que a convivência humana não retorne aos modelos hobbesianos, seja o da "lei da selva", do Homem como lobo do Homem, seja o da solução absolutista, esmagadora dos direitos? A intenção deste artigo é, deste modo, repensar as questões referentes a uma dita cidadania em tempos de mundialização das relações sociais, políticas, econômicas e culturais, bem como analisar as tendências das interações decorrentes desse processo com as práticas educativas.

2. Cidadania e direitos humanos como coetâneos do Estado-Nação

Um dos primeiros impasses conceituais, com implicações na prática cotidiana, seria decorrente da análise das pré-condições para o surgimento do conceito de cidadania. Cabe considerar que, desde a superação do Absolutismo com o advento dos Estados modernos, os conceitos de soberania e cidadania são vinculados à idéia de direitos humanos. Enquanto outros fatores como a localidade, a identidade e a história comum influem na construção da nacionalidade, a noção de cidadania reporta-se à Nação como espaço de realização individual e coletiva, politicamente organizada no Estado soberano, nacional ou plurinacional (a Suíça, por exemplo) como entidade que assegura os direitos, bem como o próprio Direito. Ainda que esses direitos fundamentais não tenham sido inteiramente assegurados - e esse início de século está pródigo de exemplos de violação desses direitos considerados básicos - ou ainda que nem todos os habitantes de um Estado qualquer tenham alguma vez vivido em perfeita harmonia, essa instituição social tem como uma de suas funções precípuas o compromisso de assegurar esses direitos. Assim, o Estado - administrado por representantes da própria cidadania - mesmo quando leva seus nacionais à guerra, ou estabelece normas coercitivas ou, ainda, cobra mais impostos, o faz no sentido - evidenciado nas práticas discursivas - de garantir seus direitos como cidadãos.

Interessante observar que a adoção pela Organização das Nações Unidas (ONU) da Declaração Universal dos Direitos Humanos deixa em segundo plano a proclamação de direitos humanos pela Assembléia Nacional Francesa definida como cidadania moderna até mesmo no título: "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão". Esse título indica que todo homem, como expressão da espécie, tem direitos inerentes a sua natureza humana que, paradoxalmente, são exercidos na prática da cidadania. Com linguagem e efeitos universalizantes, a declaração da França revolucionária redefiniu também a soberania estatal, estabelecendo, em seu artigo 2.º, que o "objetivo político de toda associação política é a preservação dos direitos naturais e inalienáveis do homem" (à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão) e, no artigo 3.º, que "a fonte fundamental de toda soberania reside na nação".

A vinculação entre cidadania e direitos humanos perpassa também as análises da crítica marxista ao Estado e ao Direito: as reservas de Marx aos "direitos burgueses" consagrados nas declarações norte-americanas e francesa do século XVIII prendiam-se à percepção de que, ao protegerem a propriedade privada como um atributo natural e inalienável, elas estabeleciam uma igualdade jurídica puramente formal, legitimando a exploração capitalista do proletariado. A cidadania política seria, pois, a seu ver, um artifício do capitalismo para administrar a mais-valia em territórios estanques, ocultando a luta de classes, cuja solução seria possível com a revolução proletária (necessariamente internacionalista). Será importante considerar o caráter prospectivo desse teórico quando se refere a uma cidadania que vai além das fronteiras dos Estados-Nação.

Por sua vez, as análises não-marxistas mais influentes da vinculação entre cidadania e os direitos humanos advêm de Marshall (1950): após haver observado as experiências britânica e norte-americana, identifica elementos articuladores da cidadania moderna. Assim, os direitos civis conquistados no século XVIII, os direitos políticos no século XIX e os sociais no século XX seriam instrumentos legais de luta para a conquista dos direitos econômicos e sociais sem recurso à revolução.

Ainda que em relação aos governos autoritários, no final do século XX como no Século das Luzes, as primeiras preocupações tenham se voltado naturalmente para a obtenção de liberdades civis e políticas, nos países de regime democrático o entendimento hoje predominante no movimento em prol dos direitos humanos parece aproximar-se bastante da interpretação de Marshall, mesmo que não tenha sido formulada nesses termos: os direitos humanos não abolem nem negam a idéia de luta de classes, mas são importantes para atenuarem os malefícios sociais do capitalismo incontrolado. A atenuação se obtém pela expansão do conceito de direitos fundamentais e inalienáveis das tradicionais "liberdades burguesas" - ou direitos "de primeira geração", que exigiram do Estado apenas "prestações negativas" - de forma a abranger também os direitos econômicos e sociais - ou direitos de "segunda geração", pelos quais o próprio Estado passa a ter obrigação de realizar "prestações positivas" para a garantia do trabalho, da remuneração justa e eqüitativa, da proteção social, da educação gratuita, pelo menos nos graus elementares, de condições apropriadas de vida, em particular na esfera da saúde com a implementação das condições de saneamento básico, por exemplo.

Num movimento contraditório, impulsionado pela globalização incontrolada e pelo fim das ideologias alternativas ao status quo, com o respaldo militante das teorias pós-estruturalistas, um outro tipo de fragmentação de caráter cultural se manifesta na exacerbação do comunitarismo simbólico ou imaginário. Como o Estado tem se tornado aparentemente fraco e o espaço nacional já não assegura a realização dos direitos fundamentais de todos, a Nação parece ter perdido, em parte, sua conotação valorativa. Assim, foram revistos os conceitos de classe que fundamentavam os processos de auto-identificação e têm sido relativizados pelo consumo de massas e pela competição exacerbada por empregos escassos, bem como a idéia de Nação organizada em Estado, entidade sem capacidade de garantir a não-discriminação entre seus cidadãos. O indivíduo, com isso, tende a se identificar com outro tipo de comunidade, por raça, religião, gênero ou orientação sexual, por origem étnica ou nacional, diversa da maioria. Ainda no sentido desse movimento contraditório, na Europa, crescentemente integrada pelas instituições da União Européia, nota-se uma acentuada revalorização de localismos sub-nacionais, inclusive com o cultivo de línguas antes quase extintas como o bretão no norte da França, o gaélico na Escócia e País de Gales, ou o catalão oficializado em toda a Catalunha. Nos EE.UU, país considerado extraordinariamente patriótico, que funciona como pólo econômico e estratégico do mundo globalizado, o cidadão norte-americano orgulha-se - de modo mais acentuado do que o de outras nações - de sua cidadania nacional. Mas ela não é única: a identidade do cidadão norte-americano, antes marcada fortemente como branca ou negra, protestante ou não-protestante (judia, muçulmana, católica romana, ortodoxa, hindu ou esotérica de mil matizes), feminina, masculina ou homossexual, nativa, hawaiana ou asiática passa a ser vista pela descendência étnica como "raça": brancos (euro-americanos, sobretudo anglo-saxões) ou hispânicos (que não incluem necessariamente os espanhóis), sendo semitas apenas os judeus, não os árabes. Se, por um lado, esse mosaico de identidades tem permitido às comunidades simbólicas lutarem pelo reconhecimento de direitos particularizados (através, por exemplo, de "ação afirmativa" ou do aprendizado de qualquer conteúdo escolar na língua de origem), por outro lado, ao enfraquecer a noção marshalliana de cidadania, outras tendências parecem se configurar: a afirmação do "direito à diferença" é positiva quando utilizada num sentido antidiscrimatório. Se instrumentalizada, porém, numa linha de radicalização, ou em sociedades onde o dualismo entre os segmentos modernos e arcaicos sejam muito acentuados, ela pode levar a impasses aos avanços sociais, isso porque o "direito à diferença" de alguns poderá servir de escusa à intolerância de outros.

Resultante da conjunção de fatores cujas causas iniciais são fatores econômicos e culturais, a fragmentação da comunidade nacional assume feições paroxísticas quando as comunidades simbólicas de auto-identificação se tornam fundamentalistas, em torno da religião, da etnia ou de qualquer outro desses liames simbólicos. Até o fim da Guerra Fria, o fenômeno parecia localizado em regiões específicas, servindo de amálgama para alguns movimentos antiocidentais ou contrários às forças dominantes: os Black Muslims norte-americanos, organizados na Nação do Islã (antípoda à "Identidade Cristã", inspiradora da Ku-Klux-Klan); a revolução xiita do Irã (contra o regime ocidentalizado do Xá), o exército Republicano Irlandês (contra o domínio de Londres); os separatistas bascos na Espanha e na França, entre outros. No início da década de 1990, o fundamentalismo baseado na religião manifestou-se de forma bélica sobre os Bálcãs iugoslavos (primeiro na Croácia, em seguida na Bósnia - e, finalmente, em Kossovo). Espalhou-se pelo mundo muçulmano, com atentados terroristas antiocidentais ou anti-seculares, dentro e fora dos países de origem, de forma tão vigorosa que permitiu ao Ocidente, durante certo tempo, assimilar o fundamentalismo à religião islâmica (sem considerar que sua primeira e mais duradoura manifestação na década foi cristã e européia, na Iugoslávia pós-comunista). Neste início de século, o fundamentalismo muçulmano não soa diferente de outros fundamentalismos mais ou menos virulentos como hinduísta, católico, protestante, judeu ortodoxo, ou, diante da proliferação de seitas salvacionistas, do crescente nacionalismo pan-eslávico na Rússia, da força persistente de bandos e partidos de ultradireita na Europa, do res-surgimento das milícias "nativistas" e de outros grupos militantes propagadores de ódio (hate groups já presentes em alguns sítios da rede mundial) que constitui parte dos novos recursos a serem empregados no exercício da cidadania: anti-negro, anti-judeu, anti-imigrante, anti-homossexual, anti-aborto (que defendem a vida dos fetos colocando bombas em clínicas) nos Estados Unidos - sem citar casos isolados, mas freqüentes, de jovens que executam seus colegas com armas de fogo, para, em seguida, suicidarem-se em colégios de classes abastadas.

Arendt (1987) analisou o fenômeno dos totalitarismos do século vinte à luz, sobretudo, da destituição da cidadania alemã pelo regime nazista e, a partir daí, definiu a cidadania como o pertencimento a uma comunidade disposta e capaz de lutar pelos direitos de seus integrantes, como o "direito de ter direitos". Essa definição devidamente atualizada no contexto da globalização - com seus efeitos excludentes - parece apresentar resultados diferenciados: por um lado, seguem tendo direito a ter direitos, aqueles que estão incluídos no referido sistema, enquanto outros, os socialmente excluídos, providos ou desprovidos de direitos políticos, têm, em teoria, quase sempre uma cidadania política, mas não se lhes proporciona, na prática, seus direitos. Isso, em parte, porque não havendo uma cidadania internacional, os direitos humanos não têm no mundo globalizado a força instrumental identificada por Marshall para a construção de uma cidadania a partir de Estados soberanos. No entanto, os direitos humanos, inclusive os de primeira geração, malgrado as reservas de Marx, sempre foram um recurso progressista, dos desprovidos de poder, para obter modificações no status quo. Da mesma forma que foram utilizados pela burguesia contra o Ancien Régime e pelos trabalhadores europeus para o reconhecimento de seus direitos, podem e devem ser apropriados em sua indivisibilidade para a obtenção de ganhos perante os globalizados em favor dos excluídos. Trata-se, portanto, de uma prática diferenciada de cidadania que parece transpor os limites historicamente impostos pelo advento do Estado-Nação, caracterizando uma condição na qual, globalizados ou excluídos, são assim classificados pelo acesso (ou não) aos recursos das novas tecnologias como forma de prática cívica, realizada muitas vezes à distância, constituindo uma espécie de eletronic-cidadania.

3. Eletronic-cidadania: de que estamos falando?

A compreensão da definição da e-cidadania demanda rever algumas "experiências cruciais" - para dizer com os termos de Khun (1975) - que servem como indicadores de crise e mudança de paradigmas, nesse caso, de exercício da cidadania. A primeira delas ocorreu em 1998 quando o subcomandante Marcos, na selva Lacandona, no interior do México, informou os jornais, organizações não-governamentais e agências de notícias de que o exército Mexicano, por ordem do presidente Zedillo, fora autorizado a reprimir aqueles índios da região dos Chiapas, organizados em um Exército Zapatista de Libertação Nacional que lutava e reivindicava o reconhecimento dos seus direitos e a propriedade das suas terras ao governo. A ação do governo, que prometia ser um massacre contra os insurgentes, foi abortada pelo uso da Internet.

A segunda "experiência crucial" ocorrida em fevereiro de 2003, foi uma reação à intenção do presidente americano, George Bush, com o apoio do governo inglês de Tony Blair, de invadir o Iraque sob a alegação de que o então presidente iraquiano, Saddam Hussein, guardava armas químicas e biológicas. Diversas manifestações contra a guerra ocorreram no mundo. A organização não-governamental americana "MoveOn - Democracy in Action" organizou um movimento de oposição à guerra, preparando uma "marcha virtual a Washington" que foi divulgada em várias páginas eletrônicas e jornais do mundo. No dia marcado - 23 de fevereiro? dos mais diferentes países as pessoas enviaram mensagens que superlotaram os endereços eletrônicos, fac-símiles e telefones da Casa Branca com mensagens contra a guerra.

A terceira experiência mais localizada - no Brasil e a partir de 1995 - foi a implementação de uma série de projetos de inclusão digital levadas a cabo por Organizações Não-Governamentais que procuravam articular o conceito de cidadania à inclusão digital, tendo como premissa a condição de que a apropriação dos códigos derivados das tecnologias da informação e da comunicação se constituem em uma via para a participação cidadã. O resultado foi o incentivo à criação das Escolas de Informática e Cidadania pelo Brasil que buscam atingir, principalmente, o público jovem.

Essas experiências denotam o caráter de uma prática de cidadania levada a cabo pela abrangência de possibilidades das TIC, sobretudo a partir da década de 1980 quando pessoas que tinham se conhecido por meio de (tele)conferências deram início ao processo de formação de redes como movimentos sociais, tendo o computador como recurso predominante nessas relações. Rheingold (1996), ao analisar os efeitos políticos das novas tecnologias da comunicação e da informação, apresenta duas idéias gerais opostas em relação à previsão dos impactos desses recursos: uma idéia é a visão utópica da "ágora eletrônica", uma espécie de "Atenas sem escravos", viabilizada pelas telecomunicações e computadores acessíveis e implementados por redes descentralizadas de fácil acesso à comunicação e à informação; a outra combina a visão de consumidor como mercadoria, explorando-se as informações adquiridas e vendendo-as às empresas, com as questões relativas à invasão da privacidade possibilitadas pelas redes telemáticas. Em se tratando da "agora eletrônica" ocorreria a manifestação livre da comunicação e informação por parte dos indivíduos e grupos. A rede de comunicações livres, informais e pessoais se constitui em um aspecto intrínseco das sociedades democráticas, consubstanciando-se na formação da opinião na esfera pública:

[...] a esfera pública é, no dizer destes críticos, aquilo que pos-suíamos enquanto cidadãos de uma democracia, mas que perdemos com a maré da mercadorização. A esfera pública é igualmente o foco de esperança dos ativistas on-line, que vêem nas comunicações mediadas por computador uma forma de revitalização do debate aberto e generalizado entre os cidadãos, que constitui a raiz das sociedades democráticas (Rheingold, 1996, p. 339)

Uma segunda escola de críticos fundamenta-se no fato de que as redes interativas possam ser utilizadas como meio de vigilância, controle e desinformação, para além de canal de informação considerado útil. Essa escola de críticos alerta que, quando uma pessoa utiliza o sistema eletrônico, pistas são deixadas, constituindo um indicador dos futuros problemas de privacidade. Por exemplo, governos e empresas podem se valer das informações da pessoa para finalidades diversas, como realizar uma operação eletrônica em meio virtual. Essa escola de críticos é denominada de panóptica, em referência à construção proposta por Bentham (1985)2.

Uma terceira escola de críticos, da denominada escola hiper-realista, acredita que as tecnologias da informação transformaram a realidade em uma simulação eletrônica. A política é vista como um filme, um espetáculo, que faz emergir a tática romana do "pão e circo" ao nível do hipnotismo das massas. Para estes, a hiper-realidade é cuidadosamente elaborada para "mimar" o mundo real e extrair dinheiro dos consumidores. Para esses hiper-realistas, a utilização das tecnologias da informação e comunicação torna-se poderosa conduta para o "desinformodivertimento", e o jogo de poder que ocorre nos bastidores das redes telemáticas provoca "[...] a substituição da democracia por um estado mercantil global, que exerce o controle através da manipulação do desejo, e não pelos meios de vigilância e controle mais ortodoxos" (Rheingold, 1996, p. 358).

Uma reflexão sobre o diferencial do exercício de uma espécie de e-cidadania não pode deixar de considerar que o fortalecimento das práticas democráticas não se reduz às estruturas comunicacionais eficientes e instituições propícias à participação, mas, também, devem envolver a motivação, o interesse e a disponibilidade dos sujeitos em relação aos temas que dizem respeito à sua condição de cidadãos. Ocorre que a formação para o exercício pleno da cidadania constituiu, ao longo de todo o século XX, tarefa precípua da escola ao lado da preparação para o mercado de trabalho, sendo que essa capacitação profissional demandava o aprendizado de habilidades para operar os recursos das novas tecnologias da informação e comunicação. Nota-se, sobretudo nas últimas décadas do século passado, que a própria cidadania - para ser exercida em sua plenitude - tem, igualmente, requerido conhecimento de competências e habilidades decorrentes do emprego dos recursos dessa revolução da microeletrônica até então restritos às forças produtivas.

4. Nesse cenário, qual é a função da escola?

Inicialmente cabe lembrar que a escola - laica e gratuita - como o conceito de cidadania e direitos humanos é coetânea do advento dos Estados soberanos, cuja função social tem oscilado, ao longo da modernidade, entre a promoção das condições para produção e/ou reprodução do status quo. Nesse contexto de um mundo globalizado, Schaff (1995) aponta que tal sociedade - informática - tem como características produzidas pela "revolução informacional", a ampliação das capacidades intelectuais das pessoas, combinadas com o processo de automatização que eliminará, com êxito, o trabalho humano na produção e nos serviços. Porém, essas transformações não significarão a existência de um inevitável cataclismo social, dado que suas conseqüências poderão ser controladas. Para Schaff, um dos indicadores de controle das conseqüências seria, por exemplo, o desemprego estrutural que poderá ser combatido caso a ação dos sindicatos e, mais particularmente, dos partidos políticos, "[...] sejam inteligentes e não se mantenham aferrados a seus velhos modelos e soluções, que não podem absolutamente ser transplantados para a nova realidade" (idem, p. 32). Ainda no processo de caracterização da dita "sociedade informática", Schaff afirma que a inteligência humana pode ser condicionada pela formação escolar, especialmente durante a juventude. Isso depende diretamente dos programas e do conteúdo das informações de quem lê e tem acesso aos recursos das tecnologias da informação e da comunicação. Desse modo, a formação escolar terá sua relevância na medida em que transmite um precioso sistema de valores socialmente aceitos. Complementa Schaff (op.cit.) que, quanto mais o indivíduo social ascender na esfera da superestrutura da sociedade, maior será sua participação social, dada sua consciência dos objetivos e as condições de escolha das várias opções à sua frente. Em Lojkine (1995), nota-se uma ênfase nos desafios para os sistemas de ensino, salientando a importância de uma qualificação de alto nível, vinculada a uma cultura geral crítica. Seja para um como para outro teórico, o que ficaria evidente seria a idéia de uma educação que capacite os indivíduos para a utilização desse recurso que, mutatis mutandis, tem um papel catalisador de novas mudanças na sociedade atual, como pode ser considerado o acesso à escrita pelos distintos setores das sociedades, ocorrido a partir do século XVIII: para além da condição de um simples instrumento ou representação do mundo material humano, nascido da demanda do complexo militar-industrial americano, os recursos das TIC tendem a promover um diferencial qualitativo nos processos comunicacionais e, conseqüentemente, nas relações que se estabelecem a partir de sua utilização. Especificamente no caso da escola, essa constatação não parece ser diferente e tende a ser enfatizada quando dos processos de ensino-aprendizagem de competências, habilidades e atitudes de uma prática de cidadania. A possibilidade de transformação decorre, sobretudo, do fato de que

[...] aprendizagens permanentes e personalizadas através de navegação, orientação dos estudantes em um espaço de saber flutuante e destotalizado, aprendizagens cooperativas, inteligência coletiva no centro das comunidades virtuais, desregulamentação parcial dos modos de reconhecimentos dos saberes, gerenciamento dinâmico das competências em tempo real [...] esses processos atualizam a nova relação com o saber (Lévy, 1999, p. 177).

Ocorre que algumas concepções sobre a função social da escola nesse novo contexto parecem revisitar a conotação já vivenciada por ocasião do tecnicismo. Isso porque, para o Livro verde (Brasil, 2000), por exemplo, considerado o documento oficial sobre o tema, educar na Sociedade da Informação, significa muito mais do que "treinar as pessoas" para o uso das tecnologias da informação e da comunicação: educar significa investir na criação de competências suficientemente amplas que lhes permitam ter uma atuação efetiva na produção de bens e serviços, tomar decisões em relação ao conhecimento, operar com fluência os novos meios e ferramentas no trabalho, aplicar, criativamente, as novas mídias em usos simples, rotineiros ou mais sofisticados. Com isso,

"[...] as tecnologias de informação e comunicação devem ser utilizadas também para a democratização dos processos sociais para fomentar a transparência de políticas e ações de governos e para incentivar a mobilização dos cidadãos e sua participação ativa nas instâncias cabíveis (Brasil, 2000, p. 45).

A atribuição de um potencial de mudança como este, considerado a partir do acesso às TIC, parece desconsiderar o paradoxo que representa a viabilização do acesso ao conhecimento, ao mesmo tempo massificado e personalizado, de longo alcance, que permite seu desdobramento em termos de abrangência, ao mesmo tempo em que promove uma interface direta e estreita com o sujeito ?tido como usuário? na maioria das situações, inclusive de ensino-aprendizagem.

5. Para seguir o debate...

Assim, ainda que o discurso dos direitos humanos venha caracterizando o conteúdo de uma e-cidadania, bem como as práticas cívicas transmitidas pela escola, algumas considerações para seguir a análise proposta se fazem necessárias: em primeiro lugar, cabe retomar que, no processo de mundialização do mercado, quem dispõe dos instrumentos para a conquista de direitos não são propriamente homens e mulheres, mas empresas e capitais. Em segundo lugar, ao revisitar o processo histórico de constituição do conceito de cidadania, observa-se sua intrínseca relação com a configuração moderna dos Estados soberanos, do mesmo modo que a estrutura da escola na sociedade contemporânea. Parecem prevalecer, assim, as análises de Castells (op.cit., p. 440) para quem,

[...] a forma fundamental de dominação de nossa sociedade baseia-se na capacidade organizacional da elite dominante que segue de mãos dadas com sua capacidade de desorganizar os grupos da sociedade que, embora constituam maioria numérica, vêem (se é que vêem) seus interesses parcialmente representados apenas dentro da estrutura do atendimento dos interesses dominantes.

Os processos ligados à globalização recolocam, desse modo, antigos temas de estudo e análises quanto à função social da escola na preparação para o exercício da cidadania numa escala que agora é planetária: se essa condição tem causado profundas mudanças estruturais até para países desenvolvidos e de longa tradição democrática, ela se multiplica nos países em desenvolvimento - como a maioria da América Latina - no sentido da tendência a ampliar o enorme fosso social que os caracteriza (como seria o caso do Brasil), observável inclusive pela "falta de discurso". Afinal, segundo San Martin Alonso (1995, p. 187),

[...] las diferentes tecnologías de la información y las industrias culturales, disponen de sobrada capacidad para que su discurso llegue a todos y todos puedan contribuir a su elaboración. Sin embargo, es bien sabido que esta posibilidad no pasa de la ficción, de no ir más allá de la mera declaración de intenciones. Bien al contrario, un componente estructural del discurso electrónico son las "zonas de sombra", las ausencias y los silencios, los planos en blanco, en suma, la falta de discurso.

A reinvenção do uso desses recursos pela escola no sentido de preparação para a cidadania, representaria uma "janela de oportunidade" com vistas à apropriação desses meios a partir de uma profunda reflexão sobre as próprias condições estruturantes desse cenário de intensa desigualdade social, possibilitando assim que - ao lado de outras instituições, não somente a escola - seja promovida uma ação eficaz desse Estado redimensionado, também no plano da cidadania.

Assim, as discussões em torno de posições em favor ou contra os processos de globalização e todas as suas decorrências, como o enfraquecimento desses conceitos oriundos da modernidade como Estado-nação e de cidadania, perdem força e tenderiam a indicar que cabe à educação - ao lado de outras instituições sociais que persistem na contemporaneidade - a busca de alternativas para uma inserção positiva no desenvolvimento de uma cidadania diferenciada. Até porque, a condição de cidadão neste início de século pode ser tipificada como um fenômeno que não é localizado, nem no tempo nem no espaço, transcendendo algumas fronteiras historicamente determinadas e criando outras, como as dos riscos de um neo-tecnicismo proporcionado pela indústria cultural que atribui uma aparente homogeneização da condição desse sujeito nos diferentes contextos sócio-histórico-culturais dos países.

Bibliografia

ARENDT, H. (1987): Origens do totalitarismo, São Paulo, Companhia das Letras.

BENTHAM, J. (1985): El panóptico, Barcelona, Ediciones 62.

BOBBIO, N. (1992): A era dos direitos, São Paulo, Editora Campus.

CASTELLS, M. (1999): Sociedade em rede, A era da informação: economia, sociedade e cultura, vol. 1, 4.ª ed., São Paulo, Paz e Terra.

CHESNAIS, F. (1997): A mundialização do capital, São Paulo, Xamã.

HABERMAS, J. (1987): Conhecimento e iteresse, Rio de Janeiro, Guanabara.

KHUN, T. (1975): A estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Perspectiva.

LÉVY, P. (1999): Cibercultura, São Paulo, Ed. 34.

LOJKINE, J. (1995): A revolução informacional, São Paulo, Cortez.

MARSHALL, T. H. (1965): Class, Citizenship and Social Development, Nova York, Doubleday.

MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA (2000), Livro verde, Brasília, Sociedade da Informação no Brasil.

RHEINGOLD, H. (1996): A comunidade virtual, Lisboa, Po e Gradiva.

SAN MARTIN ALONSO, A. (1995): La escuela de las nuevas tecnologías, València, Universidad de Valencia.

SCHAFF, A. (1995): A sociedade informática, 4.ª ed., São Paulo, Editora da Universidade Paulista.

Notas:

* Doutora em Sociologia, mestre em Educação, especialista em Supervisão e Currículo e pedagoga. Atualmente é professora titular da Universidade Paulista, Brasil.

1- N. Tecnopólio Postman (1994): A rendição da cultura à tecnologia, p. 23, Nobel, São Paulo.

2- O panopticon foi concebido pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, no final do século XVIII, com a finalidade principal de servir como presídio. A idéia arquitetônica do projeto permitia que os guardas nunca fossem vistos pelos prisioneiros, que tampouco ouviriam qualquer ruído que pudessem relacionar à presença dos guardas. Assim, ocultos, os guardas não precisariam estar ali o tempo todo e o custo da operação, entregue a um particular por contrato de gestão, cairia. O prédio nunca foi construído na época de Bentham, mas partes da idéia foram aproveitadas em várias prisões, uma delas em Londres e outras na Austrália, Índia, Holanda, EE.UU, Vietnã e Cuba.


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