O direito à educação como direito público:
implicações para o livro e a leitura
Jorge Werthein *
SÍNTESE: A educação básica
obrigatória e gratuita constitui-se em direito universal,
econômico e social reiterado pela Constituição
brasileira e por diversos documentos internacionais, tais como
a Declaração do Milênio da ONU e o Marco Ação
de Dacar. Ela é também a base para a realização
de outros direitos: saúde, liberdade, segurança,
bem-estar econômico, participação social e
política.
Se a educação é a base necessária
à realização de outros direitos, o livro
é condição imprescindível para que
se efetive a educação. Contudo, se não existe
educação sem livro, tampouco há livro sem
educação. Em outras palavras, sem formar leitores
em escala planetária, por meio da educação
de qualidade para todos, a distância entre os que têm
e os que não têm acesso a informações
tende a aumentar.
Por isso, não é exagerado afirmar que a leitura
é imprescindível no processo de produção
do conhecimento e de formação de cidadãos
capazes de compreender e atuar no mundo contemporâneo. Finalmente,
a leitura - associada à escrita - é ferramenta indispensável
para a efetiva participação social e econômica,
contribuindo para o desenvolvimento humano e a redução
da pobreza. Afinal, o acesso à informação
depende da capacidade de decodificar e interpretar. Sem essas
habilidades, o indivíduo não se insere plenamente
no mundo do trabalho, nem na sociedade.
SÍNTESIS: La educación básica obligatoria
y gratuita es un derecho universal, económico y social
reiterado en la constitución brasileña y en diversos
documentos internacionales, como la Declaración del Milenio
de la ONU y el Marco de Acción de Dakar. Es también
la base para la rea-lización de otros derechos: salud,
libertad, seguridad, bienestar económico, participación
social y política.
Si la educación es la base necesaria para la realización
de otros derechos, el libro es una condición imprescindible
para que se efectúe la educación. Sin embargo, si
no existe la educación sin el libro, no existe tampoco
el libro sin la educación. En otras palabras, si no se
forman lectores a escala planetaria, a través de la educación
de calidad para todos, la distancia entre los que tienen acceso
a la información y los que no la tienen tiende a aumentar.
Por eso, no es exagerado afirmar que la lectura es imprescindible
en el proceso de producción del conocimiento y de la formación
de ciudadanos capaces de comprender y actuar en el mundo contemporáneo.
Finalmente, la lectura -asociada a la escritura- es una herramienta
indispensable para la efectiva participación social y económica,
que contribuye al desarrollo humano y a la reducción de
la pobreza. Al final, el acceso a la información depende
de la capacidad de descodificar e interpretar. Sin esas habilidades,
el individuo no puede estar insertado plenamente en el mundo del
trabajo, ni en la sociedad.
1. Introdução
Norberto Bobbio, indagado certa vez sobre os maiores problemas
do nosso tempo, declarou, sem qualquer hesitação,
"que eles seriam os direitos do homem e a paz" (Bobbio,
2004 - tradução livre do autor). O grande filósofo
do século XX, que se projeta como um clássico plurissecular,
não era um lírico ou um sonhador. Ele, que tinha no
livro o seu grande meio de comunicação, além
da aula, considerava-se uma pessoa que não tinha nenhuma
esperança. Enquanto leigo, afirmava, vivia num mundo em que
era desconhecida a dimensão da esperança. Assim, para
esse iluminista - que defendia a liberdade contra a tirania, a tolerância
contra a repressão e a unidade do homem além das raças,
classes e pátrias - os direitos humanos e a paz constituíam
as questões fundamentais da nossa época.
Com efeito, as contradições básicas do nosso
tempo estão relacionadas à não-concretização
plena dos direitos universais do homem, pactuados pelas Nações
Unidas, e pelo acesso desigual a esses mesmos direitos, grandes
desafios do terceiro milênio. As tensões resultantes
dificultam, quando não impedem, a realização
da paz. Dentre esses direitos não realizados ou lesados,
situa-se um que é ao mesmo tempo fator e resultado da liberdade,
da dignidade e da igualdade. Trata-se de uma espécie de denominador
comum, de fio condutor que perpassa outros direitos, sem que se
estabeleça entre eles uma hierarquia. Trata-se da educação
básica obrigatória, de qualidade e gratuita, que constitui
um direito humano universal, econômico e social, reiterado
pela Constituição Nacional e pela Declaração
do Milênio, no sentido de fixar a universalização
da escola primária para todas as crianças como uma
das metas de desenvolvimento para 2015.
A importância da educação é de tal ordem
que agrega significado e valor à vida de todas as pessoas,
sem discriminação. Constitui a base para a realização
dos direitos a boas condições de saúde, liberdade,
segurança, bem-estar econômico e participação
em atividades sociais e políticas. A educação
elimina a divisão entre direitos civis e políticos
e apaga a divisão entre direitos econômicos, sociais
e culturais.
2. Educação para Todos: Como e Quando?
Para balizar o caminho certo do mundo, no sentido de verdadeiramente
alcançar este e outros direitos, constantes de tantas e tão
importantes declarações, o Marco de Ação
de Dacar enunciou metas com simplicidade e com prazo certo para
alcançá-las. Elas determinam basicamente o aumento
do acesso, a melhoria da qualidade e a democratização
da educação de crianças e adultos, com aumento,
inclusive, de 50% nos níveis de alfabetização
de adultos até 2015 (UNESCO, 2003, p. 13).
A alfabetização e a educação básica
implicam obrigatoriamente o pleno domínio ao menos da leitura
e da escrita, introduzindo grande parte da população
mundial na cultura letrada. Por isso, não há educação
sem livro e sem outras fontes de informações, já
que hoje é melhor falar de alfabetizações,
tamanha a multiplicidade de faces do processo. Por conseguinte,
da mesma forma que a educação como direito humano
é uma base necessária à realização
de outros direitos, o acesso ao livro é uma condição
para que se efetive a educação. Por outro lado, se
não há educação sem livro, não
há livro sem educação. Em outras palavras,
sem se formarem leitores em escala planetária, por meio da
Educação para Todos, o livro será uma realidade
subestimada, cavando um fosso cada vez mais fundo entre os que têm
e os que não têm acesso às informações,
com funestas conseqüências para a paz. Nesse sentido,
cabe lembrar que o livro - e em particular o livro texto - é
uma raridade para quase um terço da população
mundial, residente nos países de alto risco, onde as metas
de Dacar apresentam grande dificuldade de cumprimento, caso não
sejam envidados intensos esforços (UNESCO, 2003, p. 39 e
ss.).
Hoje, a "Galáxia Gutenberg" não brilha
sozinha e, por isso, não brilha como antes. De um lado, a
multiplicidade de linguagens, como as eletrônicas e visuais,
tornaram o livro um entre outros meios de comunicação.
Educar-se implica familiarizar-se com essa realidade multifacetada,
significa empreender alfabetizações e desenvolver
as capacidades para processos continuados de educação.
De outro lado, na era do acesso (Rifkin, 2000) e na sociedade do
consumo intenso e fugaz, o livro tornou-se em parte um produto superficial,
um bem produzido e vendido por indústrias culturais planetárias,
que trazem mensagens padronizadas e pasteurizadas para todos os
povos.
Na verdade, o livro e outras formas de comunicação
têm rostos e valores próprios, veiculam culturas específicas
ou visões abrangentes. Com suas cores particulares, sob o
manto da mundialização, os livros guardam o poder
de invadir e estabelecer hegemonias. Sob esse aspecto, a América
Latina não foi um dos centros privilegiados da sua produção
no passado colonial.
Ao mesmo tempo, constrói-se a ponte entre o local e o global.
O primeiro se revaloriza paradoxalmente, enquanto, entre os dois
movimentos, a escola ganha importância crescente e tende a
tornar-se lócus privilegiado para gestão e avaliação
do sistema de ensino (Barroso, 1999). Com efeito, na escola, na
biblioteca e fora delas, o livro tem papel básico. Avança
e globaliza, mas também veicula a identidade local, regional
e nacional: "Os livros resistem [à] [...] invasão
de um estilo que não corresponde aos países nem às
suas histórias" (Delich, 2003). Cabe então perguntar:
quem são os inimigos do livro? A desvalorização
da palavra e o fortalecimento do fetichismo dos gestos, o pragmatismo
banalizado que se dispõe a eliminar todo debate de idéias
e o pensamento único (Delich, 2003). Inimigos que resultam
da negação dos direitos humanos, entre eles a educação.
O futuro do livro está na educação universal,
e sua grande fonte situa-se na coleção ou biblioteca
escolar, onde as crianças podem aprender o gosto da leitura.
Essa fonte, localizada na escola para todos e utilizada com competência,
tem o poder de reduzir as diferenças entre os lares, no processo
de democratização.
O gigantismo da tarefa envolve a interação da educação
com o combate à pobreza. O avanço máximo da
nova fronteira só se concretizará por meio da inclusão
social, que implica o ingresso de grande parte da humanidade no
pleno exercício dos direitos humanos, a começar pela
educação. Desse modo, a Educação e o
Livro para Todos se configuram como missão de todos. Primordialmente
de governos, mas com o ativo engajamento da sociedade civil. Isto
é, de todos nós.
Bibliografia
MIRANDA, Pontes de (1933):Direito à educaço. Alba,
Rio de Janeiro.
- (1972): Comentários à Constituição
de 1967; com a emenda n.º 1, de 1969. 2.ª ed., tomo VI
(arts., 160-200), São Paulo, Revista dos Tribunais.
Bobbio, NORBERTO (2004): "Il lungo addio all'ultimo filosofo
della libertà", Corriere della Sera, p. 2, 10 jan.,
2004, Milão.
OECD-UNESCO (2003): Literacy Skills for the World of Tomorrow.
Further Results from PISA 2000, París, Institute for Statistics.
PASSIGLI, Stefano (2004): "Le virtù del laico: il pessimista
che praticava la "religione civile". Rigore, dubbio, moderazione",
Corriere della Sera, Milão, p. 5, 10 jan., 2004.
Nota:
* Assessor da Secretaria-Geral da OEI e ex diretor da UNESCO-Brasil.
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