Currículo e fenomenologia:
Limites e possibilidades no ensino experimental da física
Cleci Teresinha Werner da Rosa *
Carmes Ana da Rosa Batistella **
SÍNTESE: O texto apresentado a continuação
tem por objetivo promover uma reflexão sobre as questões
vinculadas ao currículo, de modo a enfatizar seus limites
e suas possibilidades em uma abordagem fenomenológica como
forma de identificar e valorizar, no processo educacional, a experiência
vivida, o "mundo da vida" de cada estudante. Como exemplo
da importância dos elementos presentes na fenomenologia
para a qualificação do processo ensino-aprendizagem,
será discutido o ensino da física em laboratório
didático, enfatizando esses elementos como viés
para tornar o ensino desta ciência mais significativo e,
assim, contribuir para a formação de indivíduos
mais críticos e atuantes na sociedade em que estão
inseridos.
SÍNTESIS: El texto presentado a continuación
tiene como objetivo promover una reflexión sobre las cuestiones
vinculadas al currículo, enfatizando sus límites
y sus posibilidades en un abordaje fenomenológico como
forma de identificar y valorar, en el proceso educacional, la
experiencia vivida, el "mundo de la vida" de cada estudiante.
Como ejemplo de la importancia de los elementos presentes en la
fenomenología para la calificación del proceso enseñanza-aprendizaje,
se discutirá la enseñanza de la física en
un laboratorio didáctico, resaltando estos elementos como
puntos básicos para convertir la enseñanza de esta
ciencia en más significativa y, de este modo, contribuir
a la formación de individuos más críticos
y participativos en la sociedad en la que están insertos.
ABSTRACT: The following text has the aim of promoting
a reflection on those issues linked to the curriculum, highlighting
their boundaries and possibilities in a phenomenological approach,
as a way to identify and appreciate, in the educational process,
the experience, the lifeworld, of each student. As an example
of the importance of elements present in phenomenology for evaluating
the learning-teaching process, we will discuss teaching physics
in a didactic laboratory, highlighting these items as basic points
for making the teaching physics a more meaningful experience and,
in this way, contributing to the training of individuals that
can express a reasoned opinion, and are more involved in their
society
1. Introdução
O objetivo do presente texto é proporcionar uma reflexão
perante questões relacionadas ao currículo, destacando
a possibilidade de uma abordagem fenomenológica como forma
de identificar e valorizar, no processo educacional, a experiência
vivida, o "mundo da vida" de cada estudante.
Neste sentido, é resgatado o conceito de currículo,
desde sua etimologia até as teorias que o têm influenciado
ao longo dos anos, mostrando que ele é o resultado de ideologias
que envolvem aspectos filosóficos, políticos, históricos,
religiosos e morais. Na seqüência, é abordado
o significado e a importância de um currículo fenomenológico,
destacando seus principais elementos, como a consciência subjetiva,
a consciência como atribuidora de significados e a estrutura
da consciência. Como exemplo da importância desses elementos
para a qualificação do processo ensino-aprendizagem,
mencionamos o ensino da física em laboratório didático,
evidenciando tais elementos como viés para tornar o ensino
desta ciência mais significativo e, assim, contribuir para
a formação de indivíduos mais críticos
e atuantes na sociedade em que estão inseridos.
Perante as mudanças que ocorrem na educação
nacional neste início de século XXI, acreditamos que
discutir questões relacionadas ao currículo passa
a ser tão urgente quanto necessária para todos os
que atuam na Educação. Entretanto, o que temos percebido
é que há poucas discussões e debates em torno
dessa questão, principalmente em termos da compreensão
do currículo como espaço de crescimento e de sociabilização
dos indivíduos. É exatamente neste ponto que pretendemos
contribuir, trazendo à tona a temática para alimentar
uma profícua discussão nos meios educacionais.
2. Currículo: da gênese às teorias
A etimologia da palavra currículo nos remete a um emaranhado
semântico que apresenta uma pluralidade de significados. Em
latim, por exemplo, pode ser entendido como proveniente de currere
que significa correr, decorrendo as derivações substantivas
do próprio latim como cursus, que significa carreira, ou
mesmo, curriculum no sentido de caminho.
O Dicionário Houaiss (2001) da língua portuguesa
define currículo em dois verbetes: o primeiro, remetendo
ao "ato de correr, corrida, curso [...] programação
total ou parcial de um curso ou de matéria a ser examinada";
no segundo, como "documento em que se reúnem dados relativos
a características pessoais, formação, experiência
profissional". Na Enciclopédia Mirador Internacional
(1982), a palavra currículo é empregada no sentido
pedagógico, sendo escrita como "[...] conjunto estruturado
de disciplinas e atividades, organizado com o objetivo de possibilitar
que seja alcançada certa meta, proposta e fixada em função
de um planejamento educativo".
Desta forma, considerando a análise destes diferentes significados
aplicados à palavra currículo, cabe identificar que
neste texto que ora nos ocupa o limite será posto no sentido
educacional. Ou seja, a questão emergente nesta reflexão
será tangenciada pelos elementos que circundam os currículos
perante os processos educativos. Entretanto, a situação
que perpassa a definição, na sua gênese, da
palavra currículo, não se apresenta menos conturbada
perante esta limitação, pois a literatura específica
discute os significados deste termo. Coll (in Carvalho e Vannucchi,
1995), define currículo como um documento que se situa entre
a declaração de princípios gerais e sua tradução
operacional, entre a teoria educativa e a prática pedagógica,
entre o planejamento e a ação e entre o que se prescreve
e o que sucede realmente em sala de aula.
Veiga-Neto (in Costa, 2003), por exemplo, propõe um esclarecimento
muito pertinente ao significado da palavra currículo, utilizando
a expressão - Curricologia - que no seu entender "soa
mal, pelo menos por enquanto". Para o autor, o campo currículo
ainda não recebeu uma denominação suficientemente
denotativa e que possa ser amplamente aceita pela comunidade de
especialistas. A expressão curricologia, para ele, tende
a imbricar a expressão "teoria do currículo",
como forma de designar, hoje, um amplo campo de conhecimentos como
a sociologia, a história, a pedagogia, a economia, a epistemologia,
a lingüística, com suas escolas e tendências,
como forma de descrever, analisar e, às vezes, intervir sobre
aquilo que é tomado como conteúdo e prática
de uma cultura e trazido, explícita ou implicitamente, para
ser ensinado na escola e que vem sendo designado, nos últimos
quatrocentos anos como "currículo" (2003, p. 94).
A expressão "teoria do currículo" também
é utilizada e defendida por Silva (2004), que afirma a importância
dessa associação entre currículo e teoria:
"A teoria é uma representação, uma imagem,
um reflexo, um signo de uma realidade que - cronologicamente, ontologicamente
- a precede [...] o currículo seria um objeto que precederia
à teoria, a qual só entraria em cena para descobri-lo,
descrevê-lo, explicá-lo" (p. 11). O autor afirma
que esta associação entre currículo e a teoria
que o possibilita, vincula-se mais a uma abordagem histórica
de seu significado do que à sua compreensão ontológica.
Ou seja, estaria se buscando um entendimento mais próximo
aos diferentes momentos no qual o currículo passou a ser
concebido em detrimento do verdadeiro "ser" deste currículo.
A importância na compreensão das teorias do currículo
como forma de refletir os próprios currículos no sistema
educativo situa-se no fato de que todo currículo, assim como
seus elementos, constituem um conjunto articulado e normatizado
de saberes, regidos por uma determinada ordem, estabelecida em uma
arena em que estão em luta visões de mundo e onde
se produzem, elegem e transmitem representações, narrativas,
significados sobre as coisas e os seres do mundo (Costa, 2003, p.
41). Assim, subtende-se que um currículo pode ser concebido
a partir de uma pluralidade de pressupostos de cunho filosófico,
epistemológico, sociológico, ideológico, etc.
que fundamentam as concepções dos grupos que se alternam
no poder. Silva (2004) aponta para o fato de que "A definição
de currículo não nos revela o que é, essencialmente,
o currículo: uma definição nos revela o que
uma determinada teoria pensa o que o currículo é"
(2004, p. 14). Desta forma, refletir sobre currículos pressupõe
um olhar sobre as teorias do currículo e suas diferentes
vertentes na história da humanidade.
Neste processo histórico, Silva (2004) destaca três
concepções acerca das teorias curriculares, identificando
elementos diferentes no processo de organização e
planejamento curricular. A primeira concepção destacada
pelo autor está relacionada às teorias tradicionais,
decorrentes de uma visão mais racional do conhecimento, na
qual este assume a postura de verdade inquestionável. Estas
teorias vêm a se preocupar com questões mais técnicas,
apontando para estudos relacionados ao "como ensinar",
não envolvendo "o que ensinar", já que isto,
para os tradicionalistas, parece ser ponto pacífico e não
merecedor de discussões. Questões mais de cunho metodológico,
didático, são analisadas e definem a organização
curricular do ensino. Há uma forte presença nos currículos
da definição dos objetivos que a escola procura atingir
e de como estes objetivos estão sendo atingidos. Sem exageros,
percebe-se a tendência a associar a escola a uma indústria,
na qual o currículo assume o papel de produto.
As teorias críticas, por sua vez, iniciam um questionamento
sobre as desigualdades e injustiças provocadas pela presença
das teorias tradicionais no sistema de ensino, já que as
ditas tradicionais não questionam o conhecimento em si, apenas
valorizam o mecanismo de eficácia da reprodução
desse conhecimento. Iniciam-se discussões sobre a relação
entre a escola e a economia, permitindo uma reflexão em questões
como "por que ensinar?", ou "ensinar para quê?".
Revelam-se questões como: quais são os interesses
subjacentes ao conhecimento selecionado para constituir os programas
de ensino e como os currículos poderão ser construídos
de forma a possibilitar a formação de sujeitos emancipados.
Assim, Silva (2004) chama a atenção para o fato de
que as teorias críticas do currículo deslocam a ênfase
dos conceitos pedagógicos do processo ensino-aprendizagem
para conceitos mais ideológicos, possibilitando ver a educação
sob uma nova perspectiva.
Por fim, já no limiar do século XXI surgem as teorias
pós-críticas que direcionam suas bases para um currículo
no qual se vincula conhecimento, identidade e poder com temas como
gênero, raça, etnia, sexualidade, subjetividade, multiculturalismo,
entre outros. Entretanto, muito pouco se avançou neste sentido,
já que esta concepção curricular é muito
recente e ainda permanece presa ao mundo acadêmico das pesquisas,
não avançando de modo concreto no ambiente escolar.
Centros de estudos em universidades conceituadas no mundo vêm
delineando estudos que ao poucos vão abrindo espaços
para o pós-estruturalismo de autores como Foucault e Derridá,
que, em princípio, questionam a própria existência
de uma teoria do currículo, pois rejeitam qualquer tipo de
sistematização. Porém, sua introspecção
nos currículos se dá basicamente na indeterminação
e na incerteza do conhecimento. O significado dos conceitos ou do
próprio conhecimento não pode ser entendido como pré-existente,
mas como decorrente da cultura e, sendo assim, socialmente transmitido.
Silva (2004) destaca que: "Um determinado significado é
o que é não porque ele corresponde a um "objeto"
que exista fora do campo da significação, mas porque
ele foi socialmente assim definido" (2004, p. 123).
Esta retomada da origem da palavra e do conceito de currículo,
resgatando as teorias que subsidiam a sua elaboração
e estruturação, descrita nos parágrafos anteriores,
possibilitará um olhar sobre a realidade do sistema educacional
vigente, de modo a elucidar que os currículos, na verdade,
são resultados de deslocamentos de ênfases, nos quais
a educação, o sistema de ensino, revela-se apenas
como um mecanismo de ideologias, estejam elas implícitas
ou explicitas.
3. Fenomenologia e currículo fenomenológico
Antes de discutir um currículo da perspectiva fenomenológica,
é necessário retomar o que se entende por fenomenologia.
Para tanto, e de forma diferenciada do que fizemos com a palavra
currículo, adotaremos um referencial único para fundamentar
nossa busca. Martins (1992) esclarece de forma concisa o que se
entende por fenomenologia, cuja denominação é
dada a um movimento no século XX, cujo objetivo precípuo
é a investigação direta e a descrição
de fenômenos que são experienciados pela consciência,
sem teorias sobre sua explicação causal e tão
livre, quanto possível, de pressupostos e de preconceitos
(p. 50). Para o autor, a fenomenologia é o estudo das essências,
tendo como ponto fundamental a descrição e não
a explicação ou análise de um fenômeno.
Edmund Husserl mostra que a fenomenologia se preocupa com a descrição
como forma de ir ao cerne das coisas, diferentemente das Ciências
Naturais que partem do pressuposto de que o mundo aí está
para ser explicado e analisado, pelo menos essa era a visão
que se tinha no início do século XX. Husserl aponta
para a questão de que não podemos ser o resultado
de causalidades múltiplas que determinam nosso corpo, nosso
psiquismo, não somos parte do mundo, como simples objetos.
Mas sim que tudo o que sabemos do mundo resulta da nossa visão
que é pessoal, assim como a experiência de mundo de
cada indivíduo, sem a qual os símbolos não
querem dizer nada.
Um currículo fenomenológico, por sua vez, se identifica
com uma concepção próxima à de uma teoria
crítica do currículo, porém mais voltada para
questões de ordem social. Na perspectiva das teorias do currículo
abordadas anteriormente, Silva (2004) define as teorias tradicionais
como teorias de aceitação, ajuste e adaptação,
e as teorias críticas como centradas na desconfiança,
no questionamento e na transformação radical. Afirma
o autor: "Para as teorias críticas o importante não
é desenvolver técnicas de como elaborar o currículo,
mas desenvolver conceitos que nos permitam compreender o que o currículo
faz" (p. 30).
Neste sentido, emerge o objeto de discussão deste texto:
o currículo na abordagem fenomenológica, cujo enfoque
desloca-se do eixo de educação, enquanto mecanismo
voltado para a reprodução do conhecimento, para atingir
a dimensão de educação enquanto espaço
de formação e de relações entre o mundo
e os sujeitos. Como destaca Martins (1992, p. 46):
Ao se pensar currículo como algo a ser planejado, é
preciso ter em vista que a educação é o resultado
de se estar no mundo com os outros e com as entidades, e nesta
situação não há possibilidade de realizar-se
um planejamento para aqui e agora. O próprio cotidiano
de sala de aula não se restringe àquilo que o professor
ensina ou pensa. Há na sala de aula, juntamente com o ensino
do professor, operando no crescimento total dos alunos que aí
estão, o mundo ao redor.
Desta forma, um currículo apoiado na fenomenologia deverá
pôr entre parênteses questões como aprendizagem,
objetivos, medição e avaliação, pois
nada tem a ver com os significados de "mundo de vida",
através dos quais as pessoas constroem e percebem sua experiência,
possibilitando assim, chegar à essência da educação
e do currículo (Silva, 2004). Ou seja, não é
possível conceber um currículo fenomenológico
a partir de uma teoria tradicional, pois o foco principal da fenomenologia
volta-se para olhar os fenômenos, o conhecimento, na perspectiva
do "estar no mundo", no qual tudo que vejo, refere-se
à minha experiência de vida. Assim, há um choque
com as teorias tradicionais que primam pelo conhecimento como algo
indiscutível, visto e entendido do mesmo modo, sem possibilidade
de percebê-lo como um mundo de significados atribuídos
pelo homem através de sua relação com este
próprio mundo.
Uma abordagem fenomenológica em um currículo requer
propostas nas quais não sejam elencados fatos, conceitos
estanques, mas sim possibilidades, nas quais se oportunize uma metodologia
dialética que perpasse discussões e trocas de idéias
entre professor e aluno na busca por atribuir novos significados
aos fenômenos, segundos os quais os alunos já se encontram
em contato. Ensinar, nesta perspectiva, requer levar em consideração
que o aprendiz já faz parte do mundo e, portanto, é
detentor de um entendimento sobre os fatos que necessitam ser apenas
revistos e examinados sob perspectivas mais subjetivas do conhecimento.
A fenomenologia aponta para um currículo no qual se deixariam
de lado tópicos tradicionais dos livros textos e se daria
um direcionamento ao estudo para temas que fazem parte da vida cotidiana
dos estudantes, envolvendo situações nas quais se
fazem presentes tanto alunos como o próprio professor. Nestas
atividades a busca é pela essência da experiência
de vida descrita e não pela apropriação do
significado do conceito envolvido, pelo menos não na forma
de conceito científico. Silva (2004, p. 41) lembra que:
[...] enquanto num currículo tradicional os estudantes
eram encorajados a adotar a atitude supostamente científica
que caracterizava as disciplinas acadêmicas, no currículo
fenomenológico eles são encorajados a aplicar à
sua própria experiência, ao seu próprio mundo
vivido, a atitude que caracteriza a investigação
fenomenológica.
A investigação fenomenológica faz parte de
uma abordagem fenomenológica, que em um currículo
inicia na própria redução dos elementos pedagógicos
como objetivos, avaliação, entre outros, a fenomenologia.
Na ação docente, a investigação precederia
a atitude que, por sua vez, apontaria para uma análise, direcionando
o processo para a escrita do fato estudado, sempre identificado
com a fenomenologia.
4. Elementos em destaque no (em um) currículo fenomenológico
Na busca por elencar elementos que possam caracterizar um currículo
fenomenológico, encontramos autores como Martins (1992),
anunciando aspectos que no seu entender seriam evidentes no pensamento
dos fenomenólogos e que assim poderiam subsidiar os currículos
construídos a partir da fenomenologia. São eles: consciência
subjetiva, consciência enquanto atribuidora de significados
e estruturas da consciência.
A consciência subjetiva é entendida através
da percepção, pois se percebe o que é visto,
ouvido ou sentido. Uma percepção consciente abrange
a consciência dos entes que estão no mundo. A consciência
é subjetiva quando os objetos de estudo (o fenômeno)
têm relação com o sujeito que o percebe, ou
seja, o indivíduo se abre para conhecer o mundo que o rodeia
e o mundo se doa para ser conhecido. O conhecimento, por sua vez,
mesmo científico, é formado a partir de um mundo vivido,
ou seja, próprio de cada ser, logo a fenomenologia considera
que a consciência de mundo não pode ser explicada pelas
ciências, que buscam explicações do mundo através
de observações comportamentais de fenô-menos
para a formulação de leis universais, desconsiderando
o sujeito. Na fenomenologia, os fenômenos se doam ao sujeito
que o interroga.
Como segundo elemento, Martins destaca a consciência como
atribuidora de significados, pois é necessário recuperar
a consciência como modo fundamental de Ser e ser-no-mundo.
O mundo-vida de cada sujeito tem uma estrutura de significados que
lhe é própria, que precisa ser focalizada de diferentes
formas para que seja reduzida, distorcida e proposta em termos de
causalidades. A consciência é sempre consciência
de..., ou seja, é tencionada. No caso da educação
é voltada para as entidades no mundo e suas representações,
logo, "objetos com determinações" que são
aquelas às quais a consciência se refere através
do ato significativo de uma expressão. Na fenomenologia,
o conhecimento dá-se na relação noésis-noema.
Noésis enquanto ato institucional da consciência, que
consiste na disposição do sujeito para ver algo, no
modo de perceber e conhecer alguém. Noema, como algo que
se mostra como mundo que se dá a conhecer, o experenciado.
Então, o indivíduo atribui significado através
de algo que emerge intencionalmente à consciência e
busca o conhecimento no mundo que se mostra, ou se deixa mostrar
para ele. O ato de educar não pode ser visto numa relação
cartesiana, sujeito/objeto, pois o homem não pode ser sujeito
de si próprio, pois a existência dele supõe
a do mundo. Na relação noemática que é
consciência intencionada para um objeto, onde este se doa
à consciência para se tornar significativo, é
que pode ocorrer o conhecimento. Cabe ao professor proporcionar
esta relação para que se efetive o conhecimento.
As estruturas da consciência, enquanto terceiro elemento,
resultam da relação entre uma experiência e
outras vivenciadas, atribuindo significados na forma de rede ou
de estrutura de significados. Rede que começa a se moldar
quando o ser se vê lançado ao mundo, ou seja, quando
a consciência se doa ao mundo que se mostra ao seu redor.
Gradualmente, forma-se a rede de significados, sendo que, algumas
percebidas de forma clara, outras, mais vividas do que conhecidas.
Esta concepção de construção da estrutura
de consciência permite a relação da consciência
com a ação.
5. O ensino da Física em laboratório didático
perante um currículo fenomenológico
O laboratório didático de física tem sido
tema amplamente discutido na literatura nacional nos últimos
anos, de tábua de salvação para o ensino, tem
sido apontado como mais uma das metodologias de ensino fracassada,
na busca por tornar o ensino da física mais significativo
para os estudantes, principalmente no ensino médio. Essa
situação não é exclusiva do ensino brasileiro,
ela já vem sendo debatida em eventos internacionais, nos
quais se enfatiza que o ensino experimental desenvolvido no laboratório
didático de física vem sendo trabalhado como uma "investigação
científica" ou mesmo como "pequenos projetos de
investigação" (Arruda, 1996). Situação
semelhante ao que ocorre no ensino da física no Brasil, como
mostra os estudos de Pinho Alves (2002), nos quais a ênfase
tem sido dada ao método científico.
São inúmeras as evidências que nos levam a
vincular esta visão mais dogmatizada da atividade experimental,
principalmente no Brasil, com a estrutura de currículo existente
em nosso sistema educacional. Ao observar a história do ensino
no país, identificamos uma forte vinculação
dos currículos escolares com a teoria tradicional, principalmente
até o início dos anos 70. Nessa visão, o conhecimento
e seus mecanismos de reprodução são entendidos
como elementos norteadores do ensino. Neste período, há
uma preocupação centrada na metodologia de ensino,
de modo a envolver as estratégias e os mecanismos que favoreçam
a apropriação do conhecimento por parte do aluno.
No ensino da física, ocorre uma forte presença do
laboratório como elemento favorável a esta aquisição
dos conhecimentos específicos. A título de ilustração,
destaca-se o PSSC1, projeto aplicado no Brasil no início
dos anos 60 e que consistia em um programa (projeto de ensino) voltado
para o treinamento de professores de física através
de manuais, segundo os quais o ensino experimental era entendido
como altamente estruturado, perpassando a imagem de que o professor
deveria apresentar um "receituário" aos alunos
no início da atividade e que estes o seguiriam pontualmente,
apresentando ao final um resultado já previsto por aquele.
Apesar de este modelo ter sido questionado no país, já
no início da década dos 70, ele continua presente
nas principais Universidades do país e, automaticamente,
presente nas escolas.
Nesta mesma época, emergiu no país um movimento de
insatisfação com o ensino e apontou-se para uma tendência
a direcionar os currículos para a teoria crítica,
cuja perspectiva pedagógica era de cunho mais progressista,
que se encontrava em franco crescimento no mundo. Porém a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em
1971 (lei n.º 5892/71), previu a organização
curricular em atividades (séries iniciais), áreas
de estudo (restante do 1.0 grau) e disciplinas (2.o grau), o que
acabou não modificando muito a maneira como o currículo
estava sendo concebido no país. A visão mais voltada
para uma educação na qual o conhecimento escolar estaria
atrelado a questões sociais, principalmente a estruturas
de poder, pretendia construir um currículo no qual o indivíduo
fosse visto como elemento principal e a educação deveria
levá-lo à sua emancipação (na verdade,
de concreto muito pouco foi conseguido). O ensino da física,
assim como o das demais disciplinas curriculares, buscou uma readequação.
Entretanto, o laboratório permaneceu preso ao modelo empregado
pelo PSSC, apresentando poucas variações, como a introdução
gradativa da "sucata2" que trouxe a questão da
construção do equipamento no momento do desenvolvimento
da atividade experimental e com isto um estudo mais próximo
da estrutura do experimento. Ou, mais recentemente, a questão
do laboratório virtual, como possibilidade de investigar
fenômenos físicos através de simulações
por computador.
Estas descrições nos remetem a pensar que neste início
do século XXI, no qual um currículo concebido a partir
das teorias tradicionais não atende mais às especificidades
do educando no seu processo formativo e que as teorias críticas
apresentam dificuldades de aplicação, estando condenadas,
de certa forma, por sua visão arraigada à relação
entre escolar e poder, qual currículo é possível?
Que abordagem se tornaria mais pertinente perante o mundo contemporâneo?
Tais questões se tornam fundamentais para refletir sobre
que ensino de física desejamos.
Neste sentido é que destacamos a fenomenologia. As leituras
realizadas sobre este campo do conhecimento e suas contribuições
para o processo de formação dos indivíduos
nos remetem a avaliar e correlacionar seus fundamentos e princípios
ao ensino da física (laboratório). Assim, o laboratório
poderia ser um espaço para conhecer o mundo, para despertar
o desejo de conhecer. Mundo este, no qual o aluno, enquanto sujeito,
possa se situar. O importante, conforme destaca Martins (1992),
é que o homem, ao analisar um fenômeno, ser capaz de
"colocar entre parênteses", em suspensão,
deixar de lado suas crenças sobre este fenômeno, permitindo
descrevê-lo tão precisamente, quanto possível,
procurando abstrair-se de qualquer hipótese, pressuposto
ou teoria. Buscar exclusivamente o que se mostra na sua estrutura
e nas suas conexões intrínsecas (p. 56).
Entretanto, quanto à questão de este ensino "deixar
de lado" não pode ser entendido como não trazer
para a sala de aula as experiências vividas pelo aluno no
seu contexto, mas sim, libertar-se de pré-conceitos e valorizar
seus conhecimentos fundamentados na sua percepção
de mundo. "Ao tentarmos auxiliar uma criança a conhecer
o mundo, precisamos nos lembrar de que estamos diante de um ser
que tem um mundo que lhe é próprio, o qual deverá
conhecer. Isto quer dizer que esta criança deverá
ter uma consciência do seu próprio mundo" (Martins,
1992, p. 74). Neste sentido, o destaque é por trazer para
o ambiente escolar o mundo de vida de cada estudante, o seu modo
de conceber o fenômeno.
6. Considerações finais
Ao relacionarmos currículo, fenomenologia e ensino da física
em laboratório didático atingimos, pois, a dimensão
de entender que um currículo deverá apresentar como
linha norteadora a idéia de que o sujeito é um ser-no-mundo,
e que concebe este mundo a partir da consciência do seu próprio
mundo. A construção de um currículo na perspectiva
fenomenológica requer a preocupação de que
este seja considerado um meio pelo qual o sujeito adquira habilidades,
capacidades e conhecimento, mas sempre voltado para que o homem
ganhe o sentido de si-mesmo (Martins, 1992, p. 77).
A literatura aponta para uma incompatibilidade, de certa forma,
entre o modo pelo qual as ciências naturais (física,
em especial) concebe o mundo e a forma como os fenomenólogos
o entendem, porém, não podemos deixar de acreditar
na possibilidade de que o ensino desta ciência possa ser menos
dogmático e que se volte para questões de cunho humanístico,
identificando-se com um ensino no qual o sujeito possa construir
seu próprio currículo, referenciando-se na sua consciência
sobre o mundo.
O laboratório poderia ser um forte aliado nesta perspectiva,
favorecendo aos estudantes a utilização desse espaço
como forma de desenvolver talentos, capacidades e, ao mesmo tempo,
ter a liberdade de transitar entre outras áreas, que não
aquelas elencadas e sedimentadas pelo professor. Em outras palavras,
o laboratório de física, poderia possibilitar a caminhada
do aluno de forma a deixá-lo fazer opções,
sem impor conteúdos e, principalmente, metodologias de trabalho.
Evidentemente, nesta nova abordagem curricular, o papel do professor
passa a ser determinante, como aliás sempre foi na educação.
O modo como o professor pensa e organiza sua ação
pedagógica poderá possibilitar ou não uma abordagem
curricular envolvendo aspectos mais próximos da fenomenologia.
Talvez assim a educação possa adquirir a conotação
muito bem descrita por Martins (1992), segundo a qual ela não
é apenas um processo de elevação histórica
da mente, do natural para o universal, mas é a condição
mesma na qual o homem se humaniza (1992, p. 77).
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in Ciências e Educação, n.º 3. São
Paulo: UNOESC , p. 14-24.
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currículo de física: inovações e tendências
nos anos noventa", in Investigações em ensino
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DP&A.
FOUCAULT, Michel (1996): A ordem do discurso. São Paulo:
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problemas da unidade conteúdo e método no processo
pedagógico. 4.ª edição. Campinas, SP:
Autores Associados.
SILVA, Tomaz Tadeu da (2004): Documentos de identidade: uma introdução
às teorias do currículo. 2.ª edição.
Belo Horizonte, MG: Autêntica.
Nota:
* Universidade de Passo Fundo. Curso de Física. Aluna de
doutorado do Programa de Pós-graduação em Educação
Científica e Tecnológica da Universidade Federal de
Santa Catarina, Brasil.
** Universidade de Passo Fundo. Física. Aluna do Mestrado
Profissionalizante no Ensino da Física da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Brasil.
1 Physical Sciences Study Committee, programa (projeto) criado
nos EE.UU. no final da década de 1950 e que foi aplicado
no Brasil.
2 Laboratório de sucata é aquele em que o aluno constrói
o seu equipamento na atividade prática com materiais alternativos.
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