Gestão do pedagógico e os processos de formação
de professores: uma reflexão sobre o lugar dos estágios
e práticas educativas em cursos de licenciatura
Liliana Soares Ferreira *
Viviane Ache Cancian **
* Doutora em Educação, professora do Programa de
pós-graduação em Educação e do
Departamento de Administração Escolar do Centro de
Educação da Universidade Federal de Santa Maria (ufsm),
Brasil.
** Doutora em Educação, Professora do Departamento
de Metodologia do Ensino do Centro de Educação da
ufsm.
SÍNTESE: O artigo esboça uma sistematização
de nossas práticas como professoras de cursos de licenciatura,
como pesquisadoras sobre os processos formativos de professoras
e professores e como orientadoras de práticas de estágio
e intervenção nas escolas. Como sistematização,
apresenta referências sobre os processos pelos quais os professores
se tornam professores, e sobre a escola como espaço-tempo
privilegiado para que estes processos aconteçam. Há
muito tempo, a preocupação com a educação
continuada do profissional da educação tem sido objeto
de reflexão e estudo. Acreditamos que, a partir de um investimento
sério neste processo, obter-se-á a qualificação
das práticas educativas, afinal, a professora / o professor
é um dos sujeitos da aula. Como sujeito, cabe-lhe apresentar
a proposta de trabalho, as orientações, enfim, entender
o processo e realizar a gestão do pedagógico na aula.
Desta forma, sua capacidade de interpretar, de atribuir sentidos,
é fundamental e será mais ou menos eficiente conforme
estiver atento ao que acontece ao seu redor. Projetos de educação
continuada pressupõem, portanto, acesso a conhecimentos variados,
desde informações acerca da práxis pedagógica,
quanto acerca da educação e de entendimentos sobre
os demais sujeitos. Estes pressupostos relacionados à história
da educação no país e aos conhecimentos de
didática constituem referências para refletir sobre
a relação entre a gestão do pedagógico,
a professora / o professor, seus processos de educação
continuada e a produção da aula.
Palavras-chave: gestão do pedagógico; aula; professores;
prática pedagógica.
SÍNTESIS: El artículo presenta una pequeña
sistematización de nuestras prácticas como profesores
en los cursos de licenciatura, como investigadores sobre los procesos
formativos de profesores y como orientadores de prácticas
e intervención en las escuelas. Como sistematización,
presenta referencias sobre los procesos por los cuales los docentes
se convierten en tales, y sobre la escuela como espacio-tiempo privilegiado
para que estos procesos ocurran. Desde hace tiempo, la preocupación
por la formación continua del profesional de la educación
es objeto de reflexión y estudio. Creemos que, a partir de
una inversión seria en este proceso, se obtendrá la
calidad de la actividad educativa, ya que el profesor es uno de
los sujetos de la clase. Como sujeto, es a quien le compete presentar
las propuestas de trabajo, las orientaciones, por lo tanto, comprender
el proceso y realizar la gestión de lo pedagógico
en el aula. De esta forma, su capacidad para interpretar, atribuir
sentidos, es fundamental y será más o menos eficiente
siempre que esté atento a lo que ocurre a su alrededor. Proyectos
de formación continua presuponen, por lo tanto, acceso a
conocimientos variados, desde informaciones acerca de la praxis
pedagógica, como de la educación y la comprensión
sobre los demás sujetos. Estos presupuestos relacionados
a la historia de la educación en el país y a los conocimientos
de didáctica constituyen una referencia para la reflexión
sobre la relación entre la gestión de lo pedagógico,
el profesor, sus procesos de formación continua y la producción
de la clase.
Palabras clave: gestión de lo pedagógico; clase;
profesores; práctica pedagógica.
ABSTRACT: This article presents a small systematization
of our practices as teachers in undergraduate classes, as researchers
on the training processes of teachers, and as beacons for practices
and interventions in schools. As systematization, the article presents
references on the processes by which teachers become teachers, and
on school as the privileged space-time region in which these processes
occur. For a long time, continuing studies for professionals in
the area of education has been object of study and reflection. We
believe that, taking serious research on this process as a starting
point, we will obtain quality in educative activities, since the
teacher is one of the subjects of the class. As subject, is him
o her who is responsible for the work proposals, the guidelines,
and therefore, responsible for understanding the process and for
managing pedagogic matters in the classroom. In this way, his o
her capacity to interpret, to confer meaning, is fundamental and
he or she will be more or less efficient, provided he or she is
always conscious of what is going on around him or her. Projects
concerning continuing studies assume, therefore, that there will
be access to a variety of knowledge, from information about pedagogical
practice, to information about education and comprehension of other
subjects. These assumptions related to the history of education
in the country, and related to the knowledge of didactics, constitute
a reference for the reflection on the relationship between pedagogy
management, the teacher, his o her process of continuing studies
and classroom production.
Key words: pedagogy management; teachers; pedagogical practice.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo objetiva sistematizar observações, análises
e entendimentos de nossa prática como professoras de cursos
de licenciatura, atuando nas áreas de gestão da educação,
acompanhamento e avaliação dos Estágios Supervisionados,
Práticas Pedagógicas, Intervenções,
ou seja, nas atividades de conhecimento e inserção
de acadêmicas e acadêmicos nas instituições
de educação formal e informal. No Brasil, os cursos
de licenciatura, na forma como se organizam, contêm etapas
de inserção dos estudantes, futuros professores, nas
escolas, com o intuito de vivenciarem experiências da profissão.
Nosso trabalho como professoras de futuros professores está
relacionado com estes momentos de inserção. Desta
experiência, vão surgindo demandas de compreensão
de como estes estudantes elaboram sua profissionalidade e chegam
a se tornar professoras e professores. Para atender a estas demandas,
temos nos dedicado a estudar autores e obras referentes às
questões e participado de todas as oportunidades de reflexão
e entendimento que têm surgido, além de estarmos realizando
pesquisa, atividades de extensão e aulas referentes à
gestão e às práticas pedagógicas dos
professores. Este esforço de compreensão tem sido
gerador de novas indagações em um processo contínuo
de educação de nossa condição de professoras
de professores. Trata-se de uma espécie de meta-educação
a constituir nosso cotidiano, tanto na universidade como para além
dela, na interação com escolas, professores dos sistemas
municipais e estaduais de educação e nos eventos dos
quais participamos.
Na elaboração da sistematização inicial
que ora apresentamos, partimos da noção de que toda
professora ou professor é um sujeito, porque está
dotado de uma historicidade e de uma subjetividade, elaboradas em
decorrência dos processos sócio-culturais vivenciados,
e das escolhas que vão fazendo ao longo de sua trajetória.
Nas palavras de Charlot, um sujeito é um ser humano, um ser
social, um ser singular e como tal "age no e sobre o mundo;
encontra a questão do saber como a necessidade de aprender
e como presença no mundo de objetos, de pessoas e de lugares
portadores do saber; produz-se ele mesmo, e é produzido,
através da educação" (Charlot, 2000, p.
33). Deste modo, no espaço-tempo da escola, age de acordo
com a) o grau de autonomia que sua condição de sujeito
lhe permite; b) o grau de resistência que entende ser necessário
para enfrentar as relações de poder; c) os seus conhecimentos,
elaborados a partir dos estudos acadêmicos, das leituras,
da convivência e do contínuo aprender dentro da escola;
d) o seu desejo de produzir conhecimento. Amalgamados, estes fatores,
atribuem-lhes um lugar no espaço-tempo escolar, de onde advêm
forças, interesses e desejos de exercer e vivenciar ou não
sua profissionalidade. Entendemos a profissionalidade dos professores
como uma elaboração social organizadora do seu fazer
pedagógico: desde a sua condição de profissional
(e não vocacionado, ou alguém que, não conseguindo
se dedicar à profissão desejada acabou professora,
professor) até a sua condição de sujeito, com
relações e implicações no seu coletivo
e, sobretudo, na sua condição de ser humano.
Entendendo os professores como sujeitos, podemos pensar em seu
trabalho, que é produzir conhecimentos em interação
com outros sujeitos, os estudantes. Esta interação,
naturalmente, é eivada de relações de poderes,
de saberes diversos, de desejos, de faltas, e, por isto mesmo, complexa,
embora dinâmica e reveladora da humanidade, da cultura, das
características presentes e caracterizadoras de quaisquer
grupos.
Tal trabalho, dada a sua elaboração, precisa ser
aprendido, não é natural. A aprendizagem, necessariamente
mediada por outros sujeitos, acontece em ambientes acadêmicos,
mas se consubstancia na escola, no cotidiano, nos diálogos,
nos planejamentos, constituindo os processos de gestão do
pedagógico.
Entendemos por gestão pedagógica toda ação-reflexão
em torno dos processos de uma aula, envolvendo os sujeitos da aula:
professores, estudantes, gestores, comunidade. Sabe-se que todos
chegam à escola com saberes. A reflexão e o trabalho
com estes saberes constituem o modo como o conhecimento vai se produzindo.
E este modo só acontece na linguagem, entendida como o ambiente
no qual o conhecimento se produz (Gadamer, 1988). Portanto, a interação,
na maior parte das vezes, sob a forma de aula, este espaço-tempo
rico em interlocução de saberes (Marques, 1995, 1996),
permite que os sujeitos, com base nos saberes que trazem consigo,
produzam conhecimentos.
A prática pedagógica, a nosso ver, é essencialmente
dialógica e entendemos diálogo, não como o
confronto, nem como o monólogo dos professores com raríssimas
interferências dos estudantes, ao responderem a questões.
Diálogo é o falar de si e sobre si, a prática
da palavra que se apresenta e é ouvida, da linguagem que
aproxima, afasta, age como mediadora, como possibilidade de reflexão,
de oportunidade para o dizer e o escutar, em ambiente eivado de
humanidade. Assim, são processos dos quais todos participam,
mas espera-se que a professora/o professor seja um articulador,
tendo em vista que seu trabalho é a produção
do conhecimento no espaço-tempo da aula. É este o
seu compromisso como um dos sujeitos da produção do
conhecimento, tendo os estudantes, como os demais sujeitos. Portanto,
o enfoque em gestão do pedagógico neste artigo está
centrado na idéia de ser a professora/o professor sujeito
de seu trabalho, capaz de constituir e envidar esforços de
educação continuada e permanente e, deste modo, realizar
a gestão do pedagógico, evidenciando sua profissionalidade.
Do mesmo modo, entendemos, com Lima, que o estágio é
"um campo de conhecimento a ser investigado, e não como
prática apenas" (2002, p. 246), com base em situações
de pesquisa, aprofundamento e reflexão coletiva. Tal concepção
permite que se entenda o estágio como um "campo de investigação
e produção de conhecimento" (Lima, 2002, p. 246),
renovando a prática tradicional de estágio, entendido
somente como ação prática dos futuros professores.
É neste contexto de argumentos que apresentamos nossas
elaborações sobre a prática de estágios
e os processos continuados da educação de professores.
Para tanto, dividimos o artigo em duas partes inter-relacionadas:
uma abordagem sobre a experiência no acompanhamento e avaliação
de estágios e a relação desta etapa de educação
dos professores com os processos de educação continuada
e permanente.
2. Uma contextualização necessária
Como professoras do Ensino Superior, como mulheres e, sobretudo,
como sujeitos em nossa práxis cotidiana, participamos, contribuímos
e trabalhamos com base na leitura que fazemos do mundo. Esta leitura
é perpassada pelo modo como vamos nos inserindo socialmente,
considerando que, indubitavelmente, há uma lógica
neoliberal e oriunda da globalização a organizar nosso
cotidiano. Por esta lógica, sobretudo a partir das imposições
dos organismos internacionais, a educação passa a
ser organizada e gestada de modo a compatibilizar-se com a economia,
entendendo-se haver uma implicação entre o que se
produz na escola e os trabalhadores que se formam ao concluírem,
principalmente, o Ensino Fundamental. Este nível de ensino
tornou-se o locus prioritário de formação de
mão-de-obra, para repor os mercados de trabalho, de modo
mais ágil e barato, garantindo assim, aos capitalistas, maiores
ganhos. Nesta relação, configura-se a afirmação
de Charlot: a educação é "pensada em termos
de custo/benefício, dependendo, portanto, como qualquer outro
capital e qualquer outra mercadoria, do mercado" (2005, p.
142). Se os estudantes egressos dos cursos de licenciatura atuarem
na Educação Básica, terão o Ensino Fundamental
como um dos níveis nos quais podem vir a praticar sua profissão.
É necessário que conheçam estas exigências
e saibam como, através da gestão do pedagógico,
podem fazer frente aos imperativos do capital, produzindo aulas
pensadas mais com base nos sujeitos de um futuro trabalho do que
em meras mãos-de-obra.
O papel do Estado, neste contexto, tem sido decisivo. Com o avanço
do neoliberalismo, tornou-se um Estado mínimo, por excelência,
saindo da condição de único provedor para apresentar-se
como regulador. As políticas sociais e, entre estas, as da
educação, quando não relegadas ao descaso,
são organizadas para levar adiante as exigências neoliberais,
cumprindo tão-somente os ditames do capital, fazendo se perceber
que "A educação é, então, concebida
como ajuda social, e não mais como direito humano e projeto
de dimensão universal e cidadã" (Charlot, 2005,
p.143). Existe, ainda, um clamor por educação de qualidade
e para todos, embora suplantado pela inércia estatal e escamoteado
através do desvio da atenção popular quando
se percebe grandes doações e investimentos na infra-estrutura
da escola. É alentador perceber que, mesmo assim, a escola
pública resiste, seja com base em um projeto pedagógico
elaborado no coletivo da comunidade, seja (e este é nosso
maior desejo) na ação profissional dos professores,
entendidos como sujeitos, gestores do pedagógico e cidadãos.
Vislumbra-se como possibilidade a inserção cada
vez mais intensa na cultura local, para reforçá-la,
tornando-a, paulatinamente, o lugar da resistência, da manutenção
de uma identificação dos sujeitos com o social. Parece-nos
que esta é a demanda imediata da educação:
inserir-se o mais possível na cultura de sua comunidade,
constituindo-se em resistência às imposições
capitalistas. Isto demanda profissionais capazes de, através
da gestão do pedagógico, promover aula e produção
do conhecimento, de modo a enraizar os sujeitos, ofertar-lhes sentidos
de vida social, com base, inicialmente, na cultura onde vivem. Esta
segurança advém, segundo Sacristán, de uma
educação que privilegie "a crítica construtiva
do conhecimento e a crítica ao conhecimento discriminador
e ocultador dos sujeitos, culturas e discursos esquecidos"
(Sacristán, 1996, p. 49).
Paralelamente, enfatizar a descentralização e a
autonomia da escola, incentivando ação para além
das políticas impositivas e restritivas em educação,
no país, parece ser uma alternativa. Descentralizar significa,
conforme Pereira, permitir que aconteça a gestão democrática
e, em função desta, a autonomia escolar:
Por autonomia escolar, entende-se o reconhecimento ou a construção
de uma identidade institucional; em outras palavras, é a
capacidade de elaborar e executar um projeto educacional único,
referido a uma clientela específica, pautado na participação
de todos os atores e direcionado para objetivos que têm significado
para a comunidade (Pereira, 2005, p. 147).
Ao mesmo tempo entendemos que a democratização deve
acontecer em todos os níveis do sistema educacional, incluindo-se
o nível da produção do conhecimento em aula:
"A democratização do saber deve se revelar, então,
como objetivo último da escola pública, na educação
da classe trabalhadora (agora, freqüentando-a em maior número)
com uma sólida base científica, formação
crítica de cidadania e solidariedade de classe social".
(Cortella, 2006, p. 15) E estes fatores são resultantes do
trabalho dos professores na gestão do pedagógico.
Este movimento, acredita-se, diferentemente da lógica como
tem sido realizado, iniciar-se-ia com os professores como sujeitos
da gestão do pedagógico, no coletivo de seus pares,
tomando a escola e a comunidade, ampliando-se para o município
e visando a atingir o Estado. E não o contrário, como
tem sido praticado, acabando por reduzir os professores a cumpridores
de ordens baixadas do Estado. Transformar-se-iam os professores,
"dadores de aula", em produtores de aula, em um projeto
de identificação como profissionais, gestores do pedagógico,
mas, acima de tudo, sujeitos e cidadãos que produzem sentidos:
"Somos, antes de mais nada, construtores de sentido, porque,
fundamentalmente, somos construtores de nós mesmos, a partir
de uma evolução natural" (Cortella, 2006, p.
32).
3. Os estágios e as práticas educativas na graduação
como vivências, sentidos e significados primeiros da gestão
do pedagógico
Ao traçarmos considerações acerca dos estágios,
faremos um recorte, focalizando a Orientação de Estágio
Supervisionado em duas Universidades, uma pública e outra
comunitária. Deste modo, pretendemos relatar experiências
vividas durante a prática de Orientação do
estágio, como parte dos processos educativos para a ação
como professora/professor em cursos de licenciaturas. Estes estágios
ou práticas educativas, não raramente, realizam-se,
ainda, somente no final do Curso, acontecendo em contextos de anos
iniciais do Ensino Fundamental, na Educação Infantil
e no Ensino Médio - habilitação curso Normal.
A proposta de orientação centra-se na tentativa
de realizar uma interlocução teórico/prática
com vistas à ação profissional de professores
e professoras. No entanto, observamos que, muitas vezes, essa interlocução
apresentou-se comprometida, pois as práticas de estágio,
de intervenção na realidade, estão arraigadas
em práticas tradicionais e sem reflexões teóricas
substanciais. As reflexões permanecem no senso comum, no
ativismo e no espontaneísmo. Tal situação é
paradoxal, se for considerada que integra o processo de formação
do profissional, formação entendida, com Moita, como
"acção vital de construção de si
próprio" (1995, p. 114). Nesta mesma perspectiva, a
autora afirma que a formação de professores é
"Processo em que cada pessoa, permanecendo ela própria
e reconhecendo-se a mesma ao longo de sua história, se forma,
transforma, em interacção" (1995, p. 115). Com
isto, ao refletir, ao continuamente buscar superar práticas
tradicionais, os professores, por força da reflexão
própria de um trabalho pedagógico, poderiam continuar
este processo dialético de manter sua identidade pessoal,
o que são ao longo de sua historicidade, mas, também,
recompor sua identidade profissional, tornando-se cada vez mais
professores, apropriando-se dos saberes da profissão. Este
processo de constituição da identidade é complexo,
como ratifica Pimenta (1999):
Uma identidade profissional se constrói, pois, a partir
da significação social da profissão, da revisão
constante dos signos sociais da profissão, da revisão
das tradições. Mas também da reafirmação
de práticas consagradas culturalmente e que permanecem
significativas. Práticas que resistem a inovações
porque prenhes de saberes válidos às necessidades
da realidade. Do confronto entre as teorias e as práticas,
da análise sistemática das práticas à
luz das teorias existentes, da construção de novas
teorias. Constrói-se também, pelo significado que
cada professor, enquanto ator e autor, confere à atividade
docente em seu cotidiano a partir de seus valores, de seu modo
de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas
representações, de seus saberes, de suas angústias
e anseios, no sentido que tem em sua vida o ser professor. Assim
como a partir de sua rede de relações com outros
professores, nas escolas, nos sindicatos e em outros agrupamentos.
Entretanto, nossa experiência tem revelado o contrário:
os novos professores, no final da licenciatura, não raramente
já evidenciam uma estabilização, sem resistências
ao tradicional. É como se acontecesse uma desmemorização
do que produziram no curso de licenciatura e sucumbissem aos ambientes
excessivamente rotineiros que caracterizam o cotidiano de muitas
escolas, repetindo um movimento de resistência passiva. Neste
movimento, só é possível reconstruir em contínuo
a gestão do pedagógico se me for apresentada uma receita,
pois, do contrário, sinto-me inoperante para agir neste afã.
Esta opção, como dissemos, encontrada em muitas situações,
nos remete a refletir: o que contribui para a manutenção
de um habitus (Bourdieu, 1989), sem questioná-lo, mesmo durante
a inserção no, espera-se, "novo" do ingresso
na profissão?
Paralelamente à resistência a não repetir,
observou-se, tanto na universidade pública como na comunitária,
estudantes (estagiárias / estagiários) que apresentam
uma dificuldade muito grande em pensar as diferentes áreas
do conhecimento e, ao mesmo tempo, os planejamentos que realizam
ainda se centram em apenas duas áreas: Matemática
e Língua Portuguesa e numa perspectiva de quantidade, em
detrimento da qualidade; de reprodução, em detrimento
da construção/produção do conhecimento.
Sem falar na dificuldade de pensar o social e no quanto este está
presente nas diferentes realidades. Isto pressupõe estabelecer
uma diferenciação entre informação e
saber, que, segundo Charlot, implica em entender que "a informação
se torna um saber quando traz consigo um sentido, quanto estabelece
um sentido de relação com o mundo, de relação
com os outros, de relação consigo mesmo (2005, p.
31). A informação é entendida, neste mundo
globalizado, como mercadoria, marcada pela superfluidade, enquanto
o conhecimento (aqui entendido como a elaboração do
saber na linguagem) é de caráter humano e humanizador,
promove os sujeitos a sujeitos que se entendem sociais e cidadãos.
É pelo conhecer que os seres humanos passam a participar
mais ativamente dos seus grupos.
Durante o estágio ou prática educativa, ao serem
indagados acerca de os planejamentos estarem desarticulados, centrados
no livro didático e nas folhas mimeografadas com, por exemplo,
quarenta exercícios soltos e mecânicos, em muitos momentos,
os professores alegaram ser exigências das professoras-regentes
(que são as professoras responsáveis pelas turmas
nas quais são realizados os estágios ou práticas
educativas). Compreende-se que, por ser a primeira inserção
das acadêmicas / dos acadêmicos, sua primeira intervenção
no campo escolar, e por estarem inseguros, "colam-se"
aos discursos de algumas regentes a fim de justificar suas ações.
Por outro lado, revela o não-alcance daquilo que julgamos
necessário ao egresso das licenciaturas: a constituição
de sua profissionalidade, evidenciada na gestão do pedagógico,
uma ação-reflexão individual, porém,
elaborada e consensuada no coletivo. Vale dizer: observa-se que
não se autorizam ser sujeitos da prática pedagógica,
gestá-la com base na elaboração de aportes
teórico-metodológicos (sistematizados a partir dos
conhecimentos produzidos no curso de licenciatura) de acordo com
as reflexões coletivas das quais participa cotidianamente
e com a cultura onde se insere a comunidade escolar.
Ao serem indagados sobre tal situação, em seus discursos,
expressam saberem o que não é mais possível
fazer no campo educacional, a necessidade de coerência, de
um aporte teórico-metodológico, e que, no entanto,
não sabem como fazer diferente. Alegam ainda, que, durante
o curso, criticaram práticas e hoje acabam reproduzindo-as.
E com isso vivenciamos, nesse processo, momentos de muitas dúvidas
e angústias, momentos de total desconforto e confronto com
os não-saberes, que emergem nos desafios da prática.
Tal processo de intervenção na realidade através
dos estágios não gera indagações só
para as acadêmicas, mas indaga também a professora
/ o professor que orienta. É o momento de repensar o curso
todo, o processo formativo, o currículo, muitas vezes fragmentado,
que, conseqüentemente, gera futuras práticas pedagógicas
fragmentadas. A orientação e as exigências feitas
aos estudantes e o confronto com as propostas de algumas escolas
que alegam pensar e acreditar diferentemente da Universidade, nos
remetem a um processo reflexivo e crítico sobre o contexto
educacional, nos perguntando sobre quais os fins educacionais na
Universidade. É o momento de pensar o processo de constituição
dos professores, qual processo educativo? Segundo Alarcão
e Tavares, para esta sociedade, faz-se necessário preparar
as pessoas para o incerto, para a mutação, ou seja,
para "a abertura e o desenvolvimento de capacidades essenciais
para compreender situações e resolver problemas a
partir de reconfigurações de saberes adquiridos que,
por sua vez, criam novos saberes e novas formas de comunicar [...]"
(Alarcão e Tavares, 2001). E ainda, "implica novas formas
de trabalhar em equipe, de assumir riscos, de ser pró-ativo,
de utilizar as novas ferramentas tecnológicas, de identificar
necessidades próprias de formação e possibilidades
de complemento de formação" (Alarcão,
2001, p. 103). Educar, portanto, para o incerto, demanda a compreensão
de uma formação contínua, permanente, uma aprendizagem
constante.
Tal entendimento supera a idéia de que o sujeito, uma vez
considerado pronto para a ação profissional, estaria
apto para atuar na sua profissão, a ser professor, a ser
um profissional acabado que, durante anos, trabalha da mesma forma,
com os mesmos cadernos amarelados, as mesmas bibliografias, a mesma
metodologia. Esta é uma espécie de rotinização
tão presente ainda hoje na realidade educacional brasileira.
Por isto, concordamos com Veiga, quando afirma:
A formação de profissionais da educação
é um processo e, portanto, não deve ser tomada como
algo pronto, acabado, nem construído isoladamente. Assim,
pensar a proposta de formação de profissionais da
educação é concebê-la no plano de suas
relações com a sociedade, considerando também
outros aspectos, como função social do professor,
magistério como profissão, organização
do trabalho pedagógico e curricular, desafios e limites
enfrentados, além de possibilidades aventadas (1997, p.
14).
Portanto, não só um processo que se dá na
graduação, mas, principalmente, um processo de educação
permanente e continuada.
Sendo assim, ao trazer aqui o entendimento da graduação
e, em decorrência, dos estágios e práticas educativas,
como processo educativo inicial e continuado, frisamos a necessidade
de superar a fragmentação da ação pedagógica,
pois todo processo educativo na escola está associado à
ação, à discussão no campo da prática
pedagógica, ao trabalho pedagógico. Ou seja, ao trabalhar
o momento da formação/ação não
se pode esquecer que este acontece com base nas ações
refletidas pelos professores e que "na análise do processo
de formação desse profissional, há que se considerar
que ele ocorre no contexto de uma determinada forma de organização
do trabalho pedagógico que, antes de ter uma origem em si
mesma, preserva nexos muito fortes com a organização
mais ampla" (Veiga, 1997, p. 38).
Sendo assim, os professores necessitam conhecer mais do que algumas
técnicas. É preciso que os professores aprendam a
refletir sobre a sua prática, valendo-se do aprendido em
seu processo educativo acadêmico. Faz-se mister ter clareza
do que é a reconstrução do movimento constante
dentro da escola, ou seja, pensar o presente, o que já se
faz, o que se consegue dar conta, os sucessos, as qualidades, juntamente
com o que não se dá conta, as limitações,
os fracassos, os tropeços. Vai-se estabelecendo assim, segundo
Pimenta & Lima, uma "formação identitária
dos professores", cuja essência é constituir-se
em "uma elaboração simultaneamente epistemológica
e profissional, realizando-se no campo teórico do conhecimento
e no âmbito da prática social" (Pimenta e Lima,
2004, p. 13), pela qual acontece a transformação da
gestão do pedagógico, decorrente da ampliação
das capacidades hermenêuticas, crítico-reflexiva e
de ação no trabalho (Marques, 1996), de modo que os
profissionais passem a participar, a produzir e se comprometer com
a educação. Tudo isso à luz do passado com
vistas ao futuro, projetando um futuro.
A interlocução entre todos os sujeitos envolvidos
e o conhecimento que se gesta nestas práticas possibilitarão
espaços de discussões sobre os fundamentos, as concepções
teórico/conceituais e metodológicas que orientam a
formação/ação dos sujeitos implicados
nas diferentes culturas e realidades educacionais.
4. Processos de educação continuada e permanente
Consideramos ainda pertinente, destacar que o processo educativo
dos profissionais da educação começa na academia,
porém precisa ter continuidade durante a prática pedagógica
no espaço-tempo da escola.
Na academia, acontece nos cursos de licenciatura, pressupondo
os conhecimentos teóricos estudados e a sistematização
de práticas vivenciadas. Este processo acontece em meio ao
contexto anteriormente vivenciado, ou seja, como diz Lima, está
imerso nas lutas por melhores condições de trabalho
em uma sociedade capitalista com tendências neoliberais:
A luta por um estágio melhor elaborado não está
desvinculada da luta pela melhoria dos cursos de formação
de professores, pela valorização do magistério
e por uma escola de ensino fundamental e médio mais democrática
e eficiente. A luta por uma sociedade mais humana e mais justa e
inclusiva é o desafio da ética e compromisso do educador
dos cursos de formação (Lima, 2002, p. 252).
Esta luta se inicia nos cursos de licenciatura e se prolifera
pela escola, tornando-se cotidiana. Entretanto, pensamos que,
se por um lado, como temos defendido, esta ação
no cotidiano escolar é fundamental na constituição
dos professores, por outro, cabe o cuidado para não se
cometer o pragmatismo exagerado, quase tecnocrático, como
em outras fases da educação (o movimento escolanovista,
na década de 1920, no Brasil, por exemplo). A ação
prática precisa estar apoiada em um projeto pedagógico
e este, do mesmo modo, consubstancia-se na prática. Nesta
práxis, o caminhar juntos do conhecimento das teorias e
dos fundamentos da educação e da ação
cotidiana na escola é o locus para a constituição
dos professores. Estes aspectos constituem o que denominamos gestão
do pedagógico: conhecer e poder agir pedagogicamente no
sentido de realizar o trabalho do profissional da educação
que consiste em produzir conhecimentos no espaço-tempo
da aula.
Acreditamos que os processos educativos para professores são
amplos, complexos e deveriam acontecer amalgamando a reflexão
e a ação, a ponto de evidenciarem-se como práxis.
Deste modo, superariam a preocupação com o discurso
ideológico do desenvolvimento individual de competências
para apresentarem-se como oportunidades de enriquecimento da gestão
do pedagógico, iniciando-se com a elaboração
de um projeto pedagógico individual tido como base para os
projetos pedagógicos institucionais. Não há
um fim e um começo. Há elaborações dialeticamente
estruturadas, que ora se apresentam como conquistas, ora precisam
ser conquistadas, em um movimento de contradição contínua
a impulsionar os professores e seus grupos de trabalhos, na busca
de sentirem-se, cada vez mais, como profissionais. Este é
o aspecto humanizador e belo do ser professora / professor: o movimento
de instabilidade e conseqüente busca de estabilização
cotidiana quanto à práxis pedagógica.
Defendemos, também, a necessidade de o processo formativo
dos professores acontecer na e a partir da escola, pois este é
o espaço-tempo da produção do trabalho, da
profissionalidade e da gestão do pedagógico e da aula.
Sendo assim, será eminentemente social, porque
Cada professor, os coletivos de profissionais carregam cada
dia para a escola uma imagem de educador que não inventam,
nem aprenderam apenas nos cursos de formação e treinamento.
É sua imagem social, é seu papel cultural, são
formas de se relacionar como adultos com crianças, adolescentes
ou jovens. São aprendizados feitos em outros papéis
sociais [...] (Arroyo, 1999, p. 154).
Dada esta complexidade, concordamos com Kuenzer, quando afirma
que entender a relação entre as mudanças sociais
e os processos de educação exige dos profissionais,
pesquisadores e pedagogos:
[...] traduzir o novo processo pedagógico em curso, elucidar
a quem ele serve, explicitar suas contradições e,
com base nas condições concretas dadas, promover
as necessárias articulações para construir,
coletivamente, alternativas que ponham a educação
a serviço do desenvolvimento de relações
verdadeiramente democráticas (1999, p. 166).
E este trabalho de entendimento acontece para além dos
cursos de graduação, expandindo-se em processos de
educação continuada e permanente.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As leituras, os estudos, a participação em projetos
de pesquisa e nossa experiência como professoras de licenciatura,
até agora elaborados, nos subsidiam para pensar que precisamos
superar a racionalidade técnica, muitas vezes, orientadora
dos processos educativos dos professores, para que se possa superar
o paradoxo de, nos cursos de licenciatura, ofertarem-se processos
educativos assentados em uma visão abrangente do fenômeno
educacional, muitas vezes, a partir de fragmentos teóricos
apresentados sem uma conexão entre si, um tecnicismo evidente
na valorização exagerada das metodologias e dos fundamentos,
quando o anseio é de constituição de professores
reflexivos, pesquisadores, capazes de elaborar condições
para a gestão do pedagógico. Acreditamos ser esta
a possibilidade, se quisermos revolucionar a escola, tornando-a
cada vez mais um locus de produção do conhecimento.
Propomos, nesta perspectiva, pensar em educação
continuada e permanente dos professores como processo coletivo capaz
de possibilitar que os professores reafirmem sua profissionalidade
e a evidenciem na gestão do pedagógico. Neste afã,
este processo acontecerá com vistas à produção
de conhecimentos, que são mais do que o simples domínio
da área de trabalho, implicam na análise, implicam
reflexão, síntese dos mundos da experiência
e da ciência. Agindo assim, vão-se configurando as
condições para que se constituam profissionais capazes
da gestão do pedagógico, tornando-se cada vez mais,
evidentemente, sujeitos de seu trabalho.
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