| Mercado é coisa de  satanás? 1 Claudio de Moura  Castro * * Presidente do Conselho Consultivo da Faculdade Pitágoras, Brasil.  Síntese: O presente ensaio lida com os assuntos espinhosos e controvertidos da  entrada do setor privado no ensino superior. Ainda mais sensível é o caso das  empresas com objetivo de lucro. Infelizmente, versões toscas de ideologia  encharcam boa parte das discussões. Não há pragmatismo e falta uma visão mais  analítica do que está acontecendo.Seja como for, o  setor privado não merece ser demonizado. Isso tanto é verdade para o  filantrópico como para as empresas com objetivo de lucro. Aliás, as diferenças  tendem a ser relativamente pequenas. Instituições boas e péssimas existem em  todas as modalidades jurídicas. No caso do ensino superior com fins de lucro,  não há nem no Brasil e nem no exterior uma experiência suficientemente longa  para permitir generalizações mais amplas.
 Instituições privadas  e as boas públicas tentam «vender» mais, ganhar visibilidade e identificar bons  nichos de mercado. Todas têm interesse em reduzir seus custos e aumentar suas  receitas. Ou seja, aumentar o excedente. Mas ao contrário das públicas, nenhuma  instituição privada pode gastar mais do que arrecada. Comparadas com as  públicas, as privadas tendem a ser mais bem administradas e mais eficientes.  Mas nem sempre.
 As filantrópicas têm  maior propensão a operar em áreas deficitárias, praticando subsídios cruzados.  Mas há também falsas filantrópicas. Em contraste, há instituições com fins de  lucro que são exemplares (outras, nem tanto). As diferenças maiores são entre  as competentes e as incompetentes, muito mais do que na intenção de lucros.
 Palavras-chave:  ensino superior; setor privado; economia de mercado
 Síntesis:  El presente ensayo trata de temas espinosos y controvertidos que se producen  por la entrada del sector privado en la enseñanza superior. Este hecho se hace  todavía más delicado cuando esto ocurre con empresas con ánimo de lucro.  Lamentablemente, toscas versiones ideológicas entorpecen buena parte de estas  discusiones. No existe pragmatismo y falta una visión más analítica de lo que  está ocurriendo.
 Sea como fuere, el sector privado no merece  ser demonizado. Esto ocurre tanto para las instituciones filantrópicas como  para las empresas con ánimo de lucro. Además, las diferencias tienden a ser  relativamente pequeñas. Buenas y pésimas instituciones existen en todas las  modalidades jurídicas. Para el caso de la enseñanza superior con ánimo de lucro  no existe en Brasil, y tampoco en otros países, una experiencia suficientemente  amplia que permita mayores generalizaciones.
 Instituciones privadas y las buenas públicas  intentan «vender» más, ganar visibilidad e identificar buenas cuotas de  mercados. Todas tienen interés en reducir sus costes y aumentar sus recetas. O  sea, aumentar el excedente. Pero al contrario de las públicas, ninguna  institución privada puede gastar más de lo que recauda. Comparadas con las  públicas, las privadas tienden a estar mejor administradas y ser más  eficientes. Pero no siempre.
 Las filantrópicas tienen mayor propensión a  operar en áreas deficitarias, ya que practican subsidios cruzados. Pero hay  también falsas filantrópicas. En contraste, hay instituciones con fines  lucrativos que son ejemplares (otras no tanto). Pero las mayores diferencias se  dan entre las competentes y las incompetentes, mucho más que en la intención de  lucro.
 Palabras clave: enseñanza superior; sector  privado; economía de mercado.
 Abstract: This article deals with  complicated and controversial issues that are a consequence of the private  sector entering higher education.
 This point is especially delicate when this  happens with profit-making corporations.Unfortunately, rough ideologies  obstruct a large part of these discussions. There is not pragmatism and there  is a lack of analytic vision of what is going on.
 In any case, the private sector does not  deserve to be demonized. This happens both with private non-profit and  profit-making enterprises.
 Moreover, the differences tend to be  relatively small. Good and bad institutions exist in every single legal option.
 In the case of profit-making higher  education, in Brazil and in other countries, there is not enough experience to  make further generalizations.
 Private institutions, and good public  institutions, try to “sell” more, to gain visibility and to identify good  market niches.
 All want to reduce their costs and to  increase their revenue, i. e. to increase their profit. Unlike state-owned, no  private institution can spend more than what it collects. Compared to  state-owned institution, private institutions tend to be better managed and to  be more efficient. But not always. Non-profit private institutions tend to  operate in deficit-generating areas, because they use cross-subsidies. But  there are also false non-profit institutions.
 To sum up, there are private profit-making  institutions that are outstanding (and some others, not that much). Still, the  biggest difference is between competent and incompetent institutions, and no in  whether or not it is profit making.
 Key words: higher education; private sector;  market economy.
  1.       Introdução Boa parte das sociedades convive mal com o  lucro. Quase todas têm alguma pontinha de resistência, não é só a brasileira.  Contudo, o ranço é bem mais indelével no nosso país.   A antipatia ao lucro sobrevive nas atividades  convencionais, como na fabricação de sapatos ou fogos de artifício. Não é  surpresa que na educação as resistências sejam ainda maiores. Após dois séculos  de existência, tanto as escolas privadas como os seus eventuais lucros ainda  causam desconforto ou reações endócrinas. Esse é um tabu que só agora começa a  ser arejado e discutido com serenidade.   A «Educação é um sacerdócio». Assim se falava  e ainda haverá quem o diga. Não obstante, é preciso lembrar que as becas dos  professores medievais tinham bolsos cuja função era guardar o pagamento recebido  dos estudantes.  O presente ensaio explora os acordos e  desacordos provocados pela presença do setor privado na educação. Não se trata  de defesa dessa ou daquela posição, mas uma tentativa de enxergar além dos  preconceitos e estereótipos.   2.       A  lenta e espinhosa aceitação do capitalismo              Quando a Revolução Industrial inglesa tomou  corpo, houve um significativo avanço no sistema de mercado, pois as compras e  vendas foram migrando da praça central das pequenas cidades para os grandes  negociantes e fabricantes. Junto com a crescente escala de produção, o volume  de comércio se expandiu em ritmo inaudito. Desta forma, o sistema de mercado  prosperou e se aperfeiçoou apesar de limitações que persistem, desde então.  Havia que entender esse mecanismo misterioso que  prescindia do controle do Estado. Não parecia requerer nenhum idealismo. Não  mais do que a disposição para obedecer às leis da terra.   Duas figuras emergem em meados do século xviii, desvendando o paradoxo. Em ambos  os casos, traziam uma explicação que colidia com o senso comum.  O primeiro deles foi Bernard de Mandeville  (1997), celebrizado pela sua fábula sobre as abelhas (Fable of the Bees), de  1714. Dele vem uma idéia fundamental, mas revolucionária na época: o mercado  funciona não pelas virtudes das pessoas, mas pelos seus «vícios». No caso, o  termo vício se refere à busca dos interesses privados – em oposição a algum  tipo de idealismo ou compromisso moral. Para Mandeville, são os vícios privados  que trazem o benefício público. Não é porque os produtores e comerciantes sejam  bons ou generosos que encontramos o que precisamos no mercado. É o oposto, está  tudo lá porque estão tentando ganhar dinheiro. Se possível, também se  enriquecer.   Adam Smith, um respeitável professor de  Filosofia Moral, aprofunda as explicações. De fato, constrói os fundamentos da  Ciência Econômica no seu livro Uma investigação sobre as causas da riqueza  das nações, publicado em 1776 (Smith, 1991).  Adam Smith confirma o enigma: A sociedade é  mais bem servida quando todos buscam os seus interesses pessoais e tratam de  ganhar tanto quanto possível.   Sendo assim, não serão os «vícios» uma  virtude, criando o máximo de benefícios para todos? Segundo ele, «não esperamos  obter nosso próprio jantar da bondade do açougueiro ou do padeiro, mas do  interesse de cada um deles». Curioso paradoxo: o professor de Filosofia Moral  advogando que o mercado funciona porque as pessoas são egoístas.  Vivendo em uma economia ainda tutelada pelo  governo – a escola mercantilista reinava soberana – parecia inacreditável que  esta intervenção permanente não fosse necessária, desde que os mercados  funcionassem livremente, ao sabor das «leis da oferta e da demanda». Chamando a  atenção para a surpreendente capacidade dos mercados para se autogovernar,  Smith usa a metáfora da «mão invisível», cuja ação gera uma ordem e uma  eficiência que dispensavam a presença diuturna do Estado.  Essa idéia colidiu com a tradição das  virtudes cristãs. Os protestantes sempre conviveram melhor com o lucro –  mensagem divina de que estavam cumprindo a sua missão terrena e adquirindo  créditos para o céu. Mas nos países católicos, como o nosso, sobreviveu uma  visão tomista da economia, com suas idéias moralizantes do «preço justo». Dessa  linhagem herdamos os resmungos antimercado e um véu de ignorância que persiste,  pois ainda hoje muitos esperam «justiça» nos preços de mercado. Não obstante, o  mercado sobreviveu incólume, até nossos dias.  Hoje entendemos as inúmeras qualificações e  restrições aos resultados produzidos pelo mercado. Mas como idéia mãe, como  princípio geral, continua tão válida como na Glasgow do século xviii, onde vivia Adam Smith.  Alguns autores mais recentes têm sido  taxativos. Por exemplo, Max Weber (2002), apesar de ser sociólogo e não  economista é peremptório: «no último século, prosperaram as nações que  abraçaram o capitalismo sem hesitar».  Milton Friedman, o mais conservador das  celebridades econômicas contemporâneas, tampouco hesita: «A missão da empresa  privada é gerar a maior quantidade possível de lucros [...]» Exageros à parte,  com a total dissolução na crença de regimes ditos socialistas ou comunistas, o  mercado sobrevive, bem como as teorias que o explicam. Discórdias e  controvérsias que permanecem dentre os economistas são mais de detalhes do que  de substância.   Mas na opinião pública, o regime capitalista  ainda não foi digerido e totalmente incorporado ao imaginário popular. Lucro  ainda é «coisa de satanás».   Há um elemento de antipatia por um sistema  cuja lógica de funcionamento se apoia no egoísmo. O sistema de mercado não faz  nosso coração palpitar. Todos nós temos uma veia idealista. Forte ou atenuada,  sobrevive sempre, no fundo, uma visão romântica de que a vida vivida por um  ideal é melhor, mais reconfortante. Temos uma necessidade atávica de acreditar  em algum conjunto articulado de princípios. O socialismo, em todas as suas  vertentes, é sempre grandioso, simpático, amigo e mais próximo do Bem. Além  disso, por produzir um grande sistema integrado, atrai a muitos. Talvez essa  seja a causa da sobrevivência do marxismo, por tanto tempo, apesar de sua  incapacidade de gerar prosperidade material e de uma longa história de  convivência hostil com as práticas da democracia.   Em contraposição, o mercado é banal, é  mesquinho, não produziu a Grande Religião e não traz promessas bombásticas de  salvação universal. O melhor sistema de operar a economia que se encontrou não  inspira, não entusiasma. Não vira bandeira para a juventude. Talvez esse seja o  seu principal problema. Bandos de estudantes jamais saíram às ruas com cartazes  pregando o lucro, a busca dos interesses próprios, o anonimato dos ajustamentos  espontâneos do mercado e a prosperidade das grandes empresas.  3.       Economia  de mercado rima com a qualidade? Antes de mergulhar no mundo turvo da  educação, vale a pena discutir um pouco o convívio do sistema de mercado com a  qualidade dos produtos. Isso porque, talvez o foco principal das controvérsias  na educação tenha a ver com uma suposta incompatibilidade do lucro com a  qualidade do ensino.               Vejamos onde está a qualidade nos produtos  industriais. Patek Phillipe, Rolex, Rolls Royce e bmw são os melhores exemplos de qualidade em relógios e  automóveis. Ao mesmo tempo, relógios russos e automóveis Lada não são ícones de  excelência. Os automóveis da marca Renault só subiram nas avaliações de  qualidade após a privatização da empresa. Se houvesse incompatibilidade entre  lucro e qualidade, os melhores produtos deveriam vir de fábricas estatais.  Há muitas outras áreas em que a excelência é  produzida por operadores privados. Shakespeare vendia suas peças. Os mais  celebrados escritores contemporâneos são regiamente pagos. O vil metal não  parece prostituir as penas e teclados mais inspirados.  Picasso vendia seus quadros, por bom  dinheiro. Van Gogh não vendia, mas bem que tentou. O problema é que com suas  cores tão bizarras não encontrou compradores.   A pesquisa médica faz prodígios e salva  vidas. E pouco nos importamos em saber se são feitas por laboratórios privados  ou universidades públicas. O mesmo com o melhor cuidado médico e os cirurgiões  mais destacados. Não pairam dúvidas sobre a sua qualidade. Não obstante,  tampouco se duvida da capacidade de organizações públicas ou semipúblicas de  oferecer também serviços de qualidade.   Ou seja, o sistema de mercado e o lucro não  colidem com a qualidade na indústria e nos serviços – embora não tenha  monopólio. Se isso for assim, para condenar o setor privado na educação será  necessário demonstrar que as condições são tão diferentes que tornam impossível  ou improvável o mesmo desempenho superlativo de alguns operadores privados.   4.       Avanços  e recuos da educação privada no Brasil Antes de explorar a natureza do ensino  privado e seus meandros, vale a pena descrever os avanços e recuos das  instituições públicas e privadas no país. Igualmente, cabe fazer uma primeira  distinção superficial entre diferentes tipos de instituições «não-públicas».  Em anos recentes, o setor privado avança  novamente. Digo novamente, pois no século xix  quase todo o ensino brasileiro era privado, como na maioria dos países.  Uma grande proporção era de ordens religiosas. Mas havia também escolas criadas  por professores. As públicas eram as pouquíssimas faculdades de Medicina,  Direito e Engenharia, opções caras e com mercado limitado. Só apareceram pela  iniciativa do Estado.   No início do século xx, inicia-se a vigorosa expansão da rede de ensino público.  Em muitos casos, era apenas questão de preencher os vazios gigantescos, pois  começamos o século com uma cobertura de pouco mais que dez por cento das  crianças em idade escolar, quase todas frequentando o setor privado. Contudo,  na década de 1930, dá-se uma formidável colisão entre os proponentes da escola  pública e a igreja católica, ambos os lados representados por intelectuais  respeitáveis2.  Venceu a tese do ensino público. Como resultado,  o privado continuou perdendo espaço em todos os níveis. No ensino básico,  restam pouco mais de 10% de matrícula no privado.   No superior, desdenhado pelo setor privado, o  público sempre predominou. Mais ainda, deu um salto, a partir dos anos 60, com  a criação de uma enorme rede de universidades federais, com muitas ambições e  custos descomunais. Mas este foi também o seu calcanhar de Aquiles. Sendo tão  cara, acabaram-se os recursos, antes mesmo da forte expansão na rede básica e o  consequente aumento de graduações no ensino médio, ocorrido na década de 1990.  Nesse momento, já não havia mais como expandir a rede federal, dado o seu  altíssimo custo por aluno (equivalente ao que custa um aluno europeu).   Diante disso, com relutância, o mec passou a permitir a criação de  universidades e faculdades privadas, diante do crescimento da demanda por  vagas. Hoje, quase 80% das matrículas estão no setor privado. E não há um  cenário plausível de reversão desses números. Apesar da ambiguidade do discurso  do mec, faz todo o sentido  concentrar os esforços públicos no ensino básico e deixar o superior para o  setor privado.   É preciso lembrar que o ensino privado não é  um todo homogêneo. Convivemos no passado com instituições religiosas (católicas  e protestantes). A figura do lucro não entrava em cena. Os memoráveis embates  da década de 1930 eram doutrinários: escola pública ou escola religiosa? Não  era controvérsia entre privado e público, no sentido em que hoje se engalfinham  os contendores. Ainda era um contencioso do embate entre o absolutismo do  Império e a posição da Igreja Católica.  Havia também um ensino privado laico. Mas  eram alguns celebrados professores que criavam suas escolas. Tampouco eram  vistos como conspurcados pelo vil metal.   Novo avanço no setor começa com os cursinhos.  O vestibular unificado, nos fins de 1960, cria espaço para o aumento da  matrícula por parte dos cursinhos tradicionais. Torna-se possível preparar  muitos alunos, simultanemente, pois fariam os mesmos vestibulares. Isso permite  uma produção editorial em maior escala. Não havendo livros adequados para o  vestibular, conquistam esse mercado e se expandem.   Os donos dos cursinhos são médicos ou  engenheiros e não professores. Têm uma visão de gestão e eficiência muito mais  moderna. Operam em um mercado sem qualquer regulação. E há transparência  instantânea para os resultados: o vestibular. Entre cinco a dez cursinhos se  destacam no panorama nacional, pelo seu tamanho e expansão. Eles iniciam suas  atividades em um setor que apenas marginalmente era considerado como educação.  Assim sendo, declaram objetivo de lucro, sem criar maiores celeumas, além da  monótona acusação de que nada mais fazem do que adestrar alunos para marcar  cruzinhas.   Mais adiante, os cursinhos veem no ensino  fundamental e médio uma saída para a relativa saturação dos seus mercados.  Encontram território desprotegido para sua expansão. Sua agressividade no  marketing, seu pragmatismo pedagógico, sua gestão mais eficiente e a produção  de materiais didáticos próprios asseguram o seu sucesso.   Paralelamente, o privado de fraca qualidade  compete mal com a rede de escolas públicas que se expande. As escolas de  freiras são as primeiras vítimas. Também perdem terreno as laicas menos  eficientes. O sistema privado vai sendo peneirado e hoje restam as escolas de  alta qualidade, as que encontram nichos específicos (escolas Piaget,  Montessori, americanas, francesas ou alemãs). Sobram também os ex-cursinhos,  geralmente operando quase no topo da pirâmide da qualidade acadêmica. Aliás, ipso  facto, demostrando que lucro e qualidade não são incompatíveis.   Note-se que dentre as 18 melhores escolas no enem, apenas duas são públicas3.  Não seria o caso aqui de explorar o porquê desse resultado. Basta registrar que  demonstra não haver incompatibilidade entre privado e qualidade.   Na segunda metade do século xx, a penetração da escola pública no  ciclo básico foi inexorável. E se a sua qualidade não convencia, a ausência de  mensalidades foi e será argumento poderoso. Daí, o início da migração dos  colégios privados para o ensino superior, afugentados pela expansão da rede  pública. Todos o fizeram: padres, freiras e ex-cursinhos. A eles se juntaram  empresários e banqueiros sem experiência prévia em ensino, mas dotados de  fundos generosos, experiência em gestão e o pragmatismo, sempre escasso no  setor educativo.  Em fins dos anos 90, a lei passou a admitir  que instituições de ensino superior declarassem fins de lucro. A legislação  prévia não permitia. Antes disso, não poucas instituições obviamente voltadas  para o enriquecimento pessoal dos proprietários escondiam seus rendimentos,  mediante os mais variados subterfúgios. Quase todas acumulavam gigantescos  patrimônios imobiliários. Várias delas empregavam toda a família e declaravam  como serviços domésticos os automóveis e iates como custos das empresas.   Ao permitir formalmente os lucros, cria-se  uma migração das filantrópicas para a categoria das que declaram objetivo de  lucro. Pagam impostos, mas não têm que dar satisfações a um governo sempre  sedento de papéis e certificados. Em 2006 havia 1.583 privadas com fim de  lucro, em um total de 2.270 privadas.  O passo seguinte foi a chegada de  instituições americanas – com fins de lucro – comprando ou associando-se a  universidades e faculdades brasileiras. Muitos viram nas primeiras atividades  dessas empresas (Laureate e Apollo) um prenúncio de desnacionalização do setor,  com a consequente perda de soberania cultural. O susto foi maior do que a  realidade, pois são pouquíssimas as instituições com fim de lucro no mundo. Na  verdade, vieram as duas maiores. Uma delas vendeu de volta a sua parte para os  sócios locais (Pitágoras) e, até o momento, não fez outros investimentos. Não  há um cenário plausível para a desnacionalização denunciada.   A última etapa da conversão capitalista do  ensino superior foi a meia dúzia de empresas que abriram capital, lançaram  ações na bolsa de valores e captaram recursos no exterior. Com os fundos  obtidos, instalam novos campi e iniciam também um processo de fusões e  aquisições, comprando faculdades já em operação. Apesar do susto daqueles mais  temerosos dos tentáculos do capitalismo, não parece que o total das matrículas  nas faculdades e universidades de capital aberto possa ir muito além de dez por  cento.   Instituições de capital aberto são acompanhadas  muito de perto pelos bancos que as assistiram no processo de lançamento das  ações. Esse acompanhamento constrange bastante a sua liberdade de ação. A  experiência acumulada é muito pequena e não permite um julgamento definitivo.  Mas alguns traços podem ser percebidos. Os bancos esperam que as metas  quantitativas sejam cumpridas à risca. E não gostam nada de balanços no  vermelho. Ou seja, implicitamente enviam sinais que podem ser interpretados  como: «façam tudo o que for necessário para gerar lucros». Essa presença dos  banqueiros e acionistas é uma espada da Dâmocles, pendendo sobre a cabeça dos  gestores. Como acontece em empresas de outras áreas, há o risco de focalizar os  esforços no lucro a curto prazo, sacrificando o futuro. Mas os banqueiros transmitem  também a advertência de que perdas de qualidade do ensino podem trazer  consequências funestas (Gramani, 2008). O cerne da questão está nas metas. Se  forem definidas de forma açodada ou com excesso de otimismo, cria-se um  impasse, pois os cortes de custo podem sacrificar a qualidade e, por  consequência, os lucros futuros. Diante desse quadro, os gestores se veem entre  a cruz e a caldeirinha.  Recapitulando (e simplificando), o século xix presencia a expansão do ensino  privado. O século xx começa com a  expansão do ensino público e termina com a sua quase total predominância no  ensino básico. Já o fim do século xx e  o início do xxi são marcados pela  expansão do ensino privado no nível superior.                5.       Lucro  na educação é coisa de Satanás? Se na produção de abóboras e automóveis ainda  há uma ponta de resistência contra o mercado e o lucro, na educação, a  resistência permanece muito mais alta. Segundo alguns, a nobre missão do ensino  é inexoravelmente conspurcada pelo capitalismo.  Sobrevive uma balbúrdia ideológica e  intelectual. Vejamos: 
               O espírito mercantilista, cujo apetite  desenfreado deixaria qualquer especulador boquiaberto... [A única alternativa]  seria a desapropriação imediata e irrevogável de toda e qualquer escola privada  (Groppa Aquino).  Não gosto de escola privada que dá lucro  (alto funcionário do mec, em  seminário)  Estas citações são típicas da esquerda  brasileira. São as mesmas ideias de décadas passadas. Demonstram que a presença  do setor privado e do capitalismo na educação ainda oferece resistência, com  fervor, por parte de alguns. Ao mesmo tempo, alguns operadores privados se  valem dos preconceitos vigentes para defender seus mercados cativos.
 
               A abertura indiscriminada de cursos nos  últimos anos, [...] provoca uma turbulência na área de ensino superior (dono de  faculdade privada, em entrevista ao jornal Estado de Minas).  Do mesmo naipe são vituperações de  representantes de universidades religiosas contra aquelas que visam ao lucro.  Tratam-se das clássicas defesa de uma reserva de mercado. Adam Smith já dizia  que capitalista adora monopólio. Só faltou dizer que padre também gosta de  monopólio, quando é o dele.   Cumpre registrar outro tipo de ruído. Há uma  ala da esquerda que se rebela contra o uso de uma linguagem «capitalista» ou  «neo-liberal», para falar de educação. É a guerra das palavras. Seu uso  denunciaria aspectos sinistros do ensino privado: 
               Educação não é «mercadoria»As escolas não devem fazer «comércio»
 O ensino não é um «produto»
 Alunos não são «clientes»
 O «produtivismo» não tem lugar na educação
  Quando examinamos o verdadeiro significado de  cada uma dessas afirmações, podemos ver que não estão dizendo nada que possa  ser verificado, isto é, confrontado com o mundo real, para que esse último nos  diga se é verdadeiro ou falso. Não passam de frases que recorrem à emoção para  atrair o interlocutor.   Por tudo que acarreta custos, alguém tem que  pagar. No ensino público, pagam os contribuintes. No privado, pagam os alunos.  Chamarmos essa troca de «venda» ou «comércio» não muda em nada a situação.  Afinal, hóstias e bíblias são também compradas e vendidas. Se chamarmos  educação de «produto», pouca diferença faz a escolha dessa palavra ou de outra.  Com efeito, as escolas podem ser vistas como «indústrias de educação», pois  operam uma «máquina» que recebe alunos ignorantes e «produzem» alunos menos  ignorantes. Não passa de uma metáfora interessante. Chamarmos os alunos de  «clientes», simplesmente sugere que eles são o objeto da educação e têm  direitos que devem ficar claros – embora coexistam com a prerrogativa da  instituição de definir os «serviços» que deseja oferecer, dentro dos marcos  legais.   Há uma grande diferença entre insultos e  afirmativas que podem ser objeto de verificação empírica. A escolha de palavras  com forte carga emocional ou pejorativa em nada muda a sua inocuidade. Não  passam de palavras lançadas a esmo, pelo seu efeito. Dito de outra forma: há  acusações e críticas legítimas ao setor privado – que examinaremos adiante –,  mas as reproduzidas acima não passam de uma guerra de palavras vazias.   Em contrate com as afirmações anteriores, a  denúncia contra o «produtivismo» no ensino é bizarra. Ao contrário das outras  afirmações que nada dizem, esta prega algo concreto e que contraria o bom senso  mais elementar: nega o princípio saudável de que devemos obter mais com menos  recursos.   6.       Todos  cortam custos e maximizam receitas Até agora, falamos de instituições e suas  descrições externas e convencionais: públicas, privadas religiosas, privadas  sem fins de lucro e privadas com fins de lucro. Há uma visão implícita de que  são animais diferentes, com características próprias e distintas. E, de fato, o  são. Contudo, têm muitos traços comuns. Examinaremos aqui as semelhanças e  diferenças que parecem efetivamente existir.   De inicio, vale a pena notar que igrejas,  salsicheiros, agentes funerários, escolas e instituições filantrópicas têm  comportamentos semelhantes em certos aspectos. Todos tentam cortar custos  e maximizar suas receitas. Organizações sadias sempre tratam de alcançar  mais resultados com os mesmos meios ou os mesmos resultados com menos meios. Ou  seja, o desperdício é igualmente condenado nas fábricas e nas escolas. E a  tentativa de obter mais receitas é igualmente universal. Nesse particular, não  há nenhuma diferença entre instituições filantrópicas e aquelas com objetivo de  lucro.   Harvard, considerada a melhor universidade do  mundo, é uma instituição privada sem objetivo de lucro. Não obstante, busca  furiosamente aumentar as suas receitas, por todos os meios possíveis. Usa seu nome  e reputação para vender serviços de consultoria, projetos de pesquisa, cursos  avulsos, seminários e canecas de café com seu brasão. Em um livro recente, o  seu ex-reitor, Derek Bok (2006), faz algumas ponderações, encontrando casos em  que foi longe demais no seu comercialismo. Mas o próprio fato de que tal  crítica seja feita por um professor e ex-reitor sugere que há padrões e  expectativas de lisura e limites à busca de receita. Por outro lado, se  quisermos ser um pouco cínicos, o comercialismo de Harvard estaria produzindo  bons resultados, tanto no ensino quanto na pesquisa. Ou seja, se forem corretas  as críticas contra o comercialismo de Harvard, o fato de que ela seja a número  um deveria indicar que tal política não estaria comprometendo excessivamente os  seus resultados.   A tentativa de controlar custos e aumentar  receitas não é estranha às universidades públicas. Uma boa instituição pública  faz o mesmo. Tenta eliminar gastos desnecessários, tenta obter mais com os  recursos recebidos. E tenta obter mais receitas pela venda dos serviços que  está autorizada a cobrar – sejam quais forem.   As boas universidades públicas americanas  operam exatamente assim. A pós-graduação brasileira, mesmo nas públicas, é um  bom exemplo de eficiência. Todas reduzem custos onde podem e tentam vender  serviços de consultoria e de p&d.  Além disso, concorrem pelos recursos dos fundos de pesquisa. Suas fundações  permitem contornar as barreiras intransponíveis da legislação do serviço  público.   Mas há diferenças também. Entendê-las corretamente  é indispensável.   As instituições privadas, filantrópicas ou  com fim de lucro, encontram penalidades amargas quando vacilam nas tentativas  de reduzir despesas ou aumentar receitas. No limite, tornam-se insolventes e  podem fechar suas portas. Ou seja, os incentivos negativos são muito fortes. A  «mão invisível», de que falava Adam Smith, também estrangula. De fato, assim  como as promessas de enriquecer espicaçam os empresários, o medo de falir é  poderoso incentivo para ser eficiente.   Como comentário à margem da presente  discussão, é preciso entender que as empresas privadas não são sempre  eficientes e argutas na sua gestão. Pelo contrario, erram grosseiramente e com  muita frequência. O que as diferencia é o preço que pagam pela incompetência. A  enorme quantidade de empresas que falem ou pedem concordata atesta a presença  ubíqua de barbeiragens. A eficiência é obtida pelo mecanismo darwiniano de  concorrência e eliminação das menos aptas.  Voltando ao assunto, apesar das semelhanças,  há uma assimetria entre as filantrópicas e aquelas com objetivo de lucro. Em  ambas, a imprevidência pode levar ao buraco. Os déficits acumulados tanto podem  ser impagáveis em umas como nas outras. Não faz muito tempo, a puc-sp sentiu na carne a proximidade de  uma falência. A Universidade Santa Úrsula está na corda bamba. Contudo, as que  têm objetivo de lucro, têm o incentivo adicional de receber prêmios  financeiros, na forma de dividendos, sempre que os resultados forem bons. Já as  filantrópicas podem se contentar em não acumular prejuízos. Isso pode também  acontecer nas que declaram objetivos de lucro, mas é menos frequente. O que é  mais comum é não conseguirem ter lucro, por incompetência ou pelas  circunstâncias do mercado.   A diferença entre públicas e privadas não  está na receita para o bom desempenho – reduzir custos e aumentar receita. Em  teoria, todas deveriam segui-la. O contraste com as privadas, é que as públicas  não fecham, não vão à falência. Aliás, raramente a inépcia administrativa  encontra punição comensurável com as barbeiragens ou negligências cometidas. De  fato, faltam prêmios e punições, na maioria das organizações públicas. Tanto é  assim que uma das principais estratégias para obter mais eficiência é criar  incentivos e punições, de tal forma a estimular comportamentos semelhantes aos  observados no setor privado. É isso que se consegue com os fundos competitivos  para recursos de pesquisa, tão disseminados no Brasil. Ou adicionais de os  recursos orçamentários adicionais, como prêmio pelo bom desempenho, como ocorre  no Reino Unido e no Chile.  Voltando às privadas, há uma diferença  relevante entre as que têm finalidades de lucro e as filantrópicas. Como já foi  dito, ambas têm forte interesse em aumentar suas receitas e reduzir custos,  isto é, aumentar o excedente econômico. Contudo, o destino dessa diferença  entre receitas e despesas não é o mesmo. As filantrópicas são obrigadas a  reinvestir o que sobra. Nelas se chama excedente, nas outras é chamado de  lucro. As que têm fins lucrativos, tanto podem reinvestir como distribuí-lo  para os donos da empresa ou das ações.   Por crucial que possa ser essa diferença, em  mercados altamente competitivos, algumas empresas com fins de lucro decidem não  distribuí-lo. Preferem reinvestir, a fim de garantir sua fatia de mercado. De  fato, conquistar ou não perder market share costuma ser uma prioridade  mais critica do que distribuir dividendos. Sendo assim, esmaece muito a  diferença entre as filantrópicas e as que têm fim lucrativo. Que diferenças  haveria entre uma filantrópica que reinveste seu excedente e uma lucrativa que  faz o mesmo? Esta pergunta não está induzindo uma resposta, apenas sublinhando  que distinções legais podem não estar delimitando diferenças relevantes no  mundo real.  Mesmo quando os lucros não são distribuídos, permanecem  diferenças. As que têm fim de lucro têm o direito de decidir o que fazer com o  excedente. Podem reinvestir, buscando obstinadamente ser uma Harvard tropical.  Ou os donos podem comprar iates e coberturas na Vieira Souto. Cada uma destas  alternativas tem as suas vantagens e os seus riscos. Nos casos mais comuns,  predominam alternativas intermediárias, tentando conciliar o aumento do  patrimônio dos sócios com a prudência diante de uma concorrência cada vez mais  agressiva. Nada diferente do que acontece em outros setores de atividades.   Para terminar, há que insistir: o status  legal de filantrópica não necessariamente descreve uma índole ou uma identidade  verdadeira. Muitas são filantrópicas com o objetivo de não pagar impostos e  esconder os lucros, por meio dos subterfúgios conhecidos. Há também a categoria  daquelas com fins de lucro que voltam a ser filantrópicas, por estarem dando  prejuízo. Com a volta, deixam de pagar impostos e não perdem nada, pois não têm  lucro para distribuir.   Nesse passeio pelas semelhanças e diferenças,  podemos perceber que as semelhanças são maiores do que as diferenças. Ademais,  as boas públicas se parecem bastante com as privadas. E as privadas com e sem  objetivo de lucro são também bastante parecidas. Em outras palavras, públicas e  privadas deveriam cortar custos desnecessários e aumentar suas receitas. A  diferença é que as públicas ineficientes têm mais condições de sobreviver com  impunidade . Já as privadas pagam uma penalidade temível se não o fizerem,  pelo risco de falência. Ademais , os  proprietários esperam um rendimento sobre o seu capital, se for uma instituição  com objetivo de lucro (que não significa que dividendos serão distribuídos).   Há hoje uma tendência clara para a cobrança  de mensalidades no ensino superior público. É assim nos Estados Unidos, no  Chile, no México (à exceção da unam),  na China, e em muitos países da África e da Ásia. Sobrevive precariamente o  ensino quase gratuito na Europa, mas com claras tendências de mudança. Quando  consideramos tais sistemas parcialmente pagos, as diferenças entre públicas e  privadas com e sem lucro se reduzem ainda mais.   7.       A  maior limitação: Só estuda quem pode pagar Apesar de seus inegáveis méritos, o sistema  privado é intrinsecamente injusto, do ponto de vista de não oferecer  oportunidades iguais a todos. Como são muito poucos os que recebem subsídios no  ensino privado no Brasil, a totalidade dos custos é arcada pelos interessados.  E em um país pobre, pelo menos três quartas partes da população não teriam os  recursos para pagar as mensalidades de um curso superior.   Essa é, de longe, a principal limitação do  sistema privado. É um ensino que filtra os alunos pelo poder de compra seu ou  de sua família. É óbvio, não há culpas ou maldades nisso. Alguém tem que pagar.  Como o Estado não o faz, tem que ser o aluno ou sua família. No caso  brasileiro, em sua maioria, são pessoas com menos poder de compra. Contudo, a  iniciativa privada não tem como mudar essa equação.  Durante muitos anos, o número de famílias que  podiam pagar ultrapassava o número de vagas no superior. Mas hoje, a  impossibilidade de custear as mensalidades se tornou o fator crucial, limitando  a matrícula nesse nível.   Contudo, não se trata de um caso perdido. Há  possibilidades de expandir as bolsas e empréstimos oferecidos ou apoiados pelo  governo, ou pelas próprias escolas privadas. Um pouco menos de um quarto dos  universitários brasileiros recebem algum tipo de suporte financeiro. Compare-se  com os Estados Unidos, um país muito mais rico. Lá, todo o ensino superior é  pago, público e privado. Porém, cerca da metade dos alunos recebe bolsas ou  empréstimos subsidiados (ou securitizados).   Para o governo brasileiro, não é mau negócio  dar bolsas ou empréstimos. Além de desinflar uma demanda política desgastante,  os alunos da instituição privada beneficiados com esses apoios custam muito  menos do que aqueles matriculados em instituições públicas (em média, os custos  são um terço do que custam as universidades federais).   8.       Quem  oferece qualidade, quem opta por educar muitos? Vale a pena perguntar que relação haveria  entre o tipo de organização e a qualidade do ensino que oferece. Para isso,  voltemos inicialmente ao que nos ensina a observação das empresas.  Há uma tendência ingênua de ver uma empresa  como uma operação regida, de ponta a ponta, por imperativos induzidos pelo seu  balanço. Pelo contrário, as empresas decidem o que querem produzir, de acordo  com o que percebem como suas vantagens comparativas, sua experiência passada e  a situação do mercado. Podem escolher um produto mais refinado, mais complexo e  talvez mais caro. Ou algo mais simples e que pode ser vendido em maior escala,  por um preço mais accessível. Ou ainda, conquistar o mercado pelo menor preço  possível, sacrificando a qualidade. Qualquer destas opções é possível. A  priori, do ponto de vista da lucratividade do negócio, não se sabe qual  será mais vantajosa. Um Rolex é mais lucrativo do que Swatch? A economia de  mercado não manda produzir algo bom ou ruim. Diz para encontrar a alternativa  mais interessante, do ponto de vista dos resultados.  O mesmo sucede com a educação. Universidades  religiosas podem querer atingir um número máximo de alunos, mantendo uma  qualidade aceitável. Em boa medida, é o que faz a ulbra. Ou optam por oferecer a melhor educação possível,  como faz a puc-Rio.   Instituições com fins de lucro enfrentam  opções semelhantes. Igualmente, fazem escolhas diferentes, de acordo com sua  tradição e competência. O ibmec escolheu  o caminho de buscar a excelência, ainda que suas mensalidades elevadas limitem  o número de alunos. De fato, seus cursos de administração e economia estão no  topo da pirâmide do enade. O ibmec do Rio de Janeiro tem fim  lucrativo. O de São Paulo é uma organização sem fins de lucro, não sendo  permitido distribuir lucros. Curioso notar que o curso de economia do Rio de  Janeiro está substancialmente mais bem cotado no enade do que o de São Paulo. Concluímos que lucro leva à  maior qualidade? É óbvio que não. Apenas é possível deduzir que o mundo é mais  complicado do que parece.   Outras universidades, também com fins de  lucro, optaram pela quantidade. Para isso, precisam reduzir as mensalidades,  com os correspondentes cortes de despesas. Portanto, oferecem ensino mais  modesto. unip, Estácio e Anhaguera  podem ser exemplos. Qual será o limite inferior de qualidade socialmente  aceitável? Ninguém foi ainda capaz de dizer. De concreto, só há as normas  legais, em boa medida, respeitadas pelas grandes.  Sem os mesmos cálculos econômicos, as  públicas têm que tomar decisões semelhantes. No caso da rede federal, paulista  e paranaense, a escolha foi feita pela qualidade. Inevitavelmente, os custos  elevados refletem essa opção. Por isso, não são capazes de conseguir os  recursos necessários para crescer a um ritmo que equivaleria ao das privadas.  Mas o público pode também eleger grandes  números, com a penalização esperada na qualidade. A rede estadual do Ceará tem  custos bem mais reduzidos do que as federais. Fora do Brasil, os exemplos são  ainda mais eloquentes. A Universidade de Buenos Aires, a unam do México e a Universidade de Roma  matriculam cada uma cerca de 200 mil alunos. No caso da primeira, seus custos  por aluno são um décimo do que custam as nossas federais.   Em um país como a França, as universidades  têm custos por aluno equivalentes ao secundário público. E por serem pouco  dispendiosas, puderam se expandir muito. São enormes. Em contraste, a França  elegeu concentrar a qualidade nas Grandes Écoles, muito mais caras e de  matrícula reduzida. Ou seja, não há modelos únicos. Pelo contrário, há lugar  para ambos.  9.       Afinal,  todas têm os mesmos objetivos? A discussão anterior chama mais a atenção  para as semelhanças do que para as diferenças. Mas diferenças existem e podem  ser profundas.  Na teoria, todos podem decidir que tipo de  ensino oferecer, onde e para quem. Na prática, há diferenças significativas.   As públicas recebem um mandato da sociedade  para cumprir certos papéis. Podem se instalar em regiões mais pobres ou  problemáticas, a fim de induzir o seu desenvolvimento. A expansão da rede  federal a todos os estados foi uma política desse naipe. E, em boa medida,  cumpriu seu papel. Os estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste ganharam muito  com a presença de grandes campi federais. Está por ser feita uma estimativa do  seu impacto, mas tudo indica que não foi pequeno.  As públicas podem e devem entrar em setores  estratégicos para o país. Isso é fundamental, diante dos custos elevados de  algumas áreas, inviabilizando a operação de cursos privados. Agronomia é um  caso clássico, com suas fazendas experimentais. O mesmo com medicina e  veterinária, com os hospitais-escola. Pela estreiteza dos mercados, algumas  áreas científicas, como astronomia, astrofísica, meteorologia e muitas outras  dificilmente poderiam ser operadas pelo setor privado, na ausência de subsídios  públicos. E como se sabe, toda pesquisa requer subsídios públicos pesados. Em  geral, nas áreas que exigem laboratórios e oficinas dispendiosas e complexas  não é viável cobrar dos alunos a integridade dos custos.  As universidades públicas costumam, também,  sobretudo no Brasil, oferecer os cursos mais elitizados. É o caso do ita, do ime  e outros.   Embora operem nesses nichos inviáveis para o  ensino privado, as públicas oferecem cardápios de cursos muito semelhantes aos  das privadas. De fato, comparando os catálogos de ambas, são bem parecidos.   É preciso esclarecer que tal inviabilidade  financeira resulta de políticas públicas brasileiras de restringir os subsídios  ao setor privado (filantrópico e com fins de lucro). Em países como os Estados  Unidos e o Chile, os recursos de pesquisa alcançam tanto as públicas quanto as  privadas. Dentre as mais celebradas, Harvard, Yale e Princeton são privadas.  Berkeley e Illinois são públicas. Por consequência, a melhor pesquisa tanto  ocorre em umas como nas outras. Mas dadas as políticas brasileiras, apenas as  públicas têm acesso substancial aos fundos de pesquisa. A puc-Rio foi uma exceção, mas hoje recebe  poucos financiamentos públicos para a sua pesquisa básica.   Diante desse marco legal, as privadas estão  restritas ao que é possível fazer com os recursos obtidos pela cobrança de  mensalidades dos alunos e com alguns poucos projetos vendidos ao governo e às  empresas. Portanto, sua margem de decisão é muito mais estreita.  O que está ao alcance das privadas é praticar  subsídios cruzados. Isto é, usar o excedente de alguns cursos para subsidiar  outros.   Emerge então uma diferença significativa  entre as filantrópicas e aquelas com objetivos de lucro. As filantrópicas  teriam vocação para cumprir finalidades sociais ou de interesse coletivo. Podem  operar campi deficitários em áreas pobres. Ou ainda, manter cursos incapazes de  gerar seus próprios recursos, cobrindo o prejuízo com o excedente de outros.  São as políticas de subsídios cruzados: um curso financia o outro. O mesmo com  a pesquisa. Universidades grandes reservam parte de seu excedente na graduação  a fim de financiar pequenos centros de pesquisa.   Vale um comentário acerca da lógica adotada  pela maioria das universidades privadas americanas. Seus cursos de graduação  apenas cobrem os custos (no caso das mais famosas, nem isso). A pós-graduação e  a pesquisa geram prejuízos substanciais, mas são necessárias para trazer  prestígio à instituição – atraindo assim seus alunos de graduação. A fim de  cobrir o prejuízo, operam cursos de verão, eventos, mbas e outras atividades lucrativas. Ou seja, fecham seus  balanços pelos subsídios cruzados. Ademais, as mais prestigiosas recebem  doações de ex-alunos, têm o rendimento do seu patrimônio e recebem subsídios  públicos de diferente natureza (o valor dessas contribuições pode atingir um  terço do orçamento).  Em princípio, uma instituição com objetivo de  lucro teria poucas razões para operar cursos deficitários. Não foram criadas  com a meta de atender a anseios da sociedade, mas para gerar lucro. Por essa  razão, não têm interesse e motivação para operar cursos que não cubram seus  custos.   Contudo, por potente que possa ser essa  lógica do lucro, o mundo real tem mais nuances. O objetivo de lucro das  melhores instituições não colima apenas um lucro imediato, a curto  prazo. Há também os objetivos de expansão e sobrevivência a longo prazo.  E para crescer e prosperar precisam operar no  vermelho, em certas circunstâncias:  
              Novos  programas. É o caso clássico que os economistas chamam de «indústria  nascente». Cursos novos podem representar um grande potencial a longo prazo,  mas não cobrem os custos, logo após o seu lançamento.                Prestígio,  status e imagem. A pesquisa, bem como cursos de grande prestígio, são  essenciais para a sua imagem. Daí o empenho de muitas instituições em criar  centros de pesquisa, mestrados e outras iniciativas que trazem uma imagem de  instituição que busca o conhecimento ou a cultura.                 Imposições  legais. A legislação que rege o funcionamento das universidades prescreve a  necessidade de pesquisa e pós-graduação stricto sensu. Daí a  inevitabilidade de manter mestrados ou centros de pesquisa. Pode ser o mínimo  para evitar aborrecimentos com o mec.  Ou pode ir mais longe (como é o caso do iuperj,  da Cândido Mendes).                 Responsabilidade  social. Instituições com fins de lucro não se sentem obrigadas por lei a  terem uma agenda de responsabilidade social. Mas é prudente fazer alguma coisa  nesta direção e quase todas o fazem. Por exemplo, a Fundação Pitágoras  desenvolve sistemas de gestão nas secretarias de educação de dezenas de  municípios.  A observação do ensino superior brasileiro  sugere que as instituições com fins de lucro dão alguns passos em todas essas  direções. Contudo, tentam encontrar certo equilíbrio entre o que dá lucro, o  que dará lucro a longo prazo e o que apenas traz uma imagem pública mais  positiva. Cada um deve julgar se são pífias manobras para obter prestígio, para  permanecer minimamente dentro da lei, ou se querem sacrificar benefícios  substanciais em atividades desse tipo. Claramente, nesses assuntos, as  instituições diferem muito entre si e as opiniões externas, mais ainda.  Na verdade, o grande dilema das privadas com  objetivo de lucro é equilibrar as suas muitas demandas. Estão pressionadas a  mostrar bons resultados nos próximos balancetes. Porém, têm os seus objetivos a  longo prazo que são prejudicados por cortes de despesas que ameaçam a  qualidade.   É preciso evitar o maniqueísmo de tomar as  instituições públicas como exemplos de desperdício, e as privadas como modelos  de comportamento racional de economizar e tomar decisões inteligentes, em linha  com seus objetivos definidos a longo prazo. As empresas, educativas ou não,  defrontam-se com uma avalancha de decisões no cotidiano. E erram muito. As  empresas capitalistas de sucesso são as que erram pouco e sabem corrigir seus  erros. Em contraste, há também uma multidão de outras organizações cortando  custos onde não se pode, gastando mal, administradas sem liderança e perdendo a  lealdade de seus colaboradores e clientes.   Em resumo, as públicas têm grande liberdade  para agir em prol do interesse coletivo. Não dependem de fechar seus balanços  com rendas próprias. Mas, frequentemente, são reféns dos interesses  corporativos dos seus professores. As filantrópicas definem suas missões que  deveriam considerar também o bem-estar coletivo. Mas não podem ir muito longe  nessa linha, pois só se opera um curso deficitário, cobrando um «pedágio» dos  outros que geram excedentes. As que definem objetivos de lucro operam exatamente  com as mesmas limitações das filantrópicas. Contudo, sua motivação para cruzar  subsídios é bem mais débil              –  embora o façam com certa frequência. Além disso, como toda expansão e  aperfeiçoamento depende da reinversão do excedente, a prudência modera a  propensão a distribuir lucros. Ou seja, se parecem mais com as filantrópicas na  prática do que na teoria. Em resumo, o mundo é complicado. Não se pauta por  fórmulas esquemáticas sugeridas por chavões ideológicos.   10.     Como  «controlar» o ensino superior? A mão invisível ou o tacão do Estado? Nem tudo funciona às mil maravilhas, seja no  privado, seja no público. Há abusos, há ineficiências, há inércia, há preguiça,  há a ambição desmesurada de alguns para aumentar o seu lucro. O que cabe ao  Estado fazer?   Esse é o problema mais espinhoso. É fácil  dizer que é preciso «mandar prender os tubarões do ensino». É fácil dizer que  as públicas são ineficientes e precisam de uma faxina completa. O problema está  na implementação. As ferramentas de controle de que o Estado dispõe não estão à  altura da tarefa. Ademais, sua implementação pode ser politicamente inviável.   Comecemos com algumas linhas de políticas  públicas que merecem atenção. Não resolvem tudo, mas desbastam o mais grosso.   10.1   Marco  legal  Em primeiro lugar, há as leis. Nelas se  definem as regras mínimas de operação do ensino superior. Por exemplo, faz  sentido especificar a titulação mínima dos professores, os computadores, os  laboratórios e bibliotecas. Isso hoje é feito, mas talvez com detalhes bizantinos  que acabam prejudicando.   Nas práticas correntes, após a autorização,  não há mecanismos eficazes para verificar se os cursos continuam adotando as  prescrições legais. Com cerca de 30 mil cursos, não é possível fiscalizar nem  uma boa parte deles. A solução pragmática que o mec  está cogitando é fiscalizar apenas os que obtêm resultados insuficientes  no enade.   Mas nem tudo pode ser verificado em uma  visita de um par de dias. As aulas começam e acabam na hora certa? Os  professores faltam?  É preciso conhecer as limitações do que pode  fazer o marco legal. Não adianta a lei dizer que «todos os cursos devem  oferecer educação de qualidade». Não há como encontrar uma definição  operacional do que é boa qualidade, que possa ser aplicada por inspetores.   Portanto, a lei pode fazer valer um mínimo de  regras de fun-cionamento. Mas é pateticamente impotente, diante do desafio de  impor «qualidade».   10.2   Avaliações  No caso, temos o «Provão» – sucedido pelo enade. Praticamente não há outros países  importantes que tenham tido a coragem e a iniciativa de testar os conhecimentos  dos alunos que se formam. Como nem alunos e nem administradores gostam de ser  avaliados, essas provas encontraram uma feroz oposição ao serem anunciadas.  Esta primeira barreira foi vencida. Contudo, na mudança de governo, mais uma  vez, a ideia quase soçobrou. Por pouco não desapareceu. Mas o enade sobreviveu. Ainda tem mais  deficiências do que o Provão, mas está melhorando, cumpre um papel. O fato de  que o exame é aplicado apenas a uma amostra de alunos também prejudica.   A ideia é simples. Se o Estado medir a  qualidade ao fim do processo, o resto da fiscalização se torna secundária. Como  se sabe, os indicadores de insumos (diplomas dos professores, regime de  trabalho, livros na biblioteca e inúmeros outros) geram reflexos pálidos na  qualidade. Em contraste, o enade é  a qualidade. É uma medida direta do que os alunos aprenderam daquilo que o  curso deveria ensinar, segundo o seu currículo.   Em grande medida, a avaliação vem fazendo o  seu trabalho de depuração dos cursos. Alguns, pela sua baixa qualidade,  colidiram de frente com o mec.  Entram então em cena as liminares, as brigas legais e as intervenções. Mesmo  quando sobrevivem, os danos à sua reputação não são menores. Portanto, mesmo  diante do fracasso do mec em  fechar cursos, a penalidade por entrar no rol dos piores ainda é pesada.   Vários estudos demonstraram o impacto  positivo do provão sobre os cursos (inep,  1999). Em particular, em Administração e em Odontologia foram realizados  estudos, sugerindo que havia se tornado um poderoso instrumento. Foi  documentado um aumento nas contratações de mestres e doutores, bem como na  jornada de trabalho. No lado pitoresco, entram em pânico os coordenadores dos  cursos com avaliações abaixo do esperado. Alguns, por falta de melhor ideia,  mandam pintar o prédio. Outros reitores ameaçam fechar os cursos com notas  ruins, se não derem um salto no ano seguinte.   Os alunos passaram a olhar as notas, antes de  escolher o seu curso. De fato, os cursos com notas A e B ganharam 10% a mais de  candidatos. E os cursos com D e E perderam 40% dos seus candidatos. Nisso tudo,  apesar de que levou muito tempo para deixar de publicar tolas estatísticas, a  imprensa teve valioso papel divulgando os resultados.   10.3   E  a «mão invisível»?  O papel do mercado, com sua mão invisível,  sempre foi olhado com suspeição por muitos. Ainda há aqueles que não entenderam  Mandeville e Adam Smith. Querem o tacão do governo.   Como as ações de fiscalização, controle e  intervenção do governo tendem a ser pesadas e grosseiras, quanto mais o mercado  fizer o seu serviço, melhor o sistema funcionará. Em outras palavras, é preciso  reservar a intervenção governamental para casos extremos e para a definição de  condições mínimas de funcionamento.   Mas como já ficou sugerido pelo impacto do  Provão, o mercado pode funcionar. E, quase sempre, funciona.   Se os alunos souberem quais são os cursos  bons e puderem facilmente descobrir se têm uma boa relação preço-qualidade, a  lei da oferta e da procura vai fazer o seu serviço, punindo os cursos fracos e  premiando os melhores. Estes últimos serão mais procurados e os piores perderão  alunos, como de fato acontece. Ainda que fosse ditatorial, o governo não  lograria medidas tão brutais e merecidas, se comparadas ao estrago provocado  pelo Provão dentre os cursos piores.   Contudo, a mão invisível nem sempre aproxima  o benefício privado do interesse coletivo. Há fragilidades nesses mecanismos de  escolha e no processo darwiniano de sobrevivência do mais apto. O diploma  superior traz status, pelo mero fato de tê-lo. Há também benefícios que vão de  prisão separada a reservas de mercado para essa ou aquela profissão. E como é  caro e trabalhoso escolher entre candidatos para empregos, usar o diploma  superior como filtro pode fazer sentido. Nesses casos as vantagens brotam dos  diplomas e não de um conhecimento superior. Sendo assim, para muitos alunos, a  melhor escolha é um curso que dê o menor trabalho possível, já que apenas  querem o diploma. Se o curso atende aos requisitos legais, torna-se muito  difícil mudar essa regra de decisão dos alunos. Ou seja, cursos fracos não vão  necessariamente ser enjeitados. Portanto, podem não naufragar. Pelo contrário,  no limite, podem ser escolhidos justamente por isso.   Nesses casos, o grande culpado é a prática de  estabelecer, por lei, reservas de mercado. Há casos em que há reais riscos e  perigos, advindos de uma prática incompetente (os exemplos clássicos são na  área da saúde). Neles, a reserva de mercado se justifica. Na maioria, não passa  de privilégio disfarçado.  Como Adam Smith já havia dito, nos idos do  século xviii, o mercado não  funciona em toda e qualquer circunstância. Para que produza os resultados  esperados, precisa preencher determinadas condições – que os economistas chamam  de Concorrência Perfeita.   O mercado só funciona se a informação flui  livremente. Se não soubermos quem é quem, quem oferece o quê, a concorrência  não faz o seu serviço. Por exemplo, aluno A escolhe a faculdade X apenas porque  não sabe que Y é melhor. Aqui também, a imprensa tem desempenhado um papel  importante, juntamente com a Internet.   Mas bem sabemos que é preciso garantir a  veracidade da informação. As informações sobre o que são realmente os cursos  são valiosas. Em contraste, a propaganda enganosa é lesiva. Daí ser uma das  funções do governo regulamentar a veracidade da propaganda. Em breves palavras,  o que é prometido pela propaganda tem que ser verificável e tem que ser  cumprido.   Concorrência é a chave de tudo. Mas só há  concorrência se houver um número razoável de operadores. Todos tentam vender  mais e mais caro. Atingirão seus objetivos se não tiverem concorrentes.  Portanto, há uma condição clássica de sucesso no mercado: a liberdade de  entrada. Tomemos um mercado altamente lucrativo, pela presença apenas de um ou  dois operadores. Se for permitido abrir mais faculdades, outros serão atraídos,  já que buscam conseguir também os seus lucros excepcionais. Mas ao entrarem no  mercado, a concorrência se acirra e os preços vão cair. Isso é o que dizem os  livros de introdução à Economia. Descrevem uma condição que não está longe do  que acontece em muitos mercados do mundo real.   Portanto, chegamos aí ao primeiro  condicionante para o funcionamento do mercado. É preciso permitir o acesso aos  mercados do ensino superior. Acontece que as políticas públicas, frequentemente  manejadas por pessoas com alergia à iniciativa privada, querem se ver livre das  faculdades particulares. Assim sendo, ingenuamente, dificultam a sua  autorização. Ora, isso significa tão somente impedir que o mercado funcione. Se  não entrarem concorrentes, quem já está lá usufrui das vacas gordas do  monopólio. E o monopólio privado é, pelos menos, tão ruim como o público.   Com mais de três quartos dos alunos no setor  privado, sem a ajuda da concorrência, a tarefa de controlar torna-se  impossível.   Mas a guerra da retórica não dá quartel. E  nela, o setor privado fala várias línguas. A língua dos que querem entrar,  pregando então liberdade para se estabelecer. A língua dos que já estão dentro,  pregando um ferrolho na entrada (exatamente o caso da citação do diretor de  faculdade, reproduzida na página 113). As filantrópicas que criticam as que  declaram objetivo de lucro, mas que usam a isenção de impostos para obter  vantagens de mercado. As duas últimas fazem par com os defensores do ensino  público que, por razões diferentes, não querem a expansão da rede privada.  Ambos militam contra o funcionamento do sistema de mercado. Portanto, militam  contra os interesses dos alunos que só têm a se beneficiar da concorrência.  Podemos discutir se o país deve ter um ensino  superior privado. Trata-se de uma discussão doutrinária e legítima – com óbvias  repercussões práticas e financeiras. Mas depois que se constata que o setor  privado matricula três quartos dos alunos, deixá-lo funcionar pela metade  significa trazer os seus vícios, sem permitir que a concorrência traga os  benefícios.   Vale a pena trazer à discussão um setor quase  sempre ignorado. Em um ensaio escrito no passado, falei da «educação  invisível». Estimativas que fiz, com Elenice Leite, mostraram que existe um  mundo de cursos e treinamentos, de todos os tipos e feitios, totalmente  ignorados pelo governo. Nem entram nas estatísticas de matrículas e nem nos  orçamentos conhecidos e tabulados. Esse mundo consome próximo de 5% do pib. É quase tão grande como o outro da  educação acadêmica, do Sistema S e outras iniciativas mais visíveis (ipea, 2006).  O Estado não toma conhecimento desse mundo,  para bem ou para mal. Não há sistemas de regulação, autorização, avaliação ou o  que quer que seja. É um mundo controlado exclusivamente pelas leis da oferta e  da procura. Se quisermos saber se o mercado desregulado funciona, poderemos ter  uma boa amostra examinando esse mundo invisível da educação e da formação  profissional. Não há boas avaliações do seu funcionamento. Seria leviano  afirmar se funciona melhor ou pior. Mas o fato é que gera menos reclamação do  que os sistemas, na teoria, controlados pelo Estado. Fica a provocação.   11.     Como  lidar com os abusos? Até aqui, falamos de sistemas de regulação,  visando acompanhar o funcionamento do ensino superior. Enfatizamos o setor  privado, por não ser a ênfase do presente ensaio. Ficam praticamente sem  comentários os problemas com as universidades públicas, pelo menos, tão sérios.   Para o setor privado, desde sempre, prevalece  a ideia de moderar os «vícios» com incentivos e puxões de orelha do governo,  para que não se criem distorções e os cursos atendam aos interesses sociais.  Não há como discordar dessa orientação.  Diante dessas preocupações, há aqueles que  afirmam bastar boas leis e a concorrência de mercado. De acordo com a tradição,  capitalismo não precisa de altruísmo para funcionar bem. Justamente, esse é o  seu segredo. Mas não é tão simples assim.  Temos um século de história de legislação  para limitar ou eliminar monopólios, sempre considerado nocivo. Em  contraposição, no ensino superior, há forte oposição ao princípio da liberdade  de abrir cursos. Está permanentemente ameaçado por aqueles que não gostam do  setor privado.   Alem disso, há abusos, reais e imaginários,  legais e ilegais. Como existem e não são tão infrequentes, é preciso lidar com  eles.   A acusação mais comum se volta contra os  lucros excessivos. Quanto a isso, gostemos ou não, o Estado não dispõe de armas  eficazes. O que é lucro excessivo? Quanto por cento? Ninguém se põe de acordo.  E se houvesse acordo, como medir se ocorreu realmente? Esse caminho apresenta  mais problemas do que soluções.  Na prática, se houver pouca oferta, no país  como um todo ou em fisioterapia na cidade de Cabrobó, os excedentes tenderão a  ser altos. No fim da década de 90, ouvi um empresário do comércio,  recém-chegado à educação, manifestar sua agradável surpresa ao encontrar  margens de 50%. Com elas se financiaram as expansões de algumas das mais respeitadas  universidades privadas. O único remédio eficaz é o aparecimento de  concorrentes, atraídos pelos lucros pródigos. Até o bom ensino público tem bons  radares para encontrar nichos promissores. É interessante observar que na área  de maior expansão, a Administração, a concorrência tem levado a uma queda  sistemática de mensalidades, ano após ano.   Há um problema real com essas soluções de  mercado: levam tempo. E a opinião pública é impaciente. Não se criam cursos de  um dia para o outro. Há a inércia das autorizações e, depois de criado, são  quatro anos até aparecerem os primeiros formados.   Outra acusação frequente é que algumas  instituições ludibriam os alunos. Isso pode significar duas coisas diferentes.  No primeiro caso, pode deixar de cumprir a lei. Nesse caso, a solução é óbvia,  desde que o mec esteja aparelhado  para lidar com esses desvios. A outra situação é bem menos transparente.  Trata-se da prática de oferecer um curso que vale bem menos do que é cobrado.  Esse é um caso em que a ação do Estado é muito limitada. Quem calcula a relação  de custo-resultado, para dizer que houve algo ilícito? E quem disse que é  ilícito? O mínimo que se pode fazer é disseminar tão bem quanto possível a  informação e esperar que a concorrência e a inteligência dos alunos faça o seu  trabalho.   Politicamente, é uma resposta pouco  satisfatória. Mas não há muito mais a se fazer.  O Brasil é um dos poucos países em que já  houve guerra de preços em educação superior. Em geral, trata-se de uma  concorrência desleal de operadores com folga de recursos, fazendo o dumping  da educação sobre outros menores. As leis anti-dumping foram feitas  prevendo tais eventualidades. No Brasil, temos o cade, cuidando de cerveja e chocolate. Mas não há precedente  de sua intervenção no ensino. Ademais, é difícil a montagem de um processo  legal convincente. Seja como for, na ordem geral das coisas, essas guerras de  preços são casos isolados. É difícil imaginar aí uma ação de governo que faça  mais bem do que mal.  Uma área em que seria fácil fazer progressos  em pouco tempo seria agindo contra a propaganda enganosa. Faz todo sentido ter  uma legislação rigorosa, exigindo o cumprimento de que foi prometido nos  materiais publicitários. E que as promessas não possam ser mudadas  retroativamente. Muitos ruídos e desencontros seriam evitados se houvesse leis  obrigando a cumprir o prometido.   Resumindo, há e haverá abusos. Como em  qualquer outra área, há operadores inescrupulosos e incompetentes. Não há  nenhuma base factual para dizer se na educação superior há menos ou mais  problemas. Seja como for, é preciso lidar com eles.   Em grande medida, precisamos de uma  legislação transparente e real capacidade para cumpri-la. Lucros excessivos, ao  contrário do que gostariam alguns, não são debelados por leis, mas sim por um  ambiente de negócios que estimule a concorrência e leve à eliminação dos  monopólios.   Há problemas de contravenções banais, que  ferem códigos civis e penais. Há diplomas falsos. Há cursos operando sem  autorização. Isso tudo é assunto de processo civil e até de polícia. Nem chegam  a ser problemas de educação e nem são muito frequentes.   Resta insistir em duas dificuldades  inamovíveis. Em primeiro lugar, as correções costumam levar tempo,  impacientando a sociedade e prejudicando alguns alunos. Em segundo lugar, não  se legisla qualidade. É possível exigir um mínimo suprimento daqueles fatores  que podem ser contados e medidos. No caso das privadas, há espaço para mais  transparência nas prestações de conta, tais   como balanços auditados. Ademais, as relações entre mantenedora e  mantida, bem como contratos de prestação de serviços podem dar margem a abusos.  Mas o resto, que tende a ser ainda mais fundamental, não pode ser controlado  por leis.   12.     Conclusões  pouco conclusivas O presente ensaio entra em assuntos espinhosos  e controvertidos, resultantes da entrada do setor privado no ensino superior.  Ainda mais sensíveis são as empresas com objetivo de lucro operando nele.   Nem tanto ao mar e  nem tanto à terra, é o que mostra a análise mais desapaixonada que o autor é  capaz elaborar. O setor privado não merece ser demonizado. Isso tanto é verdade  para o filantrópico como para as empresas com objetivo de lucro. Aliás,  observando a distância, as diferenças tendem a ser relativamente pequenas. Boas  e péssimas, elas existem em todas as modalidades jurídicas. No caso do ensino  superior com fins de lucro, não há nem no Brasil, nem no exterior uma  experiência suficientemente longa para permitir generalizações. Como em outras  modalidades, não existe sem máculas e sem pecados.   Vejamos algumas  considerações de caráter geral, sugerindo mais proximidade do que distância  entre os diferentes operadores: 
               As privadas e as boas públicas tentam  «vender» mais, ganhar visibilidade e identificar nichos de mercado  insuficientemente atendidos. Todas têm interesse em reduzir seus  custos e aumentar suas receitas, sejam filantrópicas ou com objetivo de lucro.  Ou seja, aumentar o excedente. Ao contrário das públicas, nenhuma  instituição privada pode gastar mais do que arrecada (deveria ser assim para as  públicas também, mas a situação é mais turva). Comparadas com as públicas, as privadas  tendem a ser mais bem administradas e mais eficientes. Mas nem sempre. Há  dinossauros públicos com comportamento de gazelas. E há instituições privadas,  deslizando gazelas, mas no fundo, não passam de dinossauros. As filantrópicas têm maior propensão a  operar em áreas deficitárias, praticando subsídios cruzados. As outras também o  fazem, mas possivelmente, por razões distintas. Há boas instituições filantrópicas. Há  falsas filantrópicas. Há instituições com fins de lucro que são exemplares.  Outras, nem tanto.  As diferenças maiores são entre as  competentes e as incompetentes, muito mais do que na sua declaração de ter ou  não lucros. A ruindade tem muitas vertentes. Há  escolas fraquinhas, por causa de sua incapacidade para recrutar alunos  melhores. Cumprem a lei, mas como os alunos entram sabendo muito pouco, não  saem sabendo muito mais. Há escolas que podem estar obedecendo à lei, mas  cobram demais e oferecem pouco. Por fim, há escolas inescrupulosas, burlando a  lei. Todas essas alternativas se observam nas diversas categorias de  instituições.   Infelizmente, versões  toscas de ideologia encharcam boa parte das discussões. Não há pragmatismo e  falta uma visão mais analítica do que a que está acontecendo. As denúncias  iradas de atuação predatória não encontram respaldo na observação da realidade  – embora casos isolados possam existir. O presente ensaio sugere que estamos  diante de diferenças sutis e, às vezes, inexistentes.   Bibliografia Bok, Derek (2006): Our  Underachieving Colleges. Princeton: Princeton University Press.Gramani, Maria Cristina  (2008): «A influência da qualidade na atratividade de instituições de ensino  superior com capital aberto», in Ensaio (julho/setembro 2008).
 INEP (1999):  Provão eleva a qualidade do ensino superior nas instituições privadas. inep.
 IPEA (2006): Brasil:  o Estado de uma Nação. Organizado por Paulo Tafner (Rio de Janeiro: ipea.
 Mandeville, Bernard  de (1997): The Fable of the Bees and other writings. Indianápolis: Heckett.
 Marcílio, Maria  Luiza (2005): História da escola em São Paulo e no Brasil. (São Paulo: Braudel / Imprensa Oficial.
 Smith, Adam (1991): Wealth  of Nations. New York: Prometheus Books.
 Weber, Max et alia (2002):  Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. London:  Penguin.
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