La Revista Iberoamericana de Educación es una publicación editada por la OEI 

 ISSN: 1022-6508

Está en: OEI - Revista Iberoamericana de Educación - Número 49

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 Número 49: Enero - Abril / Janeiro - Abril 2009

Educación: futuro en construcción / Educação: futuro em construção

  Índice número 49 

Mercado é coisa de satanás? 1

Claudio de Moura Castro *

* Presidente do Conselho Consultivo da Faculdade Pitágoras, Brasil.

Síntese: O presente ensaio lida com os assuntos espinhosos e controvertidos da entrada do setor privado no ensino superior. Ainda mais sensível é o caso das empresas com objetivo de lucro. Infelizmente, versões toscas de ideologia encharcam boa parte das discussões. Não há pragmatismo e falta uma visão mais analítica do que está acontecendo.
Seja como for, o setor privado não merece ser demonizado. Isso tanto é verdade para o filantrópico como para as empresas com objetivo de lucro. Aliás, as diferenças tendem a ser relativamente pequenas. Instituições boas e péssimas existem em todas as modalidades jurídicas. No caso do ensino superior com fins de lucro, não há nem no Brasil e nem no exterior uma experiência suficientemente longa para permitir generalizações mais amplas.
Instituições privadas e as boas públicas tentam «vender» mais, ganhar visibilidade e identificar bons nichos de mercado. Todas têm interesse em reduzir seus custos e aumentar suas receitas. Ou seja, aumentar o excedente. Mas ao contrário das públicas, nenhuma instituição privada pode gastar mais do que arrecada. Comparadas com as públicas, as privadas tendem a ser mais bem administradas e mais eficientes. Mas nem sempre.
As filantrópicas têm maior propensão a operar em áreas deficitárias, praticando subsídios cruzados. Mas há também falsas filantrópicas. Em contraste, há instituições com fins de lucro que são exemplares (outras, nem tanto). As diferenças maiores são entre as competentes e as incompetentes, muito mais do que na intenção de lucros.
Palavras-chave: ensino superior; setor privado; economia de mercado
Síntesis: El presente ensayo trata de temas espinosos y controvertidos que se producen por la entrada del sector privado en la enseñanza superior. Este hecho se hace todavía más delicado cuando esto ocurre con empresas con ánimo de lucro. Lamentablemente, toscas versiones ideológicas entorpecen buena parte de estas discusiones. No existe pragmatismo y falta una visión más analítica de lo que está ocurriendo.
Sea como fuere, el sector privado no merece ser demonizado. Esto ocurre tanto para las instituciones filantrópicas como para las empresas con ánimo de lucro. Además, las diferencias tienden a ser relativamente pequeñas. Buenas y pésimas instituciones existen en todas las modalidades jurídicas. Para el caso de la enseñanza superior con ánimo de lucro no existe en Brasil, y tampoco en otros países, una experiencia suficientemente amplia que permita mayores generalizaciones.
Instituciones privadas y las buenas públicas intentan «vender» más, ganar visibilidad e identificar buenas cuotas de mercados. Todas tienen interés en reducir sus costes y aumentar sus recetas. O sea, aumentar el excedente. Pero al contrario de las públicas, ninguna institución privada puede gastar más de lo que recauda. Comparadas con las públicas, las privadas tienden a estar mejor administradas y ser más eficientes. Pero no siempre.
Las filantrópicas tienen mayor propensión a operar en áreas deficitarias, ya que practican subsidios cruzados. Pero hay también falsas filantrópicas. En contraste, hay instituciones con fines lucrativos que son ejemplares (otras no tanto). Pero las mayores diferencias se dan entre las competentes y las incompetentes, mucho más que en la intención de lucro.
Palabras clave: enseñanza superior; sector privado; economía de mercado.
Abstract: This article deals with complicated and controversial issues that are a consequence of the private sector entering higher education.
This point is especially delicate when this happens with profit-making corporations.Unfortunately, rough ideologies obstruct a large part of these discussions. There is not pragmatism and there is a lack of analytic vision of what is going on.
In any case, the private sector does not deserve to be demonized. This happens both with private non-profit and profit-making enterprises.
Moreover, the differences tend to be relatively small. Good and bad institutions exist in every single legal option.
In the case of profit-making higher education, in Brazil and in other countries, there is not enough experience to make further generalizations.
Private institutions, and good public institutions, try to “sell” more, to gain visibility and to identify good market niches.
All want to reduce their costs and to increase their revenue, i. e. to increase their profit. Unlike state-owned, no private institution can spend more than what it collects. Compared to state-owned institution, private institutions tend to be better managed and to be more efficient. But not always. Non-profit private institutions tend to operate in deficit-generating areas, because they use cross-subsidies. But there are also false non-profit institutions.
To sum up, there are private profit-making institutions that are outstanding (and some others, not that much). Still, the biggest difference is between competent and incompetent institutions, and no in whether or not it is profit making.
Key words: higher education; private sector; market economy.

1.       Introdução

Boa parte das sociedades convive mal com o lucro. Quase todas têm alguma pontinha de resistência, não é só a brasileira. Contudo, o ranço é bem mais indelével no nosso país.

A antipatia ao lucro sobrevive nas atividades convencionais, como na fabricação de sapatos ou fogos de artifício. Não é surpresa que na educação as resistências sejam ainda maiores. Após dois séculos de existência, tanto as escolas privadas como os seus eventuais lucros ainda causam desconforto ou reações endócrinas. Esse é um tabu que só agora começa a ser arejado e discutido com serenidade.

A «Educação é um sacerdócio». Assim se falava e ainda haverá quem o diga. Não obstante, é preciso lembrar que as becas dos professores medievais tinham bolsos cuja função era guardar o pagamento recebido dos estudantes.

O presente ensaio explora os acordos e desacordos provocados pela presença do setor privado na educação. Não se trata de defesa dessa ou daquela posição, mas uma tentativa de enxergar além dos preconceitos e estereótipos.

2.       A lenta e espinhosa aceitação do capitalismo

Quando a Revolução Industrial inglesa tomou corpo, houve um significativo avanço no sistema de mercado, pois as compras e vendas foram migrando da praça central das pequenas cidades para os grandes negociantes e fabricantes. Junto com a crescente escala de produção, o volume de comércio se expandiu em ritmo inaudito. Desta forma, o sistema de mercado prosperou e se aperfeiçoou apesar de limitações que persistem, desde então.

Havia que entender esse mecanismo misterioso que prescindia do controle do Estado. Não parecia requerer nenhum idealismo. Não mais do que a disposição para obedecer às leis da terra.

Duas figuras emergem em meados do século xviii, desvendando o paradoxo. Em ambos os casos, traziam uma explicação que colidia com o senso comum.

O primeiro deles foi Bernard de Mandeville (1997), celebrizado pela sua fábula sobre as abelhas (Fable of the Bees), de 1714. Dele vem uma idéia fundamental, mas revolucionária na época: o mercado funciona não pelas virtudes das pessoas, mas pelos seus «vícios». No caso, o termo vício se refere à busca dos interesses privados – em oposição a algum tipo de idealismo ou compromisso moral. Para Mandeville, são os vícios privados que trazem o benefício público. Não é porque os produtores e comerciantes sejam bons ou generosos que encontramos o que precisamos no mercado. É o oposto, está tudo lá porque estão tentando ganhar dinheiro. Se possível, também se enriquecer.

Adam Smith, um respeitável professor de Filosofia Moral, aprofunda as explicações. De fato, constrói os fundamentos da Ciência Econômica no seu livro Uma investigação sobre as causas da riqueza das nações, publicado em 1776 (Smith, 1991).

Adam Smith confirma o enigma: A sociedade é mais bem servida quando todos buscam os seus interesses pessoais e tratam de ganhar tanto quanto possível.

Sendo assim, não serão os «vícios» uma virtude, criando o máximo de benefícios para todos? Segundo ele, «não esperamos obter nosso próprio jantar da bondade do açougueiro ou do padeiro, mas do interesse de cada um deles». Curioso paradoxo: o professor de Filosofia Moral advogando que o mercado funciona porque as pessoas são egoístas.

Vivendo em uma economia ainda tutelada pelo governo – a escola mercantilista reinava soberana – parecia inacreditável que esta intervenção permanente não fosse necessária, desde que os mercados funcionassem livremente, ao sabor das «leis da oferta e da demanda». Chamando a atenção para a surpreendente capacidade dos mercados para se autogovernar, Smith usa a metáfora da «mão invisível», cuja ação gera uma ordem e uma eficiência que dispensavam a presença diuturna do Estado.

Essa idéia colidiu com a tradição das virtudes cristãs. Os protestantes sempre conviveram melhor com o lucro – mensagem divina de que estavam cumprindo a sua missão terrena e adquirindo créditos para o céu. Mas nos países católicos, como o nosso, sobreviveu uma visão tomista da economia, com suas idéias moralizantes do «preço justo». Dessa linhagem herdamos os resmungos antimercado e um véu de ignorância que persiste, pois ainda hoje muitos esperam «justiça» nos preços de mercado. Não obstante, o mercado sobreviveu incólume, até nossos dias.

Hoje entendemos as inúmeras qualificações e restrições aos resultados produzidos pelo mercado. Mas como idéia mãe, como princípio geral, continua tão válida como na Glasgow do século xviii, onde vivia Adam Smith.

Alguns autores mais recentes têm sido taxativos. Por exemplo, Max Weber (2002), apesar de ser sociólogo e não economista é peremptório: «no último século, prosperaram as nações que abraçaram o capitalismo sem hesitar».

Milton Friedman, o mais conservador das celebridades econômicas contemporâneas, tampouco hesita: «A missão da empresa privada é gerar a maior quantidade possível de lucros [...]» Exageros à parte, com a total dissolução na crença de regimes ditos socialistas ou comunistas, o mercado sobrevive, bem como as teorias que o explicam. Discórdias e controvérsias que permanecem dentre os economistas são mais de detalhes do que de substância.

Mas na opinião pública, o regime capitalista ainda não foi digerido e totalmente incorporado ao imaginário popular. Lucro ainda é «coisa de satanás».

Há um elemento de antipatia por um sistema cuja lógica de funcionamento se apoia no egoísmo. O sistema de mercado não faz nosso coração palpitar. Todos nós temos uma veia idealista. Forte ou atenuada, sobrevive sempre, no fundo, uma visão romântica de que a vida vivida por um ideal é melhor, mais reconfortante. Temos uma necessidade atávica de acreditar em algum conjunto articulado de princípios. O socialismo, em todas as suas vertentes, é sempre grandioso, simpático, amigo e mais próximo do Bem. Além disso, por produzir um grande sistema integrado, atrai a muitos. Talvez essa seja a causa da sobrevivência do marxismo, por tanto tempo, apesar de sua incapacidade de gerar prosperidade material e de uma longa história de convivência hostil com as práticas da democracia.

Em contraposição, o mercado é banal, é mesquinho, não produziu a Grande Religião e não traz promessas bombásticas de salvação universal. O melhor sistema de operar a economia que se encontrou não inspira, não entusiasma. Não vira bandeira para a juventude. Talvez esse seja o seu principal problema. Bandos de estudantes jamais saíram às ruas com cartazes pregando o lucro, a busca dos interesses próprios, o anonimato dos ajustamentos espontâneos do mercado e a prosperidade das grandes empresas.

3.       Economia de mercado rima com a qualidade?

Antes de mergulhar no mundo turvo da educação, vale a pena discutir um pouco o convívio do sistema de mercado com a qualidade dos produtos. Isso porque, talvez o foco principal das controvérsias na educação tenha a ver com uma suposta incompatibilidade do lucro com a qualidade do ensino.

Vejamos onde está a qualidade nos produtos industriais. Patek Phillipe, Rolex, Rolls Royce e bmw são os melhores exemplos de qualidade em relógios e automóveis. Ao mesmo tempo, relógios russos e automóveis Lada não são ícones de excelência. Os automóveis da marca Renault só subiram nas avaliações de qualidade após a privatização da empresa. Se houvesse incompatibilidade entre lucro e qualidade, os melhores produtos deveriam vir de fábricas estatais.

Há muitas outras áreas em que a excelência é produzida por operadores privados. Shakespeare vendia suas peças. Os mais celebrados escritores contemporâneos são regiamente pagos. O vil metal não parece prostituir as penas e teclados mais inspirados.

Picasso vendia seus quadros, por bom dinheiro. Van Gogh não vendia, mas bem que tentou. O problema é que com suas cores tão bizarras não encontrou compradores.

A pesquisa médica faz prodígios e salva vidas. E pouco nos importamos em saber se são feitas por laboratórios privados ou universidades públicas. O mesmo com o melhor cuidado médico e os cirurgiões mais destacados. Não pairam dúvidas sobre a sua qualidade. Não obstante, tampouco se duvida da capacidade de organizações públicas ou semipúblicas de oferecer também serviços de qualidade.

Ou seja, o sistema de mercado e o lucro não colidem com a qualidade na indústria e nos serviços – embora não tenha monopólio. Se isso for assim, para condenar o setor privado na educação será necessário demonstrar que as condições são tão diferentes que tornam impossível ou improvável o mesmo desempenho superlativo de alguns operadores privados.

4.       Avanços e recuos da educação privada no Brasil

Antes de explorar a natureza do ensino privado e seus meandros, vale a pena descrever os avanços e recuos das instituições públicas e privadas no país. Igualmente, cabe fazer uma primeira distinção superficial entre diferentes tipos de instituições «não-públicas».

Em anos recentes, o setor privado avança novamente. Digo novamente, pois no século xix quase todo o ensino brasileiro era privado, como na maioria dos países. Uma grande proporção era de ordens religiosas. Mas havia também escolas criadas por professores. As públicas eram as pouquíssimas faculdades de Medicina, Direito e Engenharia, opções caras e com mercado limitado. Só apareceram pela iniciativa do Estado.

No início do século xx, inicia-se a vigorosa expansão da rede de ensino público. Em muitos casos, era apenas questão de preencher os vazios gigantescos, pois começamos o século com uma cobertura de pouco mais que dez por cento das crianças em idade escolar, quase todas frequentando o setor privado. Contudo, na década de 1930, dá-se uma formidável colisão entre os proponentes da escola pública e a igreja católica, ambos os lados representados por intelectuais respeitáveis2.

Venceu a tese do ensino público. Como resultado, o privado continuou perdendo espaço em todos os níveis. No ensino básico, restam pouco mais de 10% de matrícula no privado.

No superior, desdenhado pelo setor privado, o público sempre predominou. Mais ainda, deu um salto, a partir dos anos 60, com a criação de uma enorme rede de universidades federais, com muitas ambições e custos descomunais. Mas este foi também o seu calcanhar de Aquiles. Sendo tão cara, acabaram-se os recursos, antes mesmo da forte expansão na rede básica e o consequente aumento de graduações no ensino médio, ocorrido na década de 1990. Nesse momento, já não havia mais como expandir a rede federal, dado o seu altíssimo custo por aluno (equivalente ao que custa um aluno europeu).

Diante disso, com relutância, o mec passou a permitir a criação de universidades e faculdades privadas, diante do crescimento da demanda por vagas. Hoje, quase 80% das matrículas estão no setor privado. E não há um cenário plausível de reversão desses números. Apesar da ambiguidade do discurso do mec, faz todo o sentido concentrar os esforços públicos no ensino básico e deixar o superior para o setor privado.

É preciso lembrar que o ensino privado não é um todo homogêneo. Convivemos no passado com instituições religiosas (católicas e protestantes). A figura do lucro não entrava em cena. Os memoráveis embates da década de 1930 eram doutrinários: escola pública ou escola religiosa? Não era controvérsia entre privado e público, no sentido em que hoje se engalfinham os contendores. Ainda era um contencioso do embate entre o absolutismo do Império e a posição da Igreja Católica.

Havia também um ensino privado laico. Mas eram alguns celebrados professores que criavam suas escolas. Tampouco eram vistos como conspurcados pelo vil metal.

Novo avanço no setor começa com os cursinhos. O vestibular unificado, nos fins de 1960, cria espaço para o aumento da matrícula por parte dos cursinhos tradicionais. Torna-se possível preparar muitos alunos, simultanemente, pois fariam os mesmos vestibulares. Isso permite uma produção editorial em maior escala. Não havendo livros adequados para o vestibular, conquistam esse mercado e se expandem.

Os donos dos cursinhos são médicos ou engenheiros e não professores. Têm uma visão de gestão e eficiência muito mais moderna. Operam em um mercado sem qualquer regulação. E há transparência instantânea para os resultados: o vestibular. Entre cinco a dez cursinhos se destacam no panorama nacional, pelo seu tamanho e expansão. Eles iniciam suas atividades em um setor que apenas marginalmente era considerado como educação. Assim sendo, declaram objetivo de lucro, sem criar maiores celeumas, além da monótona acusação de que nada mais fazem do que adestrar alunos para marcar cruzinhas.

Mais adiante, os cursinhos veem no ensino fundamental e médio uma saída para a relativa saturação dos seus mercados. Encontram território desprotegido para sua expansão. Sua agressividade no marketing, seu pragmatismo pedagógico, sua gestão mais eficiente e a produção de materiais didáticos próprios asseguram o seu sucesso.

Paralelamente, o privado de fraca qualidade compete mal com a rede de escolas públicas que se expande. As escolas de freiras são as primeiras vítimas. Também perdem terreno as laicas menos eficientes. O sistema privado vai sendo peneirado e hoje restam as escolas de alta qualidade, as que encontram nichos específicos (escolas Piaget, Montessori, americanas, francesas ou alemãs). Sobram também os ex-cursinhos, geralmente operando quase no topo da pirâmide da qualidade acadêmica. Aliás, ipso facto, demostrando que lucro e qualidade não são incompatíveis.

Note-se que dentre as 18 melhores escolas no enem, apenas duas são públicas3. Não seria o caso aqui de explorar o porquê desse resultado. Basta registrar que demonstra não haver incompatibilidade entre privado e qualidade.

Na segunda metade do século xx, a penetração da escola pública no ciclo básico foi inexorável. E se a sua qualidade não convencia, a ausência de mensalidades foi e será argumento poderoso. Daí, o início da migração dos colégios privados para o ensino superior, afugentados pela expansão da rede pública. Todos o fizeram: padres, freiras e ex-cursinhos. A eles se juntaram empresários e banqueiros sem experiência prévia em ensino, mas dotados de fundos generosos, experiência em gestão e o pragmatismo, sempre escasso no setor educativo.

Em fins dos anos 90, a lei passou a admitir que instituições de ensino superior declarassem fins de lucro. A legislação prévia não permitia. Antes disso, não poucas instituições obviamente voltadas para o enriquecimento pessoal dos proprietários escondiam seus rendimentos, mediante os mais variados subterfúgios. Quase todas acumulavam gigantescos patrimônios imobiliários. Várias delas empregavam toda a família e declaravam como serviços domésticos os automóveis e iates como custos das empresas.

Ao permitir formalmente os lucros, cria-se uma migração das filantrópicas para a categoria das que declaram objetivo de lucro. Pagam impostos, mas não têm que dar satisfações a um governo sempre sedento de papéis e certificados. Em 2006 havia 1.583 privadas com fim de lucro, em um total de 2.270 privadas.

O passo seguinte foi a chegada de instituições americanas – com fins de lucro – comprando ou associando-se a universidades e faculdades brasileiras. Muitos viram nas primeiras atividades dessas empresas (Laureate e Apollo) um prenúncio de desnacionalização do setor, com a consequente perda de soberania cultural. O susto foi maior do que a realidade, pois são pouquíssimas as instituições com fim de lucro no mundo. Na verdade, vieram as duas maiores. Uma delas vendeu de volta a sua parte para os sócios locais (Pitágoras) e, até o momento, não fez outros investimentos. Não há um cenário plausível para a desnacionalização denunciada.

A última etapa da conversão capitalista do ensino superior foi a meia dúzia de empresas que abriram capital, lançaram ações na bolsa de valores e captaram recursos no exterior. Com os fundos obtidos, instalam novos campi e iniciam também um processo de fusões e aquisições, comprando faculdades já em operação. Apesar do susto daqueles mais temerosos dos tentáculos do capitalismo, não parece que o total das matrículas nas faculdades e universidades de capital aberto possa ir muito além de dez por cento.

Instituições de capital aberto são acompanhadas muito de perto pelos bancos que as assistiram no processo de lançamento das ações. Esse acompanhamento constrange bastante a sua liberdade de ação. A experiência acumulada é muito pequena e não permite um julgamento definitivo. Mas alguns traços podem ser percebidos. Os bancos esperam que as metas quantitativas sejam cumpridas à risca. E não gostam nada de balanços no vermelho. Ou seja, implicitamente enviam sinais que podem ser interpretados como: «façam tudo o que for necessário para gerar lucros». Essa presença dos banqueiros e acionistas é uma espada da Dâmocles, pendendo sobre a cabeça dos gestores. Como acontece em empresas de outras áreas, há o risco de focalizar os esforços no lucro a curto prazo, sacrificando o futuro. Mas os banqueiros transmitem também a advertência de que perdas de qualidade do ensino podem trazer consequências funestas (Gramani, 2008). O cerne da questão está nas metas. Se forem definidas de forma açodada ou com excesso de otimismo, cria-se um impasse, pois os cortes de custo podem sacrificar a qualidade e, por consequência, os lucros futuros. Diante desse quadro, os gestores se veem entre a cruz e a caldeirinha.

Recapitulando (e simplificando), o século xix presencia a expansão do ensino privado. O século xx começa com a expansão do ensino público e termina com a sua quase total predominância no ensino básico. Já o fim do século xx e o início do xxi são marcados pela expansão do ensino privado no nível superior.

5.       Lucro na educação é coisa de Satanás?

Se na produção de abóboras e automóveis ainda há uma ponta de resistência contra o mercado e o lucro, na educação, a resistência permanece muito mais alta. Segundo alguns, a nobre missão do ensino é inexoravelmente conspurcada pelo capitalismo.

Sobrevive uma balbúrdia ideológica e intelectual. Vejamos:

O espírito mercantilista, cujo apetite desenfreado deixaria qualquer especulador boquiaberto... [A única alternativa] seria a desapropriação imediata e irrevogável de toda e qualquer escola privada (Groppa Aquino).

Não gosto de escola privada que dá lucro (alto funcionário do mec, em seminário)

Estas citações são típicas da esquerda brasileira. São as mesmas ideias de décadas passadas. Demonstram que a presença do setor privado e do capitalismo na educação ainda oferece resistência, com fervor, por parte de alguns.
Ao mesmo tempo, alguns operadores privados se valem dos preconceitos vigentes para defender seus mercados cativos.

A abertura indiscriminada de cursos nos últimos anos, [...] provoca uma turbulência na área de ensino superior (dono de faculdade privada, em entrevista ao jornal Estado de Minas).

Do mesmo naipe são vituperações de representantes de universidades religiosas contra aquelas que visam ao lucro. Tratam-se das clássicas defesa de uma reserva de mercado. Adam Smith já dizia que capitalista adora monopólio. Só faltou dizer que padre também gosta de monopólio, quando é o dele.

Cumpre registrar outro tipo de ruído. Há uma ala da esquerda que se rebela contra o uso de uma linguagem «capitalista» ou «neo-liberal», para falar de educação. É a guerra das palavras. Seu uso denunciaria aspectos sinistros do ensino privado:

Educação não é «mercadoria»
As escolas não devem fazer «comércio»
O ensino não é um «produto»
Alunos não são «clientes»
O «produtivismo» não tem lugar na educação

Quando examinamos o verdadeiro significado de cada uma dessas afirmações, podemos ver que não estão dizendo nada que possa ser verificado, isto é, confrontado com o mundo real, para que esse último nos diga se é verdadeiro ou falso. Não passam de frases que recorrem à emoção para atrair o interlocutor.

Por tudo que acarreta custos, alguém tem que pagar. No ensino público, pagam os contribuintes. No privado, pagam os alunos. Chamarmos essa troca de «venda» ou «comércio» não muda em nada a situação. Afinal, hóstias e bíblias são também compradas e vendidas. Se chamarmos educação de «produto», pouca diferença faz a escolha dessa palavra ou de outra. Com efeito, as escolas podem ser vistas como «indústrias de educação», pois operam uma «máquina» que recebe alunos ignorantes e «produzem» alunos menos ignorantes. Não passa de uma metáfora interessante. Chamarmos os alunos de «clientes», simplesmente sugere que eles são o objeto da educação e têm direitos que devem ficar claros – embora coexistam com a prerrogativa da instituição de definir os «serviços» que deseja oferecer, dentro dos marcos legais.

Há uma grande diferença entre insultos e afirmativas que podem ser objeto de verificação empírica. A escolha de palavras com forte carga emocional ou pejorativa em nada muda a sua inocuidade. Não passam de palavras lançadas a esmo, pelo seu efeito. Dito de outra forma: há acusações e críticas legítimas ao setor privado – que examinaremos adiante –, mas as reproduzidas acima não passam de uma guerra de palavras vazias.

Em contrate com as afirmações anteriores, a denúncia contra o «produtivismo» no ensino é bizarra. Ao contrário das outras afirmações que nada dizem, esta prega algo concreto e que contraria o bom senso mais elementar: nega o princípio saudável de que devemos obter mais com menos recursos.

6.       Todos cortam custos e maximizam receitas

Até agora, falamos de instituições e suas descrições externas e convencionais: públicas, privadas religiosas, privadas sem fins de lucro e privadas com fins de lucro. Há uma visão implícita de que são animais diferentes, com características próprias e distintas. E, de fato, o são. Contudo, têm muitos traços comuns. Examinaremos aqui as seme­lhanças e diferenças que parecem efetivamente existir.

De inicio, vale a pena notar que igrejas, salsicheiros, agentes funerários, escolas e instituições filantrópicas têm comportamentos semelhantes em certos aspectos. Todos tentam cortar custos e maximizar suas receitas. Organizações sadias sempre tratam de alcançar mais resultados com os mesmos meios ou os mesmos resultados com menos meios. Ou seja, o desperdício é igualmente condenado nas fábricas e nas escolas. E a tentativa de obter mais receitas é igualmente universal. Nesse particular, não há nenhuma diferença entre instituições filantrópicas e aquelas com objetivo de lucro.

Harvard, considerada a melhor universidade do mundo, é uma instituição privada sem objetivo de lucro. Não obstante, busca furiosamente aumentar as suas receitas, por todos os meios possíveis. Usa seu nome e reputação para vender serviços de consultoria, projetos de pesquisa, cursos avulsos, seminários e canecas de café com seu brasão. Em um livro recente, o seu ex-reitor, Derek Bok (2006), faz algumas ponderações, encontrando casos em que foi longe demais no seu comercialismo. Mas o próprio fato de que tal crítica seja feita por um professor e ex-reitor sugere que há padrões e expectativas de lisura e limites à busca de receita. Por outro lado, se quisermos ser um pouco cínicos, o comercialismo de Harvard estaria produzindo bons resultados, tanto no ensino quanto na pesquisa. Ou seja, se forem corretas as críticas contra o comercialismo de Harvard, o fato de que ela seja a número um deveria indicar que tal política não estaria comprometendo excessivamente os seus resultados.

A tentativa de controlar custos e aumentar receitas não é estranha às universidades públicas. Uma boa instituição pública faz o mesmo. Tenta eliminar gastos desnecessários, tenta obter mais com os recursos recebidos. E tenta obter mais receitas pela venda dos serviços que está autorizada a cobrar – sejam quais forem.

As boas universidades públicas americanas operam exatamente assim. A pós-graduação brasileira, mesmo nas públicas, é um bom exemplo de eficiência. Todas reduzem custos onde podem e tentam vender serviços de consultoria e de p&d. Além disso, concorrem pelos recursos dos fundos de pesquisa. Suas fundações permitem contornar as barreiras intransponíveis da legislação do serviço público.

Mas há diferenças também. Entendê-las corretamente é indispensável.

As instituições privadas, filantrópicas ou com fim de lucro, encontram penalidades amargas quando vacilam nas tentativas de reduzir despesas ou aumentar receitas. No limite, tornam-se insolventes e podem fechar suas portas. Ou seja, os incentivos negativos são muito fortes. A «mão invisível», de que falava Adam Smith, também estrangula. De fato, assim como as promessas de enriquecer espicaçam os empresários, o medo de falir é poderoso incentivo para ser eficiente.

Como comentário à margem da presente discussão, é preciso entender que as empresas privadas não são sempre eficientes e argutas na sua gestão. Pelo contrario, erram grosseiramente e com muita frequência. O que as diferencia é o preço que pagam pela incompetência. A enorme quantidade de empresas que falem ou pedem concordata atesta a presença ubíqua de barbeiragens. A eficiência é obtida pelo mecanismo darwiniano de concorrência e eliminação das menos aptas.

Voltando ao assunto, apesar das semelhanças, há uma assimetria entre as filantrópicas e aquelas com objetivo de lucro. Em ambas, a imprevidência pode levar ao buraco. Os déficits acumulados tanto podem ser impagáveis em umas como nas outras. Não faz muito tempo, a puc-sp sentiu na carne a proximidade de uma falência. A Universidade Santa Úrsula está na corda bamba. Contudo, as que têm objetivo de lucro, têm o incentivo adicional de receber prêmios financeiros, na forma de dividendos, sempre que os resultados forem bons. Já as filantrópicas podem se contentar em não acumular prejuízos. Isso pode também acontecer nas que declaram objetivos de lucro, mas é menos frequente. O que é mais comum é não conseguirem ter lucro, por incompetência ou pelas circunstâncias do mercado.

A diferença entre públicas e privadas não está na receita para o bom desempenho – reduzir custos e aumentar receita. Em teoria, todas deveriam segui-la. O contraste com as privadas, é que as públicas não fecham, não vão à falência. Aliás, raramente a inépcia administrativa encontra punição comensurável com as barbeiragens ou negligências cometidas. De fato, faltam prêmios e punições, na maioria das organizações públicas. Tanto é assim que uma das principais estratégias para obter mais eficiência é criar incentivos e punições, de tal forma a estimular comportamentos semelhantes aos observados no setor privado. É isso que se consegue com os fundos competitivos para recursos de pesquisa, tão disseminados no Brasil. Ou adicionais de os recursos orçamentários adicionais, como prêmio pelo bom desempenho, como ocorre no Reino Unido e no Chile.

Voltando às privadas, há uma diferença relevante entre as que têm finalidades de lucro e as filantrópicas. Como já foi dito, ambas têm forte interesse em aumentar suas receitas e reduzir custos, isto é, aumentar o excedente econômico. Contudo, o destino dessa diferença entre receitas e despesas não é o mesmo. As filantrópicas são obrigadas a reinvestir o que sobra. Nelas se chama excedente, nas outras é chamado de lucro. As que têm fins lucrativos, tanto podem reinvestir como distribuí-lo para os donos da empresa ou das ações.

Por crucial que possa ser essa diferença, em mercados altamente competitivos, algumas empresas com fins de lucro decidem não distribuí-lo. Preferem reinvestir, a fim de garantir sua fatia de mercado. De fato, conquistar ou não perder market share costuma ser uma prioridade mais critica do que distribuir dividendos. Sendo assim, esmaece muito a diferença entre as filantrópicas e as que têm fim lucrativo. Que diferenças haveria entre uma filantrópica que reinveste seu excedente e uma lucrativa que faz o mesmo? Esta pergunta não está induzindo uma resposta, apenas sublinhando que distinções legais podem não estar delimitando diferenças relevantes no mundo real.

Mesmo quando os lucros não são distribuídos, permanecem diferenças. As que têm fim de lucro têm o direito de decidir o que fazer com o excedente. Podem reinvestir, buscando obstinadamente ser uma Harvard tropical. Ou os donos podem comprar iates e coberturas na Vieira Souto. Cada uma destas alternativas tem as suas vantagens e os seus riscos. Nos casos mais comuns, predominam alternativas intermediárias, tentando conciliar o aumento do patrimônio dos sócios com a prudência diante de uma concorrência cada vez mais agressiva. Nada diferente do que acontece em outros setores de atividades.

Para terminar, há que insistir: o status legal de filantrópica não necessariamente descreve uma índole ou uma identidade verdadeira. Muitas são filantrópicas com o objetivo de não pagar impostos e esconder os lucros, por meio dos subterfúgios conhecidos. Há também a categoria daquelas com fins de lucro que voltam a ser filantrópicas, por estarem dando prejuízo. Com a volta, deixam de pagar impostos e não perdem nada, pois não têm lucro para distribuir.

Nesse passeio pelas semelhanças e diferenças, podemos perceber que as semelhanças são maiores do que as diferenças. Ademais, as boas públicas se parecem bastante com as privadas. E as privadas com e sem objetivo de lucro são também bastante parecidas. Em outras palavras, públicas e privadas deveriam cortar custos desnecessários e aumentar suas receitas. A diferença é que as públicas ineficientes têm mais condições de sobreviver com impunidade . Já as privadas pagam uma penalidade temível se não o fizerem,  pelo risco de falência. Ademais , os proprietários esperam um rendimento sobre o seu capital, se for uma instituição com objetivo de lucro (que não significa que dividendos serão distribuídos).

Há hoje uma tendência clara para a cobrança de mensalidades no ensino superior público. É assim nos Estados Unidos, no Chile, no México (à exceção da unam), na China, e em muitos países da África e da Ásia. Sobrevive precariamente o ensino quase gratuito na Europa, mas com claras tendências de mudança. Quando consideramos tais sistemas parcialmente pagos, as diferenças entre públicas e privadas com e sem lucro se reduzem ainda mais.

7.       A maior limitação: Só estuda quem pode pagar

Apesar de seus inegáveis méritos, o sistema privado é intrinsecamente injusto, do ponto de vista de não oferecer oportunidades iguais a todos. Como são muito poucos os que recebem subsídios no ensino privado no Brasil, a totalidade dos custos é arcada pelos interessados. E em um país pobre, pelo menos três quartas partes da população não teriam os recursos para pagar as mensalidades de um curso superior.

Essa é, de longe, a principal limitação do sistema privado. É um ensino que filtra os alunos pelo poder de compra seu ou de sua família. É óbvio, não há culpas ou maldades nisso. Alguém tem que pagar. Como o Estado não o faz, tem que ser o aluno ou sua família. No caso brasileiro, em sua maioria, são pessoas com menos poder de compra. Contudo, a iniciativa privada não tem como mudar essa equação.

Durante muitos anos, o número de famílias que podiam pagar ultrapassava o número de vagas no superior. Mas hoje, a impossibilidade de custear as mensalidades se tornou o fator crucial, limitando a matrícula nesse nível.

Contudo, não se trata de um caso perdido. Há possibilidades de expandir as bolsas e empréstimos oferecidos ou apoiados pelo governo, ou pelas próprias escolas privadas. Um pouco menos de um quarto dos universitários brasileiros recebem algum tipo de suporte financeiro. Compare-se com os Estados Unidos, um país muito mais rico. Lá, todo o ensino superior é pago, público e privado. Porém, cerca da metade dos alunos recebe bolsas ou empréstimos subsidiados (ou securitizados).

Para o governo brasileiro, não é mau negócio dar bolsas ou empréstimos. Além de desinflar uma demanda política desgastante, os alunos da instituição privada beneficiados com esses apoios custam muito menos do que aqueles matriculados em instituições públicas (em média, os custos são um terço do que custam as universidades federais).

8.       Quem oferece qualidade, quem opta por educar muitos?

Vale a pena perguntar que relação haveria entre o tipo de organização e a qualidade do ensino que oferece. Para isso, voltemos inicialmente ao que nos ensina a observação das empresas.

Há uma tendência ingênua de ver uma empresa como uma operação regida, de ponta a ponta, por imperativos induzidos pelo seu balanço. Pelo contrário, as empresas decidem o que querem produzir, de acordo com o que percebem como suas vantagens comparativas, sua experiência passada e a situação do mercado. Podem escolher um produto mais refinado, mais complexo e talvez mais caro. Ou algo mais simples e que pode ser vendido em maior escala, por um preço mais accessível. Ou ainda, conquistar o mercado pelo menor preço possível, sacrificando a qualidade. Qualquer destas opções é possível. A priori, do ponto de vista da lucratividade do negócio, não se sabe qual será mais vantajosa. Um Rolex é mais lucrativo do que Swatch? A economia de mercado não manda produzir algo bom ou ruim. Diz para encontrar a alternativa mais interessante, do ponto de vista dos resultados.

O mesmo sucede com a educação. Universidades religiosas podem querer atingir um número máximo de alunos, mantendo uma qualidade aceitável. Em boa medida, é o que faz a ulbra. Ou optam por oferecer a melhor educação possível, como faz a puc-Rio.

Instituições com fins de lucro enfrentam opções semelhantes. Igualmente, fazem escolhas diferentes, de acordo com sua tradição e competência. O ibmec escolheu o caminho de buscar a excelência, ainda que suas mensalidades elevadas limitem o número de alunos. De fato, seus cursos de administração e economia estão no topo da pirâmide do enade. O ibmec do Rio de Janeiro tem fim lucrativo. O de São Paulo é uma organização sem fins de lucro, não sendo permitido distribuir lucros. Curioso notar que o curso de economia do Rio de Janeiro está substancialmente mais bem cotado no enade do que o de São Paulo. Concluímos que lucro leva à maior qualidade? É óbvio que não. Apenas é possível deduzir que o mundo é mais complicado do que parece.

Outras universidades, também com fins de lucro, optaram pela quantidade. Para isso, precisam reduzir as mensalidades, com os correspondentes cortes de despesas. Portanto, oferecem ensino mais modesto. unip, Estácio e Anhaguera podem ser exemplos. Qual será o limite inferior de qualidade socialmente aceitável? Ninguém foi ainda capaz de dizer. De concreto, só há as normas legais, em boa medida, respeitadas pelas grandes.

Sem os mesmos cálculos econômicos, as públicas têm que tomar decisões semelhantes. No caso da rede federal, paulista e paranaense, a escolha foi feita pela qualidade. Inevitavelmente, os custos elevados refletem essa opção. Por isso, não são capazes de conseguir os recursos necessários para crescer a um ritmo que equivaleria ao das privadas.

Mas o público pode também eleger grandes números, com a penalização esperada na qualidade. A rede estadual do Ceará tem custos bem mais reduzidos do que as federais. Fora do Brasil, os exemplos são ainda mais eloquentes. A Universidade de Buenos Aires, a unam do México e a Universidade de Roma matriculam cada uma cerca de 200 mil alunos. No caso da primeira, seus custos por aluno são um décimo do que custam as nossas federais.

Em um país como a França, as universidades têm custos por aluno equivalentes ao secundário público. E por serem pouco dispendiosas, puderam se expandir muito. São enormes. Em contraste, a França elegeu concentrar a qualidade nas Grandes Écoles, muito mais caras e de matrícula reduzida. Ou seja, não há modelos únicos. Pelo contrário, há lugar para ambos.

9.       Afinal, todas têm os mesmos objetivos?

A discussão anterior chama mais a atenção para as seme­lhanças do que para as diferenças. Mas diferenças existem e podem ser profundas.

Na teoria, todos podem decidir que tipo de ensino oferecer, onde e para quem. Na prática, há diferenças significativas.

As públicas recebem um mandato da sociedade para cumprir certos papéis. Podem se instalar em regiões mais pobres ou problemáticas, a fim de induzir o seu desenvolvimento. A expansão da rede federal a todos os estados foi uma política desse naipe. E, em boa medida, cumpriu seu papel. Os estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste ganharam muito com a presença de grandes campi federais. Está por ser feita uma estimativa do seu impacto, mas tudo indica que não foi pequeno.

As públicas podem e devem entrar em setores estratégicos para o país. Isso é fundamental, diante dos custos elevados de algumas áreas, inviabilizando a operação de cursos privados. Agronomia é um caso clássico, com suas fazendas experimentais. O mesmo com medicina e veterinária, com os hospitais-escola. Pela estreiteza dos mercados, algumas áreas científicas, como astronomia, astrofísica, meteorologia e muitas outras dificilmente poderiam ser operadas pelo setor privado, na ausência de subsídios públicos. E como se sabe, toda pesquisa requer subsídios públicos pesados. Em geral, nas áreas que exigem laboratórios e oficinas dispendiosas e complexas não é viável cobrar dos alunos a integridade dos custos.

As universidades públicas costumam, também, sobretudo no Brasil, oferecer os cursos mais elitizados. É o caso do ita, do ime e outros.

Embora operem nesses nichos inviáveis para o ensino privado, as públicas oferecem cardápios de cursos muito semelhantes aos das privadas. De fato, comparando os catálogos de ambas, são bem parecidos.

É preciso esclarecer que tal inviabilidade financeira resulta de políticas públicas brasileiras de restringir os subsídios ao setor privado (filantrópico e com fins de lucro). Em países como os Estados Unidos e o Chile, os recursos de pesquisa alcançam tanto as públicas quanto as privadas. Dentre as mais celebradas, Harvard, Yale e Princeton são pri­va­das. Berkeley e Illinois são públicas. Por consequência, a melhor pesquisa tanto ocorre em umas como nas outras. Mas dadas as políticas brasileiras, apenas as públicas têm acesso substancial aos fundos de pesquisa. A puc-Rio foi uma exceção, mas hoje recebe poucos financiamentos públicos para a sua pesquisa básica.

Diante desse marco legal, as privadas estão restritas ao que é possível fazer com os recursos obtidos pela cobrança de mensalidades dos alunos e com alguns poucos projetos vendidos ao governo e às empresas. Portanto, sua margem de decisão é muito mais estreita.

O que está ao alcance das privadas é praticar subsídios cruzados. Isto é, usar o excedente de alguns cursos para subsidiar outros.

Emerge então uma diferença significativa entre as filantrópicas e aquelas com objetivos de lucro. As filantrópicas teriam vocação para cumprir finalidades sociais ou de interesse coletivo. Podem operar campi deficitários em áreas pobres. Ou ainda, manter cursos incapazes de gerar seus próprios recursos, cobrindo o prejuízo com o excedente de outros. São as políticas de subsídios cruzados: um curso financia o outro. O mesmo com a pesquisa. Universidades grandes reservam parte de seu excedente na graduação a fim de financiar pequenos centros de pesquisa.

Vale um comentário acerca da lógica adotada pela maioria das universidades privadas americanas. Seus cursos de graduação apenas cobrem os custos (no caso das mais famosas, nem isso). A pós-graduação e a pesquisa geram prejuízos substanciais, mas são necessárias para trazer prestígio à instituição – atraindo assim seus alunos de graduação. A fim de cobrir o prejuízo, operam cursos de verão, eventos, mbas e outras atividades lucrativas. Ou seja, fecham seus balanços pelos subsídios cruzados. Ademais, as mais prestigiosas recebem doações de ex-alunos, têm o rendimento do seu patrimônio e recebem subsídios públicos de diferente natureza (o valor dessas contribuições pode atingir um terço do orçamento).

Em princípio, uma instituição com objetivo de lucro teria poucas razões para operar cursos deficitários. Não foram criadas com a meta de atender a anseios da sociedade, mas para gerar lucro. Por essa razão, não têm interesse e motivação para operar cursos que não cubram seus custos.

Contudo, por potente que possa ser essa lógica do lucro, o mundo real tem mais nuances. O objetivo de lucro das melhores instituições não colima apenas um lucro imediato, a curto prazo. Há também os objetivos de expansão e sobrevivência a longo prazo.

E para crescer e prosperar precisam operar no vermelho, em certas circunstâncias:

  • Novos programas. É o caso clássico que os economistas chamam de «indústria nascente». Cursos novos podem representar um grande potencial a longo prazo, mas não cobrem os custos, logo após o seu lançamento.
  • Prestígio, status e imagem. A pesquisa, bem como cursos de grande prestígio, são essenciais para a sua imagem. Daí o empenho de muitas instituições em criar centros de pesquisa, mestrados e outras iniciativas que trazem uma imagem de instituição que busca o conhecimento ou a cultura.
  • Imposições legais. A legislação que rege o funcionamento das universidades prescreve a necessidade de pesquisa e pós-graduação stricto sensu. Daí a inevitabilidade de manter mestrados ou centros de pesquisa. Pode ser o mínimo para evitar aborrecimentos com o mec. Ou pode ir mais longe (como é o caso do iuperj, da Cândido Mendes).
  • Responsabilidade social. Instituições com fins de lucro não se sentem obrigadas por lei a terem uma agenda de responsabilidade social. Mas é prudente fazer alguma coisa nesta direção e quase todas o fazem. Por exemplo, a Fundação Pitágoras desenvolve sistemas de gestão nas secretarias de educação de dezenas de municípios.

A observação do ensino superior brasileiro sugere que as instituições com fins de lucro dão alguns passos em todas essas direções. Contudo, tentam encontrar certo equilíbrio entre o que dá lucro, o que dará lucro a longo prazo e o que apenas traz uma imagem pública mais positiva. Cada um deve julgar se são pífias manobras para obter prestígio, para permanecer minimamente dentro da lei, ou se querem sacrificar benefícios substanciais em atividades desse tipo. Claramente, nesses assuntos, as instituições diferem muito entre si e as opiniões externas, mais ainda.

Na verdade, o grande dilema das privadas com objetivo de lucro é equilibrar as suas muitas demandas. Estão pressionadas a mostrar bons resultados nos próximos balancetes. Porém, têm os seus objetivos a longo prazo que são prejudicados por cortes de despesas que ameaçam a qualidade.

É preciso evitar o maniqueísmo de tomar as instituições públicas como exemplos de desperdício, e as privadas como modelos de comportamento racional de economizar e tomar decisões inteligentes, em linha com seus objetivos definidos a longo prazo. As empresas, educativas ou não, defrontam-se com uma avalancha de decisões no cotidiano. E erram muito. As empresas capitalistas de sucesso são as que erram pouco e sabem corrigir seus erros. Em contraste, há também uma multidão de outras organizações cortando custos onde não se pode, gastando mal, administradas sem liderança e perdendo a lealdade de seus colaboradores e clientes.

Em resumo, as públicas têm grande liberdade para agir em prol do interesse coletivo. Não dependem de fechar seus balanços com rendas próprias. Mas, frequentemente, são reféns dos interesses corporativos dos seus professores. As filantrópicas definem suas missões que deveriam considerar também o bem-estar coletivo. Mas não podem ir muito longe nessa linha, pois só se opera um curso deficitário, cobrando um «pedágio» dos outros que geram excedentes. As que definem objetivos de lucro operam exatamente com as mesmas limitações das filantrópicas. Contudo, sua motivação para cruzar subsídios é bem mais débil              – embora o façam com certa frequência. Além disso, como toda expansão e aperfeiçoamento depende da reinversão do excedente, a prudência modera a propensão a distribuir lucros. Ou seja, se parecem mais com as filantrópicas na prática do que na teoria. Em resumo, o mundo é complicado. Não se pauta por fórmulas esquemáticas sugeridas por chavões ideológicos.

10.     Como «controlar» o ensino superior? A mão invisível ou o tacão do Estado?

Nem tudo funciona às mil maravilhas, seja no privado, seja no público. Há abusos, há ineficiências, há inércia, há preguiça, há a ambição desmesurada de alguns para aumentar o seu lucro. O que cabe ao Estado fazer?

Esse é o problema mais espinhoso. É fácil dizer que é preciso «mandar prender os tubarões do ensino». É fácil dizer que as públicas são ineficientes e precisam de uma faxina completa. O problema está na implementação. As ferramentas de controle de que o Estado dispõe não estão à altura da tarefa. Ademais, sua implementação pode ser politicamente inviável.

Comecemos com algumas linhas de políticas públicas que merecem atenção. Não resolvem tudo, mas desbastam o mais grosso.

10.1   Marco legal

Em primeiro lugar, há as leis. Nelas se definem as regras mínimas de operação do ensino superior. Por exemplo, faz sentido especificar a titulação mínima dos professores, os computadores, os laboratórios e bibliotecas. Isso hoje é feito, mas talvez com detalhes bizantinos que acabam prejudicando.

Nas práticas correntes, após a autorização, não há mecanismos eficazes para verificar se os cursos continuam adotando as prescrições legais. Com cerca de 30 mil cursos, não é possível fiscalizar nem uma boa parte deles. A solução pragmática que o mec está cogitando é fiscalizar apenas os que obtêm resultados insuficientes no enade.

Mas nem tudo pode ser verificado em uma visita de um par de dias. As aulas começam e acabam na hora certa? Os professores faltam?

É preciso conhecer as limitações do que pode fazer o marco legal. Não adianta a lei dizer que «todos os cursos devem oferecer educação de qualidade». Não há como encontrar uma definição operacional do que é boa qualidade, que possa ser aplicada por inspetores.

Portanto, a lei pode fazer valer um mínimo de regras de fun­-cionamento. Mas é pateticamente impotente, diante do desafio de impor «qualidade».

10.2   Avaliações

No caso, temos o «Provão» – sucedido pelo enade. Praticamente não há outros países importantes que tenham tido a coragem e a iniciativa de testar os conhecimentos dos alunos que se formam. Como nem alunos e nem administradores gostam de ser avaliados, essas provas encontraram uma feroz oposição ao serem anunciadas. Esta primeira barreira foi vencida. Contudo, na mudança de governo, mais uma vez, a ideia quase soçobrou. Por pouco não desapareceu. Mas o enade sobreviveu. Ainda tem mais deficiências do que o Provão, mas está melhorando, cumpre um papel. O fato de que o exame é aplicado apenas a uma amostra de alunos também prejudica.

A ideia é simples. Se o Estado medir a qualidade ao fim do processo, o resto da fiscalização se torna secundária. Como se sabe, os indicadores de insumos (diplomas dos professores, regime de trabalho, livros na biblioteca e inúmeros outros) geram reflexos pálidos na qualidade. Em contraste, o enade é a qualidade. É uma medida direta do que os alunos aprenderam daquilo que o curso deveria ensinar, segundo o seu currículo.

Em grande medida, a avaliação vem fazendo o seu trabalho de depuração dos cursos. Alguns, pela sua baixa qualidade, colidiram de frente com o mec. Entram então em cena as liminares, as brigas legais e as intervenções. Mesmo quando sobrevivem, os danos à sua reputação não são menores. Portanto, mesmo diante do fracasso do mec em fechar cursos, a penalidade por entrar no rol dos piores ainda é pesada.

Vários estudos demonstraram o impacto positivo do provão sobre os cursos (inep, 1999). Em particular, em Administração e em Odontologia foram realizados estudos, sugerindo que havia se tornado um poderoso instrumento. Foi documentado um aumento nas contratações de mestres e doutores, bem como na jornada de trabalho. No lado pitoresco, entram em pânico os coordenadores dos cursos com avaliações abaixo do esperado. Alguns, por falta de melhor ideia, mandam pintar o prédio. Outros reitores ameaçam fechar os cursos com notas ruins, se não derem um salto no ano seguinte.

Os alunos passaram a olhar as notas, antes de escolher o seu curso. De fato, os cursos com notas A e B ganharam 10% a mais de candidatos. E os cursos com D e E perderam 40% dos seus candidatos. Nisso tudo, apesar de que levou muito tempo para deixar de publicar tolas estatísticas, a imprensa teve valioso papel divulgando os resultados.

10.3   E a «mão invisível»?

O papel do mercado, com sua mão invisível, sempre foi olhado com suspeição por muitos. Ainda há aqueles que não entenderam Mandeville e Adam Smith. Querem o tacão do governo.

Como as ações de fiscalização, controle e intervenção do governo tendem a ser pesadas e grosseiras, quanto mais o mercado fizer o seu serviço, melhor o sistema funcionará. Em outras palavras, é preciso reservar a intervenção governamental para casos extremos e para a definição de condições mínimas de funcionamento.

Mas como já ficou sugerido pelo impacto do Provão, o mercado pode funcionar. E, quase sempre, funciona.

Se os alunos souberem quais são os cursos bons e puderem facilmente descobrir se têm uma boa relação preço-qualidade, a lei da oferta e da procura vai fazer o seu serviço, punindo os cursos fracos e premiando os melhores. Estes últimos serão mais procurados e os piores perderão alunos, como de fato acontece. Ainda que fosse ditatorial, o governo não lograria medidas tão brutais e merecidas, se comparadas ao estrago provocado pelo Provão dentre os cursos piores.

Contudo, a mão invisível nem sempre aproxima o benefício privado do interesse coletivo. Há fragilidades nesses mecanismos de escolha e no processo darwiniano de sobrevivência do mais apto. O diploma superior traz status, pelo mero fato de tê-lo. Há também benefícios que vão de prisão separada a reservas de mercado para essa ou aquela profissão. E como é caro e trabalhoso escolher entre candidatos para empregos, usar o diploma superior como filtro pode fazer sentido. Nesses casos as vantagens brotam dos diplomas e não de um conhecimento superior. Sendo assim, para muitos alunos, a melhor escolha é um curso que dê o menor trabalho possível, já que apenas querem o diploma. Se o curso atende aos requisitos legais, torna-se muito difícil mudar essa regra de decisão dos alunos. Ou seja, cursos fracos não vão necessariamente ser enjeitados. Portanto, podem não naufragar. Pelo contrário, no limite, podem ser escolhidos justamente por isso.

Nesses casos, o grande culpado é a prática de estabelecer, por lei, reservas de mercado. Há casos em que há reais riscos e perigos, advindos de uma prática incompetente (os exemplos clássicos são na área da saúde). Neles, a reserva de mercado se justifica. Na maioria, não passa de privilégio disfarçado.

Como Adam Smith já havia dito, nos idos do século xviii, o mercado não funciona em toda e qualquer circunstância. Para que produza os resultados esperados, precisa preencher determinadas condições – que os economistas chamam de Concorrência Perfeita.

O mercado só funciona se a informação flui livremente. Se não soubermos quem é quem, quem oferece o quê, a concorrência não faz o seu serviço. Por exemplo, aluno A escolhe a faculdade X apenas porque não sabe que Y é melhor. Aqui também, a imprensa tem desempenhado um papel importante, juntamente com a Internet.

Mas bem sabemos que é preciso garantir a veracidade da informação. As informações sobre o que são realmente os cursos são valiosas. Em contraste, a propaganda enganosa é lesiva. Daí ser uma das funções do governo regulamentar a veracidade da propaganda. Em breves palavras, o que é prometido pela propaganda tem que ser verificável e tem que ser cumprido.

Concorrência é a chave de tudo. Mas só há concorrência se houver um número razoável de operadores. Todos tentam vender mais e mais caro. Atingirão seus objetivos se não tiverem concorrentes. Portanto, há uma condição clássica de sucesso no mercado: a liberdade de entrada. Tomemos um mercado altamente lucrativo, pela presença apenas de um ou dois operadores. Se for permitido abrir mais faculdades, outros serão atraídos, já que buscam conseguir também os seus lucros excepcionais. Mas ao entrarem no mercado, a concorrência se acirra e os preços vão cair. Isso é o que dizem os livros de introdução à Economia. Descrevem uma condição que não está longe do que acontece em muitos mercados do mundo real.

Portanto, chegamos aí ao primeiro condicionante para o funcionamento do mercado. É preciso permitir o acesso aos mercados do ensino superior. Acontece que as políticas públicas, frequentemente manejadas por pessoas com alergia à iniciativa privada, querem se ver livre das faculdades particulares. Assim sendo, ingenuamente, dificultam a sua autorização. Ora, isso significa tão somente impedir que o mercado funcione. Se não entrarem concorrentes, quem já está lá usufrui das vacas gordas do monopólio. E o monopólio privado é, pelos menos, tão ruim como o público.

Com mais de três quartos dos alunos no setor privado, sem a ajuda da concorrência, a tarefa de controlar torna-se impossível.

Mas a guerra da retórica não dá quartel. E nela, o setor privado fala várias línguas. A língua dos que querem entrar, pregando então liberdade para se estabelecer. A língua dos que já estão dentro, pregando um ferrolho na entrada (exatamente o caso da citação do diretor de faculdade, reproduzida na página 113). As filantrópicas que criticam as que declaram objetivo de lucro, mas que usam a isenção de impostos para obter vantagens de mercado. As duas últimas fazem par com os defensores do ensino público que, por razões diferentes, não querem a expansão da rede privada. Ambos militam contra o funcionamento do sistema de mercado. Portanto, militam contra os interesses dos alunos que só têm a se beneficiar da concorrência.

Podemos discutir se o país deve ter um ensino superior privado. Trata-se de uma discussão doutrinária e legítima – com óbvias repercussões práticas e financeiras. Mas depois que se constata que o setor privado matricula três quartos dos alunos, deixá-lo funcionar pela metade significa trazer os seus vícios, sem permitir que a concorrência traga os benefícios.

Vale a pena trazer à discussão um setor quase sempre ignorado. Em um ensaio escrito no passado, falei da «educação invisível». Estimativas que fiz, com Elenice Leite, mostraram que existe um mundo de cursos e treinamentos, de todos os tipos e feitios, totalmente ignorados pelo governo. Nem entram nas estatísticas de matrículas e nem nos orçamentos conhecidos e tabulados. Esse mundo consome próximo de 5% do pib. É quase tão grande como o outro da educação acadêmica, do Sistema S e outras iniciativas mais visíveis (ipea, 2006).

O Estado não toma conhecimento desse mundo, para bem ou para mal. Não há sistemas de regulação, autorização, avaliação ou o que quer que seja. É um mundo controlado exclusivamente pelas leis da oferta e da procura. Se quisermos saber se o mercado desregulado funciona, poderemos ter uma boa amostra examinando esse mundo invisível da educação e da formação profissional. Não há boas avaliações do seu funcionamento. Seria leviano afirmar se funciona melhor ou pior. Mas o fato é que gera menos reclamação do que os sistemas, na teoria, controlados pelo Estado. Fica a provocação.

11.     Como lidar com os abusos?

Até aqui, falamos de sistemas de regulação, visando acompa­­nhar o funcionamento do ensino superior. Enfatizamos o setor privado, por não ser a ênfase do presente ensaio. Ficam praticamente sem comentários os problemas com as universidades públicas, pelo menos, tão sérios.

Para o setor privado, desde sempre, prevalece a ideia de moderar os «vícios» com incentivos e puxões de orelha do governo, para que não se criem distorções e os cursos atendam aos interesses sociais. Não há como discordar dessa orientação.

Diante dessas preocupações, há aqueles que afirmam bastar boas leis e a concorrência de mercado. De acordo com a tradição, capitalismo não precisa de altruísmo para funcionar bem. Justamente, esse é o seu segredo. Mas não é tão simples assim.

Temos um século de história de legislação para limitar ou eliminar monopólios, sempre considerado nocivo. Em contraposição, no ensino superior, há forte oposição ao princípio da liberdade de abrir cursos. Está permanentemente ameaçado por aqueles que não gostam do setor privado.

Alem disso, há abusos, reais e imaginários, legais e ilegais. Como existem e não são tão infrequentes, é preciso lidar com eles.

A acusação mais comum se volta contra os lucros excessivos. Quanto a isso, gostemos ou não, o Estado não dispõe de armas eficazes. O que é lucro excessivo? Quanto por cento? Ninguém se põe de acordo. E se houvesse acordo, como medir se ocorreu realmente? Esse caminho apresenta mais problemas do que soluções.

Na prática, se houver pouca oferta, no país como um todo ou em fisioterapia na cidade de Cabrobó, os excedentes tenderão a ser altos. No fim da década de 90, ouvi um empresário do comércio, recém-chegado à educação, manifestar sua agradável surpresa ao encontrar margens de 50%. Com elas se financiaram as expansões de algumas das mais respeitadas universidades privadas. O único remédio eficaz é o aparecimento de concorrentes, atraídos pelos lucros pródigos. Até o bom ensino público tem bons radares para encontrar nichos promissores. É interessante observar que na área de maior expansão, a Administração, a concorrência tem levado a uma queda sistemática de mensalidades, ano após ano.

Há um problema real com essas soluções de mercado: levam tempo. E a opinião pública é impaciente. Não se criam cursos de um dia para o outro. Há a inércia das autorizações e, depois de criado, são quatro anos até aparecerem os primeiros formados.

Outra acusação frequente é que algumas instituições ludibriam os alunos. Isso pode significar duas coisas diferentes. No primeiro caso, pode deixar de cumprir a lei. Nesse caso, a solução é óbvia, desde que o mec esteja aparelhado para lidar com esses desvios. A outra situação é bem menos transparente. Trata-se da prática de oferecer um curso que vale bem menos do que é cobrado. Esse é um caso em que a ação do Estado é muito limitada. Quem calcula a relação de custo-resultado, para dizer que houve algo ilícito? E quem disse que é ilícito? O mínimo que se pode fazer é disseminar tão bem quanto possível a informação e esperar que a concorrência e a inteligência dos alunos faça o seu trabalho.

Politicamente, é uma resposta pouco satisfatória. Mas não há muito mais a se fazer.

O Brasil é um dos poucos países em que já houve guerra de preços em educação superior. Em geral, trata-se de uma concorrência desleal de operadores com folga de recursos, fazendo o dumping da educação sobre outros menores. As leis anti-dumping foram feitas prevendo tais eventualidades. No Brasil, temos o cade, cuidando de cerveja e chocolate. Mas não há precedente de sua intervenção no ensino. Ademais, é difícil a montagem de um processo legal convincente. Seja como for, na ordem geral das coisas, essas guerras de preços são casos isolados. É difícil imaginar aí uma ação de governo que faça mais bem do que mal.

Uma área em que seria fácil fazer progressos em pouco tempo seria agindo contra a propaganda enganosa. Faz todo sentido ter uma legislação rigorosa, exigindo o cumprimento de que foi prometido nos materiais publicitários. E que as promessas não possam ser mudadas retroativamente. Muitos ruídos e desencontros seriam evitados se houvesse leis obrigando a cumprir o prometido.

Resumindo, há e haverá abusos. Como em qualquer outra área, há operadores inescrupulosos e incompetentes. Não há nenhuma base factual para dizer se na educação superior há menos ou mais problemas. Seja como for, é preciso lidar com eles.

Em grande medida, precisamos de uma legislação transparente e real capacidade para cumpri-la. Lucros excessivos, ao contrário do que gostariam alguns, não são debelados por leis, mas sim por um ambiente de negócios que estimule a concorrência e leve à eliminação dos monopólios.

Há problemas de contravenções banais, que ferem códigos civis e penais. Há diplomas falsos. Há cursos operando sem autorização. Isso tudo é assunto de processo civil e até de polícia. Nem chegam a ser problemas de educação e nem são muito frequentes.

Resta insistir em duas dificuldades inamovíveis. Em primeiro lugar, as correções costumam levar tempo, impacientando a sociedade e prejudicando alguns alunos. Em segundo lugar, não se legisla qualidade. É possível exigir um mínimo suprimento daqueles fatores que podem ser contados e medidos. No caso das privadas, há espaço para mais transparência nas prestações de conta, tais  como balanços auditados. Ademais, as relações entre mantenedora e mantida, bem como contratos de prestação de serviços podem dar margem a abusos. Mas o resto, que tende a ser ainda mais fundamental, não pode ser controlado por leis.

12.     Conclusões pouco conclusivas

O presente ensaio entra em assuntos espinhosos e controvertidos, resultantes da entrada do setor privado no ensino superior. Ainda mais sensíveis são as empresas com objetivo de lucro operando nele.

Nem tanto ao mar e nem tanto à terra, é o que mostra a análise mais desapaixonada que o autor é capaz elaborar. O setor privado não merece ser demonizado. Isso tanto é verdade para o filantrópico como para as empresas com objetivo de lucro. Aliás, observando a distância, as diferenças tendem a ser relativamente pequenas. Boas e péssimas, elas existem em todas as modalidades jurídicas. No caso do ensino superior com fins de lucro, não há nem no Brasil, nem no exterior uma experiência suficientemente longa para permitir generalizações. Como em outras modalidades, não existe sem máculas e sem pecados.

Vejamos algumas considerações de caráter geral, sugerindo mais proximidade do que distância entre os diferentes operadores:

  • As privadas e as boas públicas tentam «vender» mais, ganhar visibilidade e identificar nichos de mercado insuficientemente atendidos.
  • Todas têm interesse em reduzir seus custos e aumentar suas receitas, sejam filantrópicas ou com objetivo de lucro. Ou seja, aumentar o excedente.
  • Ao contrário das públicas, nenhuma instituição privada pode gastar mais do que arrecada (deveria ser assim para as públicas também, mas a situação é mais turva).
  • Comparadas com as públicas, as privadas tendem a ser mais bem administradas e mais eficientes. Mas nem sempre. Há dinossauros públicos com comportamento de gazelas. E há instituições privadas, deslizando gazelas, mas no fundo, não passam de dinossauros.
  • As filantrópicas têm maior propensão a operar em áreas deficitárias, praticando subsídios cruzados. As outras também o fazem, mas possivelmente, por razões distintas.
  • Há boas instituições filantrópicas. Há falsas filantrópicas. Há instituições com fins de lucro que são exemplares. Outras, nem tanto.
  • As diferenças maiores são entre as competentes e as incompetentes, muito mais do que na sua declaração de ter ou não lucros.
  • A ruindade tem muitas vertentes. Há escolas fraquinhas, por causa de sua incapacidade para recrutar alunos melhores. Cumprem a lei, mas como os alunos entram sabendo muito pouco, não saem sabendo muito mais. Há escolas que podem estar obedecendo à lei, mas cobram demais e oferecem pouco. Por fim, há escolas inescrupulosas, burlando a lei. Todas essas alternativas se observam nas diversas categorias de instituições.

Infelizmente, versões toscas de ideologia encharcam boa parte das discussões. Não há pragmatismo e falta uma visão mais analítica do que a que está acontecendo. As denúncias iradas de atuação predatória não encontram respaldo na observação da realidade – embora casos isolados possam existir. O presente ensaio sugere que estamos diante de diferenças sutis e, às vezes, inexistentes.

Bibliografia

Bok, Derek (2006): Our Underachieving Colleges. Princeton: Princeton University Press.
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