Número 58 Enero-Abril / Janeiro-Abril 2012

Índice

Avaliação das atitudes das duas culturas em relação à aprendizagem da ciência

Patrick de Miranda Antonioli*
Alvaro Chrispino*
Ángel Vázquez Alonso**
Maria Antonia Manassero Mas**

1 Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (cefet/ rj), Brasil.
2 Universidad de las Islas Baleares, Espanha.

Síntese: Este trabalho apresenta resultados obtidos de acordo com a avaliação das atitudes em relação à aprendizagem da ciência, a partir de estudantes pré-universitários, em início e fim da universidade e professores, todos vinculados ao cefet/rj. Trata-se de uma questão do projeto piearcts que aborda a existência de duas culturas – ciências e humanas –, onde é explorada a possibilidade de o estudante que diz pertencer à área humana aprender ciência. A questão é analisada desde seu aspecto mais geral até subcategorias, divididas em áreas e graus de escolaridade. Além de apresentar as crenças dos sujeitos em questão, as análises das respostas podem contribuir para a elaboração de estratégias que incluam aspectos da Natureza da Ciência para uma aprendizagem de maior qualidade, tanto para aqueles que desejam seguir na carreira científica quanto para aqueles que desejam seguir outro caminho. Os resultados apontam uma neutralidade geral em relação à capacidade do indivíduo de humanas aprender ciência, em contrapartida apresenta maior crença por parte do professor de ciências de que isso é possível.

Palavras-chave: cocts; cts; duas culturas; piearcts.

Evaluación de las actitudes de las dos culturas en relación al aprendizaje de la ciencia

Síntesis: Este trabajo presenta resultados obtenidos a partir de una evaluación de las actitudes para el aprendizaje de la ciencia en estudiantes universitarios y profesores, todos vinculados a cefet/rj. Se trata de analizar, con el proyecto piearcts, la existencia de dos culturas –ciencias puras y ciencias humanas– y explorar las posibilidades de aprendizaje científico-exacto del estudiante que pertenece al área de humanidades. La cuestión es analizada desde el aspecto más general hacia varias subcategorías, divididas por áreas y grados de escolarización. Además de presentar los puntos de vista de los sujetos de estudio, los análisis de las respuestas son utilizados en la elaboración de estrategias –incluyen ideas sobre la Naturaleza de la Ciencia– que favorecen un aprendizaje de mayor calidad. Son estrategias dirigidas tanto a los estudiantes de carreras científicas como a los de otras aspiraciones. En cuanto a los resultados, éstos apuntan a una neutralidad general en relación a la capacidad de aprendizaje de ciencias puras por parte del individuo proveniente de ciencias humanas. Sin embargo esa posibilidad de aprendizaje es reafirmada por el profesor de ciencias-exactas.

Palabras clave: cocts, cts, dos culturas, piearcts.

EVALUATION OF ATTITUDES OF TWO CULTURES IN RELATION TO THE LEARNING OF SCIENCE

Abstract: This paper presents the results obtained from an assessment of the attitudes for the learning of sciences in university students and teachers, all linked to cefet/ru. The aim is to analyse, with the piercts project, the existence of two cultures- pure sciences and social sciences- and explore the possibilities of a scientific learning of the student who belongs to the humanities area. The issue is analysed from the most general aspect into several sub-categories, divided by areas and school degrees. In addition to the points of view of the subject of study, the analysis of the answers are used in the development of strategies – include ideas on the nature of science- favouring higher quality learning. Both are strategies for students of science careers and others. In terms of results, such indicates a general neutrality in relation to the ability to learn pure sciences by the individual that comes from the so-called social sciences. However, this possibility of learning is reaffirmed by the science teacher.

Keywords: cocts, cts, two cultures, piearcts.

1.       Introdução

Entender um pouco da Natureza da Ciência durante a aprendizagem das suas diferentes disciplinas constitui um passo importante quando o objetivo é a alfabetização científica e tecnológica (Vázquez et al., 2007). Para isso é necessária a compreensão de elementos de diferentes áreas como história, filosofia e sociologia. O estudo dessa natureza perpassa a construção do conhecimento científico e das relações entre ciência, tecnologia e sociedade (cts).

Trata-se de um assunto delicado e controverso, pois não há unanimidade em relação a muitos aspectos, mesmo entre especialistas de diversos campos do conhecimento. Identificar correlações e divergências entre os pensamentos desses especialistas e compará-los com as concepções de estudantes e professores pode contribuir para o descobrimento de como introduzir a Natureza da Ciência no currículo escolar. É primordial conhecer a visão de alunos e professores sobre todos os aspectos ligados à Natureza da Ciência, para a realização de um estudo que possibilite a sua inserção em sala de aula.

Com o intuito de chegar à compreensão sobre como pensam alunos e professores a respeito da Natureza, da Ciência e da Tecnologia foi criada uma colaboração entre os países ibero-americanos: Argentina, Brasil, Colômbia, Espanha, México, Portugal, Uruguai. Essa colaboração, denominada Projeto Ibero-americano de Avaliação de Atitudes Relacionadas com a Ciência, a Tecnologia e a Sociedade (piearcts), utiliza o Questionário de Opiniões sobre a Ciência, a Tecnologia e a Sociedade (cocts) para alcançar essas atitudes, valores e crenças, utilizando-se alguns trabalhos anteriores como referência e uma metodologia própria baseada no modelo de respostas múltiplas e na escala de Likert.

Este trabalho foi realizado em uma instituição tecnologia do Rio de Janeiro com um público de 445 indivíduos. O objetivo consiste em analisar uma questão que aborda a existência de duas culturas: aqueles que são da área da ciência e aqueles que são da área de humanas.

2.       As duas ou três culturas

É normal nos dias atuais ouvirmos pessoas dos mais variados lugares proferirem as palavras: exatas e humanas. Tão normal quanto isso é ouvir alguém afirmar que gosta de história, mas odeia a física ou gosta de matemática, mas não suporta geografia. Assim, as pessoas se autodenominam da área de exatas ou da área de humanas. Basicamente, ou o indivíduo se encaixa em um grupo, ou se encaixa em outro. Somos absorvidos por esses conceitos ainda na fase escolar e em parte da graduação, de tal forma, que é possível sentirmos certa estranheza, quando alguém com afinidade na área de exatas apresenta uma obra literária. Ou então quando um sujeito com habilidade na outra área diz apreciar a ciência.

Essa divisão de dois modos de ser, duas linhas de pensamento, duas atitudes e incompreensão de ambas as partes não é novidade, sendo o que Snow (1959) chama de duas culturas. São grupos que possuem inteligências comparáveis, que, financeiramente, recebem quase o mesmo, que têm origens sociais semelhantes, mas que não se comunicam entre si e têm pouco em comum em diversas outras questões. A essência da divisão começa cedo na vida do indivíduo, mas a tendência é que haja essa completa cisão na vida adulta.

Segundo o autor, trata-se de uma divisão onde em um polo estão os cientistas e no outro estão os que se autodenominam intelectuais. Trata-se de uma concepção interessante, pois nessa categoria não incluem-se Newton, Darwin e outros cientistas, como se esses não tivessem usado seus intelectos em suas descobertas. Essa divisão não significa que, por exemplo, biólogos, por estarem no grupo dos cientistas, entendam a física moderna e contemporânea. Na verdade, eles podem ser completamente alheios a isso, porém, possuem em comum com os físicos muitos aspectos como: atitudes, normais, padrões de comportamento, abordagens e suposições. O autor quer dizer que ambos possuem uma cultura em comum, não compartilhando atitudes e valores com o outro polo.

Murray Gell-Mann, no livro The Third Culture: Beyond the Scientific Revolution de John Brockman, de 1995, faz um desabafo interessante sobre como uma cultura enxerga a outra:

Infelizmente, há pessoas nas artes e nas humanidades – possivelmente, até mesmo algumas na área das ciências sociais – que se orgulham de saber muito pouco sobre ciência e tecnologia, ou sobre matemática. O fenômeno oposto é muito raro. Você pode, ocasionalmente, encontrar um cientista que é ignorante em Shakespeare, mas você nunca encontrará um cientista que se orgulha de ser ignorante em Shakespeare. (tradução nossa)

Qualquer pessoa que passou pela vida escolar já deve ter tido contato com pensamentos desse gênero. Pensamentos como “a física não serve para nada” ou “tecnologia para os que gostam dela, pois só me interessa usá-la”, são comuns até os dias atuais. Snow (1959) comenta a distinção entre os pensamentos das duas culturas:

Um bom número de vezes tenho estado presente a reuniões de pessoas que, pelas normas da cultura tradicional, achasem muito educados e com muito gosto têm expressado sua incredulidade pelo analfabetismo dos cientistas. Uma ou duas vezes fui provocado e pedi aos interlocutores que descrevessem a Segunda Lei da Termodinâmica, a lei de entropia. A resposta foi fria e negativa. No entanto, eu estava pedindo algo que para os cientistas seria equivalente a perguntar: Você já leu uma obra de Shakespeare? (tradução nossa, p. 15-16, grifo do autor)

Notemos que as visões de Gell-Mann e Snow se assemelham. O que o segundo chama de resposta fria e negativa, por parte das pessoas da área de humanas, converge no que o primeiro afirma sobre o orgulho de saber pouca ciência. Já no caso dos cientistas, não conhecer Shakespeare para os dois autores se traduz em um sentimento de não muito orgulho. É inegável que a ciência tem se tornado mais complexa com o passar do tempo, com teorias e linguagens mais refinadas. Snow descreve esse pensamento em seu texto:

Agora acredito que se eu tivesse feito uma pergunta ainda mais simples – como: O que você entende por massa, ou aceleração, o que é o equivalente científico em dizer Pode ler? – não mais do que um em dez dos altamente educados teriam percebido que eu estava falando o mesmo idioma. Portanto, enquanto o grande edifício da física moderna cresce, a maioria das pessoas inteligentes no ocidente tem o mesmo conhecimento científico que os seus antepassados neolíticos tiveram. (tradução nossa, p. 16, grifo do autor)

Segundo Snow (1959), a maioria das pessoas não acompanhou o desenvolvimento da ciência, portanto, não absorveu sua linguagem. Sem esse mínimo conhecimento, torna-se difícil o diálogo com a outra cultura. O autor aponta para a especialização do ensino escolar como sendo um dos fatores que colaboram para esse distanciamento das culturas.

Uma das principais justificativas para essa separação das culturas tem ligação com a Revolução Industrial e, principalmente, com o que ele chama de Revolução Científica. Basicamente, a introdução da ciência na indústria, com o objetivo de reduzir tentativas e erros e a ideia de substituir inventores por cientistas culminaram em uma mudança no estilo das universidades e na ruptura das duas culturas.

Naturalmente, a ideia de Snow foi questionada ao longo dos tempos. Ele mesmo afirma que o número “dois”, referente às duas culturas é um número perigoso. Nada impede que existam mais. Nessa perspectiva, Brockman (1995) introduz uma terceira cultura:

A terceira cultura consiste na dos cientistas e outros pensadores no mundo empírico que, através de seus trabalhos e escritos expositivos, estão tomando o lugar do intelectual tradicional visibilizando os significados mais profundos de nossas vidas, redefinindo quem e o que somos. (tradução nossa, p. 27)

Snow (1995) já havia imaginado uma terceira cultura que seria uma espécie de amálgama entre cientistas e indivíduos das humanidades. No entanto, tal cultura não emergiu, e segundo Brockman (1995), os cientistas começaram a se comunicar diretamente com o público, sem intermediários. A esses cientistas, que possuem habilidade para escrever, ele deu o nome de pensadores da terceira cultura. Nem todos aprovaram a nova onda de livros que surgiu, como os antigos intelectuais, que viam os livros como anomalias.

Como descrito anteriormente, existem diversas visões sobre as culturas, cada uma da perspectiva de quem escreve. Como este trabalho aborda os dois grupos: ciências e humanas – o entendimento delas através da visão de Snow é suficiente.

3.       A visão da ciência

A visão que temos da ciência é uma mescla do que é visto no ambiente formal da escola e da universidade com o que chega a nós, informalmente, através de livros, revistas, televisão, internet e outros. Se por um lado, existe esse abismo no ambiente formal que separa as duas culturas, resultando em pessoas que ou pertencem a uma área ou pertencem a outra, por outro, o ambiente informal pode contribuir para a motivação e a aquisição de conhecimentos que sejam significativos para o indivíduo. Naturamente, um contato maior com a ciência, no que diz respeito a sua natureza, poderia aproximar as duas culturas.

 O problema, como ilustra Castelfranchi (2008), é que até a década de 1980 a maneira como a ciência era abordada nos meios de comunicação não atingia o público como deveria. A ciência era tratada como uma entidade autônoma em relação ao resto da sociedade. O público era tratado como homogêneo e passivo, portanto só devia ser permitida a chegada de modo transmitido, sem dar oportunidades às reflexões. O processo comunicativo era unidirecional, linear e de cima para baixo, baseado em uma operação de simplificação, sacrificando muita informação. Embora nas últimas décadas muito tenha sido discutido sobre isso, na prática, embora a presença da ciência tenha aumentado, pouco mudou em relação a como ela se apresenta ao leitor.

A Fundação para o Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep) em parceria com a Agência Nacional de Direitos da Infância (andi) realizaram uma pesquisa com matérias publicadas entre 2007 e 2008 em 62 jornais brasileiros. Aproximadamente 75% estavam relacionados à ciência, enquanto que quase 20% estavam relacionadas às ciências humanas e  às artes. Os resultados apontam fraca contextualização e muito pouca interdisciplinaridade. A maioria está entre o factual e o contextualizado simples. Os assuntos não se apresentam muito diversificados, estando entre a medicina e as ciências biológicas em grande maioria, dependendo do que estiver «na moda» no momento.

A ciência é rica em controvérsias, que são, naturalmente, despertadoras de interesses e discussões, mas, segundo a pesquisa, pouco disso é explorado. Em 2007 o assunto majoritário foi impactos ambientais, enquanto em 2008 foi pesquisas com células-tronco. Temas como energia nuclear, alimentos transgênicos e outros apareceram muito pouco. Portanto, é difícil que os indivíduos da área de humanas se interessem pela ciência, se além da escola ser de certo modo, traumatizante, os meios de comunicação não são capazes de fornecer uma outra visão da ciência, que permita o sujeito refletir e se sentir à vontade para discutir sobre diversas coisas que ocorrem no mundo da ciência.

4.       Metodologia

O instrumento de pesquisa é o Questionário de Opiniões sobre a Ciência, a Tecnologia e a Sociedade (COTS) (Vázquez et al., 2010; Vázquez et al., 2005, 2000; Manassero e Vázquez 2002). Esse formulário é uma adaptação elaborada a partir do vosts (Views on Science-Technology-Society), que são 114 questões de múltipla escolha que envolve a avaliação dos seguintes temas: definições de ciência e tecnologia, interações mútuas entre ciência, tecnologia e sociedade, sociologia externa da ciência, sociologia interna da ciência (características dos cientistas, construção social da tecnologia e conhecimento científico) e natureza do conhecimento científico (Aikenhead e Ryan, 1992).

Através de adaptações às questões originais e à exclusão de algumas delas e à inclusão de algumas novas, criou-se o cocts, contendo 100 questões. O grande avanço desse questionário está no fato de utilizar o modelo de resposta múltipla, ao invés do modelo de resposta única (Vázquez et al., 2005, 2000). A obtenção de várias respostas ao invés de apenas uma, enriquece a informação disponível para cada questão e pode proporcionar uma maior precisão na avaliação das atitudes.

As respostas para cada item da questão variam de 1 a 9, onde consideram-se ingênuas entre 1 e 3, plausíveis entre 4 e 6 e adequadas entre 7 e 9. Ingênuas expressam o desacordo com a afirmação, plausível se traduz em um pensamento certo em parte, e adequada é quando se concorda plenamente com o item. A tabela 1 ilustra a escala anteriormente descrita.

O parâmetro de comparação para avaliação da resposta é a categorização previamente realizada a partir de respostas de juízes peritos (professores formadores e professores de ciências, filósofos, pesquisadores em didática das ciências) (Vázquez Alonso et al., 2005).  Para complementar esse modelo de respostas múltiplas é utilizada uma métrica, que permite a criação de um índice atitudinal global, variando entre -1 e 1. Para todas as três categorias de respostas, adequadas, neutras e ingênuas, o ideal é que estejam o mais próximo possível de 1. Isso significa que tais respostas se aproximam dos acordos dos juízes peritos. Evidente que se elas tendem a -1 é uma indicação de que estão na contramão do que pensam os juízes.

Para os casos das adequadas e ingênuas, ter respostas em torno de zero apresenta a neutralidade por parte dos sujeitos da pesquisa. Contudo, para o caso das plausíveis, a métrica atua de outra forma. Como o ponto mais positivo está relacionado com as respostas em torno de zero, os pontos extremos negativos podem estar relacionados tanto com respostas adequadas como ingênuas. Para analisar para onde tende uma resposta negativa, torna-se necessário utilizar os dados brutos.

A pesquisa foi realizada no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (cefet/rj) com um público de 445 pessoas, entre elas estudantes do nível médio, do primeiro e último períodos da graduação e professores. Quanto ao gênero, estiveram presentes 58% de homens e 42% de mulheres. Na divisão por área, foram 76% para a ciência e 24% para humanas.

Foram utilizadas 30 das 100 questões, dividindo-as em 2 partes (forma 1 e 2). Este trabalho tem como propósito analisar a questão 50111 da forma 2, cujo tema é a influência da ciência escolar sobre a sociedade, explorando a existência de duas culturas: ciências e humanas. A tabela 2 apresenta essa questão e seus itens.

5.       Análise dos dados

Todos os gráficos foram elaborados utilizando-se a métrica proposta na metodologia. No eixo vertical se encontram os índices atitudinais, enquanto no eixo horizontal estão as questões do piearcts de A a E, com as indicações das respostas dos juízes – A para adequada, P para plausível e I para ingênua.

Em uma análise em primeira aproximação da figura 1, onde estão os dados das duas culturas, é possível perceber que as três questões plausíveis encontram-se com índices atitudinais negativos. A questão ingênua apresenta um valor um pouco aquém do esperado, visto que seu valor (0,1613) está mais próximo de zero do que do teto máximo, que seria o acordo com os juízes devido à ingenuidade da reposta. Já a letra E, adequada, apresenta o valor 0,5385, que é mais interessante.

A frase A ilustra uma ideia de que existem as duas culturas, mas que as pessoas de letras ao estudarem mais ciências podem aprender e gostar. É difícil afirmar que podemos gostar mais de algo só porque a estudamos e também afirmar que só existem dois tipos de pessoas, embora possa ser verídico que quanto mais estudarmos algo, mais chances de compreendê-la, mesmo que a motivação não seja puramente intrínseca. Por esses motivos, pode ser que a resposta não seja nem ingênua, nem adequada, mas sim um meio-termo plausível.

Todavia, não é possível visualizar se esse índice atitudinal (-0,0594) está mais próximo de respostas ingênuas ou de respostas adequadas. Para compreendermos esse item com maior clareza, é interessante analisarmos à luz das respostas brutas, variando de 1 a 9. Essas respostas indicam que há uma tendência à adoção de valores entre o plausível e o adequado, justificando a existência de um deslocamento no índice para uma resposta, no geral, adequada.

Isso é muito interessante, pois pode indicar que todos os indivíduos, tanto de exatas quanto de humanas, tendem a crer que podem existir as duas culturas, mas que se todos estudarem mais poderão gostar e aprender ciências. Parece ser um indicativo importante, pois se a hipótese se confirmasse, significaria que as próprias pessoas das humanidades acreditariam poder gostar e aprender ciências, mesmo se autoafirmando «alguém das humanas».

O item B é ingênuo e apresenta um índice atitudinal não muito alto. A ingenuidade da resposta provavelmente vem de sua afirmação de que pessoas de letras podem não ter capacidade ou talento para compreender, pois não adianta estudar mais, visto que nunca irão aprender ciências mesmo. Embora o índice não seja negativo, apresenta uma falta de confiança por parte das pessoas de humanas e uma descrença sobre a aprendizagem delas por parte das pessoas de exatas. Parece oposto ao quadro apresentado na frase anterior.

Já a frase C, continua a afirmar que pessoas de humanas podem não aprender ciências, porque podem nem estar interessadas. Ela tem alguma razão ao afirmar que a falta de interesse desmotiva alguém a aprender algo, mas ela apresenta uma ponta de ingenuidade ao afirmar que só existem dois tipos de pessoas e principalmente em expor que elas não podem aprender mais, mesmo estudando mais. Apresentou um índice negativo (-0,1092).

Novamente, é uma resposta que exige um olhar sobre os dados brutos. Mais uma vez eles apresentam uma tendência até mais acentuada que a anterior a uma resposta mais adequada. Aparentemente, as pessoas estudadas creem que a falta de interesse é determinante para a não aprendizagem das ciências.

A frase D também apresenta uma componente pessoal, abordando a inclinação da pessoa ao estudo das ciências e a orientação externa para que isso ocorra. Esse é um item plausível, pois existe alguma verdade no fato de que a falta de orientação contribui para o desinteresse no estudo das ciências. Em contrapartida, não se pode afirmar que existem apenas dois tipos de pessoas, predeterminadas a se inclinarem para a área ou não.

Esse item apresentou o índice mais negativo das aceitáveis (-0,1250). Os dados puros indicam uma tendência mais forte para respostas adequadas e também se trata de um item que aborda o interesse pessoal do indivíduo. Um sujeito de humanas pode identificar sua falta de conhecimento científico devido a sua ausência de orientação e a sua própria falta de interesse. É algo que pode ser confirmado na análise das culturas de forma separada.

Por último, está o item E que apresenta uma resposta mais próxima da que os juízes peritos consideram como adequada. Além dessa aproximação ela possui uma peculiaridade em relação às outras ao observarmos seus dados brutos. Cerca de 40% das pessoas marcaram 9, ou seja, o máximo de adequação à resposta. Aqui é reconhecido que existem tantos tipos de pessoas quanto se queira classificar, pois as áreas podem ser subdivididas. Inclusive aquelas que entendem tanto de ambas as áreas (ciências e humanas), com alguma semelhança ao que afirma Brockman (1995).

5.1     Categorização por culturas

Neste caso o foco da análise muda para uma categorização baseada em nosso objeto de estudo: as duas culturas. A figura 2 ilustra um gráfico semelhante ao anterior, com a adição dessa separação por culturas.

É possível observar que houve maior contribuição das respostas com índices negativos das frases A e D, por parte das pessoas ligadas à área de humanas. Parece contraditório, pois ao mesmo passo que tendem a adequar o item A (analisando os dados brutos), transparecendo uma confiança em aprender mais ciências caso estudem mais, também tendem a adequar o item D, afirmando que estudar mais ciências não mudará quem eles são, visto que não têm inclinação para isso. Para as pessoas de ciências, as respostas também são negativas, contudo tendendo a uma neutralidade um pouco maior. Já na frase C, os indivíduos de ciências e os de humanas possuem índices semelhantes, concordando que a ausência de interesse implica na não aprendizagem das ciências. Em todos os três casos admite-se que existam dois tipos de pessoas.

O item B apresenta ligeira diferença entre o pensamento das pessoas das duas áreas. Os indivíduos de humanas apresentam atitudes melhores do que os de ciências. Isso corrobora com a análise anterior que direciona para uma confiança em aprender ciências, pois o que necessita ser feito é estudar. Aparentemente eles acreditam em suas capacidades de aprender, pelo menos mais do que as pessoas de ciências. Quanto ao item E, notemos que há pouca diferença entre as duas áreas, visto que a maioria julgou o item como adequado. As duas áreas reconhecem que existem tantas culturas quanto preferências individuais possíveis.

Para analisarmos os pormenores, as categorias das culturas foram divididas em subcategorias relacionadas ao grau de escolaridade e dois gráficos foram construídos, um para ciências e outro para humanas, ilustrados nas figuras 3 e 4 respectivamente.

Na questão A é possível observar uma leve variação, indicando que os professores possuem índice mais negativo que os pré-universitários e universitários. Já o item B apresenta uma resposta menos pior em relação aos pré-universitários, em relação a uma questão ingênua, cuja distância é grande em relação à concepção dos professores. Há um descrédito sobre a capacidade das pessoas de humanas para aprender ciências por parte dos pré-universitários que contrapõe levemente a confiança do professor de ciências.

Os itens C e D apresentam uma crença maior por parte dos estudantes em fim de universidade que sem interesse e sem orientação, não se aprende ciências. Por último, a questão E apresenta um índice adequado para todos, mas com uma grande diferença entre pessoas no início da universidade e professores em relação às pessoas no fim da universidade. É curioso notar que do início para o fim da universidade os indivíduos, aparentemente, deixam de acreditar que existem mais do que só dois tipos de pessoas. É possível que isso esteja relacionado com a especialização ao longo da vida acadêmica.

Analisando a figura 4, com o grupo de humanas dividido por escolaridade, podemos perceber que no item A notam-se certas diferenças de crenças entre os diversos níveis de escolaridade, diferentemente da figura anterior. Há uma diferença que vai de um índice atitudinal positivo a um índice atitudinal negativo. É provável que os professores da área de humanas acreditem que quanto mais se estuda ciência mais se aprende, contudo ainda mantendo uma separação entre as duas áreas, pois ele, como professor, deve se enxergar dentro de uma cultura. No polo oposto está o pré-universitário da área de humanas. Este sujeito tende levemente a uma plausibilidade maior na resposta, talvez porque a ideia de especialização não esteja tão presente em sua cabeça. O item B oferece poucas diferenças se o compararmos com a figura 3, apresentando a mesma ideia de que os professores tendem a identificar levemente essa questão como ingênua.

O item C ilustra uma inversão de valores, mesmo que suave, no que concerne às crenças dos universitários em fim de curso e dos professores. Neste caso esses últimos acreditam mais do que os estudantes, que existem apenas duas culturas e que estudar mais ciências não aumentará o interesse do indivíduo. A frase D também proporciona uma pequena inversão de valores, mas neste caso entre os estudantes no início e no fim da universidade. Assim como no item anterior, os estudantes em fim de curso da área de humanas parecem marcar menos respostas adequadas quando comparados com os da área de exatas. Já os estudantes da área de humanas que iniciam a universidade confirmam a questão plausível como adequada, mostrando que para eles existem somente duas culturas e que estudar mais ciências não mudará o tipo de pessoa.

A frase E mostra novamente um crescimento do índice atitudinal dos estudantes em fim de curso na área de humanas e uma queda para os alunos no início da universidade, comparando-se com a área de exatas. Os estudantes no início da universidade de exatas tiveram índice 0,7 enquanto os da área da humanas apenas 0,2. Já os estudantes no fim de curso na área de exatas apresentaram índice entre 0,3 e 0,4, enquanto na área de humanas tiveram índice próximo de 0,6. Destaque também para os pré-universitários da área de humanas que apresentaram o maior índice (aproximadamente 0,7), superior ao mesmo grupo da outra área (aproximadamente 0,5).

É interessante notar dois pontos que se revelam através da analise dos dois gráficos anteriores. Primeiro que, de modo geral, os estudantes da área de humanas no final da universidade têm índices atitudinais superiores em relação aos mesmos estudantes das áreas de exatas. O segundo, é que há uma ligeira diferença geral entre os estudantes no início de universidade, traduzindo-se em um índice atitudinal maior para os indivíduos das áreas de exatas.

Considerando esse quadro, parece haver algum componente dentro de suas graduações que modificam a maneira de pensar dos alunos. Inicialmente temos alunos na área de ciências com crenças um pouco mais próximas dos juízes peritos, mas que ao final do curso tendem a modificar suas opiniões para índices menores. Já na área de humanas, os alunos iniciam o curso menos próximos das crenças dos juízes e ao final dele apresentam uma maior aproximação dessas crenças.

6.       Considerações finais

Em uma linha geral, é nítida a preferência pela afirmação de que há mais de duas culturas, representada pelo item E da questão 50111 do PIEARCTS. De fato, existem tantas culturas conforme se queira subdividi-las em interesses mais específicos. Em contrapartida, o item B, que é ingênuo, deveria ser fortemente marcado como tal, mas em todos os gráficos apresenta-se abaixo do esperado. Além de aceitarem uma afirmativa que assegura que pessoas sem capacidade não devem estudar ciências, pois não a aprenderão, também se contradizem ao não porem em questionamento um item que afirma existir apenas duas culturas.

A contradição continua com os itens plausíveis, representados pelas letras A, C e D. No comportamento geral, todos tendem mais à adequação do que à plausibilidade, sugerindo que o pensamento de que existem duas culturas é válido. Esses itens são curiosos, visto que eles sugerem uma proximidade de adequação a um item que afirma que quando se estuda ciência, pode-se entendê-la melhor, ao mesmo passo que tendem a adequar os outros dois que apresentam uma ideia de que estudar mais ciência não muda o interesse ou o tipo de pessoa.

As respostas separadas por escolaridade podem contribuir para uma melhor perspectiva futura em relação ao Ensino de Ciências e à união das culturas. Os professores da área de ciências não demonstram muita firmeza nos itens plausíveis, mas, em compensação, marcam mais positivamente os itens ingênuo e adequado. Isso pode significar que eles acreditam na capacidade de todos os alunos para estudar ciências, mesmo daqueles que se autodenominam de outra área.

Além de tudo, eles parecem reconhecer que existem muitos tipos de pessoas, inclusive as que entendem ambas as disciplinas. Talvez um ensino que fosse mais atraente, apoiado em uma maior contextualização poderia seduzir quem se denomina da área de humanas. Lembremos que a ciência possui componentes que vão além do conteúdo, como a história, a filosofia e a sociologia da ciência, talvez mais próximos dos interesses desse grupo.

Olhando através da óptica dos alunos de um curso de humanas que estão no início da universidade, notemos que todos os índices atitudinais são baixos, mostrando que não há confiança na aprendizagem da ciência, mas a confiança parece aumentar até o final do curso. A universidade pode ter um componente que alavanque esse interesse pela aprendizagem da ciência e é possível que alunos dessa área passem a conhecer um pouco da ciência através de outra óptica, como a da história. A convivência de alunos de diferentes cursos no Ensino Superior pode ser saudável, já que no ensino tradicional, pouco se aprende sobre outras coisas da ciência que não seja vinculado fortemente com o conteúdo científico.

Pensando no Ensino Médio, temos que a sala de aula é um ambiente heterogêneo, sendo possível subdividir em duas, três ou mais culturas. Como orienta Cachapuz et al. (2008), devemos aprofundar o diálogo entre as ciências que o cartesianismo separou, principalmente as ciências da natureza e as sociais e humanas, onde quase tudo está por fazer. O diálogo entre todas as ciências pode enriquecer a vida daqueles que desejam seguir o caminho da ciência, oferecendo novas perspectivas sobre a Natureza da Ciência e pode aproximar e fornecer uma cultura científica àqueles que seguirão o caminho da outra cultura, permitindo-os além de tudo dialogar com o outro grupo.

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