Número 63 Septiembre-Diciembre / Setembro-Dezembro 2013

Índice

Sentidos: um projeto de educação social no âmbito da deficiência mental

Sofia Veiga *
Eunice Ferreira, Sara Quintas**

* Profesora Adjunta de la Unidad Técnico-Científica de Psicologia de la Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Porto. Portugal.
* Educadoras Sociais, Portugal.

SINTESE: O presente artigo descreve a viagem de um profissional de educação social por um Centro de Atividades Ocupacionais. Começa por enquadrar o perfil deste profissional e o que distingue a sua intervenção no âmbito da deficiência mental. De seguida, narra o projeto Sentidos que, alicerçando-se numa análise sistémica da realidade e assentando em pressupostos como a promoção da participação, do empowerment, da qualidade de vida, da inclusão e dos direitos humanos, teve como finalidade promover uma intervenção psicossocial ajustada às necessidades do cidadão portador de deficiência mental, com vista ao seu desenvolvimento global e à melhoria da sua qualidade de vida. O projeto desenhado, desenvolvido e continuamente avaliado obteve resultados significativos, já que foram abertos espaços de aprendizagem, de participação, de reflexão e de diálogo, em que todos os envolvidos (profissionais, família e pessoas portadoras de deficiência mental), procuraram encontrar os Sentidos da sua vivência na realidade da Deficiência Mental.
Palavras-chave: educação social, deficiência mental, projecto de intervenção psicossocial.
Sentidos: Un proyecto de educación social en el ámbito de la discapacidad intelectual
síntesis: El presente artículo describe el viaje de un profesional de la educación social a través de un Centro de Terapia Ocupacional. El texto comienza por encuadrar el perfil del profesional, y lo distingue de su intervención en el campo de la discapacidad intelectual. Luego detalla el proyecto Sentidos, basado en el análisis sistémico de la realidad sobre presupuestos de promoción de la participación, del empowerment, la calidad de vida y la inclusión de los derechos humanos. El proyecto tiene como finalidad el fomento de una intervención psicosocial, ajustada a las necesidades de la persona con discapacidad intelectual, con vistas a su desarrollo global y a la mejoría de su calidad de vida. El proyecto diseñado, desarrollado y con una evaluación continua, ha obtenido resultados significativos. Se han abierto nuevos espacios de aprendizaje, de participación, de reflexión y de diálogo, en el que todos los implicados (profesionales, familia y personas con discapacidad intelectual) han procurado encontrar los Sentidos de su vivencia en la realidad de la Discapacidad Intelectual.
Palabras clave: educación social, discapacidad intelectual, proyecto de intervención psicosocial.
Senses: a social education project in mental disability
Abstract: This article describes the trajectory of a social education professional working at an Occupational Activity Centre. Firstly, it sets the framework for this professional’s profile and for the distinctive characteristics of his intervention in the context of mental disability. It goes on to describe the Sentidos (Senses) project, the aim of which is to promote psychosocial intervention which is adjusted to the needs of citizens with mental disability, so as to improve their global development and their quality of life. This project has been devised and developed on the basis of a systemic analysis of reality and on assumptions such as the promotion of participation, empowerment, quality of life, inclusion and human rights. Its continuous assessment shows significant results, inasmuch as it has opened up spaces for learning, participation, reflection and dialogue. In such spaces, all those involved (professionals, families and people with mental disabilities) have strived for the Sense(s) that underlie their experience of the challenges posed by mental disability.
Keywords: social education, mental disability, psychosocial intervention project.

1. Introdução

Com o intuito de o leitor encontrar um sentido para a viagem de um profissional de educação social por um Centro de Atividades Ocupacionais (cao), é imprescindível compreender, primeiro, o seu perfil profissional e o que distingue a sua intervenção, neste caso, no contexto da deficiência mental. Assim, se iniciará esta travessia.

2. Educação Social: uma profissão do âmbito psicossocial

A educação social agrupa-se na constelação de profissões que têm uma orientação educativa e que, por isso, acompanhar regular e compreensivamente as pessoas, em grupo ou não, consideradas na sua irredutível singularidade, com a sua história, com os seus dramas próprios, mas em referência à sua comunidade de pertença, ao meio em que se inserem. A educação social é, nesta ótica, um direito de todos os cidadãos, qualquer que seja a sua idade e estejam ou não em situação de vulnerabilidade e de exclusão social. A estes profissionais não se exige apenas que coloquem em prática uma pedagogia de urgência, já que atuam em âmbitos tão amplos, como a educação permanente, a formação laboral e ocupacional, a educação no e para o tempo livre, a animação sociocultural, o desenvolvimento comunitário, a educação especializada e a educação cívico-social. Nesta diversidade de âmbitos de intervenção, o educador social deve apresentar-se como um profissional polivalente, crítico, reflexivo, flexível e dinâmico e afirmar-se como um bom intérprete da realidade psicossocial que é, inevitavelmente, marcada pela globalidade, multidimensionalidade, mutabilidade e complexidade (Baptista e Carvalho, 2004). Atendendo a todas estas características, ele deve fazer uma análise da realidade o mais alargada e aprofundada possível com base numa « [...] metodologia ambiciosa que pretende conter todos os ingredientes da investigação e, mais ainda, os ingredientes da ação. O conhecimento é produzido em confronto direto com o real [...] » (Guerra, 2002, p. 75), sustentado numa sólida base teórica. Esta metodologia, que combina os ingredientes da investigação e da ação e norteia as práticas do educador social, designa-se, exatamente, investigação-acção, procurando ser, sempre que possível, participativa. É, ao mesmo tempo, uma investigação coletiva e educativa. Coletiva, porque o profissional une-se às pessoas, à comunidade para, em conjunto, obterem um conhecimento profundo da sua realidade a fim de agirem sobre ela, melhorando a sua qualidade de vida. Educativa, porque esta investigação traz novos conhecimentos, novas perceções e aprendizagens, contribuindo para o aumento da autonomia dos sujeitos (Guerra, 2002).

Torna-se evidente, portanto, que o profissional de educação social vai para o terreno com o intuito de conhecer a realidade psicossocial, procurando mobilizar as pessoas neste processo de modo a que estas sejam capazes de refletir e identificar os seus problemas. Só sabendo mais é que se pode transformar o conhecimento que já se possui. Só com um conhecimento sólido do que (não) se é, (não) se tem, (não) se quer ser e/ou ter é que a ação de cada pessoa se revela transformadora. A investigação na área psicossocial permite, portanto, chegar à realidade para compreendê-la, analisá-la, problematizá-la e transformá-la (Serrano, 2000).

É possível perceber, pelo exposto anteriormente, que educador social e sujeitos caminham lado a lado, sendo a participação destes sempre contemplada, num processo coconstruído, em que todos se envolvem e são co-responsáveis. Neste espaço construído de participação e de responsabilidade onde há um esforço por humanizar os projetos e as relações nele criadas, o educador social olha e reconhece as pessoas, de acordo com as suas características e percursos pessoais e coletivos, como sendo capazes de desenvolverem as qualidades que comportam em estado potencial (Ander-Egg, 1997; Baptista e Carvalho, 2004).

Com o olhar atento ao pluralismo, à diversidade, à representação e ao significado que cada um atribui à sua realidade, o educador social tem de procurar nas pessoas, segundo Lima (2003, p. 246), o potencial de recursos que façam delas «[...] um lugar-tempo de educação / desenvolvimento integral [...]»e que permitam «[...] processos de mudança propositada [...]». É este mesmo olhar que está presente quando falamos da deficiência mental. Embora, como referido anteriormente, o profissional de educação social trabalhe com pessoas de todas as idades e em todas as situações, ele deve estar especialmente atento às margens da sociedade, àquelas que se colocaram ou foram colocados à parte dela e que, por isso, são como desconhecidas e estrangeiras que ela não quer conhecer, nem se relacionar. A pertinência deste profissional, no contexto na deficiência mental, está em poder dar voz a esta invisibilidade, por um lado; e em potenciar o desenvolvimento dos atores sociais que vivem e agem nesta realidade. Como defende o modelo ecológico de Bronfenbrenner (2004, cit. in Wittmer e Petersen, 2006), o desenvolvimento e o funcionamento humano é fruto do ambiente, dos vários sistemas em que os indivíduos estão inseridos, que articulando-se e sendo interdependentes, os influenciam e são por eles influenciados. Olhar para os indivíduos sob esta perspetiva implica ter uma visão holística dos mesmos e da própria intervenção. Nesta linha, compreende-se a importância da abordagem sistémica na prática do educador social, já que atende ao «[...] tipo de sistema e subsistemas, relações intersistémicas, redes de comunicação, regras formais e informais, grau de coesão, implicação dos diferentes atores sociais e seu grau de satisfação, energias e potencialidades, conflitos habituais, zonas de tensão e modalidades de resolução, clima vivencial…Uma leitura sistémica poderá revelar os ditos e os não-ditos institucionais, caracterizar os limites, os recursos e a liberdade da instituição, bem como um levantamento dos pontos críticos, e indicar o(s) ponto(s) privilegiado(s) sobre o qual se pretende atuar [...].» (Santos, 1999, p. 94).  Estes elementos permitem-lhe, por um lado, compreender os sujeitos por referência aos diferentes contextos de vida a que pertencem, ou seja, dentro dos sistemas comunicacionais e relacionais em que se movem; por outro, potenciam os recursos, as sinergias, a criatividade, os saberes pessoais e profissionais dos diferentes atores, com vista a um trabalho em rede que leve à transformação. Trabalhar em conjunto, ou seja, em parceria ou em rede social, tendo por base o diálogo, a partilha de responsabilidades e compromissos, a negociação e a rentabilização das potencialidades dos sujeitos, conduz a uma perceção mais integrada das situações e dos problemas (Santos, 1999).

Uma vez que o projeto em apreço foi realizado num Centro de Atividades Ocupacionais (cao) destinado a pessoas portadoras de deficiência mental, é importante desde já clarificarmos este conceito. «A deficiência mental refere-se a limitações substanciais no funcionamento atual. É caracterizada por um funcionamento intelectual significativamente inferior ao da média, existindo concomitantemente com limitações em duas ou mais das seguintes áreas de comportamento adaptativo: comunicação, independência pessoal, vida em casa, comportamento social, utilização dos recursos da comunidade, tomada de decisões, cuidados de saúde e segurança, aprendizagens escolares (funcionais), ocupações de tempos livres, trabalho. A deficiência mental manifesta-se antes da idade dos dezoito anos.» (American Association on Mental Retardation, 1992, cit. in Vieira e Pereira, 1996, p. 41).  Neste quadro é fundamental investir no desenvolvimento das competências e das potencialidades destes sujeitos, sem esquecer suas limitações e fragilidades, tendo sempre por referência a reciprocidade que existe entre estes e o contexto sócio-familiar onde vivem e com o qual se relacionam já que dele fazem parte, influenciando-o e sendo por ele influenciado (Neto e Ramos, 2001). Tendo por base esta linha de pensamento, foi desenhado e desenvolvido um projeto de intervenção psicossocial.

2.1     O projeto «Sentidos»

No projeto, procuramos, sobretudo, «[...] suscitar circunstâncias, provocar encontros, fazer descobrir o interesse por perspetivas, por percursos, por bifurcações e por atalhos» (Capul e Lemay, 2003, p. 11). Porque qualquer projeto acontece numa realidade concreta, faremos, de seguida, uma breve caracterização do contexto institucional que deu  forma a este projeto.

2.2     O Centro de Atividades Ocupacionais

O projeto «Sentidos» nasceu no seio de um Centro de Atividades Ocupacionais (cao) de uma associação nacional de pais de cidadãos portadores de deficiência mental. Este centro integra duas valências: cao ocupacional e cao produtivo. Os objetivos principais destas valências são, conforme reiteram os pontos 1 e 2 do artigo 2.º da Portaria n.º 432/2006 e o Decreto- Lei n.º 11/89 (cit. in Neves, 2011), a valorização pessoal e o desenvolvimento das competências dos sujeitos, tendo sempre em vista a sua maior autonomia. Contudo, podemos distingui-las, na medida em que o cao produtivo promove a integração socioprofissional dos indivíduos, com a realização de atividades socialmente úteis, enquanto o ocupacional orienta-se no sentido de os manter ativos e interessados. O centro possui uma equipa técnica – constituída por um psicólogo que é também coordenador do centro, um assistente social, um terapeuta ocupacional, um técnico superior de educação especial e reabilitação psicomotora e um professor de educação física – e uma equipa educativa – formada por um monitor e um grupo de funcionários/auxiliares. A intervenção deste cao é desenvolvida junto de um grupo de dezasseis pessoas portadoras de deficiência mental, com idades compreendidas entre os dezoito e os cinquenta e três anos, sendo que sete têm deficiência profunda ou severa e estão na sala ocupacional e os restantes, portadores de deficiência ligeira ou moderada, estão na sala produtiva. Cada indivíduo com deficiência possui um programa de intervenção construído por todas as pessoas que compõem a sua vida. Sendo assim, a equipa técnica do centro apela a que as famílias, responsáveis pelas residências, e os profissionais reflitam acerca das limitações, necessidades e potencialidades dos sujeitos de acordo com o que observam diariamente no contacto que estabelecem com estes. De seguida, a equipa técnica organiza a informação recolhida e elabora programas anuais, atendendo às especificidades de cada um, para que sejam operacionalizados na intervenção desenvolvida pelos profissionais e, desejavelmente, nas famílias e residências. Estes programas tocam diversas áreas do comportamento adaptativo, nomeadamente, a comunicação, a independência pessoal, a socialização, os cuidados de saúde e segurança e as aprendizagens escolares funcionais (Vieira e Pereira, 1996). As áreas comuns a todos os sujeitos do centro são a comunicação, a socialização e a independência pessoal. Após este breve enquadramento da realidade institucional, segue-se a explicitação do projeto desenvolvido.

2.3     O desenho e o desenvolvimento do projeto...

A conceção de projetos em educação social assenta numa atitude investigativa, num desejo de conhecer para transformar. Mendonça (2002, p. 21) afirma que «[...] a atitude investigativa é a base para o ser humano se colocar em projeto e que aqui se encontra o recurso fundamental à mudança e à inovação educativa». Apropriando-se desta atitude,  profissionais e pessoas estão capazes de analisar a realidade, descortinando os seus problemas, necessidades e prioridades de mudança. Sendo, como referimos anteriormente, a realidade complexa, diversa e mutável, é importante descrevê-la e percebê-la em diferentes aspetos: o que há e o que está em falta; o que pensam e sentem as pessoas sobre a sua realidade e como a interpretam; que alternativas já foram equacionadas e implementadas face aos problemas detetados; que ajustes são necessários para que se possa aproximar o que se tem/é daquilo que se deseja ter/ser (Cembranos, Montesinos e Bustelo, 2001). Tendo por base estas preocupações, procurou-se estabelecer uma relação pautada pela confiança e proximidade com os vários atores sociais, tendo sido feito um esforço por valorizar, conhecer e compreender as perceções e representações de cada um acerca da realidade do cao em apreço. Esta postura possibilitou uma reflexão partilhada dos problemas e das necessidades encontrados, e uma ação comprometida em prol da mudança almejada. Os três problemas priorizados e alvo de intervenção do projeto «Sentidos» são descritos, a seguir, e as suas necessidades explicitadas:

1.º     Atividades desadequadas em quantidade e qualidade face às reais necessidades dos sujeitos com deficiência mental. Ou seja, as atividades realizadas no cao (ou a falta delas) não operacionalizam os programas de intervenção individual, não possuem objetivos bem definidos orientados para o desenvolvimento dos indivíduos, e não são planificadas tendo em conta as necessidades, interesses e capacidades dos indivíduos. Decorrente deste problema, foram identificadas as seguintes necessidades: compreensão das reais necessidades, interesses e capacidades dos sujeitos com deficiência mental; planificação e concretização de atividades de acordo com cada indivíduo e o grupo na sua globalidade; gestão adequada do tempo e dos recursos humanos e materiais.

2.º     Desmotivação dos funcionários e o seu consequente desinvestimento na intervenção realizada. A desmotivação dos auxiliares do cao, provocada pelo cansaço e desgaste profissional de trabalhar continuamente e há muito tempo com esta população, é de tal forma acentuada que afeta a sua prática profissional e, de modo indireto, prejudica o próprio desenvolvimento e bem-estar das pessoas com deficiência mental. A síndrome de burnout, vivenciada pelos funcionários, parece estar, como refere Böck (2004, p. 13), relacionada com os serviços humanos e a perda, por parte do profissional, do «[...] sentido da sua relação com o trabalho». Além disso, como revela a literatura e foi observado na realidade, esta síndrome parece decorrer do grande envolvimento emocional dos profissionais e demonstra-se pelo sentimento de desmotivação, impotência e falha, sendo o culminar de uma situação de stress excessivo, consequência das condições de trabalho oferecidas (Böck, 2004). A vivência desta síndrome implica o esgotamento emocional que se expressa na diminuição ou perda dos recursos emocionais da pessoa; a despersonalização ou desumanização que se verifica no aparecimento de atitudes negativas e na falta de sensibilidade para interagir com os sujeitos; e, por último, a reduzida realização pessoal que se manifesta no facto de os profissionais percecionarem e avaliarem o seu trabalho negativamente e apresentarem uma baixa autoestima (Aceves, López, Jiménez, Serratos, e Campos, 2006). No que concerne a este problema, foram detetadas várias necessidades a serem colmatadas: reconhecimento, por parte dos funcionários, das próprias competências individuais e profissionais já que, para desenvolverem o seu trabalho, têm de conhecer e valorizar aquilo de que são capazes; reconhecimento por parte dos funcionários das potencialidades dos sujeitos com deficiência e do próprio grupo, desconstruindo estereótipos e preconceitos inibidores de uma prática educativa ativa e intencional; apoio e acompanhamento mais próximo da equipa técnica e de outros interlocutores; tomada de consciência, por parte dos funcionários, sobre a importância de assumirem uma postura mais autónoma, criativa e responsável e agirem em conformidade.

3.º     Falha na articulação entre famílias cao. Partindo do pressuposto de que, na realidade, da deficiência mental, a família assume um papel fulcral – na medida em que constitui o sistema nuclear das primeiras experiências do indivíduo com deficiência e a rede de relações, na qual este tem a oportunidade de crescer e de aprender a interagir com o mundo circundante – complementar à função educativa do cao, o diálogo e a cooperação entre este e a família revelam-se fundamentais. Todavia, são poucos os movimentos neste sentido. Note-se que a intervenção com e junto das pessoas com deficiência mental passa por estar próximo das mesmas e incluí-las na avaliação dos problemas, na busca de soluções e em todas as decisões que lhes dizem respeito. O envolvimento dos pais e da família em casos de deficiência mental permitem-lhes compreender melhor as necessidades do filho/familiar e os objetivos educacionais que os profissionais têm, aumentando a sua satisfação e motivação para desenvolver um trabalho de cooperação. Neste processo adquirem uma maior consciência do seu papel com a consequente aquisição de capacidades que lhes permitem ensinar uma série de competências funcionais em casa ou noutros ambientes (Vieira e Pereira, 1996). Este problema tem subjacentes as seguintes necessidades: comprometimento e responsabilização das famílias pelo acompanhamento contínuo do percurso dos sujeitos no cao; comprometimento e responsabilização do cao em assegurar a participação das famílias na intervenção; e colaboração entre as famílias e os profissionais que trabalham no cao.

Analisada a realidade, passamos a um outro momento do projeto: a planificação. Saliente-se que o projeto não é um plano, mas inclui um que prepare e operacionalize a ação transformadora (Cembranos et al., 2001).  «Sentidos» foi o nome escolhido para este projeto de educação de social. E porquê? Veja-se que as famílias e os funcionários do centro estavam unidos pelas pessoas com deficiência mental, contudo estes viviam e agiam quase sem se tocarem, ou seja, encerrados em si próprios e fechados à partilha. Por um lado, as famílias pouco conheciam do que acontecia no cao e, por outro, os funcionários desconheciam o contexto de vida que rodeava os indivíduos. Posto isto, considerámos importante que eles se tocassem e se relacionassem e juntos descobrissem sentidos para o seu envolvimento nesta realidade e para a construção de uma relação que produzisse um maior conhecimento, cooperação e adequação das atividades e práticas desenvolvidas tendo em vista o bem-estar da pessoa com deficiência.

O projeto orientou-se para uma finalidade – promover uma intervenção psicossocial ajustada às necessidades do cidadão deficiente mental, com vista ao seu desenvolvimento global e à melhoria da sua qualidade de vida – e comprometeu-se com um conjunto de objetivos gerais (og) e específicos (oe). og1: promover o ajustamento das práticas profissionais à realidade do cao; oe: identificar em si e nos outros competências profissionais; reconhecer-se como sujeito ativo, com poder e iniciativa; conhecer as capacidades e limitações de cada sujeito com deficiência; expressar a sua opinião; ouvir e respeitar a opinião do outro; negociar e tomar decisões; planificar em conjunto atividades adequadas ao desenvolvimento de cada sujeito e ao grupo na sua globalidade; mobilizar-se para a ação.  og2: fomentar uma relação de cooperação e entreajuda entre os profissionais e as famílias; oe: dialogar uns com os outros; planificar em conjunto atividades adequadas ao desenvolvimento de cada sujeito e ao grupo na sua globalidade; abrir-se às iniciativas uns dos outros; participar nas atividades.

As ações que foram implementadas estavam em consonância com o nome do projeto e os problemas identificados. A primeira – «um sentido para trabalhar » – destinada aos funcionários, visava a busca de um sentido para estes recuperarem a sua motivação face à intervenção que realizam; a segunda – «um sentido para aprender » – procurava a adequação das atividades de modo a que estas tivessem sentido e fossem significativas para os sujeitos portadores de deficiência e para o seu desenvolvimento global; a terceira – «um sentido para participar » – envolveu as famílias, focando-se na importância de estas encontrarem um sentido para a sua participação nas dinâmicas, atividades e intervenção do cao. As ações desenhadas articulavam-se e completavam-se entre si. Pensadas as ações, foram equacionadas as estratégias e, por fim, as atividades a realizar. As estratégias privilegiadas foram os exercícios de dinâmica de grupos e os grupos de encontro. Esta opção prendeu-se com o facto de os grupos se assumirem « [...] como espaços de pertença, lugares de encontro, de troca, de aprendizagem, de cooperação, de confronto, de contenção, de significações e de transformação » (Veiga, 2009, p. 63).

Relacionada com a ação «um sentido para trabalhar » , destacamos as sessões de dinâmica de grupo com os funcionários que facilitaram a aprendizagem e o desenvolvimento de novas competências e papéis. Para além disto, conscientes de que os funcionários apresentavam dificuldades em planear uma intervenção intencionalizada, foram organizadas as semanas por temas com vista a que todas as atividades tivessem uma linha orientadora, correspondessem aos objetivos dos programas individuais e imprimissem uma nova dinâmica às salas e à rotina dos indivíduos portadores de deficiência mental. Temas como a autonomia, os jogos tradicionais, a natureza e o exercício físico foram explorados com o intuito de se fomentar a independência pessoal, a comunicação e a socialização, áreas comuns dos programas individuais de intervenção. Quanto à ação «um sentido para participar » , ressalvam-se os encontros realizados com os pais que funcionaram como um espaço de partilha e de criatividade, onde foram pensadas e desenvolvidas várias atividades que vieram enriquecer tanto os programas de intervenção individuais e a rotina das pessoas do cao, como as próprias relações entre os familiares. Ligada à ação «um sentido para aprender » , enfatizamos a co-construção de um livro, pelas pessoas portadoras de deficiência e pelos funcionários, no qual foram descritas – com palavras, imagens, desenhos... – as atividades significativas que iam sendo realizadas para que, mais tarde, estas pudessem ser recuperadas, recordadas e reproduzidas.

3. A avaliação

A avaliação, transversal a todo projeto de educação social, não deve resumir-se a um mero balanço das ações desenvolvidas. Trata-se, sobretudo, de um modo de investigação social contínuo, planificado e dirigido, cujo intuito é recolher e analisar, cuidadosamente, um conjunto de dados e de informações – suficientes, relevantes, válidas e fiáveis – que potencie a compreensão dos fenómenos, auxilie a tomada de decisões racionais, determine o valor e o mérito do que foi feito, tendo em conta a finalidade e os objetivos previamente definidos (Monteiro, 1996; Pérez, 199). Na educação social, o modelo de avaliação de maior destaque é o modelo cipp, de Stufflebeam e Shinkfield (1995), concebido para promover o desenvolvimento e ajudar as instituições a obterem informações contínuas e sistemáticas, a fim de satisfazer as necessidades mais prementes e urgentes, tendo em conta os recursos existentes. É um modelo faseado em quatro etapas: avaliação do contexto, avaliação de entrada, avaliação do processo e avaliação do produto. Apesar de a avaliação ter atravessado todo o projeto, para que fosse possível fazer os reajustamentos necessários a uma realidade em constante transformação, no presente artigo, focar-nos-emos somente na avaliação de produto ou de resultados. Tendo em conta a finalidade e os objetivos traçados, procurou-se ouvir e cruzar a opinião de todos os atores sociais envolvidos, com vista à análise e à compreensão dos (in)sucessos alcançados (Stufflebeam e Shinkfiel, 1995). Em relação aos funcionários, é de realçar o seu empenho em desenvolverem um diálogo mais continuado e cooperativo, assim como em planificarem atividades criativas e adequadas às necessidades dos sujeitos portadores de deficiência mental. Ao longo do projeto foi sendo visível a tomada de consciência das limitações e das potencialidades dos sujeitos, assim como da importância do seu trabalho na vida destes. Apesar desta valorização, reconheciam que o cansaço extremo, a revolta sentida por algumas mudanças impostas e o facto de estarem focados nos seus próprios problemas e necessidades não lhes permitia investirem, como desejariam, na sua prática profissional e estimularem ainda mais os indivíduos portadores de deficiência através de atividades diferentes das habituais e ajustadas aos recursos e ao tempo que têm disponível. Não obstante estas dificuldades, o caminho em direção a «um sentido para trabalhar » começou a ser traçado e foram dados pequenos passos que lhes permitiram perceber a importância de assumirem uma postura mais autónoma, ativa, criativa e responsável. Contudo, um caminho largo ainda terá de ser percorrido até se observarem mudanças efetivas na sua motivação e no seu agir profissional.

A conquista do projeto mais valorizada por todos os atores desta realidade, foi, sem dúvida, o maior envolvimento dos familiares na intervenção do centro. Desde o início, existia a consciência de que a articulação cao-Família era lacunar e que era necessário alterar esta situaçao. Uma vez que ambas as partes implicadas tinham vontade de se envolver neste processo de mudança, verificou-se, desde o início, uma abertura dos intervenientes às iniciativas uns dos outros. Por um lado, o cao desafiou mais os familiares a estarem presentes no centro e a participarem nas atividades planeadas; por outro, os familiares, porque perceberam o interesse do cao, encararam positivamente os desafios que lhes foram colocados e, numa atitude mais dinâmica e ativa,  (re)descobriram potencialidades e novas capacidades relacionais e educacionais, como pretendia a ação do projeto – «um sentido para participarem » . Esta relação mais próxima entre cao-Família beneficiou os profissionais e os familiares, mas, sobretudo, os sujeitos portadores de deficiência mental. Todas as atividades planeadas e realizadas pelos funcionários e pelos familiares tiveram em conta as necessidades, os gostos, as limitações e as potencialidades dos indivíduos com deficiência e o resultado deste processo foi, na verdade, o maior interesse demonstrado por estes, em particular os da sala ocupacional, e o aumento da sua participação e envolvimento nas dinâmicas e atividades do centro, sobretudo quando estas eram novas e diferentes do que alguma vez tinham feito. Recordando atividades passadas ou momentos que lhes tinham agradado: mostravam-se curiosos na planificação agendada e expressavam ativamente o desejo de terem, sempre que possível, os seus familiares presentes no centro.

4. Conclusão

«O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se verá no verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles.»(Saramago, 1995/1981, p. 387).

Ainda marcadas pela viagem que vivemos, pretendemos, através deste artigo, explicitar uma união possível entre a Educação Social e a Deficiência Mental. Como fomos narrando, nos anais desta viagem, na realidade do cao descrito brotou o projeto «Sentidos», projeto coconstruído e desenvolvido por todos os agentes da instituição, a partir dos problemas e das necessidades que identificaram e sentiram como urgentes e prementes de verem colmatadas. O projeto delineado e continuamente avaliado obteve resultados significativos devido ao envolvimento de todos, ao seu esforço e constante desejo de melhorar e adequar a intervenção psicossocial às necessidades do cidadão deficiente mental, com vista ao seu desenvolvimento global e à melhoria da sua qualidade de vida.

No fim desta viagem, podemos afirmar que foram abertos espaços de aprendizagem, de participação, de reflexão e de diálogo. Observou-se um esforço por valorizar, motivar, ouvir e desafiar todos aqueles que se envolveram no desenho e no desenvolvimento de um projeto, que sendo coletivo, não deixou de sê-lo também individual, já que todos e cada um, deles procuraram encontrar os Sentidos da sua vivência na realidade da Deficiência Mental. E porque, como refere Saramago (1981/1995, p. 387) «É preciso recomeçar a viagem. Sempre», esperamos que os viajantes que continuem a viagem, assim como todos aqueles que a ela se irão juntar, se esforcem por dar continuidade às vitórias já conquistadas, almejando novas conquistas em prol dos direitos dos cidadãos portadores de deficiência mental.

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