Número 66 Septiembre-Diciembre / Setembro-Dezembro 2014

Olho e vejo: a interdisciplinaridade superando desafios da patologização

Denize Aparecida Teixeira*
Khaled Omar Mohamad El Tassa**

* Psicóloga da Prefeitura Municipal de Mallet - Paraná e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Comunitário da Universidade Estadual do Centro- Oeste – UNICENTRO, Brasil.
*Professor do Curso de Educação Física e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Comunitário da Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO,
Brasil

SÍNTESE: A crítica à reprodução de crianças patologizadas vem ganhando força através de um crescente movimento, o qual busca evitar que questões psicossociais sejam reduzidas a um processo biológico. Sabe-se que grande parte dos encaminhamentos para avaliação psicológica tem origem no ambiente escolar, onde os professores encontram-se angustiados a procura de respostas para as dificuldades apresentadas por seus alunos, seja de ordem comportamental, seja de aprendizado. Esta pesquisa descritiva e bibliográfica tem como objetivo refletir sobre o número elevado de encaminhamentos para avaliação psicológica ao Serviço de Saúde Mental da Atenção Básica, de um município de pequeno porte, tendo a interdisciplinaridade como referência de intervenção profissional. A partir do estudo realizado se conclui que existem muitos casos em que psicopatologia e questões de ordem psicossocial encontram-se em uma linha tênue, exigindo avaliação cuidadosa, contudo muitos encaminhamentos apresentam inconsistência. Muitas vezes, quando o olhar não é ampliado para o contexto em que a criança está inserida, os resultados são generalizações e pseudo-diagnósticos, reproduzindo o processo da medicalização. Evidencia-se que o trabalho interdisciplinar produz uma rede de atendimento que prioriza o cuidado e a comunicação entre os serviços, mostra-se como recurso importante para uma prática responsável de cuidado integral.
Palavras-chave: Psicopatologização; Interdisciplinaridade; Infância; Saúde Mental; Medicalização.
Miro y veo: la interdisciplinaridad superando retos de la patologización
SÍNTESIS: La crítica a la reproducción de niños patologizados se impone a través de un creciente movimiento, lo cual intenta evitar que cuestiones psicosociales sean reducidas a un proceso biológico. Nos consta que gran parte de las derivaciones a evaluación psicológica tiene origen en el ambiente escolar, donde los profesores se encuentran angustiados en busca de respuestas para las dificultades que presentan sus alumnos, sea por el comportamiento, sea por el aprendizaje. Esta investigación descriptiva y bibliográfica tiene como objeto reflexionar sobre el número elevado de derivaciones hacia evaluación psicológica al Servicio de Salud Mental de Atención Básica de un municipio pequeño, al considerar la interdisciplinaridad como referencia de intervención profesional. A partir del estudio realizado se concluye que existen muchos casos en que la psicopatología y cuestiones de orden psicosocial se encuentran en una línea tenue, que exige evaluación cuidada, pero muchas derivaciones presentan inconsistencia. Muchas veces, cuando la mirada no es ampliada hacia el entorno en que el niño está inserido, los resultados son generalizaciones y seudodiagnósticos, que reproducen el proceso de medicalización. Se hace evidente que el trabajo interdisciplinar produce una red de atención que prioriza el cuidado y la comunicación entre los servicios, se presenta como recurso importante para una práctica responsable de cuidado integral.
Palabras clave: Psicopatologización; Interdisciplinaridad; Infancia; Salud Mental; Medicalización.
Eye and see: the interdisciplinarity overcoming challenges of pathologizing
ABSTRACT: The criticism of the reproduction of children pathologized is gaining strength through a growing movement, which tries to avoid that psychosocial issues are reduced to a biological process. It is known that the majority of referrals for psychological assessment originates in school, where teachers find themselves anguished at the search for answers to the difficulties presented by their students, be learning or behavioral order. This descriptive and bibliographical research have as objective to reflect about the high number of referrals for psychological assessment of the Department of Mental Health of Basic Attention of a small city, having the interdisciplinarity as a reference of a professional intervention. It is concluded from the study that there are many cases that psychopathology and psychosocial order issues are in a fine line, requiring careful evaluation, however many referrals have inconsistency. Many times, when the look is not extended to the context where the child is inserted, the results are generalizations and pseudo-diagnostics, reproducing the process of medicalization. It is evident that interdisciplinary work produces a network of attendance that prioritizes the care and communication between the services, it is shown how important resource for responsible practice of a integral care.
Keywords: Psycho-pathologization. Interdisciplinarity. Childhood. Mental Health. Medicalization.

1. Considerações iniciais

A Organização Mundial de Saúde definiu a saúde como «[...] um estado de completo bem estar físico, mental e social, que não consiste apenas na ausência de doença ou enfermidade» (oms, 2001). Esta abordagem alarga o conceito biológico da saúde, pois inclui as componentes psicológicas e sociais do ser humano. Nesse sentido, saúde pode ser considerada como a condição em que se encontra o organismo quando reage satisfatoriamente às exigências do meio. E saúde mental, compreendida como um conceito amplo do bem-estar psíquico, tal como se inclui na definição de saúde da oms.

Torna-se importante, então, atentar para os impactos negativos dos transtornos mentais no desenvolvimento e no processo de aprendizagem dos escolares, para a organização de ambientes de aprendizagem apropriados para o desenvolvimento saudável, bem como, considerar a escola como espaço complexo que deveria privilegiar a diversidade, formado por atores de diferentes faixas etárias e traços singulares da personalidade. A busca de um modelo educativo centrado na aprendizagem dos alunos parece tornar-se o maior objetivo quando se pensa no papel da educação na sociedade e na responsabilidade daqueles que estão envolvidos no processo de transformação coerente e sustentado.

No entanto, observa-se crescente número de encaminhamentos de escolares para avaliação psicológica, que em sua grande maioria, mostram-se equivocados e sem consistência, quando se propõe compreender a conjuntura cultural na qual a criança esta inserida (Souza, 2000). Tal quadro é constatado, muitas vezes, pelo profissional psicólogo no primeiro encontro com a criança. Neste processo «olho e vejo a criança», é possível constatar que enxergar pode não ser tão simples quando pré-conceitos e conceitos são supervalorizados, e se prioriza no processo critérios diagnósticos ao invés da destinação da devida atenção no «olhar e enxergar a criança». Existem casos em que a psicopatologia e as manifestações psíquicas de conflitos de ordem pessoal, ambiental ou familiar encontram-se separadas por uma linha tênue, sendo recomendado que o trabalho de investigação e acompanhamento do escolar seja muito sutil, com prioridade para a compreensão do contexto em que a criança investigada esta inserida (Pereira, 2009).

Existe na atualidade uma tendência à medicalização da vida, sendo que diagnósticos são formulados sem que o profissional amplie o olhar para o contexto histórico da criança. Neste processo, existe um movimento contra a medicalização com o objetivo de conscientizar a sociedade e os profissionais da necessidade de uma maior sensibilidade na percepção de quem se apresenta logo a sua frente e necessita de cuidados: a criança, que carrega consigo uma historia, e quando é ignorada acaba sendo vítima, e com grande possibilidade de entrar para o mercado das farmacodependências ao sair do consultório, carregando consigo um código de doença (Caliman, 2010; Patto, 1999; Collares; Moysés, 1996).

Acredita-se que práticas de cuidado quando articuladas de modo a manter a comunicação e corresponsabilização entre profissionais, possibilita maior conhecimento da realidade da vida cotidiana da criança que foi encaminhada. Tais ações também evitam a desresponsabilização por parte de quem encaminhou, sendo que estes, na maioria das vezes, abrem mão do acompanhamento após terem transferido a responsabilidade. O termo cuidado usado no texto refere-se à atenção, precaução e responsabilidade quanto às crianças atendidas nos diversos serviços públicos.

Diante do exposto, tem-se como objetivo neste estudo, refletir através de uma visão interdisciplinar sobre o número elevado de encaminhamentos de crianças para avaliação psicológica e identificação diagnóstica, feitos por instituições escolares, associações e divisões públicas ao Serviço de Saúde Mental de Atenção Básica das secretarias de saúde de municípios de pequeno porte.

2. Sobre o método

O estudo descritivo e bibliográfico compreendeu procedimentos de revisão de literatura, procurando interpretar o processo e construir compreensões teóricas mais elaboradas relacionadas às temáticas medicação/medicalização e patologia/patologização. O trabalho desenvolveu-se através de estudo e incorporação de conhecimentos acerca da organização do Serviço de Saúde Mental na Atenção Básica, a fim de apresentar a proposta da Política Nacional da Atenção Básica quanto ao trabalho em rede. Nas reflexões do estudo buscou-se referencial em Edgar Morin, que enfatiza em seus escritos a riqueza da troca de saberes (2004) e os saberes necessários à educação do futuro (2002).

3. O cuidado em Rede de Atenção Psicossocial

A Política Nacional de Saúde Mental busca consolidar um modelo de atenção aberto e de base comunitária. A proposta é garantir a livre circulação das pessoas com problemas mentais pelos serviços, pela comunidade e pela cidade. A Rede de Atenção Psicossocial estabelece os pontos de atenção para o atendimento de pessoas com problemas mentais, incluindo os efeitos nocivos do uso de crack, álcool e outras drogas. A Rede integra o Sistema Único de Saúde (sus). A Rede é composta por serviços e equipamentos variados, tais como: os Centros de Atenção Psicossocial; os Serviços Residenciais Terapêuticos; os Centros de Convivência e Cultura, as Unidades de Acolhimento e os leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais, nos Centros de Atenção Psicossocial).

A expansão das Redes de Atenção Psicossocial no Brasil tem como objetivo ampliar o cuidado em saúde mental, articulado por diversos serviços e equipamentos do serviço público existentes no território. Desta forma, o olhar de cuidado ao usuário inserido na rede não se restringiria ao local de atendimento inicial, possibilitando caso o usuário necessite, receber a mesma atenção pelos segmentos de outras localidades vinculadas às Redes de Atenção Psicossocial. Além da garantia do acesso do usuário aos serviços, a Rede de Atenção Psicossocial possibilita a articulação e a troca de saberes entre os profissionais que exercem o cuidado em diferentes instituições.

Lancetti enfatiza que «As ações acontecidas em território são ricas em possibilidades e, quando operadas em redes quentes mostram maior potencialidade terapêutica e de produção de direitos» (2010, p. 18). Neste sentido, parece haver otimização dos serviços prestados à comunidade com a articulação entre serviços e políticas públicas, bem como, práticas de pontos de cuidado existentes na comunidade que permitam um «operar com», ou seja, um olhar contextualizado e articulado entre os diversos espaços de cuidado existente no território. Um dos princípios norteadores do cuidado em saúde mental é a territorialização, conforme o exposto pelo Ministério da Saúde,

Ao falarmos em território, devemos pensar no lugar em que moramos e de como ele influência na qualidade de vida que temos. Nessa perspectiva, o território pertence à sociedade de um determinado local, onde se articulam e se estabelecem as relações sociais. O território deve se constituir, em um lugar de promoção de saúde, promoção de solidariedade, onde vários sujeitos sociais atuam de modo coletivo na busca de melhoria das condições de vida e saúde da população (Brasil, 2013).

Atentar para a territorialidade no processo de cuidado através de um olhar voltado para os sinais e significados presentes na vida da criança possibilita a interpretação de sua subjetividade e compreensão de sua realidade. Nesse contexto, Beger e Luckmann (1988) afirmam que a territorialidade se origina nesta realidade, experenciada através das relações originadas na comunidade. A compreensão desta realidade social e das relações estabelecidas com esta torna possível a produção de um conhecimento singular e a construção de um projeto terapêutico voltado para o cuidado integral. Contudo, este território mostra-se pouco explorado no campo profissional de intervenção, pois é percebido que, se os profissionais estivessem mais atentos à exploração deste contexto, haveria uma significativa redução de tais suposições diagnósticas. O território é também um espaço de vida, onde a criança pode ser inserida, beneficiando-se de atividades oferecidas pela rede, como lazer, educação e cultura, que em si mesmo também apresentam caráter terapêutico e de promoção à saúde.

Seguindo a lógica do cuidado em saúde mental, ao pensar nas crianças que são frequentemente encaminhadas a este serviço na atenção básica, com diversas suposições diagnósticas, mostra-se necessário antes de supor um diagnóstico baseado na lógica saúde-doença, ampliar o olhar para o contexto em que esta criança está inserida, sua família, sua cultura, conhecendo sua realidade. No entanto, esta busca pela compreensão não deve ser solitária, mas também realizada pelos diversos profissionais que realizam o cuidado nas mais diversas áreas, porém, estes segmentos e serviços multiprofissionais mostram-se desarticulados, o que gera fragmentação de informações, que, se articuladas, poderiam possibilitar de modo coerente, sequenciado e fundamentado a compreensão dos casos em processo de investigação.

Ao buscar entender a fragmentação do saber e o isolamento dos pontos de ações de cuidado em saúde mental, torna-se necessário uma melhor compreensão da formação profissional, ou seja, refletir sobre como aprendemos a cuidar. Como se dá a prática profissional do cuidado? Será um cuidar em rede ou um cuidar fechado em nossas teorias e suposições sem abertura para a troca? Na prática cotidiana a Rede de Atenção Psicossocial está em processo de constituição, no entanto, tem-se constatado a realização de um trabalho compartimentalizado dos segmentos que fazem parte do programa. Morin (2004) nos faz refletir sobre nossos aprendizados e nos provoca a repensarmos nossa organização de conhecimento.

4. Olho e não vejo nada

Com o objetivo de ampliar o olhar sobre a criança de modo a compreender sua totalidade, busca-se na interdisciplinaridade o referencial teórico capaz de possibilitar reflexão sobre práticas que contribuam para a mudança de concepções biologistas onde as crianças entram na fila da reprodução de patologias.

Edgar Morin (2004) aponta reflexões sobre conhecimentos fragmentados que desencadeiam práticas isoladas sem interação entre saberes. Desta forma, a realidade também se mostra limitada a um olhar míope como fruto da hiperespecialização, sendo esta, «[...] a especialização que se fecha em si mesma sem permitir sua integração em uma problemática global ou em uma concepção de conjunto do objeto do qual ela considera apenas um aspecto ou uma parte» (2004, p.13). A criança neste cenário da patologização, quando designada a um olhar especializado, mas não contextualizado, deixa ser vista em sua globalidade e com isto ignorada em sua complexidade. Morin (2004) evidencia que existe complexidade, de fato, quando os componentes que constituem um todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e interretroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes. A complexidade mostra-se rica em um todo que opera em conjunto e quando observados nos permitem uma visão privilegiada deste todo.

Morin (2004) apresenta os desafios da atualidade e a necessidade de compreendermos a complexidade da contemporaneidade através do conhecimento articulado entre diversos saberes e com olhar ampliado à realidade da criança. Realidade que comumente é ignorada em sua amplitude. Quanto a isto Fazenda (2005, p. 50) afirma que «a Educação Interdisciplinar é uma forma de compreender e modificar o mundo, o homem é agente e paciente de uma realidade que, portanto, precisa ser investigada em seus mais variados aspectos».

Em geral, a visão que se tem das crianças que compõem as Instituições Escolares que apresentam dificuldades na escola, comportamento social «inadequado», que correm de mais, falam de mais, ou falam de menos são descontextualizados, desencadeando pré-conceitos, julgamentos que podem inferir na subjetividade e construção da identidade destas crianças (Mazzotti, 2003; Machado, 2000). Assim, torna-se necessário repensar os conhecimentos e posicionamentos pertinentes a esta problemática, e propor reconstruí-los de modo interdisciplinar, planetário, rumando-se encontrar na complexidade, a compreensão da realidade destas crianças, oportunizando o verdadeiro cuidado, do contrário, continuaremos míopes, enxergando parte de um todo que não é visto. Morin relata que,

Efetivamente, a inteligência que só sabe separar, fragmenta o complexo do mundo em pedaços separados, fraciona os problemas, unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo. Uma inteligência incapaz de perceber o contexto e o complexo planetário fica cega, inconsciente e irresponsável (Morin, 2004, p. 14 ).

Para Morin (2004, p. 22) «O desenvolvimento da inteligência geral requer que seu exercício seja ligado a dúvidas, fermento de toda atividade crítica», contudo, dentro dos «especialismos», as «certezas» são carregadas de pré-julgamentos que impossibilitam enxergar a realidade rica em seus detalhes. Quantos diante de uma dúvida buscam logo explicá-la? Ao pretender explicá-la corre-se o risco de não enxergar, pois um olhar não observador, mas explicativo, ignora o conhecimento da realidade. Quando se entra em uma escola o que se percebe são professores em busca de respostas. Faz-se necessário o cuidado em não cair na armadilha de automaticamente recorrer a teorias a fim de fornecer uma explicação, sem observar e compreender a criança, ignorando assim, sua subjetividade. Morin (2004) ressalta que explicar não basta para compreender, pois explicar é utilizar todos os meios objetivos de conhecimento, que são, porém, insuficientes para compreender o ser subjetivo.

Torna-se necessário um olhar observador disposto a «ver» o que se mostra, partindo da ideia de que a interdisciplinaridade dispõe-se através da troca de conhecimento de maneira aberta para a busca de novos conhecimentos, bem como para a realidade que se apresenta. Fazenda evidencia que «[...] a interdisciplinaridade consolida-se na ousadia da busca, de uma busca que é sempre pergunta, ou melhor, pesquisa» (2006, p. 9). Ao considerar o conhecimento enquanto um modo de agir, e que vai além do convencional, através de uma postura especial frente ao conhecimento, Fazenda complementa,

Entendemos por atitude interdisciplinar, uma atitude diante de alternativas para conhecer mais e melhor; atitude de espera ante os atos consumados, atitude de reciprocidade que impele à troca, que impele ao diálogo – ao diálogo com pares idênticos, com pares anônimos ou consigo mesmo – atitude de humildade diante da limitação do próprio saber, atitude de perplexidade ante a possibilidade de desvendar novos saberes, atitude de desafio – desafio perante o novo, desafio em redimensionar o velho – atitude de envolvimento e comprometimento com os projetos e com as pessoas neles envolvidas, atitude, pois, de compromisso em construir sempre da melhor forma possível, atitude de responsabilidade, mas, sobretudo, de alegria, de revelação, de encontro, de vida (Fazenda, 1994, p. 82).

5. Olho e vejo

Diante da crítica que Morin faz sobre a fragmentação na produção do conhecimento, seria necessário a reforma do pensamento a fim de fazer uma ligação entre as dissociações do saber, pois, «Trata-se de uma reforma não programática, mas paradigmática, concernente a nossa aptidão para organizar o conhecimento» (Morin, 2004, p. 20). Segundo o autor, nos tempos atuais, torna-se necessário que a proposta de uma mudança no ensino permita um pensamento reformador focado na contextualização e no encontro dos saberes.

Nesse contexto de organização do conhecimento, Morin (2004) apresenta a educação como oportunizadora da construção do saber através do desenvolvimento da aptidão para contextualizar e globalizar, uma educação voltada para o enfrentamento dos desafios e complexidades da vida cotidiana. Enfrentar estes desafios é a abertura para o conhecimento. Algumas questões para reflexão são importantes na relação produção do conhecimento e intervenção profissional: 1) Como lidamos com a incerteza? 2) O que fazemos com o sofrimento do outro, buscamos compreendê-lo ou tentamos sufocá-lo até que desapareça com o recurso de uma pílula mágica ou que o diagnóstico se justifique por um código. Como se o sofrimento fosse anormal, não fizesse parte da vida do ser humano. Diante destas questões, o autor nos apresenta a resposta quando ressalta que a compreensão humana nos chega quando sentimos e concebemos os humanos como sujeitos, ela nos torna abertos a seus sofrimentos e suas alegrias.

Há um conhecimento que é compreensível e está fundado sobre a comunicação e a empatia – simpatia, mesmo – intersubjetivas. -- Assim, compreendo as lágrimas, o sorriso, o riso, o medo, a cólera, ao ver o ego alter como alter ego, por minha capacidade de experimentar os mesmos sentimentos que ele. A partir daí, compreender comporta um processo de identificação e de projeção de sujeito a sujeito. Se vejo uma criança em prantos, vou compreendê-la não pela medição do grau de salinidade de suas lágrimas, mas por identificá-la comigo e identificar-me com ela. A compreensão, sempre intersubjetiva, necessita de abertura e generosidade (Morin, 2004, p. 93).

Enfrentar a dificuldade da compreensão humana exigiria o recurso não a ensinamentos separados, mas a uma pedagogia conjunta que agrupasse filósofo, psicólogo, sociólogo, historiador, escritor, que seria conjugada a uma iniciação à lucidez (Morin, 2004). Neste sentido, o trabalho em rede mostra-se à oportunidade da prática interdisciplinar efetivamente acontecer, sendo que profissionais de diversas áreas poderiam a partir de uma incerteza de um caso, da complexidade, dialogar, organizar os conhecimentos e ao contextualizá-lo, buscarem compreender a subjetividade da criança que se apresenta. Para isto torna-se necessário a reforma,

[...] reforma do pensamento é de natureza não programática, mas paradigmática, porque concerne à nossa aptidão para organizar o conhecimento. É ela que permitiria a adequação à finalidade da cabeça bem-feita; isto é, permitiria o pleno uso da inteligência. Precisamos compreender que nossa lucidez depende da complexidade do modo de organização de nossas (Morin, 2004, p.96).

6. Considerações finais

No âmbito das recomendações do Ministério da Saúde a Atenção Básica, considera-se o cuidado em saúde mental com um olhar voltado para a singularidade e integralidade de cada sujeito e de sua comunidade, «[...] orientando-se pela produção de vida e de saúde e não se restringindo à cura de doenças» (Brasil, 2013, p. 3). Neste entendimento, o cuidado não se limita a ações realizadas apenas na unidade de atenção básica, mas na observação do cotidiano da vida de cada um e nas ações realizadas pela própria comunidade. Nesta mesma linha de raciocínio, Lancetti aponta aspectos importantes no trabalho em rede em Saúde Mental:

São várias as modalidades de operar em parceria e nenhuma delas retrocede à época do preventivismo, quando as equipes de Saúde Mental pretendiam prevenir as doenças mentais e acabavam aumentando o fluxo de pacientes graves para hospitais psiquiátricos. Todas essas maneiras de fazer Saúde Mental na atenção primária têm em comum o fato de operar junto e não dividir o trabalho ou se recluir nos consultórios (Lancetti, 2010, p. 18).

Para que ocorra um trabalho em rede é necessário, entre diversos fatores, disponibilidade e interesse por parte dos envolvidas. Quando se fala em políticas públicas e em cuidado, percebe-se que o prescrito nem sempre é exercido, desde os conflitos de formação profissional às faltas de tempo, espaço, equipe que desencadeiam, na prática do serviço público, um abismo.

É preciso aprender a enxergar, é preciso aprender a compreender, é necessário repensar. A visão interdisciplinar, os trabalhos em rede mostram-se como hastes do caminho para o cuidado. A troca de experiências entre profissionais, a articulação com outros segmentos pertencentes ao sistema, a intersetorialização faz da complexidade a oportunidade para o conhecimento da realidade das crianças com necessidades específicas, faz também do sofrimento e da superação um meio de combinação de estratégias e ações distintas.
Aprender a ler a realidade tem como objetivo o ensinamento da observação, da compreensão e também da prática. O profissional ao aceitar enfrentar os desafios, complexidades e incertezas através da contextualização e saber sugerido por Morin (2004), estará possibilitando às crianças atendidas não apenas a prevenção de riscos psíquicos, mas também a promoção da saúde. Com relação à temática, Morin relata:

Isso indica que um modo de pensar, capaz de unir e solidarizar conhecimentos separados, é capaz de se desdobrar em uma ética da união e da solidariedade entre humanos. Um pensamento capaz de não se fechar no local e no particular, mas de conceber os conjuntos, estaria apto a favorecer o senso da responsabilidade e o da cidadania. A reforma de pensamento teria, pois, consequências existenciais, éticas e cívicas (Morin, 2004, p.97).

A interdisciplinaridade nos possibilita repensar a prática, nos propõe a aprender, a questionar, não com o simples objetivo de criticar, mas nos mostra que é necessário uma constante reflexão. Neste sentido, Morin (2004) aponta que o ensino deve voltar a ser não apenas uma função, uma especialização, um profissão, mas também uma tarefa de saúde pública: uma missão.

Percebe-se a fragmentação do saber feita por uma rede que não dialoga, sendo que a articulação entre os serviços, a troca de conhecimentos entre os profissionais envolvidos com a criança poderia diminuir consideravelmente o número de crianças medicalizadas, encaminhadas em sua maioria por instituições de ensino. A riqueza da troca de saberes mostra-se como contribuições que muitos professores precisam, para compreender aquela criança que apresenta dificuldades em seu desempenho escolar, e, desta forma, compreender que as possibilidades não se encontram apenas em uma pílula mágica, mas na troca entre conhecimentos por profissionais do cuidado.

Ao compreender temáticas como interdisciplinaridade, saberes profissionais, prática do cuidado, entende-se que antes de se supor diagnósticos de transtornos mentais, estas crianças deveriam ter a oportunidade de serem vistas por profissionais com o olhar ampliado para o contexto de vida desta criança, assim se estaria contribuindo para a promoção da saúde mental e evitando a reprodução da patologização. O trabalho em rede, por sua vez, mostra-se ponto de referência para a produção de diálogo e troca de saberes. Mas para que ocorra esta mudança de prática é necessária, uma mudança de paradigma. Ao que se possa dizer, se permitir ao novo: «Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desencaixotar minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me, e ser eu...» (Alves, 1994, p. 29).

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