Número 67 Enero-Abril / Janeiro-Abril 2015

Gestão democrática da escola no Brasil: Desafios à implementação de um novo modelo

Sofia Lerche Vieira *
Eloisa Maia Vidal **

* Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho (UNINOVE), Brasil.
* Universidade Estadual do Ceará (UECE), Brasil.

síntese: A gestão democrática é um princípio orientador da escola pública brasileira definido pela Constituição Federal de 1988 e referendado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. Sua implementação no sistema público de ensino permite associá-lo à emergência de um novo modelo de gestão escolar, em que convivem traços de um Estado clientelista e patrimonial e de uma concepção gerencialista, fomentada pelos processos de avaliação de larga escala e outras medidas no sistema educacional brasileiro. Com o objetivo de captar esse movimento, o artigo discute avanços da legislação brasileira e iniciativas de políticas visando o fortalecimento da gestão democrática, procurando associá-los a questões tratadas em uma amostra de professores e gestores de escolas da rede pública de modo a compreender os contornos da gestão escolar pública no Brasil. Utilizou-se análise documental dos dispositivos legais e das iniciativas de governo sobre a matéria e também dados obtidos por meio dos Questionários do Diretor e do Professor, aplicado no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) Prova Brasil 2011 particularmente aqueles associados ao tema proposto. A reflexão é apresentada em quatro tópicos distintos que abordam: 1) o princípio da gestão democrática na legislação brasileira, desde a Constituição de 1988 até o Plano Nacional de Educação – pne, aprovado em 2014; 2) iniciativas de política educacional visando fortalecer o referido princípio; 3) características da gestão escolar na perspectiva de professores e diretores de escola; e, 4) considerações sobre práticas gerencialistas que se contrapõem ao modelo proposto.
Palavras-chave: legislação educacional | gestão escolar | gestão democrática | gerencialismo.
Gestión democrática de los colegios en Brasil: metas hacia la implementación de un nuevo modelo
Síntesis: La gestión democrática aplicada a los colegios públicos brasileños constituye un principio orientador definido por la Constitución Federal de 1988, e instituido por la Ley de Directrices y Bases de la Educación Nacional de 1996. Su implementación en el sistema público de enseñanza nos permite asociarlo a la emergencia de un nuevo modelo de gestión escolar. En éste nuevo modelo conviven trazos de un Estado clientelista y patrimonial, y también de una concepción gerencialista, fomentada por procesos de evaluación a larga escala y por otras medidas del sistema educativo brasileño. Con el objetivo de aprehender este desarrollo, el artículo comenta los avances de la legislación brasileña y las iniciativas políticas que buscan fortalecer la gestión democrática. Se intenta así asociar estos avances a las cuestiones tratadas a partir de una muestra de profesores y gestores de colegios de la red pública. De esta manera, se trata de comprender los contornos de la gestión pública escolar de Brasil. Se ha realizado un análisis documental de las disposiciones legales, de las iniciativas de gobierno en la materia y de los datos obtenidos por medio de los Cuestionarios del Director y del Profesor realizados a través del SAEB (Sistema de Evaluación de Educación Básica) de la Prueba Brasil 2011, particularmente aquellos asociados al tema propuesto. La reflexión es presentada en cuatro dimensiones distintas que abordan: 1) El principio de la gestión democrática en la legislación brasileña, desde la Constitución de 1988 hasta el Plan Nacional de Educación – pne, aprobado en 2014. 2) Las iniciativas de política educativa, con la finalidad de fortalecer el principio al cual hacemos referencia. 3) Las características de la gestión escolar en la perspectiva de profesores y directores de colegio. 4) Y las consideraciones sobre prácticas gerencialistas que se contraponen al modelo propuesto.
Palabras clave: legislación educativa | gestión escolar | gestión democrática | gerencialismo.
Democratic management of schools in Brazil: challenges for the implementation of a new model
Abstract: The democratic management of Brazilian public schools is a guiding principle defined by the 1988 Constitution and endorsed by the 1996 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Law of Directives and Bases of National Education). Its implementation in the public school system allows its association to the emergence of a new school management model, where traces of a client and patrimonial state as well as a management conception live together, fueled by large-scale assessment processes and other large scale evaluation measures in the Brazilian educational system. In order to capture this movement, this article discusses advances in the Brazilian legislation and initial policies aimed at strengthening the democratic management, seeking to associate them with problems studied in a sample of teachers and managers of public schools in order to understand the guide lines of public school management in Brazil. We used documentary analysis of legal documents and government initiatives in this area and also data obtained through questionnaires answered by principals and teachers, applied by the 2011 Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) Prova Brasil (System of Basic Education Evaluation (Saeb) Test Brazil) particularly those associated with the proposed theme. The reflection is presented in four distinct topics covering: 1) the principle of democratic management in the Brazilian legislation, since the 1988 Constitution until the Plano Nacional de Educação – PNE (the National Education Plan – pne) approved in 2014; 2) education policy initiatives to strengthen that principle; 3) school management features from the perspective of teachers and school principals; and 4) considerations of management practices that are opposed to the proposed model.
Keywords: educational legislation | school management | democratic management | managenment.

1. Introdução

A gestão democrática é um principio orientador da escola pública brasileira. Definido pela Constituição Federal de 1988 e referendado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – ldb, seus desdobramentos no sistema público de ensino permitem associá-lo à emergência de um novo modelo de gestão escolar. É oportuno reconhecer, porém, que este convive com formas de condução das políticas públicas que revelam a permanência de traços de um Estado clientelista e patrimonial. Faz-se notar nesse mesmo contexto uma concepção de cunho gerencialista, objeto de análise crítica de vários estudiosos da educação (Lima, 1997; Cabral e Castro, 2011; Teodoro, 2012, entre outros), facilitada pelos processos de avaliação de larga escala e outras medidas no sistema educacional brasileiro que suscitam novos modos de gestão escolar. A presença de tais forças no cotidiano escolar imprimem contornos próprios ao modelo aqui analisado.

Na expectativa de captar o movimento dessas forças em confronto, o presente artigo discute avanços da legislação brasileira e iniciativas de políticas visando o fortalecimento da gestão democrática, procurando associá-los a questões tratadas em uma amostra de professores e gestores de escolas da rede pública de modo a compreender os contornos da gestão escolar pública no Brasil. Para tanto, recorre-se a uma análise documental dos dispositivos legais e das iniciativas de governo sobre a matéria. São também investigados aspectos presentes nos Questionários do Diretor e do Professor, aplicado no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) Prova Brasil 2011, constando de 56.222 e 304.412 respondentes, respectivamente, exclusivamente de escolas públicas e disponibilizada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) , particularmente aquelas associadas ao tema proposto. A esses aportes, somam-se considerações teóricas com o intuito de projetar luz sobre o contraditório em questão.

A reflexão é apresentada em quatro tópicos distintos que abordam: 1) o princípio da gestão democrática na legislação brasileira, desde a Constituição de 1988 até o Plano Nacional de Educação – pne, aprovado em 2014; 2) iniciativas de política educacional a fim de fortalecer o referido princípio; 3) características da gestão escolar na perspectiva de professores e diretores de escola; e, 4) considerações sobre práticas gerencialistas que se contrapõem ao modelo proposto.

2. Gestão democrática – um princípio orientador

A ideia de gestão democrática foi um marco importante na legislação do país. Com efeito, desde o fim do regime militar – na então denominada “abertura lenta, gradual e segura” – movimentos de educadores lutaram por fazer valer a defesa de seus interesses e inscrever esses e outros princípios nos documentos que passariam a orientar as políticas de educação.

Passadas cerca de três décadas das mudanças políticas que assinalaram a transição da ditadura para a democracia, não é simples precisar o momento exato em que ocorreram os primeiros movimentos em defesa de uma gestão escolar mais participativa. Certo é que no seio de organizações de educadores que defendiam espaços para onde tais preocupações pudessem convergir surgiram as Conferências Brasileiras de Educação (cbe), as quais assinalaram uma ruptura com formas de pensar anteriores. A primeira dessas conferências foi realizada em 1980, em São Paulo, seguida de cinco outras que marcaram época . A mais significativa para a defesa da gestão democrática foi a IV CBE, realizada em 1986, em Goiânia. Nela foram firmadas as linhas gerais das bandeiras dos educadores a ser defendidas na Assembleia Nacional Constituinte (ANC), instalada em inicio em 1987 e que resultou na Constituição aprovada em 5 de outubro de 1988.

Tendo sido eleito como tema de estudos e pesquisas transformados em artigos e livros, o conhecimento sobre gestão democrática disseminou-se no campo educacional. Para tanto contou com um suporte legal, cujas origens, como já se viu, remontam à Constituição de 1988 e à ldb, aprofundadas no tópico a seguir.

A Constituição Federal (cf) de 1988 define a “gestão democrática” como um dos princípios orientadores “do ensino público” e “na forma da lei” (Art. 206, VI). Tais atributos não são triviais por sinalizarem a educação pública como espaço por excelência de sua aplicação, remetendo à autonomia das unidades federadas a legislação sobre a matéria. Por isso mesmo, ao longo do período pós-1988, estados e municípios brasileiros mantiveram entendimentos próprios e, por vezes, muito diferenciados acerca da gestão democrática.

A ldb referenda a gestão democrática entre os princípios da educação brasileira (Lei nº 9.394/96, Art. 3º, VIII), ao afirmar a “gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino”. Como se vê, tal como na Constituição, o legislador remete sua aplicação às unidades federadas.

O tema da gestão democrática é detalhado no artigo transcrito a seguir:

Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:

I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;
II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.

Observe-se que este segundo artigo, retoma a ideia inicial sobre a responsabilidade dos sistemas de ensino pela regulamentação das normas da gestão democrática, sendo a participação de dois atores considerados neste processo: dois profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola, da comunidade escolar e local nos conselhos escolares.

Dando sequência à Constituição de 1988 e à ldb de 1996, dois Planos Nacionais de Educação (pne) foram aprovados: o primeiro deles, sancionado por lei em 2001 (Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001) e o segundo, em 2014 (Lei nº 1305, de 25 de junho de 2014). Em ambos os casos, a gestão democrática mantém-se como foco das políticas de educação. O segundo PNE define a “promoção do princípio da gestão democrática da educação pública” como uma das suas diretrizes (Art. 2o, VI). Remete, mais uma vez, à regulamentação da gestão democrática da educação pública de Estados, Distrito Federal e Municípios, prevendo seu disciplinamento em leis específicas no prazo de 2 (dois) anos a partir da publicação (Art. 9º). Como se viu, este dispositivo figura na Constituição de 1988 e na ldb de 1996. Nesse sentido poder-se-ia interpretar sua presença no novo pne como indicação de que Estados e Municípios ainda estão a dever definições sobre a matéria ou, em caso positivo, precisam fazer adaptações para seu encaminhamento.
Duas metas do pne 2014 focalizam a gestão democrática: a meta 7 e a meta 19. A primeira trata da “qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades” e elege como uma de suas estratégias “apoiar técnica e financeiramente a gestão escolar mediante transferência direta de recursos financeiros à escola, garantindo a participação da comunidade escolar no planejamento e na aplicação dos recursos, visando à ampliação da transparência e ao efetivo desenvolvimento da gestão democrática” (pne, Estratégia 7.16). A outra meta tem foco específico sobre o tema indicando a necessidade de

[...] assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto (Meta 19).

Um conjunto amplo de estratégias é associado a esta meta, desde prioridade por parte da União no repasse de suas transferências voluntárias

[...] na área da educação para os entes federados que tenham aprovado legislação específica que regulamente a matéria na área de sua abrangência, respeitando-se a legislação nacional, e que considere, conjuntamente, para a nomeação dos diretores e diretoras de escola, critérios técnicos de mérito e desempenho, bem como a participação da comunidade escolar (19.1)

à formação de conselheiros (19.2), incluindo processos participativos de planejamento, com fóruns específicos de coordenação nas unidades federadas (19.3). Também são feitas recomendações sobre a “constituição e o fortalecimento de grêmios estudantis e associações de pais, assegurando-lhes, inclusive, espaços adequados e condições de funcionamento nas escolas e fomentando a sua articulação orgânica com os conselhos escolares, por meio das respectivas representações” (19.4). Além disso, é reiterada a orientação de

[...] estimular a participação e a consulta de profissionais da educação, alunos(as) e seus familiares na formulação dos projetos político-pedagógicos, currículos escolares, planos de gestão escolar e regimentos escolares, assegurando a participação dos pais na avaliação de docentes e gestores escolares (19.6).

Tais iniciativas são concebidas, considerando o estímulo a “processos de autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira nos estabelecimentos de ensino” (19.7).

O pne de 2014 retoma algumas questões chaves da gestão democrática para a política educacional da última década, que serão objeto de reflexão no tópico a seguir.

3. Iniciativas de política

De forma semelhante ao ocorrido no período de transição para a democracia, quando os anseios de participação se manifestaram em movimentos da sociedade civil organizada, a última década foi marcada por iniciativas que registram uma ampliação da participação na gestão educacional e escolar. Duas estratégias nessa direção registram a preocupação com o aumento da presença de diferentes e novos sujeitos na educação: de um lado, a realização de fóruns coletivos de discussão sob os auspícios do Poder Público (União, Estados e Municípios); de outro, o estímulo à formação de conselhos e conselheiros no fortalecimento da gestão democrática.

3.1 Fóruns coletivos de planejamento

No decorrer da última década o debate educacional recebeu forte estímulo mediante a realização de consultas feitas à sociedade civil sobre os rumos necessários à melhoria da educação brasileira, sob a forma de conferências realizadas em etapas municipais e estaduais, que culminaram com a realização de conferências nacionais de educação (Conae), realizadas em 2010 e 2014, sob os auspícios do Ministério da Educação e coordenadas pelo Fórum Nacional de Educação (FNE). Conforme destacado pelo governo federal, “a Conferência Nacional de Educação (Conae) é um espaço democrático aberto pelo Poder Público e articulado com a sociedade para que todos possam participar do desenvolvimento da Educação Nacional” (Brasil. mec. Disponível em: <http://conae 2014.mec.gov.br/a-conferencia> Acesso em: 14 dez. 2014). 

A Conae 2010 teve como tema “Construindo o Sistema Nacional de Educação: O Plano Nacional de Educação, Diretrizes e Estratégias de Ação”. A conferência abriu espaço para amplo debate sobre os principais desafios da educação brasileira, incluindo entre seus eixos de discussão “Qualidade da Educação, Gestão Democrática e Avaliação”, como é possível perceber pela análise de seu Documento-Referência (MEC. Conae, s. d.) e Documento Final (MEC. Conae, s. d.).

A Conae 2014 também focalizou o Plano Nacional de Educação, tendo como tema central “O pne na Articulação do Sistema Nacional de Educação: Participação Popular, Cooperação Federativa e Regime de Colaboração”. Do mesmo modo, abordou como um de seus temas de interesse Gestão Democrática, Participação Popular e Controle Social (Brasil. mec, 2013, Eixo V, p. 68-72). Além de reflexões pertinentes sobre o estado atual da questão e dos desafios à implementação da gestão democrática, o documento apresenta 21 proposições visando seu fortalecimento na educação pública brasileira.

Como se vê, as conferências nacionais de educação propiciaram papel importante à gestão democrática ,contribuição ao pne 2014 – 2023. A permanência deste tema em pauta e a orientação da lei aos sistemas de ensino no sentido da regulamentação deste princípio no prazo de dois anos é mais uma evidência de que este permanece como desafio a ser enfrentado pela educação pública brasileira. 

3.2 Fortalecimento de conselhos escolares

Outro espaço de participação coletiva que recebeu forte estímulo na última década foi o fortalecimento dos conselhos que reúne a comunidade escolar. A origem dessas organizações é bastante antiga no Brasil e tiveram forte incremento a partir de meados da década de noventa do século xx, quando iniciativas de repasse de recursos financeiros diretamente às escolas tornaram compulsórias a exigência de instâncias de gestão coletiva nos estabelecimentos de ensino.

Na esteira desse processo e com o objetivo de fortalecer a gestão democrática no âmbito escolar, o governo federal criou o Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares, iniciativa que resultou na produção de materiais didáticos pedagógicos diversos, formação de técnicos de secretarias estaduais e municipais de educação e de conselheiros escolares.

Dentre as estratégias formativas dessa iniciativa merecem registro: os Encontros Municipais de Formação de Conselheiros Escolares, Cursos de Extensão a Distância, Formação Continuada em Conselhos Escolares e Curso de Formação para Conselheiros Escolares.

Além dos Conselhos Escolares, outra importante instância de tomada de decisão coletiva é o Projeto Político Pedagógico (PPP), instrumento orientador dos rumos da escola. Conforme já visto, a ldb prevê a “participação dos profissionais da educação” em sua elaboração (ldb, Art., 14). Considerando que a gestão democrática envolve outros sujeitos, de modo específico as famílias dos estudantes e a comunidade em torno da esfera de abrangência geográfica da escola, o PPP requer a presença de outros atores além dos profissionais da educação. A história recente da educação pública no Brasil tem registrado significativo incremento desta participação. Dados os limites deste artigo, a reflexão sobre o assunto não será aqui aprofundada.

4. Gestão democrática na escola – explorando dados de pesquisa

A gestão democrática da escola pública no Brasil, como se viu, faz-se presente como princípio na Constituição Federal de 1988 e na ldb.  A legislação educacional posterior, entretanto, pouco avança no sentido de definir conceitualmente o termo e também de estabelecer atribuições e competências para os gestores escolares. Dada a natureza tridimensional da federação brasileira, onde União, Estados e Municípios são instâncias autônomas, têm proliferado modalidades distintas de processos para a escolha de cargos nas escolas.

A literatura brasileira na área de gestão escolar tem enfatizado a organização desta por meio de um conjunto de dimensões, entre as quais podemos citar: gestão democrática e participativa; gestão de pessoas; gestão pedagógica; gestão administrativa; gestões da cultura escolar; gestão do cotidiano escolar (Lück, 2009, p. 7). A organização da escola a partir dessas dimensões tem se feito presente nos cursos de formação oferecidos aos gestores escolares, seja pelo Poder Público, ou por organizações não governamentais.

A seguir são apresentados dados acerca das formas de acesso ao cargo de gestor escolar nas redes públicas, bem como alguns aspetos relacionados às diversas dimensões da gestão escolar. 

4.1 Formas de acesso ao cargo

Os dados obtidos por meio do Questionário do Diretor da Prova Brasil 2011 mostram que as formas predominantes de acesso ao cargo são: seleção 9,7%, eleição, 19,9% e seleção mais eleição, 13,2%; e indicação técnica, 11,4%, indicação política, 21,7%, ou outra forma de indicação, 12,8%. Agrupando-os, observa-se que os processos de seleção e/ou eleição totalizam 42,8%, enquanto as diversas formas de indicação somam 45,9%. Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que quase a metade das escolas públicas têm seus gestores escolhidos por processos de indicação, o que fere princípios democráticos e republicanos, na medida em que esses procedimentos não envolvem critérios claramente definidos, publicidade e transparência. 

Na tentativa de ampliar o entendimento sobre as formas de acesso ao cargo de direção das escolas, procurou-se estratificar os dados observando a dependência administrativa dos estabelecimentos de ensino como mostra a tabela 1.

Ao desagregarmos por dependência administrativa, constata-se diferenças agudas entre elas, sendo as escolas municiais aquelas que possuem os maiores percentuais de ocupação dos cargos por algum tipo de indicação (59,7%) e as escolas estaduais, as que têm a maioria dos seus cargos ocupados por processo de seleção e/ou eleição (60,7%). Noutras palavras, o princípio da gestão democrática não tem representado obstáculo à indicação política ao cargo de diretor, informação que salta aos olhos no exame dos números absolutos apresentados na tabela 1. A presença de processos de tal natureza, sobretudo na esfera municipal é um indicador da permanência de práticas clientelistas no interior da escola, resquícios de um Estado patrimonial cuja continuidade se mantém.   

A seguir são analisados aspectos relacionados às diversas dimensões da gestão escolar. Para tanto, selecionou-se nos Questionários do Diretor e do Professor , questões que tematizassem essas dimensões de forma direta ou indireta.

 4.2 Gestão participativa

A dimensão da gestão participativa pode ser observada em quatro questões do Questionário do Diretor. Duas delas dizem respeito ao Conselho Escolar e duas à participação da comunidade na escola. Os dados da tabela 2 mostram a constituição do Conselho Escolar e revelam que este organismo conta com a participação efetiva de professores, funcionários e pais (85,7%, 83,6%, 83,8%, respectivamente) enquanto a participação dos alunos é de 65,4%, valor que pode ter influência de escolas que oferecem apenas as séries iniciais do ensino fundamental, com crianças de 6 a 10 anos de idade e que, via de regra, não participam de formação de Conselhos .

A tabela 3 apresenta dados sobre a quantidade de reuniões anuais do Conselho Escolar e mostra que 65,9% das escolas afirmam que o Conselho Escolar se reúne três vezes ou mais por ano, enquanto 14,6% informa reunir-se duas vezes. Chama a atenção o fato de 9,3% das escolas não possuírem esse organismo colegiado, considerando que sua existência está prevista em lei.

A participação e envolvimento da comunidade com as atividades da escola podem ser observadas a partir dos dados apresentados nas tabelas 4 e 5. Quanto à utilização dos espaços da escola para a realização de atividades comunitárias, 84,0% afirma utilizá-los de alguma forma, sendo que 58,9% o faz planejando conjuntamente, 19,5% afirma planejar sozinha as atividades e 5,6% diz que as atividades são planejadas apenas pela comunidade. Embora se observe uma ampla utilização dos espaços escolares pela comunidade, 12,2% das escolas não exploram essa possibilidade.  

Os dados da tabela 5 mostram que cerca 70% das escolas promove eventos destinados à comunidade externa. A participação da comunidade em ações de melhoria da escola, porém, é inferior a 20%, ou seja, as escolas promovem iniciativas para a aproximação da comunidade, colocando-se como um bem público a ser usufruído por todos. O envolvimento da comunidade com a preservação do patrimônio da escola, entretanto, ainda é pequeno.

4.3 Gestão de pessoas

No que se refere à dimensão Gestão de Pessoas, procurou-se investigar aspectos relacionados às relações interpessoais entre direção escolar e docentes, bem como a articulação entre o coletivo de professores e demais equipes escolares, a partir de uma questão presente no Questionário do Professor na Prova Brasil 2011, como mostra a tabela 6. Para todas as indagações, mais de 50% dos docentes afirmam concordar totalmente ou concordar, evidenciando que para parte expressiva dos docentes, as relações entre os professores e o(a) diretor(a) são construídas com base no respeito, na confiança, no comprometimento, na motivação, possibilitando um clima amistoso de trabalho e cooperação mútua entre os que trabalham no estabelecimento de ensino. 

Esses dados, no entanto, também revelam uma significativa omissão por parte dos docentes, uma vez que a média de respostas em branco é da ordem de 25%. 

4.4 Gestão pedagógica

Segundo os defensores da organização da gestão escolar em dimensões, a gestão pedagógica é a mais relevante, “pois está mais diretamente envolvida com o foco da escola que é o de promover a aprendizagem e a formação dos alunos” (LÜCK, 2009, p. 95). Como se viu, a ldb dispõe que os profissionais da educação participem da elaboração do projeto pedagógico da escola, cabendo aos docentes, protagonismo nessa iniciativa (Art. 14). A tabela 7 mostra dados referentes a indagações sobre a forma de desenvolvimento do Projeto Politico Pedagógico (PPP) da escola, a partir de uma questão presente nos Questionários do Diretor e do Professor .

Observam-se discrepâncias nos percentuais de respostas a quase todas as indagações, sendo que 40,7% dos diretores afirmaram ter o PPP sido concebido por professores, pais, outros servidores, estudantes e direção, enquanto 24,6% dos professores afirmam que este foi elaborado por uma equipe de professores e o diretor da escola e 26,5% não respondeu às indagações.       

A tabela 8 apresenta informações referentes ao grau de envolvimento do diretor com duas dimensões da gestão escolar: a pedagógica e a administrativa, vistas na perspectiva dos professores. 

Os dados mostram que os docentes concordam totalmente ou concordam que 59,7% dos diretores dá atenção especial a aspectos relacionados com a aprendizagem dos alunos, enquanto 66,7% deles dá atenção especial a aspectos relacionados com as normas administrativas e com a manutenção da escola. Ou seja, na visão dos professores, a gestão escolar sobrepõe as preocupações administrativas às pedagógicas.

4.5 Gestão de recursos

Outro aspecto investigado se refere à autonomia do gestor escolar, baseado em duas indagações presentes no Questionário do Diretor: uma sobre interações com agentes externos superiores hierarquicamente ou não e outra acerca de apoio financeiro. Os dados da tabela 9 mostram que mais de 90% afirma contar com o apoio da comunidade e trocar informações com diretores de outras escolas, 87,8% informam ter apoio de instâncias superiores e 36,1% revela que há interferências externas em sua gestão.

Quanto ao apoio financeiro, 88,4% dos diretores de escolas afirmam receber recursos do Governo Federal, 44,0% do Governo Estadual e 43,1% dos Governos Municipais, como mostra a tabela 10.

Embora não seja possível identificar o montante de recursos, esses dados mostram que as escolas possuem algum tipo de autonomia financeira para gerenciar seu cotidiano. Mostram também que o poder central atua de forma direta nas escolas pertencentes às redes públicas estaduais e municipais, com isso, exercendo algum tipo de controle direto sobre os sistemas de ensino, colocando em cheque os princípios do federalismo. 

O exame desses dados revela avanços da gestão democrática e, ao mesmo tempo, algumas contradições relativas à sua implementação, sobretudo no que diz respeito à permanência de práticas de indicação que ferem a essência deste princípio constitucional. Ao mesmo tempo, as diferenças entre a visão de diretores e de professores sobre a natureza da participação na elaboração do projeto pedagógico revelam a persistência de contradições sobre a implementação de tal processo.

5. Gerencialismo na escola – contraponto à gestão democrática?

Os temas antes tratados oferecem elementos para afirmar que o principio da gestão democrática estabelecido pela Constituição de 1988, tem se traduzido em medidas legais e iniciativas de política com vistas a seu fortalecimento. A análise de alguns dados empíricos sobre escolas públicas brasileiras, por sua vez, evidencia que diretores têm buscado alternativas para a construção de uma gestão democrática no cotidiano de seu trabalho nas escolas.

Ainda que novas formas de ascensão ao cargo de diretor tenham estimulado processos de escolha democrática, é visível, porém, que estas convivem com práticas que ferem o princípio constitucional estabelecido há mais de 25 anos, caso da indicação política, admitida por um conjunto significativo de diretores de escola. Do mesmo modo, escolas cultivam práticas em flagrante descompromisso com os dispositivos da ldb, expressas pela inexistência de Conselhos Escolares e pela presença de formas segregacionistas de elaboração do Projeto Politico Pedagógico, conforme apontam os dados analisados.   

Nesse cenário propício à gestão democrática, práticas que têm sido associadas a modelos gerencialistas ganham força. No caso brasileiro, têm como cenário a reforma do Estado, iniciada em meados da década de noventa do século xx, cujas “mudanças nos padrões de intervenção estatal” foram traduzidas “na emergência de novos mecanismos e de novas formas de gestão, redirecionando as políticas públicas e, particularmente, as educacionais” (Cabral e Castro, 2011, p. 747). A principal estratégia para concretizar tal redirecionamento tem sido a avaliação de larga escala, cujas raízes no país remontam à década anterior, “quando o governo federal e alguns governos estaduais (Brooke e Cunha, 2010) começam a desenvolver iniciativas diversas visando aferir resultados de estudantes em provas aplicadas em escolas da rede pública” (Vieira, 2014, p. 7)

A gestão das políticas de avaliação de larga escala envolve diferentes instâncias e responsabilidades, desde o Ministério da Educação (mec), passando por secretarias estaduais e municipais, até chegar às escolas, com participação de incalculável contingente de instituições e sujeitos. Tais políticas têm fomentado a competição entre sistemas e escolas, expondo fragilidades dos segmentos mais marcados pela exclusão e vulnerabilidade. A “parafernália gerencial e política em torno das provas, aí incluindo o ranqueamento (ranking) entre sistemas e instituições” (Idem, p. 11,) tem provocado impasses que se situam na contramão de uma cultura democrática nas escolas.  E, como já se disse,

Neste contexto, aquilo que deveria representar mera radiografia de um momento da vida escolar (a avaliação externa), passa a ser vivido como se fosse sua essência. Sistemas e escolas passam a viver sob o signo da avaliação de larga escala sob uma lógica imposta de fora para dentro. De instituição comprometida com a formação para a cidadania, veiculação e transmissão do saber, passa a se configurar como uma pequena linha de montagem onde gestores, professores e estudantes passam a valer pelos bens que produzem sob a forma de  resultados (IDEM, p. 11-12)

As iniciativas de premiação adotadas por grande número de Estados e Municípios, por sua vez, têm gerado padrões de conduta que se distanciam do princípio da gestão democrática, impondo uma cultura de gestão por resultados. Nesse cenário, governos, em seus diferentes níveis, buscam inspiração para suas políticas e práticas nos instrumentos do planejamento estratégico, de que é exemplo a própria matriz conceitual do pne/2014, instrumento participativo por excelência permeado por metas e estratégias, recursos próprios a culturas de cunho tecnocrático.

Bibliografia

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Lima, Licinio C. (1997). O paradigma da educação contábil: políticas educativas e perspectivas gerencialistas no ensino superior em Portugal. Revista Brasileira de Educação. Jan/Fev/Mar/Abr 1997 nº 4, p. 46-59. Disponível em: <http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n04/n04a05.pdf> Acesso em: 14 dez. 2014.
Lück, Heloísa (2009). Dimensões da gestão escolar e suas competências. Curitiba: Editora Positivo.
Teodoro, António (2012). Os novos modos de regulação transnacional das políticas de educação: a regulação pelos resultados e o papel das comparações internacionais. In Teodoro, António; Jezine, Edineide (orgs.). Organizações internacionais e modos de regulação das políticas de educação: indicadores e comparações internacionais.  Brasília: Liber Livro, p. 17-34.
Vieira, Sofia Lerche (2014). Gestão das políticas educacionais e trabalho docente em tempos de Ideb. Texto apresentado no Simpósio: “Gestão das políticas educacionais e trabalho docente”. XVII ENDIPE. Fortaleza, 11 a 14 de novembro de 2014.
Vieira, Sofia Lerche e Vidal, Eloísa Maia (2014). Perfil e formação de gestores escolares no Brasil. Dialogia. São Paulo, n. 19, p. 47-66. Disponível em: <http://www4.uninove.br/ojs/index.php/ dialogia/article/view/4984>


O Inep disponibiliza os microdados da Prova Brasil 2011 no endereço http://portal.inep.gov.br/basica-levantamentos-acessar.

II CBE, 1982 – Belo Horizonte; III CBE, 1984 – Niterói; IV CBE, 1986 – Goiânia; V CBE, 1988 – Brasília e VI CBE, 1991 – São Paulo.

O questionário do Diretor da Prova Brasil 2011 foi aplicado em 56.222 escolas públicas de educação básica que oferecem ensino fundamental – séries iniciais ou séries finais ou ambas. Isso corresponde a 36,1% do total de escolas públicas existentes no Brasil, em 2011. Para uma análise do perfil de diretores escolares nesta prova, ver: VIEIRA e VIDAL, 2014.

O Questionário do Professor foi aplicado aos docentes que ministram as disciplinas Língua Portuguesa e Matemática das 56.222 escolas que participaram da Prova Brasil 2011, totalizando 304.412 sujeitos. 

As questões presentes nos dois instrumentos apresentam apenas uma diferença, uma vez que no Questionário do Diretor aparece a alternativa Professores, pais, outros servidores, estudantes e o(a) Diretor(a) montaram o projeto e no Questionário do Professor ela não está presente.

 

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