Número 68 Mayo-Agosto / Maio-Agosto 2015

Estás sempre chorando, tu é de açúcar? Pedagogias de gênero na educação infantil

Denise Regina Quaresma da Silva *

Bruna Bertuol **

* Pós Doutora em Estudos de Genero. Docente do PPG Saude e Desenvolvimento Humano do Unilasalle-Canoas-RS/Brasil, Docente do PPG Diversidade Cultural e Inclusão Social da Universidade Feevale- Novo Hamburgo- RS/Brasil.

** Mestre em Educação UNILASALLE. Professora da Rede Municipal de Educação de Bento Gonçalves/RS. Brasil.

Síntese: O presente estudo apresenta-se como uma pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico, e parte da problematização das pedagogias de gênero presentes nas brincadeiras infantis e no cotidiano escolar de crianças de três a cinco anos, das Escolas Municipais de Educação Infantil de um município do sul do Brasil. Seis escolas foram observadas, com apontamentos no Diário de Campo. Suas bases teóricas foram autores/as dos Estudos Culturais e dos Estudos de Gênero, como Foucault (2009), Louro (2000), Giroux (1995), Meyer (2003), e Butler (2004). Os resultados apontam que as professoras, a partir de suas intervenções nas brincadeiras das crianças, visam à construção de identidades de gênero hegemônicas, com inferências impregnadas pelas pedagogias de gênero, buscando, assim, o desenvolvimento de certas características, habilidades, brincadeiras, brinquedos para meninos e meninas de forma marcadamente diferenciada. As práticas cotidianas do professorados estão relacionadas a padrões heteronormativos e a condutas resultantes de discursos sexistas que estão presentes na cultura e que são reproduzidos acriticamente. Concluímos que a formação docente é imprescindível para que avancemos no campo da educação que respeite a diversidade humana e a individualidade das crianças.

Palavras-chave: educação infantil | pedagogias de gênero | formação docente.

Siempre estás llorando, ¿eres de azúcar? Pedagogías de género en la educación infantil

Síntesis: Este estudio se presenta como una investigación cualitativa, de tipo etnográfico y parte del cuestionamiento de las pedagogías de género presentes en los juegos infantiles y en el cotidiano escolar de niños y niñas de tres a cinco años, de las Escuelas Municipales de Educación Infantil de un municipio del sur de Brasil. Se han observado seis escuelas, con anotaciones en el Diario de Campo. Sus bases teóricas fueron autores/as de Estudios Culturales y Estudios de Género, como Foucault (2009), Louro (2000), Giroux (1995), Meyer (2003) e Butler (2004). Los resultados señalan que los profesores, a partir de sus intervenciones en los juegos infantiles, pretenden contribuir a la construcción de identidades de género hegemónicas, con inferencias impregnadas por las pedagogías de género que buscan el desarrollo de ciertas características, habilidades, juegos, juguetes para niños y niñas de forma claramente diferenciada. Las prácticas cuotidianas del profesorado están relacionadas a patrones heteronormativos y a conductas resultantes de discursos sexistas que están presentes en la cultura y que son reproducidos acríticamente. Concluimos que la formación docente es imprescindible para que avancemos en el campo de la educación para la diversidad humana y el respeto a la individualidad de niños y niñas.

Palabras clave: educación infantil | pedagogías de género | formación docente.

You’re always crying, are you sugar? Gender pedagogy in early childhood education

Abstract: This study presents itself as a qualitative research, ethnographic, and problematized gender pedagogy present in children’s play and in everyday school life children three to five years who attend Municipal Schools Early Childhood Education from a municipality in southern Brazil. Observations were carried out in six schools investigated notes in field diary. As theoretical bases were elected / the author / the Cultural Studies and Gender Studies as Foucault (2009), Blonde (2000), Giroux (1995), Meyer (2003) and Butler (2004). The results showed that the teachers from their interventions in the games of children, aimed at building hegemonic gender identities, with inferences impregnated by gender pedagogies that we have sought development of certain characteristics, skills, games, toys for boys and girls markedly different ways. The daily practices of / asprofessores / are related to the heteronormative standards and behaviors resulting from sexist speeches which are present in culture and are reproduced uncritically. We conclude that the formation docenteé essential for a breakthroughin thefield of education that privilegieo respect for human diversity and individuality of children.

Keywords: gender pedagogies | early childhood education | teacher training.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta resultados da pesquisa intitulada «Coisas de menino ou de menina? Pedagogias de gênero nas escolas de Educação Infantil», cujo objetivo foi problematizar as pedagogias de gênero presentes nas brincadeiras infantis e no cotidiano escolar de crianças da educação infantil de um município do Sul do Brasil. O texto está organizado em três momentos: inicialmente, abordamos a definição de gênero de acordo com pressupostos teóricos advindos dos Estudos Culturais e dos Estudos de Gênero e examinamos o brincar como produto de uma cultura. Em seguida, na analise dos dados, observamos a eficiência das pedagogias de gênero e descrevemos falas, brincadeiras, brinquedos, episódios, fatos, ambientes que fazem parte do cotidiano escolar infantil, e concluímos apontando a urgência da necessidade de formação docente nesta área.

Como bases teóricas, foram escolhidos/as autores/as dos Estudos Culturais e dos Estudos de Gênero como Foucault (2009), Louro (2000), Giroux (1995), Meyer (2003), e Butler (2004). Os Estudos Culturais têm sido vistos como uma alquimia para produzir conhecimento útil sobre o amplo domínio da cultura humana. Nesse sentido, sua principal virtude, talvez seja a de começar a admitir que a inspiração possa advir de qualquer lugar, contribuindo para desfazer os binarismos tão fortemente aderidos às epistemologias tradicionais (Costa, 2000, p. 14).

Atualmente, as pesquisas no campo destes estudos apresentam-se de forma diversificada, podendo ser abordadas diferentes temáticas, entre elas: práticas escolares e pedagógicas, discussões acerca de outras instâncias culturais como a televisão, o rádio, a propaganda, filmes, jornais, revistas, brinquedos etc. Essas instâncias culturais são também conhecidas como Pedagogias Culturais, entendidas como todos os artefatos através dos quais o conhecimento e a aprendizagem são produzidos (Giroux; Mclaren, 1995).

Deste modo, os brinquedos e as brincadeiras também são considerados artefatos culturais, pois produzem significados que dão sentido e estabelecem posições e identidades no mundo social. Diante disto, objetivamos nesta pesquisa problematizar as pedagogias de gênero presentes nas brincadeiras e no cotidiano escolar infantil.

ABORDAGEM TEÓRICA

Segundo Felipe (1995), o conceito de gênero surgiu entre as estudiosas feministas para se contrapor à ideia de essência, recusando assim qualquer explicação pautada no determinismo biológico, que pudesse explicar comportamentos de homens e mulheres, empreendendo dessa forma, uma visão naturalizada, universal e imutável dos comportamentos. Por muitos séculos, esse determinismo serviu para justificar as desigualdades entre os sexos, a partir de suas características físicas.

Concorda-se com a ideia de gênero como construção sócio-histórica produzida sobre as características biológicas (Louro, 2000); produto e efeito de relações de poder, incluindo os processos que produzem, distinguem e separam os corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade (Meyer, 2003).

Recente pesquisa realizada constatou que os/as professores/as de educação infantil possuem poucos conhecimentos sobre a construção de gênero na infância; é possível encontrar uma vasta produção científica no que se refere à educação infantil, abordando fundamentalmente a caracterização e estimulação do desenvolvimento cognitivo-afetivo e motor de meninos e meninas, contudo, poucas são as investigações sobre a construção das identidades sexuais e de gênero na infância (Quaresmada Silvaet al., 2012, p. 3).

Mesmo sendo o brincar considerado uma atividade «natural» da criança, isto é, algo espontâneo, prazeroso, ativo, desinteressado, com um fim em si mesmo, não se pode deixar de atentar aos brinquedos e às brincadeiras. Também «os brinquedos – e [...] as brincadeiras – são característicos de cada cultura e de cada momento histórico, ainda que alguns guardem um caráter notável de sobrevivência» (Bujes, 2000, p. 207). O modo como as crianças brincam, com o quê e com quem elas brincam varia de acordo com o seu contexto social, cultural e histórico.

A cultura lúdica dispõe de certa autonomia, de um ritmo próprio, mas somente pode ser entendida em interdependência com a cultura global de uma sociedade específica. «A cultura lúdica recebe estruturas da sociedade, conferindo-lhe um aspecto específico. É o que acontece com a diferença de gênero que provém da sociedade, mas adquire traços específicos na cultura lúdica» (Brougère, 2010, p. 55).

Cada contexto social cria uma cultura a partir da qual emergem os conceitos sobre infância, sentimento de infância e, por via de consequência, sobre o brincar, o brinquedo e as suas respectivas manifestações. As crianças pequenas desenvolvem ativamente suas compreensões e os papéis de gêneros. «Ao fazerem isso, elas exploram os conceitos de ‘menino’ e ‘menina’ – frequentemente examinando os extremos de cada papel dentro da sua comunidade – e isso se reflete na brincadeira» (Olusoga, 2011, p. 84).

Em uma cultura como a brasileira, que muito fortemente apresenta marcas de sexismo e machismo, a divisão entre brinquedos/brincadeiras para meninas e meninos se constitui nas cores (rosa para o gênero feminino, azul para o masculino), nas formas (carros para meninos, bonecas para meninas), nas atitudes, entre outros aspectos. Com a ascensão da mulher ao mercado de trabalho e a consequente liberação de costumes, o mercado responde, produzindo automóveis para meninas de cor rosa e bonecos para os meninos, pois somente assim lhes é permitido o contato com estes brinquedos. Nesses exemplos, as identidades femininas e masculinas se constroem no contexto da cultura brasileira (Vitória, 2003).

Para ilustrar tal situação, uma irreverente síntese do que está acontecendo por trás desse debate surge em um vídeo 1 intitulado Menininha questionando o sexismo da indústria de brinquedos. Em uma loja de brinquedos, a garota Riley, de quatro anos de idade, moradora do estado de Nova York, questiona por que as meninas precisam sempre brincar de princesas enquanto os meninos brincam de super-heróis. Riley argumenta que tanto meninos quanto meninas podem gostar de ambas os brinquedos: «As empresas que fazem esses [brinquedos], tentam levar as meninas a comprar coisas rosas em vez das coisas que os meninos gostam de comprar, certo?» – ela pergunta ao pai, que está atrás da câmera.

Quaresma da Silva e Mello (2008) apontam que é a partir de detalhes sutis como os brinquedos infantis, a exemplo do carrinho, da arma e da boneca, que a criança é preparada para o espaço público e privado. Nessas brincadeiras, o público é reservado ao masculino, ou seja, o carro e a arma representam a violência, o domínio, a decisão; já o privado é reservado ao feminino, associando a boneca ao trabalho de casa, ao fogão e à maternidade. A partir dessas colocações, as personalidades de homens e mulheres vão sendo atribuídas, gerando a necessidade de um ser frágil (mulher) em detrimento de um ser forte (homem).

O brinquedo, portanto, é uma construção cultural, «porque ‘dirige’ atitudes e comportamentos, ou seja, representa práticas sociais, que definem valores e atitudes que se deseja instituir» (Vitória, 2003, p. 39).

Considerando a construção das relações de gêneros nas brincadeiras infantis, Felipe (2008) afirma que os olhares de repreensão ou não que lançamos a cada criança diante de seus comportamentos, estão repletos de representações a respeito daquilo que entendemos ser o mais adequado para meninos e meninas, homens e mulheres e isto os constitui na vida adulta.

Nesse sentido, as práticas discursivas relacionadas ao brinquedo e ao brincar não são neutras e requerem maior atenção aos seus interesses e compromissos com a infância, pois operam na construção de identidades (Bujes, 2000). Partindo desta constatação, postulamos que problematizar a ideia de binarismos fixos nas relações de gênero, a normalização da conduta de meninos e meninas, o lugar de cada um na escola, se fazem necessários.  Essa preocupação dos adultos sobre as crianças também aparece nas escolas.  A seguir, apresentamos os apontamentos da pesquisa registrados no Diário de Campo, analisando a figura do/a professor/a diante de situações cotiadianas do brincar que assinalam as pedagogias de gênero presentes no universo escolar.

PERCURSO METODOLÓGICO

O presente estudo apresenta-se como uma pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico (Green, J. L.; Dixon, C. N.; Zaharlick, 2005). Metodologicamente, utilizamos como recurso para a coleta de dados observações com apontamentos no Diário de Campo 2. As observações foram feitas em seis escolas de educação infantil em um município do Sul do Brasil, com séries que atendiam à faixa etária dos 03 aos 05 anos de idade. Foram realizadas observações semanais, com 2 horas de observação em cada semana durante um período de 2 meses, em 12 turmas de educação infantil. Em cada sala de aula observada há uma professora 3 titular e auxiliares de educação infantil, portanto participaram doze professoras e seus respectivos alunos/as.

O Diário de Campo é um recurso bastante utilizado em pesquisas qualitativas; e é importante que o/a investigador/a tenha um conhecimento detalhado do tema, dos objetivos e do problema da pesquisa, para não fazer observações aleatórias. É necessário saber aproveitar o tempo de modo produtivo, as oportunidades de observação, os indivíduos envolvidos no processo e as demais variáveis do processo (Lüdke; André, 1999). Escolheu-se esta ferramenta metodológica com o intuito de poder se dedicar a perceber falas, olhares e movimentos das professoras implicadas nas pedagogias de gênero.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa – cep/unilasalle – cujo objetivo é garantir o caráter ético das pesquisas a serem desenvolvidas. As participantes da pesquisa (professoras) assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que envolveu os esclarecimentos quanto à pesquisa sugerida, onde foi garantido o absoluto sigilo por parte das/dos participantes. Também participaram da pesquisa as crianças – alunos e alunas das professoras participantes –, cujos pais ou responsáveis autorizaram a sua participação no estudo.

Apresentamos, a seguir, os apontamentos das observações realizadas com a respectiva análise de conteúdo realizada, segundo Bardin (2006), através de duas categorias emergentes a partir do estudo. A primeira intitulamos “O governamento dos corpos infantis e as pedagogias de gênero: estás sempre chorando, tu és de açúcar?” Na sequência, apresentamos a segunda, que nomeamos “Resistências e eliminação de fronteiras: vamos roubar as panelinhas das meninas”.

Para o entendimento das narrativas, apresentamos as professoras observadas como P1, P2, [...], assim sucessivamente até a P12.  Para auxiliar na identificação, as falas das professoras são apresentadas grifadas em itálico e entre aspas e as falas das crianças são apresentadas entre aspas.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O GOVERNAMENTO DOS CORPOS INFANTIS E AS PEDAGOGIAS DE GÊNERO: ESTÁS SEMPRE CHORANDO, TU ÉS DE AÇÚCAR?

Diversos autores postulam que estamos/somos construídos e subjetivados 4 pelos atravessamentos de uma infinidade de discursos que circulam em diferentes meios nos quais vivemos (Silva, 1999; Foucault, 2000; Meyer, 2000).

De acordo com Foucault (1979, p. 180), «somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder».

Percebemos o efeito destes ordenamentos, pois observamos que às meninas seguidamente era solicitado que falassem mais baixo, que sentassem direito, que parassem de falar, que não executassem movimentos bruscos com seu corpo, pois não teriam força suficiente para exercerem determinadas tarefas.

Desde muito cedo, são estabelecidas estratégias de governamento dos corpos: meninas não devem exercitar sua força, devem falar pouco, realizar apenas certas tarefas, não devem fazer movimentos bruscos com o corpo, tais como jogarem-se ao chão no colchonete e subirem em árvores, pois isso presume movimentos ousados, o que não seria adequado para elas. Citamos algumas falas das professoras às meninas: «Agora deu, chega de falar!» (P1), «Vais deixar de ser ajudante do dia, se não sentar direitinho!», «Não é para correr!» (P1); «Esse brinquedo é muito pesado ‘pra ti!» (P3); «Desce daí, guria! Vais te machucar!», «Fecha as pernas!» (P8); «Meninas, arrumem as cadeiras para a profe!» (P10); «Que lindo teu desenho! Que caprichosa!» (P6).

Desta forma, é dito à menina e às demais crianças: fale menos, não seja tagarela! Meninas sentam-se de uma forma diferente dos meninos, meninas não correm, são frágeis, cuidam da sala e futuramente cuidarão de suas casas, sendo a realização desta tarefa doméstica um atributo feminino. Em nenhum momento, os meninos foram convocados a auxiliar na organização e limpeza da sala. As meninas é que são caprichosas!

A professora 5 diz a uma menina que chora:  «Estás sempre chorando, tu é de açúcar?»  Neste discurso, diz à menina e às demais crianças que assistem, que uma menina chora por ser frágil, fácil de se desmanchar como o açúcar. Alude desta forma que quem chora é frágil, reforçando que somente as meninas, por serem frágeis, choram. Este discurso reforça nas meninas a fragilidade e nos meninos, a impossibilidade de serem frágeis, pois os homens não choram, são fortes.

Porém, percebemos algumas micro-rachaduras nesta rígida formação, na medida em que algumas professoras, mesmo que minoritariamente e em raras ocasiões, assumiram discursos do tipo: «Força! Assopra forte!» (P11); «Tu consegue subir no pneu!» (P2); «Meninas, venham me ajudar a carregar o tapete!» (P4), permitindo que as meninas também façam movimentos que exigem força.

Aos meninos também foi solicitado que ficassem quietos, que não corressem pela sala de aula, mas isso aconteceu com uma frequência muito menor, comparando-se às meninas. A eles era dito: «O que é isso, falem mais baixo!» (P3); «E vocês sempre descumprindo as ordens!», «Que terríveis que vocês estão hoje!» (P8). Ou seja, há um reforço do quanto é natural nos meninos à falta de cumprimento das normas.

Foucault (1975), ao escrever uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar, introduz o eixo de investigação que trata sobre o poder, suas estratégias e as formas de saber. Um dos principais conceitos dessa obra é a «disciplina». Nas expressões das professoras citadas, direcionadas aos meninos e às meninas, percebe-se a presença deste controle/poder no sistema educacional da educação infantil. O poder, tal qual propõe Foucault (1988), é exercido em múltiplas e variadas direções, como uma rede constituída por toda a sociedade, e, nesse sentido, deve ser apreendido a partir de estratégias, manobras, táticas e técnicas de funcionamento. Os jogos de poder, presentes nas pedagogias de gênero, apareceram em exemplos sutis do cotidiano escolar, como por exemplo: «O que você está fazendo aqui? Estás no mundo da lua?» (P5). Esse foi o discurso adotado pela professora para se dirigir a uma menina que estava na fila dos meninos. Neste exemplo, vemos o poder e a força coercitiva de seu discurso sobre a menina; estar na fila de meninos, a priori, é estar fora do que constitui o seu mundo.

Nas escolas visitadas, observamos que em algumas turmas, as filas de entrada das aulas ocorrem com separações entre meninos e meninas; em outras escolas, as crianças formam apenas uma fila, sem separações por sexo. Porém, nas escolas onde não havia ordenamento diferenciado, sem separação por sexo nas filas, as hierarquias sexuadas das pedagogias de gênero estavam presentes nos demais ordenamentos cotidianos, onde meninos e meninas seguem sendo educados de maneiras diversas. As práticas cotidianas, como gestos e palavras banalizados, precisam se tornar alvo de atenção renovada, de questionamento e, em especial, de desconfiança (Louro, 1997).

RESISTÊNCIAS E ELIMINAÇÃO DE FRONTEIRAS: VAMOS ROUBAR AS PANELINHAS DAS MENINAS?

Essa categoria emerge da observação das crianças e dedica-se a apresentar resistências e eliminações de fronteiras: as ações, as falas e as atitudes com que as crianças se apresentam perante as imposições de ordenamentos operados pelas pedagogias de gênero.

As identidades de gênero e sexo transformam-se ao longo da vida dos indivíduos, porém, a escola, em geral, não disponibiliza outras formas de masculinidade e feminilidade, preocupando-se apenas em estabelecer e reafirmar aquelas já consagradas como sendo a referência apontada pela cultura. Tudo e todos/as que se distanciam dela serão interpretados como anormais e desviantes. Para Meyer (2000, p. 152-153), «as representações hegemônicas de gênero [...] fixam padrões nos quais se institui o que é ser homem e mulher, como se educam meninos e meninas e, por extensão, o que podem/devem fazer da/na vida».

Além da escola, as próprias crianças vigiam-se com o intuito de denunciar o que cria resistências ou foge da «norma». Observamos que um menino de uma das turmas, ao dizer que usaria brinco quando crescesse, imediatamente foi sancionado por um colega que logo lhe falou: «Só menina pode usar brinco!». Esse colega determina claramente, sob sanção, o ideal para os meninos e o ideal para as meninas. Além deste, apresentamos outros exemplos do controle da ordem pelos próprios alunos, onde as falas partiram de uns meninos para outros meninos: «Olha! Ele está usando uma bolsa cor-de-rosa!»; «carrinho lilás é de menina!». No tocante aos brinquedos das meninas (meninas brincando com espadas, com carrinhos), houve poucas situações observadas e não houve observações de interferências. Estes achados também são apontados na pesquisa de mestrado de Guizzo (2011), que conclui que algumas eliminações entre as fronteiras de gênero, ou seja, de meninos/homens que se interessam por maquiagem, bonecas, afazeres domésticos e praticam tais funções associadas às meninas/mulheres, são mais evidentes, pois as cobranças sobre eles são bem maiores do que as existentes sobre as meninas. O menino que elimina a fronteira é visto como alguém que está fora da normalidade, e exige-se dele, então, que se enquadre nos padrões de masculinidade. Todavia, a criança, mesmo sendo vigiada, arrisca-se, elimina as fronteiras, oportuniza-se no brincar a vivência de outras possibilidades para além das oferecidas.

Em um dos momentos de brincadeiras livres, os meninos falaram entre si: «Vamos roubar as panelinhas das meninas?», e os demais responderam positivamente, e foram «roubar» as panelinhas. As pesquisadoras questionam-se o porquê do uso da palavra «roubar», concluindo que os meninos usam este termo porque entendem que os utensílios domésticos pertencem às meninas. Isso se dá também pelo fato de a maioria das panelas, dos pratos e dos talheres serem fabricados na cor rosa, definindo a quem pertencem. Outro menino se aproximou das panelas para brincar. Ao ser questionado se queria brincar com as panelas, uma menina se adiantou e falou por ele: «Não! Ele só quer brincar de Ben 10 5!». Ou seja, mesmo que ele quisesse brincar com as panelas, foi barrado, pois a menina o excluiu, dizendo que ele teria de brincar de Ben 10, pois esta brincadeira era para meninos, as panelas não lhe pertencem no brincar.

Um menino de aproximadamente quatro anos apresentou preferência em brincar com as meninas e, em certo momento, pegou o boné cor-de-rosa de sua amiga e colocou sobre o seu boné preto, falando: «Metade Ana, metade Pedro 6!». Infere-se que se referia a si próprio, pois naquele momento sentia-se metade menino e metade menina. Pedro parecia não ter medo ou vergonha em se interessar mais pelas brincadeiras junto às meninas, tanto que, com o boné rosa, aproximou-se ainda mais desse grupo, sentindo-se à vontade. A partir desse exemplo, percebe-se que algumas crianças buscam transpor fronteiras e barreiras tão fortemente construídas.

Em outro momento, observou-se que uma menina da mesma faixa etária anteriormente citada, usando um tênis de futsal com cadarços cor-de-rosa, disse gostar de jogar futebol: «Mas só em casa, na escola não». O pai lhe deu aquele tênis. Levanta-se a hipótese de que, em casa, ela tem a liberdade de jogar futebol e, na escola, sente-se reprimida, mesmo que isso não seja expresso verbalmente pela escola. A intenção fica velada, e a menina subentende que não deve jogar futebol na escola.

Foucault (2009) descreve uma das formas de poder, a «articulação corpo-objeto», ou seja, as operações que o corpo deve efetuar no manuseio dos objetos. Existe uma prática de controle sobre o corpo e o brinquedo (Vianna; Finco, 2009). Assim, postula-se que a menina pode jogar bola, mas para confirmar sua feminilidade precisa usar cadarços cor-de-rosa, pois a prática do futebol é fortemente associada ao sexo masculino, pouco se fala ou se valoriza o futebol feminino. Desta forma, se meninas demonstram interesse por esse esporte, sua identidade de gênero pode ser questionada, e o mesmo ocorre se meninos não desejam praticá-lo ou não torcem por um time; logo há um estranhamento em relação à sua identidade de gênero.

A partir destas observações no cotidiano das escolas infantis, percebe-se a necessidade de incluir os temas «gênero» e «sexualidade» na formação dos docentes, visto que esse seria um passo muito importante na qualidade da educação infantil.

As educadoras infantis buscam definir no corpo de meninos e meninas, respectivamente, o gênero de cada um a partir das características físicas, dos comportamentos esperados e reforçados de forma consciente ou inconsciente, nos pequenos gestos e práticas cotidianas. O fato de determinar que meninas brincam com bonecas, ajudam na limpeza da sala, e os meninos brincam com carrinhos, ajudam nas tarefas de carregar materiais de um lugar para o outro, pois são fortes, sobem nas árvores, pois são exploradores, por exemplo, já demonstra o que se espera para cada sexo (Louro, 1997).

OBSERVAÇÕES FINAIS

Buscou-se problematizar, interrogar aquilo que é dado como certo. Desconfiar das verdades e das certezas, pois quem pesquisa deve duvidar das verdades que dão guarida ao poder e deve praticar o que Butler (2004) chama de ofensas necessárias, para transpor as formas atuais de discurso vigente, tornando visível o que foi repudiado, produzindo novas e futuras formas de legitimação.

Esta pesquisa não objetivou encontrar soluções nem respostas conclusivas para as questões que envolvem as pedagogias de gênero presentes nas escolas de educação infantil, nem julgar as ações, as atitudes ou os pensamentos das professoras envolvidas no estudo. Procurou-se compreender o processo cultural no qual as professoras participantes e seus/suas alunos/as estão fixados/as e o quanto tal processo interfere nos costumes, nas atitudes, nos pensamentos, nas ideias e nas opiniões desses indivíduos. Em especial, deu-se atenção aos artefatos culturais (brinquedos e brincadeiras) a partir dos quais as crianças interagem cotidianamente nas escolas de educação infantil; às relações que as crianças e as professoras vão estabelecendo consigo mesmas, com os/as outros/as, com os brinquedos, com as brincadeiras e com os discursos a que têm acesso; e como vão constituindo suas identidades de gênero.

Nas escolas observadas, esse processo é pouco problematizado, visto que a formação dos/as educadores/as ainda é precária no sentido de questionar as formas como nos constituímos e de pensar outras maneiras de ser e estar menino/homem ou menina/mulher na sociedade atual. Por isso, percebemos a necessidade da formação docente com o objetivo de alcançar uma educação com princípios norteados na busca pelo respeito à diversidade humana, desde o princípio.

Percebe-se que as professoras pesquisadas trazem em seus discursos as marcas da cultura na qual estão inseridas: o sexismo e a heteronormatividade. «Transformar essa ideia significa estabelecer um processo constante de desconstrução da linguagem pedagógica que apela, em qualquer tempo e em qualquer lugar, aos universais culturais» (Díaz, 1998, p. 17).

Para avançar nesse campo, são imprescindíveis a discussão e a inclusão desses temas na formação de professores/as e demais profissionais envolvidos com a educação. Nesse sentido, os Estudos Culturais fornecem uma nova lente, teórica e flexível, oferecendo um desafio que poucos/as educadores/as podem se dar ao luxo de ignorar (Giroux; McLaren, 1995, p. 101-102).

Durantes as observações, foi possível observar que a maioria das crianças procurava se adequar àquilo que era esperado para elas e que as professoras faziam intervenções durante as suas brincadeiras, visando à construção de identidades de gênero hegemônicas. As atitudes das docentes em relação às crianças estavam impregnadas pelas pedagogias de gênero que objetivam o desenvolvimento de certas características, habilidades, brincadeiras e certos brinquedos para meninos e meninas. Muitos foram os momentos em que isso aconteceu: professoras determinavam os brinquedos que poderiam ser explorados pelas crianças, papéis a serem representados em situações de dramatização (usando fantasias variadas), incentivos para uns/umas e a desmotivação para outros/as quanto a determinados movimentos, como subir em árvores, o que pode ser feito por um menino, mas jamais por uma menina. No entanto, apesar da insistência pelos modelos hegemônicos, algumas crianças resistem a eles, demonstrando que buscam atravessar fronteiras e experimentar «coisas» de meninos e de meninas, ousando eliminar fronteiras.

Nas observações realizadas, os meninos eram alvo maior de atenção do que as meninas quando transgrediam fronteiras de gênero. Contudo, ressalta-se que, quando se disciplina um menino, também se disciplina a menina, pois esta, ao perceber o que é permitido aos meninos, concebe o que lhe é proibido.

Os resultados das observações, portanto, apontam que as professoras, a partir de suas intervenções nas brincadeiras das crianças, visavam à construção de identidades de gênero hegemônicas. Percebe-se que as docentes, nas suas práticas cotidianas ainda tendem a buscar o desenvolvimento de certas habilidades e características para as meninas e outras para os meninos.

REFERÊNCIAS

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2 A partir desta página, Diário de Campo será representado pela sigla DC.

3 Em todas as turmas observadas, as professoras titulares declararam ser do sexo feminino, por isso a inflexão de gênero, com o uso da palavra apenas no feminino.

 4 Foucault (2009) estabelece que a subjetivação está vinculada a processos sociais, culturais e disciplinares que auxiliam na constituição dos sujeitos.

  5 Ben 10: personagem de um menino que usa um dispositivo extraterrestre em formato de relógio de pulso, que a cada série é renovado ou trocado por algum motivo.

6 Os nomes usados são fictícios.

 

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