Número 71 Mayo-Agosto / Maio-Agosto 2016

La preparación para la dirección escolar en la formación inicial del docente. Diagnóstico de una universidad pedagógica cubana.

Geórgia Oliveira*

SÍNTESE. O presente texto é fragmento de uma investigação realizada para tese de doutoramento. Trata-se do conteúdo da Educação Infantil reinventado a partir da ideia de currículo em ação (Gimeno, 2000), compreendendo tal prática enquanto processo de autoria compartilhada entre adultos e crianças. Tomamos o currículo prescrito como partitura e observamos que, assim como os músicos, os sujeitos envolvidos com a prática curricular – a melodia – reinventam a mesma indicando outras possibilidades e sentidos. Retomar referências do passado para pensar o presente e avançar para o futuro se dá como uma necessidade de “escovar a história a contrapelo” – Benjamin. Evidenciamos as práticas de Freinet, na França, como indicativo de que a formação humana deve tomar a dimensão do trabalho, da participação e da autoria como componentes curriculares. Do mesmo modo, a experiência dos “Parques Infantis” com Mario de Andrade, no Brasil, enfatizando a dimensão artística do conhecimento e da cultura popular. Ambas as experiências traduzem a necessidade de construção dialética do currículo da Educação Infantil respeitando e reconhecendo a diversidade de infâncias mas como fundamento da essência humana. Quanto à metodologia, adotamos uma abordagem qualitativa (Minayo, 2006) tendo as referências nos princípios ideológicos indicados a partir da investigação militante (Malo, 2004). A pesquisa participante (Brandão, 2003) se instala como facilitadora no processo de reflexão, análise e diálogo com os sujeitos partícipes e os dados que a realidade concreta revela. Contamos também os fundamentos metodológicos da Sociologia da Infância com suas técnicas de aproximação das crianças.

Palavras-chave: currículo; educação infantil; práticas de liberdade.

NTESIS. El presente texto es parte de una investigación realizada para la tesis de doctorado. Se trata del contenido de Educación Infantil reinventado desde la idea del currículo en acción (Gimeno, 2000), recogiendo tal práctica como un proceso de autoría compartida entre adultos y niños (Oliveira, 2010). Tomamos el currículo prescrito como si se tratara de una partitura y observamos que, así como los músicos, los sujetos involucrados en la práctica curricular (la melodía) reinventan la misma mirando a otras posibilidades y sentidos. La búsqueda de referencias del pasado para pensar lo presente y caminar hacia el futuro se convierte en necesidad de «cepillar la historia a contrapelo» (Benjamin, 2005). Señalamos las prácticas de Freinet en Francia, indicativas de que la formación humana debe tomar la dimensión del trabajo, de la participación y de la autoría como componentes curriculares. De la misma manera que la experiencia de los «parques infantiles» de Mario de Andrade en Brasil, remarcamos la dimensión artística del conocimiento y de la cultura popular. Estas dos experiencias se han traducido en la necesidad de la construcción dialéctica del currículo de Educación Infantil que respeta y reconoce la diversidad de infancias como fundamento de la esencia humana. En la metodología adoptamos un enfoque cualitativo (Minayo, 2006), partiendo de las referencias a los principios ideológicos indicados por la investigación militante (Malo, 2004). Asimismo, la investigación participativa (Brandão, 2003) se considera facilitadora del proceso de reflexión, análisis y diálogo con los sujetos partícipes y de los datos de la realidad concreta. Hemos contado también con la contribución de los fundamentos metodológicos de la Sociología de la Infancia y sus técnicas de aproximación a los niños.

Palabras clave: currículo; educación infantil; prácticas de libertad.

ABSTRACT. This text is a fragment of an investigation for doctoral thesis. It deals with the Early Learning content reinvented from the curriculum idea in action (Gimeno, 2000), comprising such a practice as shared authorship process among adults and children. We take the curriculum prescribed as scores and observe that, just as musicians, the subjects involved in the curricular practice - the melody - reinvent themselves indicating other possibilities and directions. Retaking past references to think about the present and advance towards the future occurs as a need to “brush history against the grain” - Benjamin. We have noted the practices of Freinet in France, as an indication that human development should take the dimension of work, participation and authorship as curriculum components. Similarly, the experience of “Children’s Playgrounds” with Mario de Andrade in Brazil, emphasizing the artistic dimension of knowledge and popular culture. Both experiences reflect the need for dialectic construction of the Early Childhood Education curriculum respecting and recognizing the diversity of childhoods, but as the foundation of human essence. As for methodology, we adopt a qualitative approach (Minayo, 2006) with the references indicated in the ideological principles from the militant research (Malo, 2004). The participatory research (Brandão, 2003) is installed as a facilitator in the process of reflection, analysis and dialogue with the participants and the data that the concrete reality reveals. We also have the methodological foundations of Sociology of Childhood with its techniques of approach towards children.

Keywords: curriculum; early childhood education; freedom practice.

  1. Introdução

Ao tratarmos do conteúdo da Educação infantil remetemo-nos a outro texto, fruto de uma investigação realizada para tese de doutoramento. Este conteúdo reinventado a partir da ideia de currículo em ação (Gimeno, 2000), se realiza enquanto processo de autoria compartilhada entre adultos e crianças (Oliveira, 2010). Tomamos o currículo prescrito como partitura e compreendemos que, assim como os músicos, os sujeitos envolvidos com a prática curricular, ou seja, a melodia, reinventam a mesma indicando outras possibilidades e sentidos. Retomar referências do passado para pensar, perceber o presente e avançar para o futuro se dá como uma necessidade de “escovar a história a contrapelo” conforme recomenda Walter Benjamin. Assim, os princípios, valores que adotamos/defendemos direcionam nossos olhares para práticas do passado que projetam outra possibilidade de realidade social através do reconhecimento das diferentes infâncias e suas demandas por intervenção na realidade. Referenciamos as experiências de Celestín Freinet e Mario de Andrade como indicativos de que a formação humana deve tomar as dimensões artística, da cultura popular, do trabalho, da participação, da autoria, tomando a liberdade como componente curricular. Ambas as experiências traduzem a necessidade de construção dialética do currículo da Educação Infantil respeitando e reconhecendo a diversidade de infâncias não como obstáculo, mas como fundamento da essência humana. Os sujeitos visam à liberdade, mas na relação de dominação, indicam o aprisionamento como recurso para o condicionamento e adestramento humano desde a pequena infância. A liberdade questiona as verdades pedagógicas registradas historicamente pelos vencedores e alimenta a intervenção dos vencidos deixando à mostra o que há por debaixo dos pêlos – outras histórias a serem contadas. Apesar de reconhecermos a relevância de experiências curriculares inovadoras na Educação Infantil, como o caso de Reggio Emilia, na Itália, evidenciada especialmente através de seu precursor Loris Malaguzzi, defendemos, neste material, a coerência político-cultural-ideológica-pedagógica dos autores apresentados. Defendemos esses, especialmente, por serem, na atualidade, autores pouco estudados nos cursos de formação inicial e continuada de professores.

Reconhecendo a validade da investigação militante (Malo, 2004), adotamos uma abordagem qualitativa (Minayo, 2006) através da Pesquisa Participante (Brandão, 2003; Freire, 2006) e técnicas da Sociologia da Infância (Ferreira, 2008; Sarmento, 2005 y 2008) quando observamos a necessidade da participação das crianças no processo investigativo.

Com isso, objetivamos reconhecer experiências de autoria curricular na Educação Infantil no Brasil que se contrapõem a lógica do modelo capitalista e articular as experiências do presente com o passado, integrando diferentes sujeitos e tempos históricos a fim de projetar o futuro visando outra possibilidade de formação humana desde a pequena infância. Uma formação pela e para liberdade.

  1. A compreensão do currículo como partitura... Do que tratamos quando referimo-nos à práxis? As contradições
    da ação curricular

O currículo vem sendo material de estudo de diferentes pesquisas que se dedicam a observá-lo, analisá-lo, caracterizá-lo, questioná-lo a partir de perspectivas distintas. Por isso, anunciamos aqui que não pretendemos tratar do detalhamento da história do currículo, ainda que a mesma se revele como pano de fundo, quando optamos por caminhar a partir das diferentes perspectivas que o fundamentam demarcando, enfim, nossa posição.

A conceitualização do currículo, bem como o esforço para projetá-lo, vincula-se imediatamente às pretensões de formação humana e às projeções de sociedade com as quais os estudiosos do campo se identificam. A definição de currículo carrega o que a teoria que o sustenta – de acordo com as escolhas de quem o define – defende e dissemina. “Uma definição [de currículo] não nos revela o que é, essencialmente, o currículo: uma definição nos revela o que uma determinada teoria pensa o que o currículo é.” (Silva, 2007, p. 14).

Compreendendo o currículo como texto que refere à cultura, Xavier (2000) a partir dos estudos que realiza acerca da obra de Gimeno, indica a observação do currículo comparando-o com uma partitura. Desse modo, assim como os músicos leem uma partitura e a transformam em música, professores transformam o currículo prescrito em ação pedagógica. Entretanto, identificamos que quando assumem uma posição política de autoria, optando por intervirem no currículo a partir da dimensão político-cultural, os professores, na realidade, fazem mais do que uma leitura. Interpretam, reinventam, recriam a melodia. Este movimento de reinvenção não se institui a partir da ação isolada de professores. Trata-se de uma postura individual somada à coletividade que integra adultos e crianças. A intervenção no currículo pelos professores só acontece em função de duas questões: 1) posicionamento/opção política e 2) exigência das crianças.

A sensibilidade do adulto para a escuta infantil torna-se essencial a fim de garantir tal movimento compartilhado1 de intervenção político-pedagógica-curricular. A reinvenção da melodia depende de compositores criativos, curiosos e desafiadores. Neste caso, as crianças são os principais interlocutores na medida em que têm a capacidade de recriar o sentido da melodia porque têm aguçada a musicalidade – a liberdade – em sua essência. Professores comprometidos com a reinvenção da melodia, por sua vez, têm a maturidade da opção política e o sentido da educação que desenvolvem pautados por esta escolha político-pedagógica.

Ao indicarmos nossa compreensão acerca do campo curricular, reconhecemos a dificuldade da definição do conceito e, do mesmo modo, suas implicações político, ideológico e cultural no processo de formação dos sujeitos. Por isso, observamos as contradições presentes na ação curricular. Estas se revelam quando se relacionam práticas, costumes, tradições ao desejo de mudança, a compreensão crítica da realidade e a autoria.

As implicações destas relações no cotidiano da escola, nos processos formativos se instituem como um projeto político de sociedade. A necessidade de projeção e intervenção curricular se revela urgente quando analisamos as condições em que, na atualidade, orientam as ações curriculares desde a oficialidade.

Remetemo-nos a Löwy (2005) quando refere-se à Walter Benjamin ao tratarmos destas questões porque consideramos que se reafirmam como processo de permanente exclusão e desigualdade social ao longo da história. Para o autor, faz-se necessário “escovar a história a contrapelo” para que possamos enxergar, de fato, a verdadeira história. A escola, em seu processo histórico de institucionalização dos bens culturais da sociedade, organiza-se a partir de um currículo que contribui com a desigualdade e exclusão social quando sustenta a visão dos vencedores e reforça o não lugar no mundo que os vencidos ocupam. “Escovar a história a contrapelo”, expressão utilizada por Walter Benjamin, é justamente fazer o movimento contrário ao de transmissão da cultura dominante sem questioná-la. É opor-se ao comodismo da linearidade, da ideia evolucionista de cultura e história considerando outras verdades que se escondem quando se destaca somente a percepção de um ponto. Um documento seletivo de cultura, como é o currículo, indica escolhas e, portanto, carrega uma percepção de cultura que se identifica com uma opção político-ideológica.

Os traços de uma escola que se institui a partir da lógica do capital reforça a prática de ocultamento destes excluídos. Na realidade, estes passam a nem ser mais excluídos porque são inexistentes. O que não existe não merece nem mesmo a condição de excluído. “[...] as desigualdades escolares reproduzem e reforçam as desigualdades sociais. O que está aqui em causa, de forma explícita, é a assunção do princípio de promoção da desigualdade como programa de política educativa.” (Sarmento, 2015, p. 74).

Identificamos a importância do exercício da práxis docente a fim de garantir a melodia educativa. Assim, propomo-nos a observar de que maneira a música pode ser tocada, a quem compete manejar o instrumento e, como a melodia se reinventa a partir dos sujeitos que a recompõem. Para tal, iniciamos nossa canção a partir da busca do movimento vivo e investigativo que é a práxis.

Ainda que de maneira sucinta, destacaremos tal conceito explicitando como observamos a realização deste. Sánchez Vázquez (2007, p. 219) esclarece que “toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis”. Isto significa que, a existência da práxis depende da interlocução, interseção entre teoria e prática. Esta, por sua vez, depende da consciência que, segundo o mesmo autor, é inseparável de toda verdadeira atividade humana ainda que tal atividade também possa caracterizar-se “independentemente de sua consciência, e das diferentes operações ou manipulações exigidas para a sua transformação” (Sánchez Vázquez, 2007, p. 225).

Desde a dimensão da práxis, podemos associá-la à dimensão teórica, ou seja, quando a atividade teórica a partir da dimensão política da práxis se realiza como ação. Autores como Marx, Gramsci, Freire, Freinet, entre outros, trataram do sentido da práxis tendo em vista diferentes considerações. Entretanto, todos representam na ideia de práxis a possibilidade transformadora que a mesma carrega. Transformadora como o sentido de trabalho em Marx. A práxis é teoria (reflexão) e ação conjugadas, capazes de transformar a natureza e, por sua vez, de transformar o próprio homem. É formativa, é movimento dialético, intenso, vivo, essencialmente humano.

Compreendemos que a alternativa ao modelo do capital é caminho possível para a transformação da realidade apontada por este. Neste sentido, referenciamos a perspectiva Político-Cultural2, de compreensão do Currículo, tratada por Xavier (2000) para avançarmos em propostas alternativas. Assim, nos comprometemos com a crítica ao que está dado e fundamentamo-nos em proposições que contribuam para a mudança de dito quadro.

Na Educação Infantil, a defesa da formação de sujeitos plenos, críticos, está presente não somente nas lutas por uma infância digna, mas especialmente no discurso dos profissionais que atuam neste segmento e em boa parte dos documentos produzidos, no Brasil, nos anos 2000, que refletem a intervenção de grupos que lutam pelo reconhecimento da Educação Infantil desde uma lógica que se desprende do conservadorismo, da meritocracia, da mercantilização.

Entretanto, mais do que o conflito entre práticas conservadoras ou progressistas, a linha tênue na qual se equilibram as ideias e valores acerca da educação escolar dos sujeitos na pequena infância é todo o tempo ameaçada por um falso progressismo que atende às especulações de formação para o capital já explícitas no ensino fundamental.

  1. Investigar o conteúdo da Educação Infantil: experiências
    e rememorações que nos indicam possibilidades de viver
    o presente e projetar o futuro.

Na atualidade, temos tido, com frequência, referência na experiência curricular propostas e adotada em Reggio Emilia, norte da Itália, tendo Loris Malaguzzi como precursor. A visibilidade das experiências traduzidas pelo autor refletem a relevância de movimentos alternativos que ganham força através do intercâmbio com outros sujeitos. Desta experiência, em especial, destacamos alguns pontos que compreendemos como fundamentais e que também dialogam com o que vimos apresentando na defesa de uma educação infantil pela e para a liberdade. São eles:

  1. Conexão permanente entre teoria e prática, produções escritas sobre avanços conceituais na formulação e implementação de políticas, práticas pedagógicas e formação de professores na área de educação infantil.
  2. Revolução no espaço da cidade com a ideia de ateliê que nasce como integrante do projeto de educação infantil italiana na década de 1970.
  3. Compreensão da criança como produtora de cultura, sujeito ativo, inventivo, com capacidade para explorar, curiosa.
  4. Atualização da cultura da imagem – estética – através do trabalho conjunto entre atelienista, professora e crianças. A integração destes sujeitos respeita as cem linguagens defendidas por Malaguzzi.
  5. Integração entre crianças de diferentes idades respeitando o tempo de cada um em seu processo de desenvolvimento mas não deixando de integrar mais jovens e mais velhos.
  6. Respeito as diferentes interpretações subjetivas, divergentes e independentes sobre o mundo em oposição as ideias de progresso linear e cumulativo;
  7. Reconhecimento de que o poder da imaginação é importante para crianças e adultos.
  8. Promoção de condições de aprendizagem através de ambiente acolhedor, livre com espaço para produção de cultura e interlocução de saberes.
  9. Negação da necessidade de um modelo de escola.
  10. Valorização e defesa intransigente de princípios que devem orientar todas as escolas.

Reconhecemos a validade desta proposta, porém, conforme anunciado, optamos por destacarmos as experiências de Célestin Freinet, educador francês e comunista e Mario de Andrade3, poeta e estudioso da cultura popular brasileira, em diferentes épocas e lugares, mas que adotam princípios de formação humana que dialogam entre si, sustentando práticas que têm, em suas bases, aspectos que os definem como opositores ao modelo educativo dominante e que, talvez por este motivo, menos divulgados como fundamento teórico-político nos cursos de formação docente.

O que está em jogo neste momento é o tipo de abordagem e projeto político de sociedade que se destacam a partir das orientações, reflexões e ações educativas. Os valores, fundamentos e bases ideológicas que se revelam comuns entre Freinet e Mario permitem o diálogo com os encaminhamentos prático-metodológicos de nossa investigação acerca das ações educativas junto às crianças inseridas em classes de Educação Infantil. Vale lembrar que a escolha dos referidos autores não inviabiliza a interlocução com outros(as) que possam contribuir para pensar práticas que se fundamentam na ideia de outro projeto de sociedade.

Apesar de não dedicarem-se exclusivamente à pequena infância, as contribuições destes educadores são de grande valia para a Educação Infantil. Assim, o diálogo com referências mais específicas ao campo da Educação Infantil é inevitável. Um dos pontos de principal relevância que aproximam os autores é iniciativa de colocar a partitura-currículo que orienta a melodia-prática pedagógica de ponta-cabeça quando enxergam as necessidades de um povo como algo que transcende o que está posto como proposta curricular. Em suas práticas, evidenciam que a “partitura” pode ser lida de diferentes formas e, por isso, existem outras possibilidades de “melodias”.

Observamos em Freinet o vínculo com o trabalho, a participação e o compromisso com a mudança social explicitados em sua obra. Este movimento, referenciado na obra e na prática do autor, se realiza desde a pequena infância, educando crianças e adultos simultaneamente. As associações com outro projeto social, com o povo são evidentes em sua proposta pedagógica que toma o trabalho como fundamental ao desenvolvimento humano marcando, portanto, nossa diferença diante de outros seres vivos. Dois fatores se destacam como “facilitadores” destas práticas pela e para a liberdade em Freinet: 1) suas ideias progressitas, princípios de formação humana; 2) sua saúde débil.

Fig 1- Aula passeio

O problema da escola popular era tratado por Freinet como uma necessidade vital. Para o educador, a escola precisava ser renovada e esta renovação seria também a revolução das práticas escolares tomando sua relevância para a vida das pessoas.

Freinet enxergava na escola a possibilidade de intervenção para a mudança social e defendia a urgência da tomada de consciência por parte dos professores a fim de garantir a transformação das ideias e práticas pedagógicas em defesa da escola popular.

[...] abandonad las viejas vestiduras y venid con nosostros al inmenso lugar de trabajo que es la Escuela Popular. [...] debemos ser todos los educadores del pueblo juntos quienes, mezclados con el pueblo, en su lucha popular, llevemos a la realización la Escuela del Pueblo. (FREINET, 1974, p.19-20)

Apesar de se contrapor às “técnicas” utilizadas pela escola tradicional, Freinet afirma que o atendimento às exigências dos programas oficiais se realiza em sua escola na medida em que se cumprem as disciplinas. Na realidade há uma releitura dos documentos e exigências oficiais a fim de interpretá-las em favor dos valores da escola popular. Este cumprimento se dá de forma integrada, articulada, ampliando, portanto, a capacidade reflexiva e interventora dos sujeitos. Assim, os conhecimentos repassados e criados estão para além do que orientam os programas. Do mesmo modo, tal dinâmica provoca a atividade política e participativa como integrante curricular fundamental.

Para um diálogo com as proposições de Freinet, tomamos as contribuições do modernista4 brasileiro Mario de Andrade – que viveu, descreveu, valorizou, pesquisou e divulgou intensamente a cultura brasileira – como fundamentais para pensar o Currículo da Educação Infantil como um projeto de oposição à opressão, pela e para a liberdade.

Concentrar-nos-emos na experiência dos Parques Infantis, na década de 1930, na cidade de São Paulo, como experiência que se aproxima à proposta pedagógica de Freinet tendo como primeiro ponto comum a relação imediata com um projeto educativo para as camadas populares, para os filhos dos trabalhadores.

Em 1935, Mario de Andrade é nomeado chefe da Divisão de Expansão Cultural e Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Na ocasião, cria os Parques Infantis (PI) como proposta educativa que se dá como alternativa à escola para as crianças filhas dos trabalhadores. Por conta desta característica, os Parques Infantis implicavam-se em contrapor as práticas escolarizadas e motivar o desenvolvimento da socialização-integração e troca de saberes e tradições culturais.

Compreendemos os PI como ambientes ricos em transmissão e produção da cultura através do cultivo das tradições e da oportunização da (re)invenção da cultura popular. Do mesmo modo, os Parques Infantis também anunciam, reconhecem e valorizam a existência da(s) cultura(s) infantis como característica das diferentes infâncias.

Neste sentido, afirmamos que os Parques Infantis revelam uma experiência única que expressa as possibilidades educativas diferenciadas das realizadas nas escolas, tomando a vida como contraponto ao modelo educativo castrador e conservador reverenciado na época. Assim, a produção e troca de conhecimentos se dava, portanto, a partir de outras iniciativas. Desde sua estrutura física aos principios orientadores, os Parques Infantis se constituem como integradores da cultura popular a partir da vivência da mesma. Conforme situamos anteriormente, foram criados a partir do Departamento de Cultura e, por isso, eram coerentes com a proposta de tal Departamento que buscava valorizar experiências educativas-culturais extra-escolares.

Sua estrutura permitia que, assim como experimentado na pedagogia Freinet, o espaço externo do edifício fosse muito mais aproveitado do que o interno. Do mesmo modo, a organização das atividades a partir das oficinas, dos trabalhos manuais e produções artísticas (plásticas, dramatúrgicas ou literárias) constituíam uma proposta curricular diferenciada ainda que não tivesse a pretensão educativa escolar.

  1. Caminhos metodológicos na intelocução de experiências curriculares na Educação Infantil pela e para a liberdade

Escolhemos o caminho da emancipação e, por isso, arriscamo-nos na construção de referenciais que sustentem nossas opções político-ideológicas defendidas desde o início deste trabalho e em nossa trajetória profissional como referência metodológica que nos levará a adotar/criar métodos de acordo com a necessidade que a investigação apresenta. Apesar de observarmos a validade de diferentes abordagens investigativas, destacamos aqui, a abordagem qualitativa como orientação para pensarmos a investigação educativa na medida em que compreendemos que “o objeto das Ciências Sociais é essencialmente qualitativo.” (Minayo, 2006, p. 42).

Com base nos estudos feministas, Malo (2004) nos instiga a pensar a metodologia desde a experiência pessoal, tomando-a como forma de organização de um coletivo. Ou seja, a experiência individual compartilhada evidencia a reflexividade e, consequentemente, a auto-consciência e a consciência coletiva que impulsiona a libertação. Tomar o que seria “objeto de estudo” numa investigação clássica, conservadora, converte-se, nesta perspectiva, em assumir as contribuições de co-autores, co-investigadores5 num exercício de coerência investigativa.

Tal opção compreende os sujeitos envolvidos no processo investigativo como sujeitos históricos, tendo em vista a perspectiva do materialismo histórico destacada por Benjamin (2005). Assim, o objeto investigativo é histórico; “o sujeito do conhecimento histórico é a própria classe oprimida, a classe combativa” (Löwy, 2005, p. 108 apud Benjamin, Tese XVII) e a relação entre sujeito investigador e sujeito investigado é complementar na medida em que o pesquisador é, dialeticamente, autor e fruto de seu tempo histórico assim como o sujeito investigado. Esta relação sustenta-se em principios ideológicos assumidos pelo investigador que busca a coerência entre suas ideias, suas “balizas filosóficas”, como sugere Minayo (2006), e sua ação investigativa negando uma postura de neutralidade diante do processo.

[…] a relação entre o sujeito investigador e o sujeito investigado é crucial. A visão de mundo de ambos está implicada em todo processo de conhecimento, desde a concepção do objeto até o resultado do trabalho. O reconhecimento dessa contingencia é uma condinção sine qua non da pesquisa que, uma vez compreendida, pode ter, como fruto investimentos radicais no processo de objetivação (Demo, 1981) do conhecimento. Isto é, cabe ao pesquisador um acurado instrumental teórico e metodológico que o municie na aproximação e na construção da realidade, ao mesmo tempo que mantém a crítica não só sobre as condições de compreensão do objeto como de seus próprios procedimentos (Minayo, 2006, p. 42).

Tratar da realidade concreta, como sugere Freire (2006) e, especialmente neste caso da investigação que propomos, é preocuparmo-nos com o currículo desde a ótica dos sujeitos que lidam com o mesmo, que vivem e fazem deste melodia tendo em vista sua compreensão como partitura. Tal analogia remete a melodia à prática pedagógica curricular e a partitura às orientações oficiais descritas no texto/documento curricular. Ou seja, compreendemos que professora(s) e crianças que vivem-fazem do currículo da Educação Infantil do Município de Niterói ação libertadora, tendo em vista a relação destes sujeitos com o passado, o presente e o futuro, reinventam suas formas cotidianamente traçando enfim, uma nova melodia que reinventa a partitura apresentada. Somada a esta compreensão, reafirmamos que a ação de autoria curricular, conforme mencionado anteriormente e tratada em outro processo investigativo, se realiza de maneira compartilhada, entre adultos e crianças, no Currículo da Educação Infantil.

Freire (2006) defende que a realidade concreta é o problema primeiro de quem trabalha com pesquisa social e destaca a importância desta ser encarada pelo investigador como algo mais do que o local de coleta de dados, fatos etc. A realidade concreta expressa também a percepção dos sujeitos envolvidos com o local, os dados, os fatos. “(...) a realidade concreta se dá a mim na relação dialética entre subjetividade e objetividade (Freire, 2006, p. 35)”. Ela é o que os pesquisadores clássicos chamariam de objeto.

Tomamos a sugestão de Minayo (2006) considerando os roteiros para observação participante e para entrevista. Entretanto, destacamos que tratar de roteiro como instrumento é diferente de adotar o questionário6 na medida em que correspondem a lógicas específicas e distindas de aproximação do objeto, especialmente no que se refere ao roteiro de entrevista que pode assumir-se como “roteiro para entrevista aberta” ou “roteiro para entrevista semi-estruturada”. De maneira mais específica, o roteiro da entrevista deve “apresentar-se na simplicidade de alguns tópicos que guiam uma conversa com finalidade” (Minayo, 2006, p. 189), contemplando um conjunto de conceitos que sustentam as muitas faces do objeto – a realidade concreta.

Definindo suas orientações, “balizas filosóficas”, o investigador, na fase inicial do trabalho, poderá organizar as ideias contemplando algumas decisões fundamentais para o andamento da investigação como, por exemplo, a definição do que irá observar, se a observação será livre ou com roteiro específico, a dimensão temporal de sua inserção no campo – tendo em vista as demandas combinadas da pesquisa e do próprio campo – a escolha do espaço da investigação, as estratégias de entrada no campo, as técnicas etc.

Ao investigarmos o currículo da Educação Infantil tomamos, obrigatoriamente, as crianças como interlocutoras no processo investigativo tanto quanto os adultos. Estas se revelam como sujeitos partícipes fundamentais para a análise e reflexão das práticas curriculares. Desse modo, faz-se necessário o reconhecimento das especificidades deste grupo de interlocutores e consequente busca por uma abordagem que contemple a condição geracional de sujeitos sociais, culturais e históricos que são desafiadores.

O fato de lidar com crianças e estas serem diferentes por sua condição geracional, não limita a possibilidade de intervenção das mesmas no desenvolvimento da pesquisa na medida em que a escuta sensível7 constitui-se como um dos principais instrumentos para a coleta de dados. “(...) escutar as vozes dos sujeitos, não apenas para posterior interpretação, mas para a busca de sentidos e de novas aprendizagens, num processo de ação-reflexão-ação coletivo.” (Merlo, 2013, p. 41).

Assim, apesar de diferentes, não são desiguais. As crianças são interlocutoras de uma investigação quando esta se realiza com elas e não sobre elas. Desse modo concordamos com Ferreira (2008, pp. 152 e 158) quando reivindica que

[...] seja reafirmada uma nova atitude epistemológica: mais do que olhar para examinar é preciso escutar para compreender o que as crianças dizem a partir da sua voz. [...] aproveitar as interrogações das crianças para prosseguir o esclarecimento das minhas intenções e a redefinição dos meus próprios papéis enquanto investigadora.

E Pereira (2012, p. 63) completa:

[…] dialogar com as crianças e suas produções, ou assumir a infância como temática de estudo, funda uma realidade em que a experiência da pesquisa é necessariamente diferente daquela que poderia ser vivida no diálogo com outros interlocutores, temas ou contextos. […] o que aqui nomeamos como pesquisa com crianças implica, portanto, a construção de uma postura de pesquisa que coloca em discussão o lugar social ocupado por pesquisadores e crianças na produção socializada de conhecimento […]. Mais do que uma opção por ter crianças como interlocutoras no trabalho de campo, implica pensar os lugares de alteridade experimentados por adultos/pesquisadores e crianças ao longo de todo processo de pesquisa […] Ou seja, ainda que a interlocução com as crianças se torne mais facilmente visível no trabalho de campo, compreendemos que essa interlocução se faz presente em todo processo de pesquisa, antes e depois do trabalho de campo, e mesmo na pesquisa de caráter eminentemente teórico que abdique de um trabalho dessa natureza. […] um trabalho de campo que coloque face a face pesquisador e crianças cria um tipo de realidade diferente daquela experimentada pelo pesquisador quando este se debruça sobre estudos teóricos ou sobre produções infantis que dispensem a presença das crianças em sua interlocução.

Entretanto, vale destacar que, como nos alerta Pereira (2012), apesar da referência e da ação compartilhada com as crianças, uma investigação científica é território privilegiado do adulto que a partir do problema a ser investigado inicia a interlocução com as crianças. Estas fazem intervenções evidentes e participam em co-autoria porque, na realidade, o autor primeiro de um trabalho que se pretende teórico conta com a autoria final de um adulto. A autora destaca a importância e a validade da participação das crianças, mas faz este alerta tendo em vista a coerência com um processo da pesquisa que toma a experiência da alteridade ponto fundamental. Esta experiência “é constitutiva da vida social e se transforma conforme as instâncias ou contextos em que é por eles [adultos e crianças] experimentada” (Pereira, 2012, p. 71).

Os “pequenos-grandes” e incansáveis interlocutores de nosso processo investigativo também nos informam sua condição social e cultural como crianças situadas em determinando grupo social. Esta condição, como provoca Arroyo (2012), interroga nossas verdades pedagógicas, nossa ética profissional e o currículo. A infância vivida e revelada por estas crianças no cotidiano escolar se constitui como elemento ainda mais desafiador do que o fato de tomar a infância como campo de estudo. Além de lidarmos com as especificidades de uma categoria geracional lidamos com um constructo social que é resultado da extrema desigualdade social.

Passamos, portanto, para mais um elemento desafiador: a constatação de que carregamos concepções de infância e criança que não correspondem ao que encontramos nas escolas públicas de educação infantil ainda que investigadores esforcem-se para “descortinar” tais concepções. As crianças com as quais nos deparamos são os excluídos sociais que ainda não fazem parte da história oficial da infância. São filhos e filhas das camadas populares, das instituições, antes, exclusivamente assistencialistas8.

Quando a mirada atenta focaliza as crianças em movimento na vida cotidiana, logo se destacam seus corpos precarizados e degradados pelas práticas sociais alienantes e opressoras da lógica do capitalismo, mas também pelas possibilidades de práticas de transgressão, resistência e subversão da ordem vigente. [...] Quando a mirada se aproxima desses sujeitos coletivos decretados em nossa história como inexistentes, inferiorizados se impõe uma indagação: Como esses corpos foram produzidos como se fossem invisíveis e não portadores de uma crítica e mudança social? Os docentes educadores experimentam no cotidiano das salas de aula nas escolas e na diversidade de projetos socioeducativos as presenças interrogantes, até incômodas desses corpos marcados pela simbiose entre desigualdades sociais e diversidades socioculturais. Interrogações que exigem análises e respostas [...] Os estudos da infância sugerem a urgência de enfrentar essas questões. Mostrar de que corpos vêm as indagações mais desestabilizadoras para os estudos da infância e para as teorias pedagógicas. (Arroyo, 2012, pp. 9-11).

Como lidamos com estas realidades, culturas e infâncias no currículo vivo?

Reconhecer a infância como categoria social é indiscutivelmente um avanço que deve ser considerado nos estudos da Sociologia, da História, Pedagogia etc. Entretanto, ao tratarmos deste reconhecimento temos como tarefa a observação das desigualdades impostas por uma sociedade fragmentada em sujeitos existentes e inexistentes porque fragmentada em classes sociais. Há crianças e infâncias não vividas num campo social que abarca os inexistentes, os subalternos, os excluídos sociais porque se sustenta na lógica do capital. Esta infância evidencia-se na América Latina e, no Brasil, ocupa, em maioria, as escolas públicas infantis com suas especificidades desafiadoras e desestabilizadoras. Assim, “se a infância desafia a pedagogia desde suas origens, a experiência de vivê-las com tanta precariedade traz desafios ao repensar-se da pedagogia e da docência.” (Arroyo, 2012, p. 25).

Outras infâncias se apresentam e não há como estar indiferente. Somos obrigados a criar outra cultura escolar se desejamos atender estes grupos, se pretendemos que se constituam como sujeitos de fato. Desse modo, conhecê-los melhor, compreender como se veem e como reagem ao mundo é tarefa de extrema importância. “Superar visões negativas, segregadoras e inferiorizadas e avançar para miradas mais compreensivas, positivas seria uma rica contribuição para os estudos da infância.” (Arroyo, 2012, p. 28), bem como para as ações pedagógicas, curriculares. Qual a abordagem pedagógica estabelecida para a emancipação dos filhos da classe trabalhadora? Qual currículo sustenta tal prática?

Elegemos uma escola pública de Educação Infantil: Unidade Municipal de Educação Infantil Rosalina de Araújo Costa (UMEIRAC), situada no Município de Niterói, no Barreto, bairro da zona norte do referido município, com população oriunda das fábricas e estrada de ferro9, no estado do Rio de Janeiro, Brasil, que atende cerca de 400 crianças em dois turnos.

A escolha desta se deu em função da capacidade de intervenção na realidade apresentada pelos sujeitos que compõem a escola e de seu posicionamento político em defesa de uma educação infantil com caráter emancipatório. Diante das exigências apresentadas pela administração central – Secretaria de Educação – a UMEIRAC, historicamente, se manteve firme em seus propósitos em diferentes ocasiões. Observamos tal atitude de coerência política especialmente através da interlocução com esta Unidade Escolar em outra investigação que realizamos. Assim, estreitamos os laços e as ideias de projetos de trabalho-formação conjuntas. Outro ponto fundamental para a definição da UMEIRAC como campo de pesquisa deu-se em função da maneira como se comportavam as crianças desta Unidade Escolar diante das propostas de trabalho seja da professora, seja da investigadora. Precisávamos tomar ciência se esta evidência sustentava-se porque estas crianças eram mais motivadas a se expressarem, se este era um comportamento associado às propostas de ruptura com as formas tradicionais de relação adulto-criança ou ainda por outro motivo. Compreendemos que esta seria a “clave de sol” que daria início a reescrita de nossa partitura curricular compondo assim, novas canções para liberdade no currículo da Educação Infantil.

Focamos, especialmente, um pequeno grupo de 20 crianças de 5 anos de idade que estão na escola por 4 horas diárias no primeiro turno. Após o contato inicial com a Unidade Escolar, quando conversamos com Equipe de Articulação Pedagógica10, a escolha dos sujeitos partícipes da investigação – o grupo ao qual nos referimos – deu-se por indicação das lideranças da escola, ou seja, a direção – equipe técnico-pedagógica (EAP) – que relatou o compromisso e dedicação apresentados pela professora ao lidar com sua tarefa cotidiana bem como a disponibilidade do grupo visto que haviam outros investigadores que estavam trabalhando com outros grupos.

Situamos este recorte como um fragmento de um contexto mais amplo e que deve ser relacionado com este contexto mais amplo. Não há como tratar o fragmento por ele mesmo e, tampouco tomá-lo como totalidade porque trata-se de uma representação social conforme Minayo (2006) nos alerta.

  1. O conteúdo da Educação Infantil: quando a melodia reinventa a partitura

Dispomos de documentos oficiais que definem o que é o currículo da Educação Infantil em nível nacional – as Diretrizes Curriculares e outros documentos complementares – todavía, não podemos afirmar que tipo de infâncias contém estas orientações. Quais concepções de infância, criança, formação humana, cultura, educação infantil e profissionais de educação infantil estão contempladas nestes materiais?

Tais definições carregam fortes implicações ideológicas e, por isso, precisam ser discutidas. Além disso, a atualidade é marcada por retrocessos, do ponto de vista político-administrativo, que se fundamentam em cortes orçamentais e políticas minimalistas no campo da educação.

Os sujeitos que ocupam o território da UMEIRAC se colocam como curriculistas quando por meio do debate, da investigação, da reflexão conjunta e consequente intervenção curricular alteram a realidade. Suas produções se dão a partir do desenvolvimento de trabalho por projetos e a dimensão integradora do conhecimento é tratada com autoria por crianças e adultos, de maneira compartilhada.

Elencaremos algumas ideias que conduzem a reformulação curricular apresentadas pelo conjunto de profissionais em diálogo com as crianças da UMEIRAC. Tratam-se de propostas fundadas nas experiências individuais e coletivas que entrelaçam diferentes culturas como orientação principal da constituição do conteúdo da Educação Infantil:

  1. Projeto de Cultura: busca a valorização da cultura popular brasileira – assim como Mario de Andrade – através do estudo de elementos pouco divulgados na cultura midiática, mercadológica. São eleitos temas que, geralmente, não estarão contemplados no currículo da escola básica, mas que revelam a sabedoria popular e a dimensão da cultura produzida pelo povo no Brasil. Estes saberes se relacionam com os trazidos pelos sujeitos que compõe os projetos de trabalho, tem sua temática proposta inicialmente pelo conjunto de profissionais da escola e, a partir daí, é tratado considerando diferentes frentes pelos grupos de crianças e professores que se relacionam como interlocutores no processo de aquisição/construção do conhecimento. A experiência das crianças em algumas temáticas muitas vezes é maior do que a dos profesores. Assim, a intervenção destas no planejamento curricular torna-se decisiva para o andamento do trabalho.
  2. Projetos independentes: são conhecimentos que se aprofundam a partir do interesse de determinado grupo ou mais de um grupo em interlocução sobre um tema. O comportamento investigativo se instituí como prática fundamental e necessária para a realização do projeto. O trabalho coletivo se instituí como orientação para a ação curricular, conforme indicado por Freinet.
  3. Conhecimentos/”conteúdos”: Identidade, liberdade, autonomia e responsabilidade; brinquedos e brincadeitas; sentimento de solidariedade e coletividade; solução de problemas, direitos e deveres (do ponto de vista do raciocinio lógico e do ponto de vista social – convívio em sociedade); realidade social, histórico e cultural; diferentes linguagens (lógico matemática, oral, escrita, musical, estética, interpretativa, criativa, investigativa, motora): este conjunto resume os “conteúdos” que atravessam os projetos de trabalho, sejam os mesmo propostos inicialmente pelos adultos ou pelas crianças.
  4. Avaliação processual: é definida no Projeto Político da escola como um processo que permite, por meio da observação das produções dos alunos e discussões a respeito do processo pedagógico, a melhoria da qualidade do trabalho com a reorganização/reorientação do mesmo.

A validade do conhecimento adquirido e criado no desenvolvimento do projeto se dá justamente durante o seu processo de criação-produção-execução-avaliação que se institui de maneira dialética. Assim, o planejamento, os conteúdos trabalhados, a avaliação compõem um currículo que é vivo, que rejeita a hegemonia de um currículo definido a partir de fragmentos de um conhecimento estático originário de um ponto de vista que pretende a dominação dos sujeitos.

Revisitar tais propostas considerando os possíveis interlocutores – sejam outros autores ou outras propostas observadas – se institui como tarefa para pensar outras definições acerca do Currículo da Educação Infantil na atualidade, conforme sugere Walter Benjamin (2005) ao propor que revisitemos o passado a fim de compreendermos e intervirmos no presente tendo em vista outra possibilidade de futuro.

Este movimento – acreditamos – permitirá uma revisão acerca das propostas que consideramos alternativas ao modelo do capital e que carregam concepções de infância, de Educação Infantil e, consequentemente, de sociedade que viabilizarão a afirmação ou descarte de determinadas ideias e princípios que sustentarão uma proposta pela e para a liberdade pautada na permanente reinvenção da cultura escolar e social de maneira articulada. A melodia da dialocidade, enfim, reinventa a partitura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Ao tratarmos de autoria compartilhada, referimo-nos ao que está indicado em Oliveira (2010) quando trata da possibilidade da autoria curricular por parte dos alunos-crianças como uma condição para autoria docente-adultos e vice versa.

2 Contrapondo as adesões das perspectivas curriculares ao projeto capitalista que, renovado, desde as orientações tecnicistas, submete a sociedade a uma divisão social das classes promovendo a desigualdade, a exploração e a alienação, a perspectiva Político Cultural indica possibilidades de observar o currículo como um instrumento emancipatório, alimento para motivar a liberdade de praticar, intervir e viver o mesmo.

3 Ambas experiências do século XX.

4 A semana de Arte Moderna aconteceu de 11 a 17 de fevereiro de 1922, na cidade de São Paulo e marcou a ruptura com modelos artísticos que não representavam a cultura nacional. Em defesa de novas ideias e conceitos artísticos de inovação, de liberdade criadora, de valorização das raízes culturais este movimento anunciava o modernismo no Brasil tendo em vista a mudança de significados e sentidos que manifestavam outras formas de expressão, outros sujeitos, outra sociedade. Representavam essa nova forma de expressão da arte brasileira poetas, escritores, pintores como: Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfaltti, Di Cavalcanti, Heitor Villa-Lobos entre outros.

5 Marta Malo (2004) faz referência às técnicas de entrevista adotadas por Karl Marx ao abordar trabalhadores em uma fábrica na França com perguntas instigantes acerca da condição proletária dos referidos sujeitos. Esta dinámica foi interpretada como uma ruptura com a divisão entre sujeito-investigador e objeto-investigado. A extensão do uso desta perspectiva se intensificou nas décadas de 1960-1970. No Brasil, a investigação-ação e a pesquisa participante ganharam destaque com as experiências investigativas de autores como Carlos Rodrigues Brandão e Paulo Freire.

6 Minayo (2006) diferencia o questionário do roteiro definindo o primeiro como um instrumento que pressupõe hipóteses e questões bastante fechadas cujo ponto de partida são as referências do pesquisador e o segundo como aquele que visa compreender o ponto de vista dos atores sociais previstos como sujeitos/objetos da investigação contendo poucas questões.

7 Em Merlo (2013) observamos a necessidade da “escuta sensível” como recurso investigativo conforme as recomendações de René Barbier (1992, 2002) e Barthes (1990).

8 Em Kuhlmann (2011) é destacado que as dimensões educativa e social nunca estão descoladas especialmente quando tratamos da história da Educação Infantil e das instituições de atendimento à pequena infância de maneira geral. Entretanto, a distinção a respeito do atendimento às diferentes camadas sociais sempre esteve marcada na história destas instituições.

9 O bairro foi constituído a partir das fábricas e da estrada de ferro ali instaladas. Os trabalhadores começaram a ocupar a região para estarem mais próximos ao local onde trabalhavam. Atualmente, as fábricas estão desativadas bem como a estrada de ferro, mas o bairro preserva suas características de ocupação inicial dando lugar também a uma nova realidade a partir do desemprego em massa o que contribui para a criação das favelas.

10 Em Niterói, a responsabilidade técnico-pedagógica de cada Unidade Escolar é determinada em Portaria 087/2011, Art. 15: A Equipe de Articulação Pedagógica (EAP) de cada Unidade de Educação deverá ser constituída pelo Diretor, Diretor-Adjunto, Pedagogo, Orientador Educacional e/ou Supervisor Educacional, Secretário Escolar e Professor Coordenador de turno, conforme a modulação do quadro profissional da Unidade. Este profissionais, no caso das UMEI: Diretor Geral, Diretor Adjunto e Pedagogo estão incumbidos de tarefas administrativas e da organização político-pedagógica da Unidade Escolar.

* Professora na Rede Pública Municipal de Niterói (Fundação Municipal de Educação); Integrante do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Currículo (Universidade Federal Fluminense); Doutora em Educação pela Universidade de Valencia (Espanha).

 

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