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 ISSN: 1681-5653

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  Experiencias e Innovaciones (E+I)

Casos de ensino e processos de formação de professoras iniciantes

Maévi Anabel Nono
Departamento de Educação, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Brasil
Maria Da Graça Nicoletti Mizukami
Universidade Federal de São Carlos, SP, Brasil

Número 42/4
10-04-07


Resultados de pesquisas que focalizam casos de ensino como ferramentas de promoção e investigação de processos de formação docente (Mizukami, 2000; Nono, 2001; Shulman, 2002) apontam a necessidade do desenvolvimento de estudos que possam oferecer maiores esclarecimentos quanto às potencialidades e limitações dessa modalidade de ensino e de pesquisa. De acordo com Merseth (1996), um caso de ensino pode ser definido como um documento descritivo de situações escolares reais, elaborado para ser utilizado como ferramenta no ensino de professores. Trata-se de narrativas elaboradas com o objetivo de conferir visibilidade ao conhecimento sobre o ensino envolvido nas situações descritas (ALARCÃO, 2003). Estratégias de estudo de casos de ensino permitem que os professores expressem seus conhecimentos sobre o ensino e analisem conhecimentos de outros colegas de profissão. Na pesquisa relatada neste artigo, professoras iniciantes da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental analisaram casos de ensino e expressaram conhecimentos relativos ao ensino e à aprendizagem e aos primeiros anos de profissão. Estudos têm evidenciado a importância que os anos de início da carreira docente têm nos processos de formação (Tardif; Raymond, 2000; Tardif, 2002; Abarca, 1999). Os primeiros anos da docência parecem ser decisivos na estruturação da prática profissional e podem propiciar o estabelecimento de rotinas e certezas cristalizadas sobre a atividade de ensino que acompanharão o professor ao longo da sua carreira (Tardif; Raymond, 2000). De acordo com Feiman-Nemser (2001), os primeiros anos representam um período intenso de aprendizagens e influenciam não apenas a permanência do professor na carreira, mas também o tipo de professor que o iniciante virá a ser. Sem desconsiderar que o desenvolvimento profissional docente deve ser descrito muito mais como um processo do que como uma série sucessiva de eventos pontuais, Huberman (1993) descreve fases que marcam a carreira docente e que são comumente vivenciadas pelos professores, destacando a entrada na carreira como um período de sobrevivência e descoberta. Esse primeiro aspecto tem a ver com o “choque de realidade”, com o embate inicial com a complexidade e a imprevisibilidade que caracterizam a sala de aula, com a discrepância entre os ideais educacionais e a vida cotidiana nas classes e nas escolas, com a fragmentação do trabalho, a dificuldade em combinar ensino e gestão de sala de aula, a falta de materiais didáticos, etc. O elemento da descoberta tem a ver com o entusiasmo do iniciante, com o orgulho de, finalmente, ter sua própria classe e fazer parte de um corpo profissional. De acordo com Huberman (1993), sobrevivência e descoberta caminham lado a lado no período de entrada na carreira.

Caracterização da trajetória profissional das professoras iniciantes

Entre os casos de ensino analisados pelas professoras participantes da pesquisa aqui relatada (aspectos relativos aos demais casos analisados e elaborados são discutidos em NONO, 2005), o caso “A trajetória profissional de Stefânia, professora de Educação Infantil” (PADILHA, 2002) refere-se à narrativa em que uma professora com 20 anos de experiência docente discute aspectos relacionados à sua profissão e destaca dilemas, dificuldades e aprendizagens vivenciadas ao longo da carreira. A professora vai além de uma mera descrição de sua trajetória profissional, anotando reflexões sobre seu processo de desenvolvimento profissional docente. Traça seu perfil como professora e tenta descrever como ele foi se construindo. Trata-se de um caso que não destaca um único episódio de ensino, mas descrições e reflexões de uma professora em torno de diversos episódios que marcaram sua carreira e definiram seu processo de formação. A partir de sua análise, as quatro professoras iniciantes puderam explicitar diversos conhecimentos sobre sua própria iniciação profissional e sobre o que pensam a respeito de aspectos relacionados aos processos de ensino e aprendizagem, com base em um roteiro de questões abertas respondidas individualmente.

A partir do estudo desse caso de ensino, foram obtidas descrições das trajetórias profissionais percorridas pelas professoras participantes da pesquisa nos primeiros anos de docência. Elas estabele­ceram relações entre as situações vividas nesse período e alguns elementos: principais dificuldades, obstáculos, desafios, preocupações e interesses encontrados; escolarização anterior; formação inicial recebida e confronto com as exigências da prática; escola/ambiente de trabalho; políticas públicas educacionais; conhecimentos fundamentais para enfrentar os anos iniciais; fontes de aprendizagem profissional; alunos e pais; aprendizagens vividas.

Procuraram analisar processos vividos no início da profissão, buscando apontar fatores que facilitaram/dificultaram a iniciação profissional. Assim como a professora Stefânia, procuraram traçar seu perfil profissional, apontando aspectos que têm proporcionado sua construção e reconstrução constantes. Embora tenham analisado aspectos comuns em suas respectivas trajetórias a partir de uma mesma situação apresentada, é relevante destacar que cada professora imprimiu uma marca pessoal em seu registro, mostrando diferenças na forma de encarar os primeiros anos de profissão. Nas análises realizadas, expressaram aspectos marcantes de sua trajetória pessoal, mostrando que, apesar das peculiaridades que caracterizam a entrada na carreira, cada uma vivencia esse momento de forma particular, a partir dos conhecimentos que possui sobre a profissão, das relações que estabelece com colegas de trabalho, pais de alunos e alunos e da maneira como ingressaram na primeira escola.

Assim, tem-se, nos registros da professora Joana*, forte tendência a buscar compreender os sentimentos contraditórios que marcaram seus primeiros anos de profissão e que a impulsionaram a desistir. Essa busca conduz à descrição de sua entrada na carreira. Enquanto isso, Mariana, já desprovida desse sentimento de instabilidade profissional que marca os registros de Joana, mostra preocupação em manter um ensino de qualidade ao longo da carreira. Daniela focaliza sua preocupação em como conseguir exercer a docência com autonomia, perante a forte influência que tem sofrido em seus anos como professora de escola particular. Já para Fabiana, a maior preocupação está em como lidar com as crianças pequenas e suas interferências no seu trabalho em sala de aula.

De modo geral, assim como apontam estudos sobre professores principiantes, a entrada na carreira parece marcada, nos registros das professoras, por aprendizagens diversas, pelo convívio de sentimentos contraditórios em relação à profissão, pela busca excessiva de superação de obstáculos e por fortes exigências pessoais em relação ao próprio desempenho profissional. Analisados em conjunto, os registros mostram diferentes trajetórias de principiantes que passam por um período intenso de descobertas e de tentativas de sobrevivência na profissão (Huberman, 1993). Trajetórias mais fáceis para algumas, muito mais difíceis para outras. Os registros sugerem que entre as quatro professoras, três, com aproxima­damente cinco anos de carreira, sobreviveram às maiores dificuldades, passando a aceitar a ansiedade e os conflitos como característicos da docência e fontes de aprendizagem profissional, desenvolvendo maior segurança e domínio sobre as situações cotidianas que enfrentam (Tardif; Raymond, 2000). Uma delas, entretanto, com apenas dois anos de carreira, enfrentou um período de quase abandono da profissão, sentindo-se, na aparência, pessoalmente atingida pelas dificuldades no confronto com a prática (Esteve Zaragoza, 1999). Enquanto instrumento de intervenção, o estudo do caso pareceu permitir que ela própria constatasse seus aspectos positivos como profissional e suas possibilidades de permanência na profissão com sucesso. Os registros apontam à necessidade de que professoras iniciantes tenham um acompanha­mento durante sua inserção na carreira, com possibilidade de discutir questões e dificuldades que enfrentam durante o ensino. Aspectos comuns nos registros das professoras se referem às formas como encaram o processo de desenvolvimento profissional docente. A partir da análise do caso, as principiantes puderam explicitar e discutir o caráter de continuidade da aprendizagem da profissão e a dimensão formativa da escola/ambiente de trabalho. Trechos de seus registros apontam para um reconhecimento de que a formação docente não se encerra no curso de formação inicial, mas continua acontecendo ao longo da carreira, principalmente no próprio ambiente de trabalho do professor, na troca de experiências com os colegas e com os alunos. Aparentemente, as professoras atribuem ao professor um papel ativo na aprendizagem da profissão e defendem a criação de espaços coletivos nas escolas para trocas de experiências e construção de novos conhecimentos sobre o ensino, reconhecendo o valor dos saberes profissionais construídos no cotidiano escolar. É importante destacar que, durante o curso de formação inicial, as mesmas professoras já apontavam a aprendizagem da profissão docente como um processo contínuo (Nono, 2001). O que não acontecia, naquele momento, era a valorização do ambiente escolar como local de aprendizagem da docência. Aspectos relacionados à organização escolar e às suas possíveis influências no trabalho de sala de aula não eram discutidos pelas professoras ao analisarem situações de ensino. A entrada na profissão parece ter propiciado o estabelecimento de relações entre tais aspectos. O estudo desenvolvido por Guarnieri (1996) sugere uma situação semelhante vivenciada por outras professoras no início da carreira. Em tal estudo, destaca-se a existência de aspectos da profissão docente que são mais bem percebidos a partir do momento em que o professor ingressa na carreira. O curso de formação inicial parece não fornecer informações suficientes sobre o que ocorre, de fato, no ambiente escolar. O caso também propiciou que as professoras refletissem sobre o significado do curso de formação inicial em seu processo de desenvolvimento profissional. O curso de formação inicial é apontado como uma das fontes de aprendizagem profissional docente. Destacaram, também, saberes advindos de sua própria história de vida, de sua escolarização anterior, de sua própria experiência em sala de aula e na escola e de seus estudos teóricos (Tardif, 2002).

A partir das análises em torno do caso de ensino, foi possível iniciar um mapeamento da forma como as professoras principiantes lidam com os conteúdos que devem ensinar às turmas em que lecionam. Partindo da reflexão que a professora Stefânia realiza sobre as lacunas que possui em algumas áreas de conhecimento, as professoras também puderam refletir sobre suas próprias lacunas e sobre o que têm feito para preenchê-las. Permanece sua crença — evidenciada durante a formação inicial (NONO, 2001) — de que o domínio de conteúdos específicos pode ser alcançado durante o exercício da docência, sempre que a prática solicitar. A disposição para aprender novos conteúdos — demonstrada durante a formação inicial — parece se confirmar. Diante das dificuldades no domínio de um ou de outro conteúdo, as professoras têm “[...] buscado ajuda com alguns professores, peguei alguns livros [...] estou correndo atrás e acredito que venho cumprindo meu papel” (Joana). “[...] Agora tenho corrido atrás dos prejuízos. Eu me atualizo com os cursos que freqüento, com as capacitações, com os grupos de estudo e nas próprias pesquisas que faço quando é necessário”, afirma Daniela. O depoimento da professora Mariana demonstra a constatação de que o ideal é aprender os conteúdos no exercício da docência, de acordo com a necessidade: “[...] hoje, devido à necessidade e até por interesse, busco informações, leio muito, enfim, amadureci. Em um contexto anterior não tinha por que me dedicar a elas [determinadas áreas do conhecimento]”. Wilson (1992) analisa as certezas que professores em formação têm a respeito de que não há muito que aprender sobre conteúdos específicos durante a formação inicial que deve, de acordo com eles, focalizar aspectos de ensino relativos ao manejo da classe, à disciplina dos alunos, ao planejamento das aulas. Essa pesquisadora tem utilizado casos de ensino, em cursos de formação inicial, para possibilitar reflexões sobre a importância do conhecimento de conteúdos específicos, por parte do professor, no estabelecimento de um ensino de qualidade.

As professoras sugeriram que o caso tem potencial formativo e que serviria de fundamento para a discussão coletiva de diversos aspectos relativos à profissão docente. Destacaram, também, seu potencial como estímulo para reflexões individuais sobre a trajetória profissional: “[...] foi ótimo ‘pra mim ter feito essa volta no tempo e ter parado para pensar um pouco sobre minha própria trajetória” (Daniela). “Este caso de ensino me fez pensar na minha trajetória profissional [...]”, afirma Fabiana. “Certamente Stefânia me entusiasmou ainda mais, foi e será ponto de reflexão [...]” (Mariana). “A trajetória de Stefânia é bem diferente da minha, mas pude refletir e me identificar bastante com muitas idéias dela”, aponta Joana. As professoras relataram ter se sentido à vontade para, diante do caso de ensino, expressar seus sentimentos em relação ao início da carreira. Daniela escreve: “Não sei se o que respondi é realmente aquilo que você queria. Na verdade, contei um pouco sobre minha vida e, em alguns momentos, desabafei o que achava necessário, sem receio”. Joana, em relação às análises desse caso, diz: “[...] estou me sentindo à vontade para escrever sobre minhas angústias e indecisões de início de carreira”.

A seguir, apresenta-se a caracterização das professoras principiantes, elaborada a partir das análises que realizaram em torno do caso de ensino “A trajetória profissional de Stefânia, professora de Educação Infantil”.

Professora Fabiana

Entre as quatro professoras participantes da investigação, Fabiana é a única que tem a escola particular como fonte exclusiva de experiência profissional. Desde que concluiu sua formação inicial, leciona, há quatro anos e meio, na mesma escola, no mesmo período (tarde), na Educação Infantil. Em suas análises, sempre enfatiza o fato de que sua “[...] realidade de trabalho é em escola particular”. Neste contexto, destaca como principal dificuldade, no início da carreira, lidar com filhos de “[...] pais que trabalham muito e usam muito mal o tempo que passam com os filhos, mimando-os e não dando a eles limites necessários para a sua vida”. Alunos “mimados”, que a desrespeitavam e também desrespeitavam os colegas foram responsáveis, por momentos, pela angústia na primeira etapa do exercício da profissão, superadas com a ajuda de outras professoras. Fabiana demonstra que sua grande preocupação era com o fato de que esses alunos acabavam por dificultar o próprio processo de aprendizagem, na medida em que se recusavam a participar das atividades propostas em classe. Outra dificuldade, já superada, que Fabiana diz ter vivido nos primeiros meses como professora refere-se à elaboração de projetos e de atividades de registros. Na busca de soluções para o enfrentamento de ambas as dificuldades, Fabiana destaca a recorrência a livros. Uma das aprendizagens que ela diz ter vivido durante sua experiência docente é a de que “[...] um professor não sobrevive sem conhecimento teórico”. É esse conhecimento, segundo ela, que garante uma melhor compreensão do comportamento das crianças em cada faixa etária e orienta a tomada de decisões. Fabiana também destaca a importância da troca de experiências entre os profissionais da instituição como momento de formação profissional. Lamenta que na escola em que trabalha não haja tempo para conversas freqüentes entre as professoras, que só se encontram nos períodos de planejamento e, ainda assim, divididas de acordo com as classes em que lecionam. Experiências pontuais que vivenciou em encontros dos quais participou sugerem a necessidade de reuniões constantes entre professoras para que aprendam em equipe. Outra fonte de aprendizagem profissional destacada por Fabiana refere-se à própria classe de alunos, os quais, segundo ela, são responsáveis por comprovar ou contrariar aprendizagens teóricas, mostrando quais práticas, posturas e metodologias são mais adequadas.

Vontade, amor, busca, estudo, competência, dificuldades, aprendizagem diária, surpresas são palavras que traduzem os primeiros anos de docência de Fabiana. Aparentemente, as dificuldades encontradas nos anos iniciais foram sendo superadas no contato com a literatura, demais profissionais e convívio com os alunos. Em relação a defasagens em algumas áreas de conhecimento, discutidas no caso de ensino, Fabiana considera que tem muitas falhas, principalmente na área de Artes, atribuídas a uma má formação em sua trajetória como aluna, que procura superar com muito estudo. Há um aspecto importante no depoimento da professora Fabiana que se refere ao papel da instituição e da professora de Educação Infantil na trajetória escolar das crianças. Ela afirma que “[...] na Educação Infantil, essas áreas (de conhecimento, como, por exemplo, linguagem, matemática, etc.) não são tão cobradas especificamente para ensinar às crianças, mas precisamos conhecê-las muito bem”.

Professora Daniela

Daniela leciona há cinco anos na mesma escola particular onde, quando ingressou, assumiu funções de recepcionista das crianças, ajudante de secretaria e recreadora. Atuou também na biblioteca e no almoxarifado da instituição. Além disso, substituía professores que faltavam. Em suas análises, toda essa experiência trouxe diversas aprendizagens fundamentais para sua carreira. Afirma: “[...] ganhei experiência profissional e experiência de vida, porque passei a lutar pelos meus interesses e a não dar ouvidos a muita coisa que me falavam; [...] não eram em todos que se podia confiar”. Daniela destaca o ano de 2001 como o mais difícil da sua carreira. Nesse ano, foi “literalmente colocada à prova”, diante da proposta da escola para que assumisse a vaga de uma professora licenciada em um primeiro ano do Ensino Fundamental. Trata-se de uma experiência que ilustra sua iniciação profissional e mostra a determinação da iniciante:

O ano de 2001 foi o mais difícil ‘pra mim em termos de resistência, pois, literalmente, fui colocada à prova. Iria substituir a professora da 1.a série no segundo semestre, que estaria de licença gestante, e a proposta da escola foi que eu ficasse desde o começo do ano na sala como ajudante para eu “pegar o jeito da coisa”
 — conforme disse a diretora —, e também fazer um trabalho diversificado com uma criança portadora de Síndrome de Down que freqüentava a mesma sala. O primeiro semestre foi difícil porque era tudo novo para mim (até a coordenadora era nova na escola e estávamos nos adaptando a ela), mas consegui levar numa boa porque tinha a ajuda da professora. O segundo semestre foi massacrante, sentia-me pressionada e avaliada o tempo inteiro. Isso fez com que minha auto-estima ficasse lá embaixo e estava tendo quase a certeza de que eu era incapaz de assumir essa classe. A coordenadora me indicava alguns livros para ler, resumir e entregar a ela a resenha com prazo determinado; pedia para eu assistir a filmes e fazer comparações por escrito entre os professores sobre o próprio filme; pedia-me para ler e explicar, nas supervisões, as apostilas que me emprestava com prazo; entrava na sala e assistia a mais ou menos uns vinte (20) minutos por dia das aulas; na supervisão só cobrava e nada que eu fazia estava bom para ela, querendo sempre mais e mais. Eu estava quase desistindo porque não agüentava mais tanta pressão e cobrança, mas não podia desistir, pois estava trabalhando o dia todo para poder pagar a Faculdade que eu estava terminando. Estava me vendo num beco sem saída, não saía de casa nos finais de semana para ficar adiantando as atividades e tarefas da semana seguinte. Meus pensamentos sobre toda a profissão que eu idealizava estavam se transformando em sacrifícios. Saía de casa para trabalhar com uma tristeza no coração. Pensava somente nas crianças e não nas críticas que viriam. Sempre fui muito esforçada e batalhadora. Ao final de tudo isso veio a gratificação no final do ano. Soube que tinha uma chance de pegar uma classe na educação infantil no ano seguinte. E realmente foi o que aconteceu! Eles me chamaram para trabalhar na classe de Infantil III (pré-escola) de uma professora que estava saindo da escola. Topei mais esse desafio! Há dois anos dou aula nessa classe e posso lhe dizer que as cobranças não cessaram. Agüentamos firmes e fortes porque sabemos que as exigências de uma escola particular são diferentes das de uma escola pública.

O depoimento explicita todas as dificuldades enfrentadas por Daniela em seu primeiro ano de docência, mostrando os sentimentos que experimentou ao enfrentar a situação criada pela coordenadora da escola. Ansiedade, fracasso, falta de confiança em si mesma, insegurança, insatisfação e persistência. A imagem ideal da profissão transformando-se em sacrifício. É interessante notar, também, no depoimento, que a professora não chega a mencionar dificuldades para lecionar. Suas preocupações estavam voltadas às cobranças e avaliações da coordenadora. Dela dependia sua permanência no emprego. Nesse aspecto, Daniela sugere a “[...] diferença entre as duas realidades [a da escola particular e a da pública]”. No ano seguinte, ela lecionou em escolas municipais e, aparentemente, a experiência não teve o mesmo caráter negativo. As maiores dificuldades que encontrou no sistema municipal de ensino se referem à falta de materiais didáticos básicos, como folhas e lápis. Já em relação ao sistema particular, enumera diversas dificuldades enfrentadas, como, por exemplo, o fato de não ter autonomia com sua classe, sendo constantemente vigiada pelos diretores e coordenadores, o baixo salário, a falta de reconhecimento profissional e a burocratização excessiva. Afirma: “[...] fichas, avaliações, relatórios para preenchimento mensal, quinzenal, semanal e até diário... e muitas vezes isso é superficial, serve apenas para mostrar aos pais que a escola se preocupa com seus filhos. Como isso é exigência da ‘casa’, precisamos cumprir, mesmo achando um exagero”.

Dedicação, responsabilidade, força de vontade, dinamismo, jogo de cintura são palavras que traduzem os primeiros anos de Daniela como professora. Aparentemente, os desafios iniciais foram superados e os novos desafios que surgem diariamente são enfrentados. A partir do caso de ensino proposto, Daniela faz importantes análises de seu processo de aprendizagem da docência. Relembra momentos vividos na infância, quando gostava de brincar de escolinha e quando resolveu ser professora, nas aulas de catecismo que ministrava. Destaca a importância do curso de formação inicial nesse processo, afirmando ter vivenciado ali aprendizagens “[...] tanto na teoria, com as discussões e reflexões em sala de aula, quanto na prática, com os estágios”. Durante o curso, confirmou seu desejo de ser professora. Ao analisar seu processo de desenvolvimento profissional, Daniela também destaca a sala de aula em que leciona e seus alunos como fontes de aprendizagem da profissão. Considera que, no trabalho diário com as crianças, resolvendo dúvidas e tomando decisões, está sempre sujeita a novas aprendizagens, mesmo de maneira inconsciente. Acredita que os cursos são importantes para a aprendizagem do professor, desde que sejam adaptados à realidade da escola em que ele atua. Aponta a escola como “[...] o espaço principal para a formação do professor. É nela que as discussões sobre a própria realidade aparecem e são refletidas para que haja mudança de comportamentos e atitudes”. Assume possuir defasagens nas áreas de Matemática e Expressão Corporal. Responsabiliza seus professores por não gostar dessas disciplinas e por não ter se aprofundado nelas em seu tempo de estudante. Para diminuir tais defasagens, diz ter freqüentado cursos, grupos de estudo e realizado pesquisas. Ao tratar dos conhecimentos necessários ao seu trabalho como professora, destaca a importância, na atuação em Educação Infantil, de saberes relacionados à alfabetização, às formas como a criança pensa, quais são suas habilidades, suas dificuldades e como avaliá-las.

Professora Mariana

Em seus cinco anos de docência, Mariana passa por experiências diversificadas. Já atuou no Ensino Fundamental, Educação Infantil, Educação de Jovens e Adultos, em escolas públicas e particulares. Considera-se rica em experiências, apesar de ressaltar que muito ainda deve ser aprendido. Diz-se uma “[...] eterna aprendiz, em contínuo aprendizado”. Destaca diversas fontes de aprendizagem da profissão, entre as quais, os alunos, a vivência cotidiana em sala de aula, outros professores, capacitações, reuniões, planejamentos, especializações e outros cursos relacionados à carreira. Considera a escola como “[...] o espaço que dá base à formação, que organiza e auxilia na busca da meta aonde se quer chegar. A escola não é a única fonte de formação, ela está entre a primeira e/ou segunda; mas tudo depende da vontade, dedicação, competência para permanecer nela, buscar além dela”. Aponta a importância decisiva do curso de formação inicial em seu processo de formação, destacando algumas de suas características.

Felizmente, no magistério, encontrei a base de minha formação, com a presença de profissionais maravilhosos que me incentivaram com suas experiências, através do real, sem ilusões, ideologias... Com estes, além de dividirmos a mesma profissão, dividimos experiências e amizades. Através de estágios: análises, pesquisas, observações e regências, em escolas públicas e particulares, pude observar a realidade do ensino. O importante é que sempre tive consciência de que seria um longo e árduo caminho a percorrer; mas isso me prendia cada vez mais a essa profissão: lido com seres humanos, sentimentos... Sinto que posso contribuir para um futuro melhor.

A iniciação profissional de Mariana — licenciada em Letras — teve uma diferença fundamental em relação às demais professoras participantes da pesquisa: assim que concluiu o curso de magistério, prestou concurso para ingressar como docente de Educação Infantil na Prefeitura Municipal e foi aprovada. A preocupação com a instabilidade no emprego, que marca os primeiros anos das outras participantes, não é vivida por Mariana. Ela considera um ‘privilégio’ ter um emprego efetivo, ressaltando que esse fato não a “[...] fez estacionar, querendo ir além, sem cessar”. Dedicação, estudo, aprimoramento caracterizam seus primeiros anos de docência. Ao destacar suas principais dificuldades no início da carreira, Mariana elenca preocupações com aspectos diretamente relacionados ao trabalho em sala de aula: prender a atenção da classe em todas as disciplinas, buscar fundamentos teóricos e práticos para convencer e seduzir o aluno, a indisciplina de alguns alunos e, principalmente, “[...] dar conta do conteúdo programático, mas não somente vencê-lo, isso deve acontecer de maneira que o aluno compreenda e assimile”. Acrescenta: “[...] tudo isso em relação à 4.ª série; são dificuldades que estão sendo supridas na medida em que o tempo vai passando e a experiência e a troca da mesma vão acontecendo”. Aparentemente, lecionar no quarto ano do Ensino Fundamental traz, para ela, maiores preocupações em relação ao ensino de conteúdos do que lecionar na Educação Infantil. Em relação a defasagens em determinadas áreas de conhecimento, nota-se que Mariana, assim como as demais professoras participantes, também tende a responsabilizar sua escolarização anterior pelas lacunas em seus conhecimentos. Não localiza suas dificuldades no domínio de conteúdos, mas na forma de ensiná-los.

Mariana demonstra forte preocupação em melhorar cada vez mais como profissional e desempenhar seu papel “da maneira mais competente possível”. Parece conceber o professor como alguém que “aprende ao lecionar”, que está em contínuo aprendizado, mas que precisa ter vontade de continuar aprendendo. Vontade e dedicação são características essenciais de um bom professor, de acordo com ela. Mariana se preocupa por não ter tempo para “[...] pesquisar ainda mais para dar uma aula melhor, como diversidades de atividades, renovando sempre; [...] sei que faço isso mesmo sem tempo, mas gostaria de aumentar a dose”. Enxerga as dificuldades, “tropeços e obstáculos” da profissão como pontos de partida para novas aprendizagens.

Professora Joana

Entre as professoras participantes da pesquisa, Joana é a que lecionava havia menos tempo, no período de coleta de dados. Iniciou sua carreira em 2001, com uma experiência em que não se sentiu bem-sucedida e que se encerrou com sua desistência da função que havia assumido em uma escola particular de educação infantil. Em 2002, trabalhou como professora eventual em uma escola de Ensino Fundamental da rede estadual, enfrentando a dificuldade de ter que atuar cada dia em uma classe diferente, de acordo com as faltas dos professores efetivos. Finalmente, em 2003, assumiu um contrato anual com a Prefeitura Municipal para lecionar no segundo ano do Ensino Fundamental. Sem perspectivas de emprego para 2004, com experiências marcadas pela instabilidade, tendo que viajar quatro horas por dia para lecionar — já que morava em uma cidade diferente daquela em que trabalhava — Joana mostrava-se bastante descontente com a profissão, considerando a possibilidade de abandono do magistério. Insegurança, ansiedade, falta de estímulo e força de vontade são palavras às quais ela recorre para caracterizar sua iniciação profissional. Sentimentos de fracasso, indecisão, angústia, frustração marcam as análises que realiza de seus primeiros anos de profissão, embora, em alguns momentos de seu depoimento, destaque situações marcadas por sentimentos de entusiasmo e segurança. Aparentemente, sentimentos contraditórios convivem em seu processo de busca de permanência/abandono da docência. Em suas análises, há uma incessante busca de justificativas para problemas identificados em sua atuação e de características positivas em seu trabalho. Parece um exercício de tentar sobreviver à profissão:

Minha preocupação maior era com a disciplina. Se a classe se mantivesse em ordem e se desse ‘pra eu passar o que era para ser passado, tudo bem. [...] Acredito, e já pude confirmar em alguns livros, que a questão da indisciplina é um dos maiores obstáculos no trabalho de um professor, principalmente daqueles que estão no início da carreira. Comigo não está sendo diferente, tenho passado por momentos de angústia e de indecisão e manter a calma, às vezes, fica difícil. [...] Quando iniciei na profissão, o que me serviu de base foi saber que a indisciplina seria um dos maiores problemas. Já havia lido que muitos professores desistem no início da carreira, devido à indisciplina, pois o choque de realidades é muito grande. Até mesmo a diretora da escola tinha me dito: ‘O fundamental é controlar a indisciplina, o resto vai se conquistando aos poucos’. Então, trago isso comigo e tem me ajudado bastante. [...] Conversando com a Coordenadora da Escola, num dos HTP, ela disse que eu não parecia ‘marinheira de 1.ª viajem’, pois eu demonstrava certo domínio no relacionamento com as crianças; isso me estimulou bastante e me fez pensar que estou caminhando bem, que tenho certa facilidade em envolver as crianças nas atividades e que isso acaba me ajudando bastante no desenvolvimento do meu trabalho. Mas o que tenho de melhor como professora, acredito que seja o fato de acreditar muito na educação, saber de sua importância e querer passar isso para as crianças.

Assim como as demais professoras participantes da pesquisa, Joana atribui, a seu processo de escolarização anterior, dificuldades que enfrenta no ensino de conteúdos matemáticos. Considera que possui “[...] dificuldade para transmitir com clareza alguns conteúdos [...] por não ter facilidade para aprender; porque talvez nenhum professor tenha me ensinado de maneira mais significativa”. Em Artes também tem enfrentado problemas, embora tenha buscado ajuda com outros professores e em livros, conseguindo “resultados positivos”. Destaca a importância da troca de experiências como fonte de aprendizagem da docência. A sala de aula e a escola são consideradas locais de aprendizagem da profissão. Recorre a Nóvoa para traduzir a idéia que tem sobre formação de professores, escrevendo que é no espaço concreto de cada escola, em torno de problemas pedagógicos ou educativos reais, que se desenvolve a verdadeira formação. A partir de tais concepções, analisa sua formação inicial, apontando a necessidade de articulação entre conhecimentos teóricos e situações práticas nos processos de formação profissional.

Apesar de todos os conflitos vividos na profissão, Joana cita alguns saberes profissionais, construídos ao longo de sua formação inicial, que têm fundamentado suas tentativas de permanência na docência. Afirma saber que a educação é um processo lento, que as salas são heterogêneas, que cada criança traz consigo uma bagagem de acordo com a sua realidade, que a aprendizagem passa por etapas de desenvolvimento, que o trabalho em equipe é fundamental; mais que isso, diz acreditar que a profissão docente é marcada por constantes conflitos, que devem servir de estímulo a novas aprendizagens. Muitos dos conflitos vividos, entretanto, parecem servir como obstáculos para sua permanência no magistério. Após ter analisado o caso de ensino da professora Stefânia, Joana entrou em contato, espontaneamente, para conversar sobre sua entrada na carreira e, em conversa informal, demonstrou toda sua angústia com o início da profissão. Destacou elementos importantes que têm influenciado seu trabalho, analisando as dificuldades que tem enfrentado como professora iniciante. Apesar de estar em seu segundo ano de docência, considera-o como se fosse o primeiro, pois, pela primeira vez, foi responsável por uma mesma classe desde o início até o final do período letivo. Os registros de sua fala estão transcritos a seguir:

Estou realmente com muita dificuldade nesse meu primeiro ano como professora. Sinto um desânimo terrível! Todos os textos que eu havia separado para ler e melhorar minha prática, eu os abandonei. Não consigo nem olhar ‘pra eles. Não tenho força ‘pra continuar. Não sou professora efetiva e, portanto, não sei o que vai acontecer comigo no próximo ano. Pode ser que, depois de tanto sacrifício, eu ainda fique desempregada. Além do mais, mesmo que eu pegue uma classe no ano que vem, vou procurar outro emprego. Essa não é a profissão que eu quero ‘pra mim. Sabe, vez ou outra eu saio feliz da classe, mas aí vem aquela história de reprovar os alunos... Isso porque eu estou com uma segunda série e, você sabe, segunda série reprova. Tenho seis crianças que precisarei reprovar. Como dar a notícia a elas? Será que ainda há tempo ‘pra evitar a reprova? E tem também aquela aluna que acabou de chegar. Veja só, estamos no final de setembro, praticamente outubro, e a aluna chega à segunda série sem saber ler e escrever nenhuma palavra! Como lidar com ela? São tantas crianças! Mesmo que as outras professoras, mais experientes, continuem me passando algumas atividades que costumam funcionar, como vou ensinar a essa menina, em dois meses, o que ela não aprendeu em quase dois anos? Realmente, é desanimador. Além disso, você sabe, eu moro em outra cidade. Perco quase quatro horas de ônibus para poder lecionar aqui. Queria aproveitar essas horas ‘pra estudar, fazer alguma coisa útil. Mas é tanto cansaço, tanto desânimo, tanta pressão, tanta decepção... Não sei se estou sendo uma boa professora. Segunda série. Logo no primeiro ano de profissão... E, sabe, o curso de Pedagogia não tem me ajudado muito. Ele ajudou mesmo ‘pra que as outras professoras me tratassem bem. Apesar de estar começando na carreira, tenho curso superior. Isso traz algumas vantagens, as professoras experientes, mas sem faculdade, te olham diferente. Sabe, elas pensam, ‘ah, ela não tem experiência, mas tem faculdade! Talvez seja uma boa professora, apesar de iniciante...’. A iniciante sofre muita pressão. Se as crianças não aprendem, é culpa da iniciante; se as crianças fazem barulho, a iniciante é que não sabe controlar a turma. Não sei, acho que o que eu quero mesmo é mudar de profissão, fazer qualquer outra coisa. Além disso, sabe, eu nunca tinha tido experiências com crianças. Não sei lidar com elas. É muito complicado. E ainda tem essa história de reprovar (Joana, em entrevista informal).

Diante dos estudos sobre professores principiantes que têm distinguido duas fases que marcam o início da carreira, pode-se dizer que Joana parece se encontrar na fase de exploração (do primeiro ao terceiro ano), “[...] na qual o professor faz uma escolha provisória de sua profissão, inicia-se através de tentativas e erros, sente a necessidade de ser aceito por seu círculo profissional e experimenta diferentes papéis” (Tardif; Raymond, 2000, p. 227). Essa fase parece ser bastante difícil e decepcionante para Joana. As demais professoras participantes parecem ter superado a fase de exploração, alcançando uma fase de estabilização e de consolidação (do terceiro ao sétimo ano), “[...] em que o professor investe a longo prazo na sua profissão e os outros membros da organização reconhecem que ele é capaz de fazê-lo. Essa fase se caracteriza também por uma confiança maior do professor em si mesmo” (Tardif; Raymond, 2000, p. 228). O domínio dos diversos aspectos do trabalho, principalmente os aspectos pedagógicos (gestão da classe, planejamento do ensino, assimilação dos programas, etc.), marca essa fase, em que o professor encontra certo equilíbrio profissional, passando a centrar-se mais nas questões relativas à aprendizagem dos alunos do que nas questões relativas à sua inserção profissional.

Para finalizar, pode-se dizer, a partir dos resultados apresentados, que, ao evidenciar e interferir nos conhecimentos das professoras principiantes sobre sua entrada na profissão, o caso de ensino demonstrou possuir potencial como instrumento formativo e investigativo a ser utilizado em programas de pesquisa e de formação continuada de professores iniciantes. Nesta pesquisa, o caso possibilitou que análises fossem realizadas em torno de situações vividas na entrada na docência e criou oportunidades para que as professoras objetivassem suas próprias compreensões sobre o início na profissão docente.

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* Os nomes das professoras são fictícios. Essas mesmas professoras participaram de um estudo com base na metodologia de casos de ensino quando cursavam a formação inicial para a docência (Nono, 2001).

*Este texto foi elaborado a partir da tese de doutorado “Casos de ensino e professoras iniciantes”, defendida em 2005, no PPGE/CECH/UFSCar, pela primeira autora, orientada pela segunda. Apoio FAPESP.

 

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