O papel social do professor: uma contribuição
da filosofia da educação e do pensamento freireano
à formação do professor
Maria José Ferreira Ruiz (*)
SÍntese: O presente artigo visa a apresentar um referencial
teórico que aponte para a importância da filosofia
da educação como forma de levar os professores a refletirem
sobre o seu cotidiano, com maior profundidade, procurando, assim,
sair do ativismo, tão comum ao meio escolar. Busca, também,
refletir sobre o atual papel do professor nessa mesma sociedade,
haja vista tantas transformações do contexto vivido.
Apóia-se em teóricos renomados como Paulo Freire,
Moacir Gadotti, entre outros, que entendem que o profissional da
educação tem um papel eminentemente político
a desempenhar, educando para a transformação da sociedade
atual, tendo em vista uma educação igualitária
e com qualidade para todos.
SÍNTESIS: El presente artículo tiene como
objetivo presentar un marco teórico que apunte a la importancia
de la filosofía de la educación como forma de llevar
a los profesores a una reflexión sobre su quehacer diario,
con mayor profundidad, buscando así salir del activismo tan
común al medio escolar. Además busca reflexionar sobre
el actual papel del profesor en dicha sociedad, teniendo en cuenta
tantas transformaciones del contexto vivido. Se apoya en teóricos
renombrados como Paulo Freire, Moacir Gadotti, entre otros, que
entienden que el profesional de la educación tiene un papel
inminentemente político a desarrollar, educando para el cambio
de la sociedad actual, teniendo en vista una educación igualitaria
y con calidad para todos.
1. INTRODUÇÃO
Vive-se um momento de profundas transformações. Não
se sabe ao certo para onde se caminha e nem qual o caminho a trilhar.
A sociedade atual encontra-se em profunda crise, na qual somos remetidos
a repensar nossos valores e atitudes. Como nos aponta Gramsci, citado
por Gadotti (1998, p. 86), «vivemos um momento histórico
no qual o bloco hegemônico dominante entra em crise, frente
à ameaça de um novo bloco histórico».
Nesse contexto incerto, o papel do profissional da educação
precisa ser repensado. Segundo Gadotti (1998), faz-se mister que
o professor se assuma enquanto um profissional do humano, social
e político, tomando partido e não sendo omisso, neutro,
mas sim definindo para si de qual lado está, pois se apoiando
nos ideais freireanos, ou se está a favor dos oprimidos ou
contra eles. Posicionando-se então este profissional não
mais neutro, pode ascender à sociedade usando a educação
como instrumento de luta, levando a população a uma
consciência crítica que supere o senso comum,
todavia não o desconsiderando.
Nessa perspectiva, entende-se que o povo de posse desse saber mais
elaborado poderá vir a ter condições de se
proteger contra a exploração das classes dominantes
se organizando para a construção de uma sociedade
melhor, menos excludente, e realmente democrática. Não
se pode esperar que tal organização brote espontaneamente,
mas sim por meio da educação que pode caminhar lado
a lado com a prática política do povo. Sendo assim,
o profissional da educação assume aqui um papel sobretudo
político.
Educadores e educadoras precisam engajar-se social e politicamente,
percebendo as possibilidades da ação social e cultural
na luta pela transformação das estruturas opressivas
da sociedade classista. Para isso, antes de tudo necessitam conhecer
a sociedade em que atuam, e o nível social, econômico
e cultural de seus alunos e alunas.
Precisam entender também que, analisando dialeticamente,
não há conhecimento absoluto, pois tudo está
em constante transformação. Usando os dizeres de Gadotti
(1998), «todo saber traz consigo sua própria superação».
Portanto, não há saber nem ignorância absoluta:
há apenas uma relativização do saber ou da
ignorância. Por isso, educadores e educadoras não podem
se colocar na posição de ser superiores, que ensinam
um grupo de ignorantes, mas sim na posição humilde
daqueles que comunicam um saber relativo a outros que possuem outro
saber relativo.
Como educadores engajados em um processo de transformação
social, necessita-se que esses profissionais acreditem na educação,
e, mesmo não tendo uma visão ingênua, acreditando
que essa sozinha possa transformar a sociedade em que está
inserida, e acreditem que sem ela nenhuma transformação
profunda se realizará.
É preciso confiar nessas mudanças e esperar o inesperado,
pois como nos diz Edgar Morin (2001, p. 92):
Na história, temos visto com freqüência, infelizmente,
que o possível se torna impossível e podemos pressentir
que as mais ricas possibilidades humanas permanecem ainda impossíveis
de se realizar. Mas vimos também que o inesperado torna-se
possível e se realiza; vimos com freqüência
que o improvável se realiza mais do que o provável;
saibamos, então, esperar o inesperado e trabalhar pelo
improvável.
No entanto, como professores e professoras se vêem frente
a essas questões? Que espaço reservam para discutir
suas funções sociais? Será que no seu dia-a
dia, entre uma escola e outra, fazem tal reflexão ou acabam
sucumbindo ao sistema, mergulhando num fazer sem fim? A sociedade
e a escola têm valorizado os profissionais da educação,
ou, como nos aponta Arroyo (2202, p. 9), vêem esses como «um
apêndice, um recurso preparado, ou despreparado?».
Sendo assim, objetivou-se com a execução desse trabalho
promover discussão teórica que substanciasse a reflexão
dos professores e professoras sobre o papel social de sua formação,
apoiando-se no referencial freireano. Para tal utilizou-se das seguintes
metodologias: pesquisa teórica sobre a importância
da filosofia da educação, sobre o papel social do
professor, e sobre a politização do professor enquanto
agente de transformação.
2. REFLEXÕES SOBRE A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO
Toda teoria pedagógica tem seus fundamentos baseados num
sistema filosófico. É a filosofia que, expressando
uma concepção de homem e de mundo, dá sentido
à Pedagogia, definindo seus objetivos e determinando os
métodos da ação educativa. Nesse sentido,
não existe educação neutra. Ao trabalhar
na área de educação, é sempre necessário
tomar partido, assumir posições. E toda escolha
de uma concepção de educação é,
fundamentalmente, o reflexo da escolha de uma filosofia de vida
(Haydt, 1997, p. 23).
Com a epígrafe acima, inicia-se uma discussão sobre
a filosofia da educação, buscando referencial que
clarifique sua função na área educacional.
A filosofia pode contribuir para que a educação seja
pensada, analisada e refletida, saindo assim do ativismo, ou seja,
do fazer pelo fazer, sem respaldo que norteie o porquê e o
para quê destina-se esse fazer.
Ao pensar filosoficamente, o educador foge da simplicidade, da
ingenuidade e das explicações mágicas ao interpretar
os problemas do cotidiano, buscando aprofundar sua análise,
não se satisfazendo com as aparências, buscando a causalidade
dos fatos de forma inquieta e intensa.
Silva (1992, p. 32), em um texto de bastante relevância,
discute que professores e professoras, em seu fazer diário,
preocupam-se em demasia com métodos e técnicas em
um verdadeiro endeusamento dessas questões, como se a educação
pudesse melhorar a partir da metodologia de ensino, não querendo
aqui minimizar a importância das metodologias; porém,
atentando para que, por vezes, se esquecem de buscar base conceitual
que respalde e sustente tais metodologias, o que deixa bastante
explícito na seguinte citação:
[...] qualquer método ou técnica encontra seus
fundamentos numa psicologia educacional, o que, por sua vez, encontra
seus fundamentos numa filosofia da educação. O culto
indiscriminado da técnica somente terá fim quando
os professores se lembrarem dessa ligação, ou pelo
menos, começarem a refletir sobre certas coisas que, para
eles, supostamente são reservadas só para iniciados
ou privilegiados. A educação brasileira não
precisa de pílulas «metodologicol»; ela precisa,
isso sim, é de uma injeção de filosofia e
política.
A citação vai ao encontro das idéias de Severino
(2001), que nos faz entender que é tarefa da filosofia da
educação «intencionalizar a prática educacional»,
dando respaldo para que essa prática seja pensada, refletida,
construída e reconstruída, enfim, seja uma prática
não apenas empírica, mas também reflexiva,
que se aporte na epistemologia. Para tal, entende que a filosofia
não deve ser vista como uma ciência isolada, mas sim
que busca se apoiar em fundamentos históricos e sociológicos.
Procurando contextualizar o surgimento da filosofia da educação,
Severino (2001, p. 121) aponta que o pensar contemporâneo
busca na ciência, na razão, a explicação
para as causas primeiras, fugindo de toda espécie de transcendentalismo
tão presente no pensar medieval, sendo assim «o racionalismo
naturalista moderno transfigura a cosmovisão da cultura ocidental
e instaura uma avassaladora dessacralização da natureza
e da cultura». Fato este que, antes de tudo, atinge as ciências
naturais, e, a seguir, as humanas das quais se originam as ciências
da educação. Nessa perspectiva, a educação
passa a ser pensada por meio da ciência, tendo a filosofia
da educação a função de justificar a
utilização de recursos técnico-científicos
que levem ao máximo o desempenho dos sujeitos envolvidos
no processo de ensino e aprendizagem.
A educação brasileira é atingida por essa
forma de pensar, segundo Severino (2001, p.122), nos ideários
escolanovistas, que emergem como contraponto à educação
tradicional jesuítica, a qual influencia por séculos
a escola brasileira. Para a Escola Nova:
A educação é considerada o único
instrumento apropriado para a construção de uma
sociedade laica e justa, gerenciada por um aparelho estatal que
se inaugura a partir de um projeto político iluministicamente
concebido e juridicamente implementado.
O escolanovismo é fortemente influenciado pelas idéias
de John Dewey, de quem Anísio Teixeira é interlocutor
no Brasil. As idéias da Escola Nova aportam-se na psicologia
do desenvolvimento, o que faz com que essa disciplina seja, até
os dias atuais, bastante prestigiada nos cursos de formação
de professores, de acordo com Mitsuko, citado por Severino (ídem).
A psicologia «genético-estrutural», pensada por
Piaget e seus seguidores, continua influenciando a atualidade educacional
brasileira, o que Severino (2001, p. 124) analisa à luz da
filosofia sob o seguinte prisma:
O construtivismo mostra a vinculação entre os processos
epistêmicos, psíquicos e pedagógicos. Por
sua configuração categorial e objetivos, o construtivismo
propõe a articulação de uma concepção
do sujeito epistêmico com a atividade do sujeito educando,
mediados por um sujeito psíquico.
Porém, ao reconhecer a contribuição dessa
teoria para a filosofia da educação, Severino (2001,
p. 124) aponta uma crítica ao reducionismo que percebe na
mesma:
O construtivismo traz grande contribuição à
Filosofia da Educação, sobretudo no plano epistemológico,
ao comprovar que o conhecimento não se dá por intuição
ou representação, mas mediante a construção
conceitual. [...] Mas sua proposta filosófico-educacional
esbarra na redução da educação ao
processo ensino/aprendizagem, naturalizando-o por demais, não
levando em conta as especificidades políticas das relações
sociais aí envolvidas.
Severino (2001, p.128) prossegue em sua análise criticando
também teóricos cientificistas que delegam a filosofia
da educação apenas à «validação
da metodologia de investigação e de expressão
do conhecimento científico», tornando-se uma «filosofia
das ciências da educação». Nessa perspectiva,
a filosofia da educação traz em si dois aspectos:
o instrumental e o crítico. Entende-se por instrumental o
embasamento teórico que a filosofia pode oportunizar para
a resolução de problemas práticos. Por sua
vez, o crítico deve despertar o constante questionamento
sobre a prática. «Para tais teóricos, o conhecimento
científico é o único capaz de verdade e fundamento
plausível da ação; qualquer critério
do agir humano só pode ser técnico e funcional, nunca
ético, estético ou político».
Essa vertente teórica no campo da filosofia, segundo Severino,
não atenta para a subjetividade presente na área da
educação, nem para as ilusões, erros e ideologias
que perpassam a consciência humana, sendo acusada de «reducionismo
epistemologista» ao apoiar-se apenas na ciência e na
técnica. Para Severino (2001, p. 128):
[...] a Filosofia da Educação precisa implementar
uma reflexão epistemológica sobre si mesma. [...].
Seu papel é descrever e debater a construção
do objeto-educação, pelo sujeito. Sua dupla missão
é se justificar e também rearticular os esforços
da ciência, para que estes se justifiquem, avaliem e legitimem
a atividade epistêmica como processo tecido no texto/contexto
da realidade histórico-cultural.
Nessa perspectiva, cabe à filosofia da educação
empenhar-se na construção de uma imagem de homem como
sujeito da educação, buscando uma visão integradora
que leve em consideração a historicidade desse ser.
3. O PAPEL SOCIAL DO PROFESSOR
Falar do papel de educadores e educadoras na sociedade atual demanda
entender como esse foi se constituindo através do caminhar
da educação brasileira. Segundo Gadotti (1998), os
cursos de formação de professores, mais especificamente
o curso de pedagogia, é regulamentado no Brasil em 1969 no
período da ditadura militar, fato este que remete a pensar
em um educador passivo, apolítico, técnico sem preocupações
sociopolíticas, com um agir totalmente desvinculado da realidade
na qual se inseria. Dessa forma, oferece habilitações
para supervisão, orientação, administração,
inspeção e planejamento com conotações
totalmente tecnicista, apoiada no treinamento desses profissionais
para atuarem nas escolas com toda a objetividade possível.
Entender a forma que o curso de pedagogia foi regulamentado no
Brasil se faz necessário a compreensão de como essa
mentalidade, mesmo que de forma implícita, ainda permeia
o agir de educadores e educadoras no momento atual, pois, como nos
aponta Sany Rosa (2000), a formação do profissional
da educação não se inicia, ao contrário
do que se imagina, quando esse ingressa em um curso de formação
de professores, mas sim desde o primeiro dia em que esse ingressa
na escola como aluno. Suas representações e significados
de educação, vivificados enquanto estudantes, são
muito mais influenciadas pela sua vivência escolar do que
com as teorias que venha a entrar em contado em sua formação
acadêmica.
Sendo que grande parte dos educadores e educadoras que se encontram
em sala de aula atualmente passou por todo esse sistema repressivo
da ditadura militar e foram alunos de professores e professoras
que trabalhavam sobre a égide desse momento histórico,
se Sany Rosa tem razão, necessitam sempre refletir, questionar
e rever sua prática pedagógica para não cair
em um ciclo vicioso de reprodução dessa ação
castradora. Para Gadotti (1998, p. 71) o profissional da educação
precisa ser desreipetoso para questionar a realidade que a ele se
apresenta para então promover mudanças sociais. Explicando
melhor, apóia.se nas palavras do autor:
É preciso ser desrespeitoso, inicialmente, consigo mesmo,
com a pretensa imagem do homem educado, do sábio ou mestre.
E é preciso desrespeitar também esses monumentos
da pedagogia, da teoria da educação, não
porque não sejam monumentos, mas porque é praticando
o desrespeito a eles que descobriremos o que neles podemos amar
e o que devemos odiar. [...]. Nessas circunstâncias, o educador
tem a chance de repensar o seu estatuto e repensar a própria
educação. O educador, ao repensar a educação,
repensa também a sociedade.
Desrespeitar, no enfoque de Gadotti, pode ser entendido como questionar.
Educadores e educadoras precisam constantemente repensar e revisitar
suas crenças mais intrínsecas sobre a representação
que têm de educação, pois, de acordo com Paulo
Freire, que já proclamava desde os anos 60, e de acordo com
Gadotti (1998, p.72), a educação não é
neutra. Ou se educa para o silêncio, para a submissão,
ou com o intuito de dar a palavra, de não deixar calar as
angústias e a necessidade daqueles que estão sob a
responsabilidade, mesmo que temporária, de educadores e educadoras
nos âmbitos escolares. Sendo assim, métodos e técnicas
precisam ser secundarizados na discussão sobre a educação,
o que se deve atentar prioritariamente é sobre a vinculação
«entre o ato educativo, o ato político e o ato produtivo».
Nesse prisma, professores e professoras têm um papel sobretudo
político e precisam problematizar a educação,
buscando o porquê e o para quê do ato educativo; mais
que isso, sua tarefa é a de quem incomoda, de quem evidencia
e trabalha o conflito, não o conflito pelo conflito, mas
o conflito para sua superação dialética.
No entanto, pergunta-se, até que ponto pode-se dizer que
esse fazer dialético, problematizador, está presente
no cotidiano escolar? Estão nossos professores e professoras,
problematizando as questões, ou continuam se calando diante
das injustiças? Trabalham para quem? A favor de quem? Estabelecem
uma relação dialógica com o saber, buscando
uma sociedade democrática e coletiva, ou reproduzem a lógica
do sistema no interior das escolas através de seleções,
de exclusões, de estímulo à individualidade
e à competitividade?
Gadotti (1998, p. 74) entende que não há uma educação
tão somente reprodutora do sistema e nem uma educação
tão somente transformadora desse sistema. Essas duas tendências
coexistem no plano educacional numa perspectiva dialética
e conflituosa. Sendo assim:
[...] há uma contradição interna na educação,
própria da sua natureza, entre a necessidade de transmissão
de uma cultura existente que é a tarefa conservadora
da educação e a necessidade de criação
de uma nova cultura, sua tarefa revolucionária. O que ocorre
numa sociedade dada é que uma das duas tendências
é sempre dominante.
Sendo assim, o papel dos profissionais da educação
necessita ser repensado. Esses não podem mais agir de forma
neutra nessa sociedade do conflito, não pode ser ausente
apoiando-se apenas nos conteúdos, métodos e técnicas;
não pode mais ser omisso, pois os alunos pedem uma posição
desses profissionais sobre os problemas sociais, não com
o intuito de inculcação ideológica de suas
crenças, mas como alguém que tem opinião formada
sobre os assuntos mais emergentes e que está disposto ao
diálogo, ao conflito, à problematização
do seu saber.
Atualmente não se pode mais apoiar-se em teses que apregoam
que a educação não pode mudar enquanto não
houver mudanças estruturais no sistema. Faz-se necessário
acreditar, com Gadotti, que, apesar da educação não
poder sozinha transformar a sociedade em questão, nenhuma
mudança estrutural pode acontecer sem a sua contribuição.
A transformação social, que muitos almejam para uma
sociedade mais justa, com menos desigualdades, onde todos tenham
voz e vez, só será possível a partir do momento
que se evidenciem os conflitos, não tentando escondê-los
ou minimizá-los, mas que os tragam à tona, para que
assim a educação não contribua como mecanismo
de opressão, buscando a superação e não
a manutenção do status quo.
4. EDUCAÇÃO: UM ATO POLÍTICO
Apegar-se no que já deu certo, por vezes traz em si um certo
conforto que faz com que toda tentativa de mudança seja vista
com temeridade. Na atualidade a sociedade encontra-se em meio a
profundas transformações. Em vista das tecnologias,
da rapidez de acesso às informações, dentre
outros fatores, a superação das idéias hoje
concebidas como apropriadas, amanhã são questionadas.
Essas questões trazem consigo um certo desconforto e uma
necessidade de rever sempre os conceitos. Entretanto, encontra-se
nos dizeres de vários teóricos da educação,
entre eles Gimeno Sacristán (1998, pp. 11-12), a dificuldade
e a grande resistência do sistema educacional acompanhar tais
mudanças:
Nesta época temos que pensar e decidir o percurso pelo
qual queremos que transmita a realidade social e a educação
dentro de coordenadas inseguras [...]. A crise dos sistemas educativos
tem a ver com a perda da consciência em seu sentido [...].
Tomar opções não é fácil neste
final de milênio em que vemos tombadas tantas referências
e seguranças. A educação tem funções
a cumprir; entretanto, estão ficando desestabilizadas pelas
mudanças políticas, sociais e culturais que estão
acontecendo [...]. Assistimos a uma crise importante nos discursos
que têm guiado a escolarização nesta segunda
metade do século xx. As práticas, entretanto, parecem
seguir velhas seguranças, como se nada estivesse acontecendo
[...].
Gimeno Sacristán toca em questões
que fazem pensar sobre as mudanças educacionais que documentos
formulados nos meados do século passado, como o Relatório
Delors1 e os PCNs (Parâmetros
Curriculares Nacionais), permeiam a esfera educacional. Entretanto,
apesar de serem muito bem formulados e apontarem um norte à
educação, são, por vezes, acomodados numa prateleira
qualquer das escolas e por ali ficam, não acontecendo, então,
a transposição teórico-prática.
Mais importante que criticar educadores e educadoras sobre a resistência
a mudanças estruturais que delegam a essa categoria, e não
querendo aqui cair em generalidades, seria refletir sobre o porquê
de tal resistência. A quem interessa essa imagem de resistência
criada em torno dos educadores? Quais são as possibilidades
reais de se efetuar tais mudanças? Se, teoricamente, foram
pensadas (as mudanças) com maestria, será que apontam
como transpor para a prática? Que estrutura oferecem as políticas
educacionais para que essas mudanças aconteçam na
prática? Como foram pensadas e por quem? Atendem a especificidade
da educação brasileira, ou, mais uma vez, trata-se
de modelos copiados? Como foram apresentadas aos professores e professoras?
Será que, ao mudar as regras do jogo enquanto esse acontecia,
os jogadores foram consultados? Essas e outras muitas questões
poderiam ser formuladas a respeito da formulação desses
documentos que atualmente regem a educação brasileira.
Levantar esses e outros questionamentos se faz necessário
para professores e professoras; porém, o que não se
pode negar é a urgência de provocar mudanças
nas esferas educacionais. Entender que, por vezes, as mudanças
educacionais são propostas por tecnoburocratas e por alguns
educadores que atingiram um certo nível de ilustração,
não significa ficar alheio à realidade e a observar
que a sociedade mudou, que as crianças estão envoltas
hoje em um mundo «polifônico e policrômico [...]
cheio de cores, imagens e sons. Muito distante do espaço
quase que exclusivamente monótono, monofônico e monocromático
que a escola costuma oferecer» (Kenski, 1996, p.133).
Sendo assim, precisa-se refletir sobre a urgência de criar-se
nas escolas um ambiente que dê conta dessas transformações
sociais, pois é nessa sociedade que alunos e alunas vão
interagir, e, quem sabe, como idealizava Paulo Freire, provocar
transformações que levem a um bem viver coletivo.
A respeito dessa transformação que urge, Gadotti (1998,
p. 81) nos diz:
O homem faz a sua história intervindo em dois níveis:
sobre a natureza e sobre a sociedade. O homem intervém
na natureza e sobre a sociedade, descobrindo e utilizando suas
leis, para dominá-la e colocá-la a seu serviço,
desejando viver bem com ela. Dessa forma ele transforma o meio
natural em meio cultural, isto é, útil a seu bem-estar.
Da mesma forma ele intervém sobre a sociedade de homens,
na direção de um horizonte mais humano. Nesse processo
ele humaniza a natureza e humaniza a vida dos homens em sociedade.
O ato Pedagógico insere-se nessa segunda tipologia. É
uma ação do homem sobre o homem, para juntos construírem
uma sociedade com melhores chances de todos os homens serem mais
felizes (grifos nossos).
Entender essa complexidade da ação educativa faz-se
necessário para que se saia de posturas extremistas, ora
endeusando ora demonizando quaisquer que sejam as mudanças
no setor educativo. Endeusando, porque se nota nos dizeres de alguns
educadores total apego a tudo que de novo apareça, caindo
em verdadeiros modismos educacionais que apontam receitas sem nenhuma
profundidade teórica. Demonizando, porque também se
nota, nos dizeres de outros, total desapego ao que de novo apareça,
ou seja, fortemente ligados à tradição, ao
que deu certo, portanto, não deve ser mudado.
Posturas extremistas assim não contribuem para a necessidade
de promover transformações na esfera educacional.
Talvez o que falte à educação, ou melhor, no
entendimento das pessoas que lidam com a educação,
mais especificamente àqueles que propõem mudanças
em nível documental, que formulam os dizeres que permeiam
as políticas educacionais, que precisam e necessitam ser
implementadas, porque muito bem formuladas, seja a
consciência de que «a mudança se opera por ato
e decisão dos homens juntos (fatores subjetivos) e levando
em conta as condições concretas que possibilitam a
mudança (fatores objetivos)» (Gadotti, 1998, p. 82).
Gadotti (1998, p. 83), assim como Paulo Freire, acreditam numa
pedagogia transformadora que seja capaz de mudar comportamentos.
Entendem que existem quatro categorias, entre outras, que posam
contribuir para que a educação promova transformações
substanciais: contradição, divergência, desobediência
e desrespeito.
É a partir da contradição que
homens e mulheres se percebem enquanto seres inacabados, com um
conhecimento ínfimo da realidade que os cercam e em constante
transitoriedade, o que leva a um certo desequilíbrio. Em
relação a esse, Gadotti (1998, p. 83) diz que:
O que mantém o homem em pé é o equilíbrio
de forças opostas. Esse equilíbrio é estático
quando um pé age sobre o outro, mas o homem só avança
quando toma o risco de desequilibrar-se, impulsionando um pé
para frente, rompendo o equilíbrio. Romper o equilíbrio
é um ato pedagógico transformador: significa impulsionar
o homem para frente.
A divergência, enquanto ato pedagógico, por sua vez
contribui para que educadores e educadoras entendam que vivem em
uma sociedade plural e multifacetada; sendo assim, necessitam expor
a seus alunos as várias possibilidades de encarar um mesmo
conflito, abrindo um leque de atitudes possíveis na resolução
desses conflitos.
A desobediência, como a contradição e a divergência,
também é vista por Gadotti como um ato pedagógico
transformador, pois é por meio dela que acontece o progresso
humano. Ao ser capaz de dizer não às imposições
do sistema, educandos e educandas reafirmam o seu eu. Essa desobediência
pode ser individual ou coletiva, sendo a segunda entendida como
desobediência civil. Professores e professoras precisam instrumentalizar
seus alunos e alunas para que entendam que podem provocar mudanças
substanciais a partir do momento que forem desobedientes no sentido
de não aceitar as mazelas do sistema, desenvolvendo uma consciência
crítica.
A última categoria apontada por Gadotti (1998, p. 84) refere-se
ao desrespeito. Para ele esse desrespeito aconteceria muito mais
no campo das idéias que no pessoal, ou melhor, educadores
e educadoras precisam entender que podem e devem ir contra a submissão
pretendida pelo sistema para provocar mudanças estruturais,
se submeterem ao sistema, aos preconceitos imbricados nele perpetuarão
a status quo, «e sua ação tornar-se-ia
conservadora, já que incitaria o outro a permanecer na sua
posição, na segurança que lhe dá o sagrado
ou o consagrado em sua vida».
Nessa perspectiva, assim como Paulo Freire, Gadotti (1998, p. 85)
defende que a educação não pode negar a sociedade
que está inserida e a luta de classes que há nessa
sociedade, pois o «avanço das lutas sociais modifica
a fisionomia das lutas pedagógicas». Sendo assim, Gadotti
defende que a educação pode promover nos estudantes
uma consciência social e política, porém não
política partidária, visando à melhoria da
qualidade de ensino, à melhoria das relações
interpessoais que se travam na escola, à melhoria da organização
do trabalho que se desenvolve na escola, dentre outros fatores que
só um estudante politizado pode reivindicar. Para Gadotti
(1998, p. 85):
Estudante politizado é aquele que atua politicamente dentro
e fora da escola. É um estudante que tem motivação
pela qualidade, pela relevância social e teórica
do que é ensinado. Passa a exigir do professor, tem interesse
pelas relações humanas estabelecidas no interior
da escola, discute a gestão da escola, o currículo,
enfim, o projeto político-pedagógico da escola.
No entanto, pergunta-se: até que ponto esse espaço
político almejado por Gadotti e Paulo Freire é oferecido
aos alunos e alunas? Tem interessado a professores e professoras,
mesmo aqueles que trabalham com os pequenos, desenvolver essa consciência
crítica? O que se espera de um sistema escolar que classifica,
separando os capazes dos incapazes, que não dá espaço
ao mínimo questionamento de alunos e alunas que ali estão,
sem encará-lo como ato de subversão? Será que
o profissional da educação em seu que fazer reflete
sobre tais questões, se educa para transformar ou para manter
o status quo? Ou ainda, será que, ao entrar em contato
com os ideais freireanos de educação para transformação
social, consideram-no utopia? A respeito da utopia, Pierre Furter
(1976, pp. 44- 45) já dizia:
Sem a utopia, não existiriam perspectivas, nem horizonte
pro-fundo; sem a ação, a utopia se desfaria em abstração
e em sonho delirante. Portanto, a utopia deve tornar-se concreta.
[...]. As raízes da utopia consistem no fato de que o homem
ainda não é um ser satisfeito, porque ainda não
é perfeito, porque o mundo ainda não é acabado.
Sendo assim, antes de se depositar na utopia a imobilidade educacional,
deve-se entender que a utopia é precisa porque reafirma a
necessidade de transformação, que pode acontecer de
forma lenta, mas que permea o «que fazer» de professores
e professoras, a partir do momento em que a criança ingressa
na escola, desde a educação infantil até os
níveis superiores, pois não se pode esperar que o
estudante que, desde pequeno é levado à submissão,
cresça e se torne uma pessoa preparada para promover mudanças
substanciais à humanidade.
Se algum profissional da educação ainda tem dúvida
da necessidade de promover mudanças sociais é só
olhar em torno de si mesmo e observar as mazelas que a sociedade
atual vem criando: a fome, a miséria, as injustiças
sociais, o desrespeito aos mais básicos direitos humanos.
Gadotti (1998, p. 87) mostra que:
Educar nessa sociedade é tarefa de partido, isto é,
não educa para a mudança aquele que ignora o momento
em que vive, aquele que pensa estar alheio ao conflito que o cerca.
É tarefa de partido porque não é possível
ao educador permanecer neutro. Ou educa a favor dos privilégios
ou contra eles, ou a favor das classes dominadas ou contra elas.
Aquele que se diz neutro estará apenas servindo aos interesses
do mais forte. No centro, portanto, da questão pedagógica
situa-se a questão do poder.
Frente a essa imobilidade pedagógica que
assola os meios educacionais, seja por insegurança, por apego
ao que deu certo, ou por falta de vontade política, a escola
vive às voltas de duras críticas2.
A revista Veja 3 publicou um
artigo escrito pelo colunista Diogo Mainardi com o título
«Escola é perda de tempo», cujo conteúdo
questiona a falta de eficiência da escola em fornecer aos
alunos requisitos básicos como ler e efetuar as quatro operações.
A leitura do artigo mexe com a auto-estima de professores e professoras,
que se defendem colocando a culpa da falta de qualidade do ensino
nas leis atuais e na ausência de reprovação.
Questiona-se então, antes das leis mudarem, o que acontecia
com essas pessoas que não conseguiam alcançar os requisitos
básicos para avançar as séries do sistema?
Quantas pessoas ficaram à margem da escola por desistirem
frente a tantos obstáculos? Como incluir a todos se baixar
a qualidade de ensino? Ou será que a escola é para
poucos iluminados?
Volta aqui, a questão da necessidade de politização,
tanto de professores como de estudantes, para que, compreendendo
esse sistema, compreendendo como acontece a elaboração
das leis, possam atuar sobre elas. No entanto, Gadotti (1998, p.
89) entende que:
Como pode o educador assumir um papel dirigente na sociedade se
na sua formação o todo social resume-se a uns poucos
conhecimentos de métodos e técnicas pedagógicas
ou a uma história da educação que se perdeu
no passado e nunca chega aos nossos dias? Como pode uma nação
esperar que as novas gerações sejam educadas para
o progresso, o desenvolvimento econômico e social, para a
construção do bem-estar para todos, sem uma sólida
formação política?
Apesar do ato político estar tão presente na fala
de Gadotti, assim como na de Paulo Freire, ambos não reduzem
o ato pedagógico ao político, mas concordam que, apesar
da política não dar conta de toda a complexidade pedagógica,
ela não deve ser ignorada na esfera educacional.
Concluindo, comunga-se com as palavras de Gadotti (1998, p. 90)
que alia ao papel social de professores e professoras esperança
em um futuro melhor para a educação brasileira:
Ao novo educador compete refazer a educação, reinventá-la,
criar as condições objetivas para que uma educação
realmente democrática seja possível, criar uma alternativa
pedagógica que favoreça o aparecimento de um novo
tipo de pessoas, solidárias, preocupadas em superar o individualismo
criado pela exploração do trabalho. Esse novo projeto,
essa nova alternativa, não poderá ser elaborado
nos gabinetes dos tecnoburocratas da educação. Não
virá em forma de lei nem reforma. Se ela for possível
amanhã é somente porque, hoje, ela está sendo
pensada pelos educadores que se reeducam juntos. Essa reeducação
dos educadores já começou. Ela é possível
e necessária.
Espera-se que os profissionais da educação acreditem
nessa força que Gadotti lhes deposita, e desejem realmente
participar da construção de uma nova educação
para um novo mundo.
BIBLIOGRAFÍA
Arroyo, Miguel G. (2002): Ofício de mestre: imagens e
auto-imagens, 6.ª ed., Rio de Janeiro, Editora Vozes.
Furter, Pierre (1976): Educação e reflexão,
9.a ed., Rio de Janeiro, Editora Vozes.
Gadotti, Moacir (1998): Pedagogia da práxis, 2.ª
ed., São Paulo, Cortez.
Gimeno Sacristán, José (2001): «A educação
que temos, a educação que queremos», in Francisco
Inbernón: A educação no século xxi:
os desafios do futuro imediato, Porto Alegre, Artimed.
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Porto Alegre, Artes Médicas.
Haydt, Regina Célia Cazaux (1997): Curso de didática
geral, 4.ª ed., São Paulo, Ática.
Kenski, Vani Moreira (1996): «O ensino e os recursos didáticos
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Morin, Edgar (2001): Os sete saberes necessários à
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Cortez.
Rosa, Sanny S. da (2000): Construtivismo e mudança,
São Paulo, Cortez Editora.
Severino, Antônio Joaquim (2001): «Identidade e tarefas
da filosofia da educação», in Educação,
sujeito e história, São Paulo, Olho Dágua.
Silva, E. T. (1992): Os (des)caminhos da escola: traumatismo
educacionais, 4.ª ed, São Paulo, Cortez.
Notas
(*) Pedagoga graduada pela Universidade
Estadual de Londrina com habilitação em Supervisão
Escolar, e supervisora educacional de escola da rede particular
de Londrina (Pr), Brasil.
1 Recomenda-se a leitura de Educação,
um tesouro a descobrir.
2 A respeito do assunto, recomenda-se
a leitura de Ivan Illich (1970), A sociedade desescolarizada,
e Everett Reimer (1971), A escola morreu, entre outras.
3 Edição 1821,
ano 36, núm. 38, 24/09/2003.
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