Revista Iberoamericana de Educación (2022), vol. 90 núm. 1, pp. 151-167 - OEI
https://doi.org/10.35362/rie9015357 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653
recibido / recebido: 30/07/2022; aceptado / aceite: 27/09/2022
Regulação supranacional em educação na África: estudo a partir da política de formação de professores de Angola *
Camila Maria Bortot 1
Chocolate Adão Brás 2
Elisângela Alves da Silva Scaff 1
1 Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil; 2 Instituto Superior Politécnico Sol Nascente (ISPSN), Brasil
Resumo. Este artigo tem como objetivo analisar as relações entre a regulação supranacional e a construção de políticas de formação de professores para o continente africano, focalizando a análise para o contexto angolano. A base metodológica da pesquisa é de caráter documental, organizada a partir de documentos constantes nos repositórios digitais de agências da Onu, do Banco Mundial e do governo angolano. Verifica-se, assim, que os parâmetros definidos para a formação de professores em Angola são fortemente influenciados pelas orientações e projetos de cooperação internacional, com foco na formação inicial de professores. Essa característica faz parte da agenda global de fomento à ampliação da quantidade de professores (as) na região por meio do investimento em programas destinados a esse fim. Nesse cenário, Angola recebeu financiamento para vários projetos, entre eles o Programa Aprendizagem para Todos, formulado por meio de cooperação entre Banco Mundial e o Governo angolano. Logo, sinaliza-se a tendência de vinculação da formação inicial e continuada de docentes ao sucesso educacional, configurando uma regulação supranacional direta e influente na agenda das políticas educacionais em Angola.
Palavras-chave: política educacional; regulação supranacional; formação de professores; professores angolanos; Programa Aprendizagem para Todos.
Regulación supranacional en la educación en África: un estudio desde la política de formación docente en Angola
Resumen. Este artículo tiene como objetivo analizar la relación entre la regulación supranacional y la construcción de políticas de formación docente para el continente africano, centrando el análisis en el contexto angoleño. La base metodológica de investigación es documental, organizada desde documentos contenidos en los repositorios digitales de las agencias de la ONU, del Banco Mundial y del gobierno de Angola. Se puede ver, entonces, que los parámetros definidos para la formación de profesores en Angola están fuertemente influenciados por las directrices y proyectos de cooperación internacional, con foco en la formación inicial de maestros. Esta característica forma parte de la agenda global para promover la expansión del número de docentes en la región a través de la inversión en programas diseñados para tal fin. En ese escenario, Angola recibió financiación para varios proyectos, incluido el Programa Aprendizaje para Todos, formulado a través de la cooperación entre el Banco Mundial y el Gobierno de Angola. Entonces, se señala la tendencia de vincular la formación inicial y continua docente al éxito educativo, configurando una regulación internacional directa e influyente en la agenda de la política educativa en Angola.
Palabras clave: política educativa; regulación supranacional; formación de maestros; maestros angoleños; Programa Aprendizaje para Todos.
Supranational regulation in Education in Africa: a study based on the teacher training policy in Angola
Abstract. This paper aims at analyzing the relationship between supranational regulation and the construction of teacher education policies for the African continent, focusing the analysis on the Angolan context. Research methodological basis is documental, organized from documents contained in digital repositories of UN agencies, the World Bank, and the Angolan government. It is possible see that the parameters defined for teacher education in Angola are strongly influenced by international cooperation guidelines and projects, with a focus on initial teacher education. This characteristic is part of the global agenda to promote the expansion of the number of teachers in the region through investment in programs designed for this purpose. In this scenario, Angola received funding for several projects, including the Learning for All Program, formulated through cooperation between the World Bank and the Angolan Government. Therefore, the trend of linking initial and continuing teacher education to educational success is signaled, configuring a direct and influential international regulation on the educational policy agenda in Angola.
Keywords: educational policy; supranational regulation; teacher education; angolan teachers; Learning for All Program.
* Este projeto integra a Rede Internacional de Pesquisa “Pontes Lusófonas”.
1. Introdução
A apropriação do conceito de regulação estatal tem se constituído em um traço distintivo da educação brasileira nas últimas décadas, que se articula com as novas configurações assumidas pelo Estado no controle da vida social e econômica, por meio das políticas públicas (Azevedo & Gomes, 2009). Mais recentemente, observa-se a emergência do debate sobre mecanismos de controle internacional no modo de regulação dos países, que vai desde acordos multilaterais a testes padronizados. Isso provoca a cultura de políticas educacionais de controle, e nesse rol, o alinhamento da formação de professores em competências e habilidades.
Neves (2018) elencou atores-chave que organizam e avaliam os mecanismos de controle internacional: Atores internacionais – como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) ou a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE); Organizações supranacionais, como a União Europeia (UE) e União Africana (UA); e Organizações não-governamentais (ONG), nacionais e internacionais que operam enquanto redes auto-organizadas, com ou sem interferência nas políticas dos governos.
Nessa conjuntura, este artigo visa a analisar as relações entre a regulação supranacional e a construção de políticas de formação de professores para o continente africano, focalizando a análise para o contexto angolano. A pesquisa que fundamenta o presente texto tem abordagem qualitativa e foi realizada a partir de levantamento bibliográfico de ordem nacional e internacional, também documental. Elege-se, desse modo, o estudo de documentos oriundos da ONU, da Unesco e do Banco Mundial e do governo angolano.
Para organização e análise dos dados, o artigo está dividido em três seções: primeiramente, apresenta-se a discussão sobre regulação e regulação supranacional, focalizando o papel das agências internacionais na organização da agenda das políticas educacionais; em seguida realiza-se a análise de políticas de formação de professores em países em desenvolvimento; e finalmente analisa-se o alinhamento e nível de influência da regulação supranacional nas políticas de formação de professores em Angola, tendo como referência o Programa Aprendizagem para Todos.
2. Regulação supranacional e construção da agenda de formação de professores na África
Embora não seja um fenômeno recente, a globalização expandiu-se pelo mundo a partir da segunda metade do século XX, formando um novelo de interações entre agentes sociais que não estão em posição contígua. Datam desse período a reestruturação do capitalismo e as reformas do Estado, com um modelo novo de organizar políticas de intervenção e controle, alinhados a essas mudanças internacionais, com vistas a “influenciar e enquadrar a política de educação global” (Verger, 2019, p. 8). Isso ocorreu de forma quase hegemônica em um conjunto alargado de países, em todos os continentes (Barroso, 2018).
Assim, ocorreu um fortalecimento de processos regulatórios, com a refuncionalização do modo de produção capitalista, cuja política de gestão social vincula gestão macroeconômica e micropolítica do cotidiano. Logo, o Estado tornou-se o agente regulador a serviço de um determinado modelo de desenvolvimento econômico-social, tornando-se ele próprio produtor de bens e serviços destinados ao capital e à reprodução da força de trabalho.
Para Barroso (2006), o termo regulação possuiu caráter polissêmico e de pluralidade de significados, dependendo do contexto em que é utilizado. Simbolicamente e de maneira geral, o termo é utilizado para delimitar a intervenção do Estado na condução das políticas públicas; ou seja, a intervenção do Estado na prestação de um serviço público. Logo, os Estados passam a figurar como agentes de uma nova forma de regulação, em que a ação pública conta com a colaboração e a imposição de outros atores nos níveis intermediários e local, o que exige novas estratégias de implementação e controle das políticas estatais (Oliveira, 2009).
O cenário de regulação local é fortemente influenciado pela agenda de decisões político-educacionais transnacionais (Krawczyk, 2019) para a manutenção do equilíbrio de um sistema social. A agenda produz regras que orientam ações dos atores e modos como eles se apropriam delas e as transformam. Essa agenda, por sua vez, integra a regulação supranacional.
No sentido de promover qualidade, com base em indicadores padronizados e indicações enunciadas em escala global, a regulação supranacional se estabelece em coordenar, controlar e influenciar Estados a partir de uma agenda estabelecida, alinhada a princípios econômico-sociais, que visa a sistematizar políticas educacionais. Visa igualmente a adequar os sistemas educacionais a partir de um valor de referência, com normas acerca da formação de professores e sua atuação, bem como ações de fiscalização, premiação e avaliação do trabalho docente.
Assim, regulação supranacional envolve múltiplas estruturas e instituições transnacionais que “[...] participam ativamente os sujeitos sociais do campo da educação, e, portanto, que acabam por moldar e influenciar, dentro de determinados limites, rumos e compleições as políticas de educação (Azevedo & Gomes, 2009, p. 104). Barroso (2018) esclarece que ela ocorre
[...] por meio de normas, discursos e instrumentos que são produzidos e circulam nos fóruns de decisão e consulta internacionais, no domínio da educação, e que são tomados, pelos políticos, funcionários ou especialistas nacionais, como obrigação ou legitimação, para adotarem ou proporem decisões ao nível do funcionamento do sistema educativo (p. 1083).
Ainda, as agências que atuam na regulação supranacional por meio de “programas técnicos que sugerem (impõem) diagnósticos, metodologias, práticas, soluções (muitas vezes de maneira uniforme) que acabam por constituir uma espécie de ‘pronto-a-vestir’” (Barroso, 2018, p. 1083), fundamentados em estudos e práticas por eles formulados. Além dos projetos, essas instituições criam instrumentos de comparação, que se tornam “[...]instrumento de persuasão política e um critério para a formulação de juízos (de qualidade, eficácia)” (Barroso, 2018, p. 1083). Portanto, atuam de forma a desenvolver a Nova Gestão Pública, baseada nos princípios da cultura de resultados, com indicadores de eficácia que visam a aferir a qualidade educacional como elementos de qualificação da educação (Marques et al., 2019).
Fonseca e Costa (2018) apontam que o gerencialismo global faz deslocar, parcialmente, o poder dos vários Estados-Nação para organizações supranacionais, as quais, aos poucos, assumem o controle das agendas políticas em educação, padronizados e enquadrados “pelas ideologias da sociedade de informação, do conhecimento e das novas competências e regulados por procedimentos de gestão administrativa” (Fonseca & Costa, 2018, p. 214).
São protagonistas dessa normatização e influência regulatória as agências da Organização das Nações Unidas (Onu), o Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as quais definem e promovem um conjunto de princípios e padrões políticos que enquadram o comportamento dos países, como as avaliações internacionais de desempenho e programas de aumento de professores, como o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) e políticas de formação de professores em etapas específicas da educação, contribuindo para a padronização do conteúdo curricular em nível global.
Além disso, essas instituições promovem a instalação da interdependência, ao traçar planos nacionais a partir de pautas globais para lidar com problemas que exigem cooperação internacional e/ou alinhamento de políticas nacionais (Bortot, 2022). Para a formação de professores de forma específica, têm o objetivo de enquadrar e padronizar políticas de capacitação permanente, avaliação de desempenho, incentivos e promoção, repetidamente aplicadas por sistemas educacionais de alto desempenho (Unesco, 2012).
Essas organizações influenciam, controlam e criam mecanismos avaliativos por meio de iniciativas, como o Programa Educação para Todos (organizado pela Unesco com outras agências), os marcos educacionais nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (Onu, 2000) e Desenvolvimento Sustentável (Onu, 2015), além de programas de cooperação internacional. Tais iniciativas abriram as portas para que ministérios de educação de todo o mundo recebam mensagens, recomendações, imposições e pressões a favor de determinadas medidas.
Apesar dessa agenda regulatória em âmbito internacional, pactos, declarações internacionais e projetos transnacionais incorporados pelos Estados nacionais, patrocinados, apoiados e/ou coordenados pelas Organismos Internacionais, não se pode olvidar do poder dos Estados e nem minimizar sua participação nesse processo, visto que, embora sofram influências, são produtores, e como tais, incorporam as diretrizes estabelecidas nos compromissos internacionais com as particularidades locais (Bortot & Scaff, 2020).
Uma forma de regulação supranacional são os documentos produzidos para regiões específicas do mundo, em temáticas específicas que buscam modificar ou se adequar aos padrões de uma cultura educacional. A formação de professores é uma das principais pautas de regulação para o continente africano, como forma de ter êxito em reformas educacionais. A Unesco, protagonista de orientações e normas aos países signatários, orientou que Angola precisa de professores “[...] bem formados e apoiados para aturem como elemento-chave para o êxito de qualquer reforma institucional” (Unesco, 2012, p. 30), com ênfase na formação inicial.
A formação docente é um elemento basilar, pois a falta de professores qualificados constitui uma das maiores barreiras à oferta de educação primária obrigatória e gratuita em alguns países e à expansão da escolaridade de dez para onze ou doze anos, segundo a assertiva da Unesco (2012). Além disso, a Unesco (2012) defende que a qualidade educacional é reflexo da integração entre a atuação docente e os resultados dos alunos. Em um curto período, o ensino tornou-se uma das profissões mais estudadas e com protagonismo nos objetivos educacionais internacionais, com altas expectativas, e ainda com uma série de questões não resolvidas (Steiner-Khamsi, 2015).
Em 2015, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (Onu, 2015) definiu 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), entre os quais se destaca, para o objetivo deste texto, o ODS 4 “Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” (Onu, 2015). Dentro do ODS 4, a meta 4.10 é destinada à formação de professores: “Até 2030, aumentar substancialmente o contingente de professores qualificados, inclusive por meio da cooperação internacional para a formação de professores, nos países em desenvolvimento, especialmente os países menos desenvolvidos e pequenos Estados insulares em desenvolvimento” (Onu, 2015).
Tendencialmente, as recomendações internacionais indicam a qualificação de novos professores para o continente africano. O Banco Mundial (2010) vai na mesma direção de formar novos professores, mas delega o direcionamento de cursos de ciências sociais e humanidades para “ [...] o ensino privado, concentrando os governos gradualmente os seus investimentos públicos no desenvolvimento de disciplinas de ciências, engenharia e tecnologia” (Banco Mundial, 2010, p. 148), como acontece com “êxito em países como o Brasil, o Chile e a Coreia” (Banco Mundial, 2010, p. 148). Além disso, o Banco Mundial (2010) orienta fortemente a formação na Educação Técnica Pós-Secundária, em que seu “produto é ‘técnico altamente qualificado’” (p. 77), posto que “[...] inovação é a passagem para formação baseada em competências” (p. 79) para a eficácia e a eficiência do gasto social.
Com esses princípios, o Banco Mundial vem financiando projetos de formação inicial e continuada no continente africano, especificamente em Angola. O Programa de Aprendizagem para Todos (PAT) tem sido implementado a partir de um plano de formação de professores, em cascata, que visa a reforçar competências profissionais dos gestores de escolas, professores, distintos agentes educativos e técnicos das estruturas centrais, provinciais, municipais, distritais e comunais do setor da Educação (PAT, 2022,) 1 . Assim, atua diretamente na regulação, promovendo políticas, e não somente influenciando por meio de orientações.
Formar competências docentes voltadas para mecanismos de padronização, como o desenvolvido pelo PAT, além dos enunciados da Unesco e do Banco Mundial de atrelar a formação inicial de docentes ao sucesso educacional, demonstra que há uma regulação direta e influente na agenda de políticas educacionais em Angola, reforçando a análise de Paxe (2014), quando aponta que “a adopção na política de educação em Angola dos modelos educativos ocidentais através de programas e projetos propostos por UNESCO, União Europeia e CPLP para […] visar a legitimidade internacional na nova ordem mundial” (p. 117).
Sobre isso, Poças e Santos (2020) analisaram que as políticas angolanas para a formação de professores
[...] sofrem influências globais de intensidade superior, pois estes países, essencialmente os mais pobres, têm uma grande dependência de ajuda externa em diferentes modalidades, como por exemplo, em termos de financiamento, informação e de especialistas e há também um grande espaço – material e ideológico – para os agentes externos definirem as agendas e as prioridades educativas destes países (p. 39).
A produção da legitimidade discursiva e a construção e ampliação de programas desenvolvidos diretamente por agentes de regulação supranacional deixam claras as intencionalidades das políticas de formação de professores para países africanos, em especial para Angola: desenvolver programas e políticas de formação inicial de professores, em escala exponencial, focalizando a formação desses docentes para o desenvolvimento de competências alinhadas a conteúdos de avaliações em larga escala e à descentralização da formação para o ensino privado.
No contexto da agenda de regulação supranacional em Angola, Divovo e Brás (٢٠٢٠) apontam os seguintes programas educacionais: o Plano de Educação para Todos, aprovado em 2004; a Estratégia para a Melhoria do Sistema de Educação de 2001 a 2015, definida em 2001; a Estratégia de Alfabetização e Recuperação do Atraso Escolar de 2006 a 2015, aprovada no ano de 2005; o Plano Nacional de Desenvolvimento da Educação, sancionado em 2017; e o Programa Nacional de Formação e Gestão do Pessoal Docente, aprovado em 2018.
Todos esses programas buscam ou buscavam reverter não só o quadro de atraso educativo em que o país se encontra ou encontrava, mas também garantir a adequação das suas políticas públicas de educação às agendas internacionais subscritas e adotadas por Angola. Há alguns anos, vários especialistas observam a forte adesão das políticas educacionais nacionais à agenda global (Carnoy, 1999; Green, 1999), e, portanto, adentram a política de regulação supranacional, e nesse cenário, também adentram processos de padronização educacional.
Assim, a próxima seção busca compreender o grau de influência na legislação para a formação de professores em Angola em relação à regulação supranacional em produzir, em nível local, políticas de formação de professores, haja vista que, no discurso transnacional, o bom desempenho docente resulta eficazmente em melhora educacional.
3. Breve caracterização das políticas educacionais em Angola
Angola é uma República soberana e independente desde 11 de novembro de 1975, situada na costa ocidental da África Austral, a sul do Equador, na África subsaariana. Trata-se de um país unitário com administração pública centralizada (Angola, 2010). As políticas educacionais e a gestão da educação são definidas pela administração central do Estado, com lógica de elaboração e aprovação nacional, e com implementação local junto dos Gabinetes provinciais da educação.
Com o advento da paz e sob coordenação de organizações supranacionais, como o Banco Mundial e a Unesco, o governo de Angola introduziu alterações nas políticas educacionais, partindo da implementação da primeira Lei de Bases do Sistema de Educação - Lei n.º 13/01, de 31 de dezembro de 2001 - LBSE (Angola, 2001), visando a readaptar o sistema educacional e ajustar-se aos compromissos comuns para as políticas educacionais globais estabelecidas no Marco de ação de Dakar - educação para todos (ONU, 2000).
Desses compromissos foi criado o subsistema de formação de professores, sustentado pela LBSE de 2001 que foi reforçado com a aprovação de um conjunto de legislações e programas específicos, no período de 2001 a 2020, quais sejam:
• Plano Mestre de Formação de Professores em Angola (PMFP), em 2008;
• Estatuto da Carreira dos Docentes do Ensino Primário e Secundário, Técnicos Pedagógicos e Especialistas de Administração da Educação, em 2008;
• Proposta de Política de Formação de Professores da Educação Pré-escolar, do Ensino Primário e do I Ciclo do Ensino Secundário, em agosto de 2016; e
• Programa Nacional de Formação e Gestão do Pessoal Docente, em setembro de 2018.
O PMFP, que foi elaborado com base em um trabalho participativo entre técnicos do Ministério da Educação (MED) e a consultoria técnica e metodológica do Bureau d’Ingénierie en Education et Formation (BIEF), sediado na Bélgica, obedeceu a diferentes etapas de trabalho acordadas entre as duas partes e firmadas por um contrato de consultoria suportado financeiramente pela UNICEF (Angola, 2008a).
Em 2008 ocorreu uma adequação do sistema de avaliação dos agentes da educação em Angola ao primado nos documentos orientadores da Unesco, sobretudo no acento na idealização de um excelente desempenho através da padronização de testes de aferição, bem como da sua fixação como indicador para a superação desses profissionais. Isso pode ser evidenciado no artigo 2º do Decreto n.º 3/08, de 4 de março:
a) despertar nos trabalhadores a necessidade de superação constante, capacitando-os científica e pedagogicamente para as suas tarefas quotidianas; b) incentivar para a disciplina pessoal no cumprimento de todas as tarefas diárias ou periódicas que concorram para a planificação, organização ou execução da actividade laboral; c) contribuir para o aumento do seu prestígio social e brio profissional (Angola, 2008b).
Já a proposta de Política de Formação de Professores da Educação Pré-escolar, do Ensino Primário e do I Ciclo do Ensino Secundário, em agosto de 2016, foi financiada pela Unicef e implementada com o apoio da Ceso Devolopment Consultants. O objetivo foi contribuir para “a melhoria do desempenho docente nos estabelecimentos de educação pré-escolar, do ensino primário e do I ciclo do ensino secundário e, consequentemente, para a qualidade das aprendizagens dos alunos” (Angola, 2016, p. 9).
Sobressai a ideia da definição de novos modelos de regulação, de gestão e organização da formação inicial e continuada de professores, promovendo, para tanto uma reforma no subsistema de formação, definindo novos modelos, promovendo a revisão dos currículos e conteúdos de formação, bem como do estabelecimento de um perfil de qualificação profissional docente. Nesse sentido, a elaboração da referida proposta de política dividiu-se em duas fases: (i) analisar a situação atual da política de formação de professores; e (ii) definir (elaborar e validar) uma proposta de política de formação de professores (Angola, 2016).
Além dessas políticas e programas, o Plano de Desenvolvimento Nacional 2018-2022 elegeu a Educação Básica e o Ensino Superior como prioritários, com o objetivo de promover o desenvolvimento humano e educacional do povo angolano, com base em uma educação e aprendizagem ao longo da vida para todos e cada um dos angolanos (Angola, 2020a). Nesse plano, o governo aprovou um conjunto de programas específicos para implantação da política pública de educação: (i) Desenvolvimento da Educação Pré-Escolar; (ii) Programa Nacional de Formação e Gestão do Pessoal Docente; (iii) Melhoria da Qualidade e Desenvolvimento do Ensino Primário; (iv) Desenvolvimento do Ensino Secundário Geral; (v) Melhoria e Desenvolvimento do Ensino Técnico-profissional; (vi) Intensificação da Alfabetização e da Educação de Jovens e Adultos; e (vii) Ação Social, Saúde e Desporto Escolar.
Com essas políticas e programas, o governo angolano tem pretendido atingir os objetivos inscritos nas agendas internacionais, com destaque para a Agenda 2030 da Unesco. Essa pretensão é registada desde ١٩٧٥, período em que Angola tornou-se independente, de acordo com Ngaba (2012) e Brás (2019), que ao analisarem as políticas educacionais implementadas na Primeira e Segunda República em Angola, consideraram que elas tiveram influência de organismos supranacionais. Ngaba (2012) aponta que, durante a Primeira República (1975-1992), o sistema educacional angolano aderiu às definições educacionais, modelos e padrões normativos internacionais estabelecidos pelo então Bloco do Leste, liderado pela antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, tanto pela conformidade estrutural como pelo isomorfismo organizacional dos Estados socialistas. Ainda, a aplicação desses princípios contou com a colaboração de peritos dos países do Bloco do Leste, com destaque para a República de Cuba.
O mesmo entendimento é apresentado por Alfredo e Tortella (2014), que sugerem que, durante esse período, se registou uma tendência que parecia levar o sistema educativo angolano a “organizar-se nos diferentes níveis por conta da cooperação e influência de países estrangeiros e organismos das Nações Unidas (Unesco e Pnud), Banco Mundial e outros” (p.128), em projetos de formação de professores e modelos estruturais de organização.
Na Segunda República (1992-2010), registrou-se uma alteração da perspectiva de organização política do sistema educacional, verificando-se a adesão às definições educacionais, modelos e padrões normativos internacionais estabelecidos pelas Organizações Internacionais como a UNESCO, UNICEF e pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), como analisa Brás (2019). Segundo o autor, Portugal ocupa lugar de destaque nesse processo, cuja cooperação com essas organizações teve, como denominador comum, a implementação dos objetivos do Marco de Dakar 2000, o que confirma a tendência de regulação supranacional das políticas educacionais no contexto angolano (Brás, 2019).
Na atual República (2010 até ao momento presente) mantém-se a tendência de regulação supranacional na política educacional angolana, haja vista que atores internacionais, como a Unesco, Banco Mundial e Unicef, continuam a ter grande influência nos direcionamentos das políticas e programas educacionais, sobretudo relacionados com a formação e gestão do pessoal docente, especialmente em programas de aceleração de formação inicial de professores e gestores, como analisamos no item subsequente.
4. Políticas atuais para a formação de professores em Angola: alinhamentos com a regulação supranacional
A lei de bases aprovada e implementada depois do marco de ação de Dakar de 2000 já demonstra o alinhamento da política educacional angolana ao mecanismo de regulação supranacional (Ngaba, 2012). Organizou-se uma estratégia junto ao Ministério da Educação e ao Ministério do Ensino Superior, através da Direção Nacional de Formação de Quadros e dos Institutos Superiores de Ciências da Educação (ISCED), da formação inicial de professores no país, alinhada às competências de currículos e métodos, tendo em atenção a avaliação de desempenho, tanto do professor quanto dos alunos.
Nessa sequência e considerando a necessidade de atender às questões da qualidade e eficácia dos resultados em âmbito internacional para o local, tem-se em conta o indicador da estratégia 4.c do ODS4 da Agenda 2020 da Unesco (2016), que estabelece a necessidade de “revisão, análise e melhoria da qualidade da formação de professores, e em fornecer a todos os professores uma formação inicial de qualidade e um contínuo desenvolvimento e apoio profissional aos professores em serviço” (p. 24). Assim, o governo angolano aprovou, em 2018, o Programa Nacional de Formação e Gestão do Pessoal Docente (PNFGPD), que visa a promover o incremento da qualificação e do desempenho dos professores, e em consequência, a qualidade da educação pré-escolar, do ensino primário e do ensino secundário geral e técnico-profissional. Deste modo, tem o objetivo de contribuir significativamente para a garantia do direito de todos os cidadãos à educação e para o desenvolvimento social, econômico e cultural do País. Em termos específicos, o PNFGPD persegue seis objetivos (Angola, 2018), sinalizados no quadro 1.
Quadro 1. Objetivos do PNFGPD
Adequar a rede de oferta de formação inicial de professores (instituições de formação, cursos e vagas) às futuras necessidades de docentes, devidamente qualificados, na Educação Pré-Escolar, no Ensino Primário e em cada disciplina do | e Il Ciclos do Ensino Secundário (geral, técnico-profissional e pedagógico); |
Atrair e selecionar para a formação inicial candidatos com melhor preparação; |
Garantir que, nos cursos de formação inicial de professores sejam proporcionadas as adequadas oportunidades de aquisição da qualificação profissional exigida pelo futuro desempenho docente e só obtenha certificação profissional para a docência os que a tiverem adquirido; |
Recrutar para a docência os melhores candidatos de entre os que possuem qualificação profissional, devidamente certificada e obtida em cursos reconhecidos pelo Ministério da |
Educação como habilitação para a docência na Educação Pré-Escolar, no Ensino Primário e em cada disciplina do | e/ou Il Ciclos do Ensino Secundário Geral, Técnico-profissional e Pedagógico, conforme as vagas a concurso; |
Atrair e reter os professores mais bem preparados e com bom desempenho; |
Proporcionar aos docentes em serviço oportunidades de desenvolvimento de competências profissionais, predominantemente centradas na melhoria das práticas de ensino na sala de aula e de coordenação pedagógica na escola e com uma valência significativa de apoio tutorial. |
Fonte: Elaboração dos autores (2022) com dados de Angola (2018, p. 4396).
Analisando os objetivos deste programa, observa-se a necessidade expressa do aumento do contingente de professores, considerando as necessidades de pessoal para atuar na Educação Pré-Escolar, no Ensino Primário e em cada disciplina do I e II Ciclo do Ensino Secundário (geral, técnico-profissional e pedagógico), alinhando-se ao prescrito na meta 4.10 do ODS 4.
A recomendação da Unesco sobre a necessidade de professores bem formados (Unesco, 2012) para servir o sistema de educação e ensino em Angola é igualmente considerada na medida de política 5 do objetivo A2 do PNFGPD, que prevê uma transição progressiva, até 2027, de todos os cursos de formação inicial de professores de Ensino Médio para o Ensino Superior.
Efetuar a transição progressiva, até 2027, de todos os cursos de formação inicial de professores para o ensino superior pedagógico, organizado segundo o modelo integrado 2 os de formação de educadores de infância e de professores do ensino primário, e dando prioridade à organização segundo o modelo sequencial, no caso dos cursos de formação de professores de disciplina para o ensino secundário (geral, técnico-profissional e pedagógico) (Angola, 2018, p.4397).
A questão da adoção de políticas visando a expandir a quantidade de professores, mencionada nos documentos orientadores da formação inicial de professores da Unesco, foi igualmente levantada no PMFP. A apreensão assenta-se no fato de o número de professores sem formação pedagógica ser ainda alto, o que demanda uma intervenção séria no sentido de garantir que eles tenham as competências profissionais fundamentais para o seu exercício profissional.
Em relação a essa preocupação, dados do MED de 2019 apontam que, dos professores que atuaram nas escolas públicas naquele ano, 22,9% não tem formação pedagógica, seja de nível médio ou superior (Angola, 2019). O quadro que segue apresenta a caraterização dos professores que atuaram nas escolas públicas no ano letivo 2019 de acordo sua formação.
Quadro 2. Caraterização dos professores por tipologia de formação no ano 2019
Subsistema/Nível de ensino |
Formação pedagógica |
Sem formação pedagógica |
Total Geral |
|||
MF |
F |
MF |
F |
MF |
% |
|
Iniciação |
9.992 |
6.153 |
4.793 |
1.976 |
15.785 |
7,7 |
Ensino Primário |
66.910 |
35.702 |
23.746 |
10.150 |
90.656 |
44,7 |
I Ciclo do Ensino Secundário |
46.970 |
16.134 |
7.809 |
2.213 |
54.779 |
27 |
II Ciclo do Ensino Secundário |
31.290 |
7.740 |
10.214 |
2.458 |
41.504 |
20,4 |
Subtotal |
155.162 |
65.729 |
46.562 |
16.797 |
202.724 |
100 |
% |
76,5 |
22,9 |
100 |
Legenda: MF – Masculino e Feminino F – Feminino
Fonte: Elaboração dos autores com base nos dados do Ministério da Educação (Angola, 2019).
Ter 22,9% do corpo docente geral da Educação Básica sem formação pedagógica constitui, para as autoridades nacionais da educação, uma grande preocupação, sobretudo quando quase metade dos professores que atuam nas séries iniciais (1ª a 6ª) não tem preparação didático-pedagógica para o seu exercício profissional.
Para a inversão desse quadro, o MED, com recursos provenientes de cooperação internacional, tem implementado programas de formação inicial e em serviço, sinalizando, assim, que a influência dos atores internacionais ultrapassa os limites dos documentos orientadores, incidindo de forma direta na promoção de políticas. Entre os programas que vêm sendo implementados nesse cenário, destaca-se o Projeto Aprendizagem para Todos (PAT), financiado pelo Banco Mundial, tendo como instituição parceira a Fundação Calouste Gulbenkian (União Europeia) e o apoio técnico e metodológico da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal (Portugal).
Esse projeto foi aprovado em setembro de 2013 pela administração do Banco Mundial e sua implementação teve início em Angola em junho de 2014. A primeira fase do projeto contou com financiamento de 75.000.000,00 USD (setenta e cinco milhões de dólares americanos) do Banco Mundial e 5.000.000,00 USD (cinco milhões de dólares americanos), financiados pelo Governo de Angola; e a segunda fase, iniciada em 2021, com 250.000.000,00 USD (duzentos e cinquenta milhões de dólares americanos) (Angola, 2020b).
O Projeto Aprendizagem para Todos beneficia diretamente 18.846 profissionais da educação, distribuídos entre professores, diretores de escolas, membros dos conselhos de escolas, formadores ZIP 3 e EM 4 , supervisores, inspetores, facilitadores, coordenadores provinciais e municipais da educação, contabilistas, técnicos do próprio projeto, membros do Grupo Técnico do Sistema Nacional de Avaliação e técnicos do MED (PAT, 2020), subdivididos conforme se apresenta no quadro 3.
Quadro 3. Beneficiários diretos do Projeto Aprendizagem para Todos
Grupos de beneficiários diretos |
||||||
Professores |
Formadores ZIP |
Formadores EM |
Supervisores |
Quadros providenciais e municipais da educação |
Contabilistas |
Quadros do PAT |
15.000 |
669 |
60 |
43 |
228 |
36 |
19 |
Facilitadores |
Inspetores |
Diretores de escolas |
Membros do Conselho de Escola |
Coord. municipais da ZIP |
Quadros do GTSNA |
Técnicos do MED |
30 |
18 |
842 |
1684 |
167 |
26 |
24 |
Total |
18.446 |
Fonte: Elaboração dos autores com base no Relatório do PAT de 2020.
Os professores beneficiados pelo projeto pertencem aos quadros do MED integrados na carreira docente nas diferentes províncias e municípios do país, e sendo funcionários do Estado, têm a sua remuneração paga pelo governo angolano, mas ainda se beneficiam de um subsídio pago pelo Banco Mundial pela sua participação nas atividades do PAT, isto é, durante a frequência de formações e avaliações do projeto. O mesmo sucede com os técnicos do MED, diretores de escolas, inspetores, supervisores e formadores, que estando no aparelho do Estado, recebem subsídio de participação nas atividades e tarefas do PAT. Desses beneficiários, os membros de conselho de escola não recebem qualquer tipo de subsídio diretamente do projeto, tendo em conta que o projeto apenas apoia sua criação e funcionamento por meio do fornecimento de materiais de apoio para atividades regulares, tais como reuniões de trabalho.
Além dos beneficiários diretos, o PAT (2021) beneficia indiretamente 500.00 alunos do ensino primário por meio de “um ensino de maior qualidade nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática e ministrados por professores melhor preparados do ponto de vista didático” (p. 9).
No que se refere a sua gestão, em consulta a um dos ex-servidores do Instituto Nacional de Formação de Quadros da Educação (INFQE), que é o órgão do MED encarregado da gestão das ações de formação inicial e continuada de professores de nível médio em Angola, foram obtidas informações que indicam que os facilitadores das formações, contabilistas e demais técnicos do projeto são contratados e remunerados diretamente pelo PAT, não tendo qualquer relação laboral e jurídica com o Ministério da Educação. Portanto, não são membros do aparelho do Estado, e os termos dos seus contratos de trabalho são específicos.
A mesma fonte indica, ainda, que apesar de o PAT ser um projeto do Ministério da Educação e do Banco Mundial, com instalações no prédio do Ministério da Educação, nos primeiros anos da implementação, a gestão e o funcionamento do projeto não tinham depedência direta do INFQE, funcionando como uma estrutura à parte do MED. Tal situação veio a se alterar a partir de fevereiro no ano 2019, com a nomeação do seu novo gestor 5 , que cumulativamente desempenhava as funções de diretor geral do INFQE. O novo gestor aproximou as estruturas e os órgãos intermediários, promovendo maior interação entre os técnicos do projeto e os técnicos do MED, bem como iniciando a transferência da estrutura de gestão do projeto para as instalações do INFQE, situadas fora do edífico do MED.
O objetivo do projeto é “Melhorar os conhecimentos e as competências dos professores, assim como a gestão das escolas nas áreas designadas do Projecto e desenvolver um sistema de avaliação sistemática de alunos” (Angola, 2021, p. 9). É direcionado a formar professores para lecionar no ensino primário do 1º ao 6º ano de escolaridade, precipuamente nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática.
O projeto estrutura-se em 3 componentes que representam seus objetivos SMART: “(i) melhorar os conhecimentos e competências dos professores e a gestão escolar em Escolas Primárias das áreas designadas do projeto; (ii) estabelecer um sistema de avaliação de alunos; e (iii) Gestão do Projecto através de formação em gestão, monitorização, auditoria e prestação de contas” (PAT, 2021, p. 8).
Nos três componentes do projeto sobressai a ideia da melhoria da formação de professores para melhor desempenho profissional, devendo implicar em melhor classificação dos alunos nas avaliações em larga escala, a serem institucionalizadas com a realização de um exame nacional piloto em 2022. A questão da aferição da qualidade da formação por meio de avaliação em larga escala, constituinte das bases de reformas educacionais supranacionais, evidencia-se no âmbito das políticas educacionais em Angola. Para Sudbrack e Fonseca (2021), trata-se de uma nova ortodoxia das reformas, que é parte do ideário neoliberal,
[...] que é transmitida mundialmente, independente do padrão de desenvolvimento econômico-social das nações. No bojo das Reformas anunciadas, a medição da qualidade da educação, via testes de larga escala, tem sido considerada um mecanismo apropriado para indicar a qualidade educativa, na esteira de que, por serem quantificáveis, seriam mais “concretos” (p. 9).
Isso está presente no projeto, pois visa a formar, indiretamente, “500.000 alunos do ensino primário beneficiados com um ensino de maior qualidade nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática e ministrados por professores melhor preparados do ponto de vista didático” (PAT, 2021, p. 9). O objetivo é atender e medir a qualidade da formação por meio de “Avaliação nacional 4ª e 6ª classes, Piloto dos Exames Nacionais e Especialização em avaliação educacional” (PAT, 2021, p. 16).
A necessidade de realização da avaliação em grande escala, através do exame nacional piloto, demanda que os professores sejam preparados em uma metodologia que que remete ao tecnicismo, mais prática e centrada nas competências do saber-fazer. Em outras palavras, busca ensinar aos alunos ler, escrever e calcular, tendo em vista que o estudo de viabilidade para os exames nacionais definiu a Língua Portuguesa e a Matemática como disciplinas que se constituirão em objeto das avaliações. Deliberadamente, o PAT financia a produção de manuais didáticos, instrumento essencial para a reprodução dos saberes estabelecidos por meio da atividade docente, sem necessidade de reflexão ou pensamento crítico. Trata-se, nesses termos, de um desenho de formação que valoriza a pedagogia das competências, ou seja,
[...] uma formação mais prática onde se valorizam as experiências dos professores em detrimento a uma formação mais teórica. Nesta mesma linha se insere um modelo pedagógico baseado na incorporação de “competências” (Pansardi, 2011, p. 137)
A pedagogia das competências se constituiria em um ensino que seja efetivamente útil, “[...] o que conta é poder ler o manual de utilização de um aparelho e poder utilizá-lo” (Maués, 2003, p. 107). Esse viés de formação para competências, no contexto do PAT, se estende igualmente na ideia de melhorar a atuação dos gestores escolares. A esse respeito, Sudbrack e Fonseca (2021) consideram que
A regulação supranacional opera pela veiculação de um discurso em que o gestor é um solucionador de problemas, o aprendente, o decisor que governa com e por meio do monitoramento. As categorias que se elegem fazem eco ao que Carvalho (2011, p. 225) alude, ou seja, que fomos transbordados de conceitos que passam por “qualidade”, “prestação de contas”, a “competência”, entre outros, em suas ambiguidades de matriz gestionária (p. 10).
Formar mais professores “competentes” é o que se pretende no projeto de regulação supranacional desde o século passado, e vem se remodelando nos países africanos. Logo, a formação de novos docentes na região implica o alinhamento ao projeto de impacto efetivo nos resultados educacionais, responsabilizando o professorado pela qualidade educacional de quantificação. Contudo, a formação docente e de competências docentes integrou as orientações da década de 1990 aos países em desenvolvimento, e, portanto, não se configura como um programa novo pensado para o contexto africano. Tal assertiva pode ser verificada quando o Banco Mundial (1995) tratou que
La formación en el servicio permanente y bien concebida es otra estrategia para mejorar el conocimiento de los docentes de la asignatura y las prácticas pedagógicas conexas [...] la formación en el servicio es más eficaz cuando está directamente vinculada a la práctica en el aula (pp. 91, 92).
É notório o enquadramento, nos documentos orientadores, de alguns atores internacionais, como os da Unesco, nomeadamente quanto ao alinhamento da formação para metas de avaliação em larga escala e currículos globais. Assim, é inegável o alinhamento de elementos políticos e econômicos com as diretrizes, tanto do Banco Mundial como da Unesco, para concretizar o projeto maior, o do capital educador: formar mais professores a partir de competências em vistas ao atendimento à regulação supranacional, que alinha formação de inicial de docentes às competências e à avaliação de desempenho.
5.Conclusões
À guisa de conclusão, observa-se que os mecanismos de controle supranacional que ocorrem por meio do enquadramento de políticas de formação de professores, com vistas a aumentar a quantidade de docentes em Angola, cuja formação esteja alinhada à pedagogia das competências, buscam preparar as escolas angolanas para a lógica competitiva instituída mundialmente por meio das avaliações em larga escala.
Os resultados sugerem que os parâmetros definidos para a formação de professores em Angola são fortemente influenciados pelas orientações e projetos de cooperação internacional. Infere-se, portanto, que o que se orienta como novo para as Programas de formação de professores na África são ações focadas na avaliação e desenvolvimento da pedagogia das competências. Por sua vez, os objetivos desses programas já foram implementados em outros lugares a partir da década de 1990, como é o caso do Brasil, com a institucionalização do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em 2001. Isso significa que, frente a um conjunto neoliberal de políticas e discursos educacionais, a agenda de regulação supranacional orienta a inspiração em outros programas considerados exitosos.
O revestimento de novo que é colocado em políticas velhas não contribui diretamente para o desenvolvimento da formação docente e das políticas educacionais, porque não analisam contextualmente as demandas locais. O PAT, por exemplo, integra a pauta de regulação supranacional, que passa pelo eixo de condicionalidade dos acordos internacionais assumidos e pela transferência de modelos considerados boas práticas pela Unesco e Banco Mundial, como analisou Bortot (2022). Esse modelo de programa de capacitação docente, por sua vez, integra um projeto maior de harmonização da docência e da gestão nos países em desenvolvimento para maior controle e eficácia docente.
Portanto, visam a “enquadrar políticas globais e provocar processos de transferência e de aprendizagem de políticas” (Verger, 2019, p. 8). Isso indica que a regulação supranacional não vem desenvolvendo programas e políticas voltadas para as necessidades regionais e locais, mas uma adequação de projetos antigos em novos contextos para atendimento dos objetivos globais de educação, de avaliação e pedagogias das competências.
Referências
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1 O programa em tela será desenvolvido no item subsequente sobre as políticas para a formação de professores em Angola, em alinhamento com a política de regulação supranacional.
2 De acordo com o número 3 do artigo 9.º do Regime Jurídico da Formação Inicial de Educadores de Infância, de Professores do Ensino Primário e de Professores do Ensino Secundário em Angola, a formação inicial de professores organizada segundo o modelo integrado no Ensino Secundário Pedagógico realiza-se em cursos do Ensino Médio, com a duração de 4 anos letivos, com 3.600 horas de contato dedicadas às aulas e ao estágio profissional supervisionado.
3 Zonas de Influência Pedagógica são conjuntos de escolas em torno de uma escola-sede, que dependem administrativamente das estruturas municipais e provinciais de educação, e metodologicamente do INFQE e das EM, e desenvolvem trabalho de apoio metodológico e pedagógico aos professores da sua área.
4 Escolas de Magistério são instituições que realizam a formação inicial de professores de nível médio e têm dependência direta do INFQE.
5 O gestor em referência é o professor Isaac Pedro Vieira Paxe, nomeado para o cargo de Gestor do Projeto “Aprendizagem para Todos” - PAT por meio do Despacho n.º 185/2019, de 5 de fevereiro, da Ministra da Educação, Maria Cândida Teixeira.
Como citar em APA:
Bortot, C. M., Brás, C. A. e Scaff, E. A. da S. (2022). Regulação supranacional em educação na África: estudo a partir da política de formação de professores de Angola. Revista Iberoamericana de Educación, 90(1), 151-167.https://doi.org/10.35362/rie9015357