Revista Iberoamericana de Educación (2023), vol. 91 núm. 1, pp. 23-37 - OEI

https://doi.org/10.35362/rie9115537 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653

recibido / recebido: 19/12/2022; aceptado / aceite: 10/03/2023

Práticas pedagógicas em territórios rurais: aproximações entre as escolas do campo no Brasil e escolas rurais na Catalunha/Espanha

Maria de Fátima Almeida Martins 1 https://orcid.org/0000-0001-9244-3404

Eliene Novaes Rocha 1 https://orcid.org/0000-0001-6878-9034

Roser Boix Tomás 1 https://orcid.org/0000-0003-3135-5608

1 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil; 2 Universidade de Brasília (UNB), Brasil; 3 Universidad de Barcelona (UB), España

Resumo. Este artigo trata da investigação de práticas pedagógicas: aproximações entre escolas do campo no Brasil e escolas do campo na Catalunha/Espanha. Procurou compreender a articulação das práticas pedagógicas e da formação de professores como elementos constitutivos das políticas públicas no meio rural. O estudo foi realizado em instituições de ensino superior, a saber, a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Barcelona (UB). Para seu desenvolvimento, a discussão partiu das práticas pedagógicas e de formação de professores nesses países para a constituição de políticas e sobre o papel dos movimentos educacionais. O que se pode inferir é que existem alguns pontos de aproximação com a formação de políticas públicas, seja para as escolas do campo na Catalunha, seja na formação de políticas públicas de formação de professores no Brasil. Também é possível identificar as contribuições das experiências e ações que contribuem para a formação de professores e a consolidação das escolas do campo/campo. Contribuições que dialogam com a organização escolar, com a construção de projetos pedagógicos e sobre as práticas de formação inicial e continuada dos professores que atuam nessas escolas.

Palavras-chave: práticas pedagógicas; escolas do campo; escolas rurais; formação inicial.

Prácticas pedagógicas en territorios rurales: aproximaciones entre escuelas del campo en Brasil y Escuelas Rurales en Cataluña/España

Resumen. Este artículo trata de la investigación de las prácticas pedagógicas: aproximaciones entre escuelas del campo en Brasil y escuelas rurales en Cataluña/España. El objetivo trata de comprender la articulación de las prácticas pedagógicas y la formación de docentes como elementos constitutivos de las políticas públicas en el territorio rural. El estudio fue realizado en las instituciones de educación superior, la Universidad de Brasília (UnB), la Universidad Federal de Minas Gerais (UFMG) y la Universidad de Barcelona (UB). La discusión partió de las prácticas pedagógicas y la formación docente en ambos países para la constitución de las políticas y sobre el papel de los movimientos educativos y para ello se llevaron a cao entrevistas semiestructuradas a maestros de escuelas rurales. Las principales conclusiones a las que se llegó es que existe cierta aproximación con la formación de políticas públicas, ya sea para las escuelas rurales en Cataluña, como en la formación de políticas públicas para la formación de docentes en Brasil. Aportes que dialogan con la organización escolar, con la construcción de proyectos pedagógicos y sobre las prácticas de educación inicial y continua de docentes que trabajan en estas escuelas.

Palabras clave: prácticas pedagógicas; formación docente; educación rural; educación del campo.

Pedagogical Practices in rural areas: approximations between rural schools in Brazil and rural schools in Catalonia/Spain

Abstract. This article deals with the investigation of pedagogical practices: approximations between rural schools in Brazil and rural schools in Catalonia/Spain. The objective tries to understand the articulation of pedagogical practices and teacher training as constitutive elements of public policies in rural areas. The study was carried out at higher education institutions, the University of Brasília (UnB), the Federal University of Minas Gerais (UFMG) and the University of Barcelona (UB). The discussion started from pedagogical practices and teacher training in both countries for the constitution of policies and on the role of educational movements and for this, semi-structured interviews were carried out with teachers from rural schools. The main conclusions reached is that there is some approximation with the formation of public policies, either for rural schools in Catalonia, or in the formation of public policies for teacher training in Brazil. Contributions that dialogue with the school organization, with the construction of pedagogical projects and on the initial and continuing education practices of teachers who work in these schools.

Keywords: pedagogical practices; teacher training; rural education; countryside education.

1. Introdução

O artigo é resultado do Relatório de Pesquisa realizado na Licença de Pós-Doutoramento, que tem como tema central os Territórios e práticas pedagógicas: aproximações entre as escolas do campo no Brasil e Escolas rurais na Catalunha/Espanha. O estudo foi efetuado por duas pesquisadoras de duas Instituições de Ensino Superior (IES) que atuam na formação de educadores para as escolas do campo. Essas universidades são pioneiras em diversas ações ligadas à educação do campo e, em especial, na implantação de políticas públicas de formação de professores para atuar nas escolas do campo.

A pesquisa realizou-se no Brasil e na Comunidade Autônoma da Catalunha, Espanha. Utilizou, como procedimentos metodológicos, estudos bibliográficos produzidos nos dois países sobre o tema, visitas às escolas e entrevistas semiestruturadas com professores e diretores, nos dois países entre 2018 e 2019. O objetivo foi aproximar e aportar saberes e aprendizagens identificados nas práticas pedagógicas de professores que atuam nas escolas rurais na Catalunha/ES, dialogando com os processos de formação de professores no âmbito da UFMG e da UnB, desenvolvidos nos cursos de Licenciatura em Educação do Campo.

A ausência histórica de políticas públicas de formação de professores para escolas do campo contribuiu para um quadro de desigualdades e precarização do ensino no campo, fechamento de escolas e evasão escolar. No Brasil, a Educação do Campo é uma conquista da classe trabalhadora, que segundo Arroyo (2012) e Caldart (2012), precisa ser pensada como “política de educação e cujo o sujeito é a classe trabalhadora do campo” (Caldart, 2012, p. 13), com o sentido de superação de um protótipo único de docente-educador da escola básica do campo, e tem como ação formativa romper com o que fora pensado e executado com o ruralismo pedagógico, este, de base generalista e pouco referenciado com as práticas e vivências dos camponeses.

Como conquista dos movimentos em defesa da educação do campo, a política de formação de professores para as escolas do campo faz parte do conjunto da formação, hoje presente em todas as regiões brasileiras (Norte, Sul, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste), totalizando 44 cursos de Licenciatura em Educação do Campo. Conforme observam Leal et al. (2019), esses cursos são realizados por 33 IES, sendo 29 delas Universidades Públicas Federais e 4 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia.

A questão problema proposta neste artigo foi de compreender a articulação das escolas na relação com o território, com as práticas pedagógicas e com a formação de professores, como categorias estruturantes e constituintes de uma política pública de educação do campo/rural. A abordagem da pesquisa foi qualitativa, utilizando-se de entrevistas com professores e diretores das escolas nos dois países. Buscou-se, assim, construir uma interlocução entre a experiência do Brasil e da Espanha, visando encontrar pontos comuns de ação e novos elementos para que as experiências possam ser ressignificadas e qualificadas. Este artigo está estruturado, primeiramente, com a política educativa no Brasil sobre a Educação do Campo e, em seguida, sobre a investigação na Espanha, apontando como resultado as aproximações entre as políticas e práticas pedagógicas entre os dois países.

2. Política Educativa para as escolas rurais e do campo no Brasil e na Espanha

No Brasil, a construção do conceito de Educação do Campo, em substituição ao conceito de Educação Rural, explicita Caldart (2012), foi resultado do esforço dos trabalhadores do campo e suas organizações na constituição e na defesa de políticas públicas que dialogassem com os interesses das comunidades, com as questões e problemáticas da realidade, conforme descreve a autora, ao tratar desse conceito:

[...] um fenômeno da realidade brasileira atual, protagonizado pelos trabalhadores do campo e suas organizações, que visa incidir sobre a política de educação desde os interesses sociais das comunidades camponesas. Objetivo e sujeitos a remetem às questões do trabalho, da cultura, do conhecimento e das lutas sociais dos camponeses e ao embate (de classe) entre projetos de campo e entre lógicas de agricultura que têm implicações no projeto de país e de sociedade e nas concepções de política pública, de educação e de formação humana (Caldart, 2012, p. 259).

Esse movimento, que nasce da articulação dos próprios trabalhadores do campo, gerou, ao longo de suas lutas, o que denominamos de Movimento Nacional pela Educação do Campo, que articula as demandas sociais pelo direito à escola e à educação, somando-se a esse, às Instituições do Ensino Superior (IES), contribuindo assim para um intenso processo de mobilização pela construção da Política Nacional de Educação do Campo e, dentro dela, a construção de políticas de formação inicial e continuada de professores para atuar nas escolas do campo no Brasil, efetivada nas IES por meio de cursos de formação inicial e continuada de professores. Na formação dos educadores do campo, a ação formativa e pedagógica bem como o protagonismo dos sujeitos do campo são os pontos que fortalecem e iluminam essa formação nos cursos de Licenciaturas em Educação do Campo, criando condições para pensar, agir e refletir sobre a centralidade que a terra ocupa no modo e nas condições da vida no campo. A escola do campo “envolve uma dimensão que é própria da vida e da diversidade de sujeitos do campo, contendo uma ação educativa transformadora e emancipatória por ter em conta os processos formadores dos sujeitos de forma a favorecer sua autonomia” (Martins & Leal, 2018, p. 95).

A educação e a escola para os camponeses são frutos da construção coletiva e trazem a perspectiva de assegurar uma escola emancipadora. A formação dos professores para essas escolas, na perspectiva da Educação do Campo, foi pensada sobre outras bases, com questões teóricas e práticas, no sentido de desconstruir o ideário que forjou o meio e a escola rural no Brasil como lugares de atraso, de negação de saberes e de menor valor social, ideário oriundo do pensamento hegemônico urbanocêntrico, que, com seu ideal de qualidade, faz com que a escola rural no Brasil seja subsumida à lógica da cidade e do mundo urbano.

A propósito da experiência da Catalunha sobre educação nos territórios rurais, importante entender como esta organização territorial acontece, tendo como base a Constituição Espanhola, aprovada em 1978, que dispõe em seu art. 2º que a organização territorial do país dar-se-á por Comunidades com autonomia legislativa e com autoridade para eleger seus representantes. A Constituição representa um marco importante para o território espanhol, após três décadas de ditadura.

A organização territorial e política do país constitui-se de 17 Comunidades Autônomas1:

A Constituição e os Estatutos de Autonomia distribuem as funções sobre a mesma questão, de maneira que é responsabilidade do Estado, ditar as bases, a legislação e as normas de base, enquanto que o desenvolvimento normativo e executivo corresponde às Comunidades Autônomas, na verdade, o que se produz é uma combinação de funções, algumas da mesma natureza (normativas), porém com intensidade variável sobre a mesma questão [...] (Fopromar, 2019, p. 30).

A pesquisa consistiu em conhecer as escolas rurais, as práticas pedagógicas realizadas, assim como buscou aprofundar discussões sobre temas e conceitos, especialmente sobre território, práticas pedagógicas e formação de professores. O sentido foi de encontrar elementos na/da formação de professores e práticas docentes nas escolas rurais, e assim evidenciar possíveis aproximações destas com as práticas pedagógicas realizadas por professores nas escolas do campo, a partir da formação realizada no Brasil. Ou seja, conhecer e aproximar as práticas de formação existentes na Universidade de Barcelona e a sua relação com as escolas rurais, assim como das práticas e experiências pedagógicas desenvolvidas pelas escolas rurais da Catalunha.

Vale destacar que usamos a nomenclatura de escola rural, quando nos referimos às escolas situadas em territórios rurais da Catalunha, e a expressão “escolas do campo”, para nos referirmos às escolas situadas nas comunidades rurais, assentamentos e acampamentos no Brasil. Entendemos que a compreensão de uma escola do campo compõe-se de diversos elementos que estão postos no arcabouço teórico sobre a Educação do Campo, bem como nos documentos e marcos legais brasileiros que definem e caracterizam essa escola.

No que se refere ao uso da categoria escola rural, neste artigo, na análise das práticas pedagógicas na Catalunha, é importante considerar que não se aproxima do conceito de escola rural, que historicamente foi usado no Brasil para designar escolas localizadas em espaços rurais, que negavam as identidades dos povos do campo e sua construção histórica. Por isso, se manterá essa nomenclatura “escola rural”, em respeito aos documentos legais e arcabouços teóricos da Catalunha para se referir às suas escolas.

3. Escolas do campo no Brasil

A política de educação para as escolas do campo no Brasil emerge da articulação entre os movimentos sociais do campo e setores da sociedade civil, que anunciam, ou melhor, denunciam as formas e as péssimas condições infraestruturais e pedagógicas nas escolas rurais do país. A precarização das condições no meio rural, aliada à luta por terra e trabalho no campo, se soma à luta por políticas públicas em defesa da qualidade da educação para os camponeses. A defesa, portanto, é por melhoria nas condições materiais das escolas, bem como por formação específica de professores para atuarem nesses espaços escolares. A base foi fundamental para pensar em uma educação e em uma escola que se aproximassem e dialogassem com a vida do/no campo, protagonizada pelos que habitam, vivem no/do campo.

O movimento em defesa da Educação do Campo no Brasil foi sendo forjado como um campo de construção teórico e prático, consistindo em um conjunto de práticas, princípios e políticas que vêm sendo formuladas, desde o final dos anos 1990, por sujeitos envolvidos na construção de um projeto de escola, articulado a um projeto de campo e de sociedade. Nas organizações coletivas dos povos camponeses, uma das principais construtoras dessa proposta foi o denominado Movimento da Educação do Campo (Molina & Sá, 2011). Nessa trajetória, foram construídas políticas públicas, instauradas práticas educativas em diferentes níveis e modalidades de ensino, desenvolvidos centenas de projetos e um substancial processo de produção de conhecimento acadêmico em todas as regiões do país.

Nesse conjunto de ações coletivas, destaca-se a formação de professores como uma ação importante que discute o contexto sob o qual estiveram e estão as escolas, qual seja, a de um campo estruturalmente sob o domínio do latifúndio. Historicamente, desde os primórdios da formação social brasileira, o campo esteve assentado em atividades voltadas para a exportação, o que significava o uso de grandes extensões de terras e, consequentemente, a necessidade de grande quantidade de força de trabalho que, pelo tipo de atividade que realizavam e ainda realizam, não exigia da classe trabalhadora a escolarização para exercer o trabalho. É certo que, em um país como o Brasil, de grande extensão territorial, a distribuição de terras não será da mesma forma em todas as regiões e as formas que o trabalho no campo assumem também são diferentes em cada uma das regiões brasileiras, variando a inserção no mercado desta força de trabalho, em virtude da presença tecnológica e da intensidade da produção de cada região. Porém, mesmo com tal contexto, o conjunto dos trabalhadores do campo, em qualquer dos espaços regionais, com maior ou menor presença de tecnologias no campo, foi estigmatizado por considerações de que se trata de uma população atrasada e, principalmente, por não ser escolarizada. Mas, a escolarização dessa população é necessária e, para isso, a escola pensada para ela foi pautada, inicialmente, sob a forma de uma educação universalizada e sob o domínio do patrão, dono das terras. A esta escolarização chamamos de Educação Rural e seu ruralismo pedagógico.

A educação rural que emerge a partir dessa conjuntura estará imersa em um campo de disputa, tendo como fundamento a manutenção do processo de dominação e manutenção do status quo. Vale aclarar que, neste momento, o movimento de constituição da relação campo-cidade se intensifica. Então, ocorre a disputa no campo da dominação econômica entre rural e urbano, entre agricultura e industrialização. Como campo de disputa, a educação rural será circunscrita à ação de dominação dos proprietários de terras com os seus agregados ou sobre aqueles trabalhadores rurais, temporários que vivem o movimento migratório entre o campo e a cidade, próprio do processo de industrialização. Vale destacar que, mesmo com o processo de modernização no campo a partir da segunda metade do século 20, isso não significará melhoria das condições de vida, muito menos de escolarização da população que vive no campo. Até os anos de 1980 deste mesmo século, era esse o cenário no campo brasileiro.

Segundo dados do Ministério da Educação (2020), as escolas situadas no campo possuem, em termos percentuais,

[...] 10,5% das matrículas da educação infantil estão em escolas da zona rural. Percebe-se também que 96,8% das matrículas da zona rural são atendidas pela rede pública. Enquanto as matrículas de pré-escola na zona rural representam 13,1%, esse valor alcança apenas 6,8% das matrículas de creche. ... Nos anos iniciais do ensino fundamental, a rede municipal apresenta a maior participação, com 68,1% das matrículas (Ministério da Educação, 2020, p. 25).

Frente a esses dados da escolarização no campo no Brasil, conforme indicado, é preciso defender uma educação para os povos do campo, segundo a perspectiva da Educação do Campo na contraposição da educação rural, e esta deve ser demarcada pela população camponesa a partir e junto daqueles que vivem da atividade do campo na sua diversidade de uso da terra, assim como dos povos originários e suas identidades. É desse campo diverso que a Educação do Campo emerge. Para tanto, é a partir dessa base que o Movimento da Educação do Campo surge, no final de 1980, para fomentar a criação de uma referência teórica, política e metodológica no que diz respeito à construção de um projeto educacional que possa atender às demandas das populações que residem e trabalham no espaço campesino para se contrapor à educação rural. Na pauta desse movimento, está a preocupação em construir um projeto de escola vinculado a um projeto de campo e de sociedade, que coloque o campesinato e os camponeses como sujeitos de direitos, não somente na perspectiva de sua integração à dinâmica social existente, mas, principalmente, na perspectiva de sua transformação, na direção de condições mais justas e igualitárias para todos.

É com essa força formada por todos esses sujeitos coletivos que tem se concretizado uma diversidade de práticas e formas de organização das escolas no campo brasileiro. As escolas que derivam desse processo assumem práticas protagonizadas pelos sujeitos, com seus modos de vida e formas próprias de organizá-las, inserindo suas peculiaridades, que são diversas, além de complexas territorialidades, a exemplo das Escolas Famílias Agrícolas, que articulam os tempos e espaços como parte fundante de uma educação que tem como princípio o protagonismo dos sujeitos e a alternância como base desta escola.

4. Escolas rurais na Espanha

A história da Espanha foi marcada por uma forte guerra civil (1936-1939), pela ditadura de Francisco Franco (1939-1975), cujos impactos para a população foram de pobreza, recessão econômica, censura e restrição de liberdades. Na educação, os efeitos foram devastadores, com a precarização das condições de trabalho docente e da escola, com planos educacionais conservadores que geraram um grande processo de exclusão da população em relação ao acesso à educação. No território rural, não foi diferente. No entanto, o movimento de professores e pais reconstrói o lugar da escola rural no território e a sua importância para permanência das famílias no espaço rural.

Compreender a educação em territórios rurais na Catalunha passa por entender a concepção de mundo rural que permeia essa construção histórica, da relação entre escola rural e o território. Ao definir o que se compreende por mundo rural, o Relatório de Pesquisa Fopromar (2019) problematiza tais definições, em diálogo com a compressão dada pela Comissão Europeia (COM, 1988) e com as especificidades de cada território.

[...] compreende que o mundo rural inclui zonas e regiões onde se realizam atividades diversas (agricultura, artesanatos, pequenas e médias indústrias, comércio e serviços) e incluem os espaços naturais e cultivados, as comunidades, as vilas, cidades pequenas e centros regionais, assim como zonas rurais industrializadas. Estas características servem para equipará-lo a um autêntico pergaminho em que, seguindo os passos do passado, se tem desenhado uma nova paisagem territorial ao custo das novas funções que a sociedade atribui a este território (incluindo o entorno com as questões do meio ambiente e patrimonial) (Fopromar, 2019, p. 17).

Na Catalunha, o debate segue em torno da identificação de uma nova ruralidade, conforme dados do Atlas da Nova Rural da Catalunha (Aldomà et al., 2009, 2015), que tem sua definição considerando variáveis demográficas, centrado nos dados de população residente, densidade demográfica e população dispersa. Nesse sentido, não é possível pensar a organização do espaço territorial, sem considerar as atuais condições de definição e organização do mundo rural. Essa delimitação e categorização influenciam na definição do que se compreende como escola rural e como esta se define nos territórios rurais catalãs.

Dessa maneira, entender essa organização e essa nova ruralidade contribui para compreender como acontece a organização das escolas rurais. O perfil de ruralidade da Catalunha é marcado, primeiramente, por uma grande extensão territorial e uma relativamente baixa ocupação populacional, se comparada à população de Barcelona, capital da Comunidade Autônoma. Essa dispersão territorial demonstra que o mundo rural catalão está despovoando-se, mas que esse movimento não é permanente, ele se altera conjunturalmente, especialmente em momentos de crises econômicas, em que a opção por morar em pequenos municípios ou áreas rurais contribuiu também para a manutenção das escolas nas comunidades rurais.

O território Catalão está dividido em 4 províncias (Barcelona, Lleida, Girona e Tarragona), com 948 municípios, organizados em comarcas e geograficamente divididos nos âmbitos territoriais (Alto Pirineu i Aran, Campo de Tarragona, Comarcas Centrais, Comarcas Gironesas, Metropolitana, Penedès, Ponet, Torres de l’Ebre), conforme Atlas da nova ruralidade de Catalunha (Trepat, 2015).

As comarcas contribuem, em âmbito territorial, para demarcar o perfil da escola e as condições de sua organização e funcionamento. São escolas em regiões de montanhas, costeiras ou de planícies que influenciam na organização escolar. Essa organização dinâmica do mundo rural é determinante para o debate sobre as escolas rurais, uma vez que existe um crescente despovoamento das comarcas mais distantes e uma maior concentração populacional ao redor da cidade de Barcelona.

Nesse sentido, Boix (2014) afirma que:

[...] a escola rural é um ator dinâmico na dimensão territorial e é assim por várias perspectivas que se complementam entre si: como membro ativo de um sistema institucional territorial, como receptora de identidades e emoções, como capital social e com elementos configuradores da construção social rural (Boix, 2014, p. 90, tradução nossa).

Assim, a construção de política de educação para as escolas rurais na Catalunha vale-se da necessidade de garantia do direito à escola e que esta esteja localizada no próprio território onde vivem as crianças. A escola, assim, passa a ser elemento central para a garantia de permanência das pessoas no espaço rural, inclusive como elemento preponderante no retorno de famílias que vêm dos grandes centros urbanos para viver em pequenas comunidades. A existência da escola e a qualidade que apresenta são fatores que influenciam nesse retorno das famílias.

Boix (2014), ao citar Prats (2004), observa que:

[...] a escola é a simbiose de diferentes atores, com capacidade de dar eficácia e equidade ao grupo social em que se encontra integrado. A desaparição deste ator (escola) supõe o desaparecimento, em muitos casos do “sentimento de comunidade habitável” (a comunidade sem a escola, morre), por parte da população e também é a ruptura do próprio sistema institucional e por consequência da dimensão organizacional e identitária do território rural (Prats, 2004 apud Boix, 2014, p. 90).

As primeiras experiências de debate pela construção de políticas públicas para as escolas rurais na Catalunha foram desenvolvidas pelo Secretariado Escolas Rurais (SER), movimento docente que propõe um modelo organizativo, além de trazer o debate sobre a importância do contexto escolar e da qualidade da educação nas comunidades rurais, que segue vigente na atualidade, sendo seu/sua coordenador(a) reconhecido(a) pela Administração Educativa Catalã. O debate sobre a qualidade e as condições de manutenção dessas escolas é ponto central do Secretariado de Escolas Rurais, que atua para a organização e reorganização das Zonas de Escolas Rurais (ZER). O resultado desse processo é a existência de diversas tipologias das escolas rurais: a) escolas unitárias de caráter multigrado residuais no sistema escolar; b) escolas multigrado, de caráter incompleto, com duas opções organizativas: agrupadas (Zona Escolar Rural, na Catalunha) e Centro Rural Agrupado (em Aragón, Castilla-La Mancha, Castilla-León, Galícia, Valência, entre outras Comunidades Autónomas); e c) Colégios completos, situados em cidades consideradas rurais, que recebem alunos da cidade e transportados (Fopromar, 2019).

Nem todas as tipologias são encontradas em todos os territórios, por isso, há uma predominância de escolas rurais multigradas, agrupadas majoritariamente em uma Zona Escolar Rural, situadas nos próprios pueblos, com proposta pedagógica que visa manter uma relação próxima entre escola, comunidade e Território.

A escola rural na Catalunha organiza-se, especialmente, de duas formas: a escola unitária e/ou cíclica, que busca incorporar a cultura do meio rural, é aquela cuja estrutura didático-pedagógica baseia-se na heterogeneidade e em diferentes grupos multiníveis (níveis de conhecimento) e de idade, com diversas competências e padrões curriculares de escolarização (Boix, 2014).

Nas escolas unitárias, funcionam uma ou duas turmas, organizadas em ciclos, com alunos do primeiro e do segundo ciclos (o equivalente ao período do 1º ao 6º ano pela organização escolar brasileira) numa mesma classe. Os ciclos, na verdade, são organizados por idades: alunos de 0 a 3 anos (P3); alunos de 4 a 5 anos (P4 e P5); alunos entre 6 e 8 anos (ciclo inicial de primária - CI); alunos de 9 a 10 anos (ciclo médio de primária - CM); e alunos de 10 a 12 anos (ciclo superior de primária - CS). Em algumas escolas unitárias, foram identificados ainda alunos do P5, do CI, do CM e CS numa mesma classe.

As escolas unitárias multigrado não são escolas unidocentes. O grupo de professores que atua de forma permanente na escola, dos quais um deles atua também como coordenador da escola, assume as funções de ensino. Durante dois ou três dias na semana, os alunos têm aulas com os professores itinerantes, que são professores de língua estrangeira (nas escolas públicas catalãs, aprende-se o catalão como língua oficial, o castelhano como segunda língua obrigatória por lei e outra terceira língua, o inglês ou francês em escolas situadas nos Pirineus, que fazem fronteira com a França), educação física, educação musical, por serem disciplinas com carga horária menor que as demais do currículo obrigatório. Os professores itinerantes atuam em todas as escolas que compõem as ZER em dias alternados, em função da organização da ZER e suas necessidades curriculares.

Outras escolas rurais são organizadas em ciclos. São escolas maiores que têm grande número de alunos, geralmente entre 100 e 200 estudantes, organizados separadamente, ou seja, numa mesma classe, foram encontrados somente alunos do P3 ou somente alunos do ciclo inicial. São escolas com número maior de professores permanentes, com coordenadores, diretores, secretários, eleitos pelo conselho escolar, mas que não deixam de assumir suas funções como docentes em sala de aula.

As Zonas Escolares Rurais têm também seus respectivos representantes administrativos: diretor(a), chefe de estudos e secretário(a), todos docentes e colegiados (Corpo Docente de ZER e Conselho Escolar de ZER), para a organização e a gestão do agrupamento de escolas, além daqueles que o coletivo considere necessário para seu funcionamento integral.

O esforço empenhado pelos professores de escolas primárias resultou na construção de uma política educativa específica para as escolas rurais. Ao longo de mais de 30 anos de experiência, essa política foi sendo desenhada a partir da iniciativa desses professores que atuavam nas escolas rurais, sendo que, ao longo desse período, foi se consolidando uma regulamentação específica para ampliar a qualidade das escolas, por meio do investimento em organização pedagógica, formação de professores e estruturação física das escolas rurais.

A política para a escola rural na Catalunha iniciou no princípio dos anos de 1981, com a elaboração do Plano de Apoio à Escola Rural. Nesse plano, apostou-se na descentralização das escolas rurais e na promoção de mudanças fundamentais, como a construção de escolas contextualizadas e a previsão ou renovação de equipamentos e recursos humanos para que aportassem melhor qualidade às escolas rurais.

Feu (2004), ao estudar o movimento de reorganização da escola rural, afirma que é possível identificar dois momentos distintos da organização da escola rural na Catalunha. O primeiro, que o autor denominou de “velha escola rural”, e o segundo, denominado de “nova escola rural” (Feu, 2004, p. 2). A velha escola rural é o saldo do abandono e da precarização das escolas, tanto do ponto de vista pedagógico quanto de estrutura. As escolas rurais caminhavam para sua extinção, dado o nível de abandono e pouca confiança das próprias famílias em relação a esse modelo de escola. A nova e a segunda escola rural, motivadas pela ebulição de movimento de renovação política, refletem na educação rural a proposição de reorganização da escola rural.

A reconstrução de uma nova escola rural foi ação dos próprios professores e das famílias que resistiam em defender a existência das escolas e a permanência delas nas próprias comunidades. Nesse processo, após longos debates, o SER apresenta o documento “Projeto de Zona Escolares para as Escolas Rurais”. Esse documento traz, pela primeira vez, a especificação da expressão Zona Escolar Rural (ZER), como proposta de organização pedagógica das escolas rurais.

A ZER compreende o conjunto de escolas que devido à situação geográfica, econômica e cultural, estão estruturadas como uma entidade que conta com recursos materiais e humanos próprios, de acordo com as características geográficas e as necessidades pedagógicas específicas de cada região. Cada escola integrada na zona conserva suas características próprias, mas em nível organizativo e pedagógico, guarda vinculação estreita com o resto das escolas. As Escolas que compõem uma ZER compartilham o mesmo projeto educativo (Fopromar, 2019, p. 31, tradução nossa).

A criação das ZERs é fruto da articulação coletiva de professores que, desafiados a repensar e a reestruturar a escola rural, propõem construir alternativas para melhorar a qualidade de ensino e, mais ainda, desenvolver metodologias apropriadas às próprias condições das escolas rurais no território.

Aos poucos, as políticas para as escolas rurais vão se constituindo. Em 1988, publica-se o Decreto 195/1988, que constituiu formalmente as 15 primeiras ZERs na Catalunha. O referido decreto entra em vigor efetivamente em 1990. Nos 946 municípios que compõem a Catalunha, existem aproximadamente 400 escolas rurais. Em 87% desses municípios, existem escolas agrupadas em uma ZER (339 escolas) e existem ainda 60 escolas rurais que não fazem parte de nenhuma ZER (Forpromar, 2019). São escolas rurais que, pelos critérios definidos no referido decreto, perdem um dos critérios que as definem como parte de uma ZER, que é ser uma pequena escola unitária.

[...] a escola rural adquire uma importância relevante no sistema educativo espanhol, em parte pelas políticas de agrupamento escolar (através das ZERs), que durante mais de 20 anos têm facilitado o trabalho colaborativo entre os professores rurais e a otimização de seus recursos didáticos, materiais e econômicos. Mas também porque têm sabido acomodar as necessidades e interesses desta sociedade em constante crescimento.... Tudo isso pressupõe que em alguns territórios rurais espanhóis se tenha introduzido um renascimento desta tipologia de escola, revelando seu potencial pedagógico e sua capacidade para criar e recriar de maneira permanente (Boix, 2011, p. 15).

Para Boix (2003), é a ação coletiva que se impõe como estratégia para pensar o lugar do mundo rural e da escola:

A ação coletiva não é uma utopia, trata-se de uma urgência para os territórios rurais, submetidos a problemas de despovoamento, competência, reestruturação, pouco interesse público nos âmbitos regionais e nacionais, conflitos locais, etc. Fomenta espaços de acertos e permite a aparição de agentes coletivos que expressam novos interesses; permitir mobilizar energias necessárias em toda a estratégia de desenvolvimento, sobretudo em períodos de grandes mudanças. Assim, reforça a capacidade de uma resposta cidadã antes dos desafios que se apresentam atualmente no mundo rural e também na escola rural (Boix, 2003, p. 2).

O que se percebe é que, em uma estratégia de nuclear sem desterritorializar (de forma física e identitária), as pequenas escolas vão sendo mantidas nas pequenas comunidades. A legislação educacional catalã amplia, assim, o direito a uma escola específica na área rural, com orientação e organização escolar, construídas com base nas experiências dos professores que atuavam nessas escolas. Da construção da proposta de organização escolar por meio da ZER, feita pelos professores, até o reconhecimento delas do ponto de vista da lei, mais de trinta anos se passaram.

A organização das ZERs está centrada na articulação e no compartilhamento para desenvolver o trabalho pedagógico nas escolas rurais, unindo nesta ação: escola e ciência, sem perder a atenção com as famílias. Outra ação muito importante de organização é a forma cooperada do trabalho do professor, especialmente dos professores de Educação Física, Inglês e Música. Esses professores, como dito, são itinerantes e trabalham em todas as escolas de uma mesma ZER, sendo que as escolas que formam a ZER compartilham o projeto educativo.

Por ser uma política pública, as escolas rurais na Catalunha apresentam, em termos estruturais, excelentes padrões construtivos, com espaços bem edificados e, além disso, com todos os condicionantes educativos que uma escola precisa ter. Um elemento também percebido nas escolas rurais é a relação com as famílias. A relação escola-família parece estar no centro da organização e ter uma simbiose entre o desejo das famílias e a proposta da escola. Por seu caráter de organização, há um compartilhamento das ações com as famílias, que vão desde as ações na própria escola até a partilha dos custos, por exemplo, com a alimentação, assim como as atividades de trabalho que são propostas pela escola. O certo é que há, efetivamente, uma aproximação dos pais por meio do trabalho desenvolvido pela escola, com sua comunidade educativa.

5. Considerações finais

Ao analisarmos a situação entre a Catalunha/Espanha e o Brasil, no que concerne à trajetória de luta pela educação rural na Comunidade Autónoma espanhola e à Educação do Campo no Brasil, a pesquisa chegou a alguns resultados, dentre eles as aproximações pela garantia do direito à educação para as pessoas que optaram por permanecer no campo.

Outro resultado foi identificar as diferentes nomenclaturas usadas nos dois países para designar a política de educação rural e campo. Na Catalunha, usa-se as expressões velhas escolas rurais para designar o modelo de educadores que lutam para superar e construir uma proposta pedagógica na qual uma nova escola rural possa surgir. A nomenclatura Escola Rural ou Educação Rural continua sendo utilizada, inclusive nos marcos legais, embora pesquisadores entendam que, ao longo de mais de 30 anos de trajetória, mudanças significativas na proposta de políticas públicas foram se consolidando. Houve uma mudança significativa na forma de organização das escolas, no modelo de gestão e no desenvolvimento de metodologias ativas e participativas, que dão um tom de inovação em toda política para as escolas rurais (Boix & Buscà, 2020).

No Brasil, essa trajetória demarcou também mudanças importantes no repensar o papel da escola rural. A ideia de rural entrou na pauta do debate, pois a esta nomenclatura vinculou-se a ideia de escola precária, pobre e que tenderia a desaparecer. A escola rural no Brasil foi marcada pelo símbolo do atraso e da precarização, da falta de formação e de tantas outras ausências. Na construção da política pública no Brasil, a luta organizada para mudar “o sentido e propósito” da Escola a denominou de Escola do Campo, porque além de repensar o papel da escola, essa ideia traz consigo o diálogo inerente e sua vinculação com a vida, com o território e com os sujeitos, suas lutas e seus processos de defesa, não só de um projeto de escola de qualidade social, mas também do direito à terra e ao território. Isso explica a opção de tratar de Escola/Educação Rural, quando nos referimos à Catalunha e falar de Escola/Educação do Campo, quando nos referimos às experiências brasileiras de luta pela educação dos campesinos, sem, contudo, atribuir avaliação de modelos como bons ou ruins. Outro ponto encontrado na pesquisa diz respeito às aproximações entre Catalunha e Brasil que viveram lutas semelhantes na construção e na luta por esse direito, para além da nomenclatura utilizada, os dois países constituíram estratégias político-pedagógicas para assegurar direitos à educação e à escola aos sujeitos que vivem ou optaram por viver no campo.

A pesquisa aponta, ainda, quatro aspectos que aproximam Catalunha/Espanha e Brasil na consolidação de uma política de educação rural/campo.

A primeira aproximação diz respeito ao resgate e à importância histórica da escola como elemento estruturante do território, à caracterização do território rural e sua relação com a escola, entendidos como central no debate da ruralidade e da permanência ou não das famílias no campo. A escola como centro de diálogo e aproximação da comunidade, seja como lugar de ocupação física dos espaços, seja como lugar de pensar o campo, seus valores, seus costumes, seu patrimônio histórico e social.

A ideia de que sem escola não existe campo/pueblo faz da escola algo para além dela em si mesma: uma estratégia de ação que visa manter o lugar do rural, existindo e resistindo, apesar da industrialização, da modernização ou do avanço das grandes monoculturas. O mundo rural não tende a desaparecer, pois se mostra resistente e vai se transformando e redesenhando com os processos sociais e econômicos. A escola vem se consolidando nos dois países como lugar de resistência e como lugar que assegura a existência desse mundo rural. Pode-se afirmar a partir desta pesquisa que, definitivamente, a ideia de que não se pode investir em escolas, porque o campo tende a desaparecer, não se sustenta. Ao contrário, as experiências dos dois países demonstram que investir em educação é uma forma de assegurar que o campo não desaparecerá, que ele poderá se reconfigurar, reestruturar e, portanto, não deixará de existir.

A segunda aproximação identificada nesta pesquisa refere-se mais especificamente à escola, são as formas de luta para sua existência e manutenção. Ressalta-se que a organização e a luta pela educação rural na Espanha fazem parte de um movimento de luta pela valorização da escola por professores que compreendem este lutar como espaço de aprendizagem, como construção de identidade de educação vinculada ao próprio território rural, como espaço de vida e sobrevivência. Assim como no Brasil, o debate sobre a escola nasce de educadores, de movimentos e organizações que desafiam a repensar o papel da educação e da escola do campo nesse cenário.

Identificou-se, na Catalunha/Espanha, que esse processo foi construído pela ação dos professores e que, por meio de movimentos educativos, ou mesmo de movimentos territoriais, foram constituindo uma luta pela construção de políticas para as escolas rurais ou pela consolidação de uma política de educação para o meio rural. Tais movimentos representam um ponto de resistência política, na perspectiva da proposição, da implementação de ações pedagógicas, de reflexão sobre o mundo rural e dos processos de desenvolvimento em que estão envolvidos. Assim, a experiência desenvolvida na Comunidade Autônoma da Catalunha demonstra que as formas de resistências são de diversas formas e constroem movimentos de organizações distintas, porém trazem em comum a defesa pela educação pública, laica, de qualidade e acessível a todos como direito, o que a aproxima das experiências identificadas no Brasil, conforme pode ser observado na continuidade deste trabalho de pesquisa.

Ratifica-se ainda com este estudo que, no Brasil, o movimento em defesa pela educação do campo consolida-se como um movimento nacional, formado por educadores, organizações e movimentos sociais de luta pela terra, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), a Rede de Escolas Famílias Agrícolas, dentre tantas outras experiências que passaram a entender que o lugar da escola estava inteiramente ligado à defesa do território, da vida e da produção. Esse Movimento Nacional de Educação do Campo consolidou todos os desdobramentos que se fizeram para a construção da política pública de educação do campo no Brasil, assegurando além de práticas e experiências pedagógicas, as mudanças no marco regulatório legal de reconhecimento da política da educação do campo.

Essas duas lutas demonstram que os sujeitos que dela renascem não são alheios à escola ou ao mundo rural; são sujeitos que de forma coletiva se articulam na defesa da escola, mais especialmente na construção de uma política de educação que sustente o direito à escola.

Identificou-se, ainda, que muitos movimentos e organizações sociais do campo no Brasil aproximam-se das práticas educativas das escolas rurais espanholas, o que demonstra que há práticas educativas que estão sendo realizadas, tanto no Brasil quanto na Espanha, com o intuito de assegurar a melhoria na qualidade das escolas rurais ou do campo.

A terceira aproximação, evidenciada, entre as duas experiências, refere-se às políticas públicas. Na Espanha, as leis da educação foram incorporando elementos das demandas apresentadas pelos professores das escolas rurais, especialmente no que se referem às propostas de organização escolar rural em torno das ZERs, com recursos humanos e financeiros do Estado, regulamentando, assim, as formas de participação da comunidade nos processos educativos e contribuindo para a ampliação das propostas político-pedagógicas da escola rural na Catalunha. No Brasil, a partir de 2001, foram se consolidando os marcos regulatórios da educação do campo, sendo a primeira Resolução do Ministério da Educação, que reconhece a educação do campo, e não mais educação rural, como um conjunto de orientações políticas, administrativas e pedagógicas para as escolas do campo. Fruto da intensa luta dos movimentos ligados à educação do campo, esse marco legal permitiu, conforme demonstrado neste trabalho, uma reorganização geral na política pública de educação do campo.

As duas experiências demonstram que a luta pela educação e pelo direito à escola consolida-se nas políticas públicas como resultado de processos históricos de luta, assumidos por coletivos de educadores, movimentos e organizações, ou seja, não nascem simplesmente da iniciativa do Estado por si só. Esse Estado é pautado e pressionado a construir tais políticas, pressionado a dar respostas às demandas socialmente e pedagogicamente apresentadas pelos coletivos de educadores, pais e organizações/movimentos pela conquista e garantia do direito.

Por fim, a pesquisa mostrou a importância da construção das redes (rede de movimentos e rede de educadores) nas duas experiências, uma vez que criam espaços de intercâmbios, de diálogo e pautas conjuntas para a consolidação da escola rural/campo como lugar de produção de conhecimento, de vivência, de projetos e aprendizados. São as redes de movimentos que dão força à construção e à estruturação da política em nível macro, mas são as redes de educadores, pais e estudantes que dão vida e sustentação à micropolítica no cotidiano da escola, que reinventam formas de fazer, que possibilitam os processos de formação e experimentação de novas práticas, que mudam o ambiente escolar, que fazem da escola um lugar de produção de conhecimento, de vida e de identidade com o território onde a escola está inserida.

Outras aproximações e resultados podem ser identificados, especialmente no cenário mais geral sobre o mundo rural e a situação das escolas, resguardadas as suas especificidades de compreensão territorial e de ocupação do mundo rural nos dois países. Tanto no Brasil quanto nos países europeus que participaram da pesquisa Fopromar, o debate sobre a escola rural/campo não está esgotado, tendo em vista que as escolas continuam diminuindo, inclusive pelo fechamento por critérios administrativos. Às vezes, esses critérios são mais considerados para esta análise do que os critérios pedagógicos, seja porque o número de alunos nas escolas do campo está diminuindo, impactado pelo amplo processo de urbanização do campo (avanço dos centros urbanos para o espaço rural), seja pela saída das pessoas do rural/campo para viver nas cidades, seja pela diminuição do interesse de professores em atuar nessas escolas.

Assim, é possível afirmar que o movimento histórico é dialético e tem fluxos de avanços e de recuos na construção da política de educação rural e do campo. Os processos históricos apontam desafios diferentes para cada conjuntura e isso vale para o papel da escola, que se mostra como um desafio para os educadores e para toda a rede que sustenta a defesa da educação como direito.

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1 São Comunidades Autônomas da Espanha: Andalucia, Aragón, Asturias, Baleares, Canarias, Cantabria, Castilla-La Mancha, Castilla y Leon, Cataluña, Comunidades Valenciana, Estremadura, Galícia, La Roja, Madrid, Navarra, País Vasco y Región de Murcia.

Cómo citar en APA:

Martins, M. de F., Rocha, E. & Boix, R. (2023). Práticas pedagógicas em territórios rurais: aproximações entre as escolas do campo no Brasil e escolas rurais na Catalunha/Espanha.. Revista Iberoamericana de Educación, 91(1), 23-37. https://doi.org/10.35362/rie9115537