Revista Iberoamericana de Educación (2025), vol. 97 núm. 1, pp. 101-117 - OEI
https://doi.org/10.35362/rie9716597 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653
recibido / recebido: 30/10/2024; aceptado / aceite: 05/02/2025
Investigação Temática e Educação CTS na Educação Infantil: um olhar crítico para situações-limite na infância
Investigación Temática y Educación CTS en la Educación Infantil: una mirada crítica a las situaciones límite en la infancia
Thematic Research and STS Education in Early Childhood Education: a critical view at “limit situations” in childhood
Edith Gonçalves Costa 1 https://orcid.org/0000-0003-0724-3243
Sebastião Rodrigues-Moura 2 https://orcid.org/0000-0003-4254-6960
Ana Cristina Pimentel Carneiro de Almeida 3 https://orcid.org/0000-0002-9432-2646
1 Secretaria Municipal de Educação de Belém, Brasil; 2 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA); 3 Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil.
Resumo. Este artigo analisa o papel da Investigação Temática, baseada nos princípios freireanos, como um processo metodológico para identificar “situações-limite” vividas por crianças na Educação Infantil, tais como vulnerabilidade socioeconômica, saneamento inadequado e uso excessivo de telas. Por meio de uma abordagem qualitativa e exploratória, a pesquisa foi realizada em uma escola pública de Belém (PA) com crianças de 5 a 6 anos, adotando a Análise Textual Discursiva (ATD) para a sistematização e interpretação dos dados. A partir das observações e da participação ativa das crianças, o estudo revela a importância de uma prática pedagógica que valorize o contexto social e cultural das crianças, integrando a Educação CTS para promover um ensino crítico e socialmente relevante. Os resultados mostram que a aplicação da Investigação Temática adaptada possibilita uma compreensão ampliada das realidades das crianças, incentivando a formação de uma cidadania ativa e engajada desde os primeiros anos. Conclui-se que a Educação CTS, articulada com os pressupostos freireanos, é um caminho potencial para uma prática pedagógica transformadora, que respeita as vivências infantis e promove uma educação crítica e humanizadora.
Palavras-chave: educação infantil; educação CTS; investigação temática; Paulo Freire.
Resumen. Este artículo analiza el papel de la Investigación Temática, basada en los principios freireanos, como un proceso metodológico para identificar “situaciones límite” vividas por niños en la Educación Infantil, tales como la vulnerabilidad socioeconómica, el saneamiento inadecuado y el uso excesivo de pantallas. A través de un enfoque cualitativo y exploratorio, la investigación se llevó a cabo en una escuela pública de Belém (PA) con niños de 5 a 6 años, adoptando el Análisis Textual Discursivo (ATD) para la sistematización e interpretación de los datos. A partir de las observaciones y de la participación activa de los niños, el estudio revela la importancia de una práctica pedagógica que valore el contexto social y cultural de los niños, integrando la Educación CTS para promover una enseñanza crítica y socialmente relevante. Los resultados muestran que la aplicación de la Investigación Temática adaptada posibilita una comprensión ampliada de las realidades infantiles, fomentando la formación de una ciudadanía activa y comprometida desde los primeros años. Se concluye que la Educación CTS, articulada con los presupuestos freireanos, es un camino potencial para una práctica pedagógica transformadora, que respeta las experiencias infantiles y promueve una educación crítica y humanizadora
Palabras clave: educación Infantil; educación CTS; investigación temática; Paulo Freire.
Abstract. This article analyzes the role of Thematic Investigation, based on Freirean principles, as a methodological process for identifying “limit-situations” experienced by children in Early Childhood Education, such as socioeconomic vulnerability, inadequate sanitation, and excessive screen use. Through a qualitative and exploratory approach, the research was conducted in a public school in Belém (PA) with children aged 5 to 6 years, adopting Discursive Textual Analysis (DTA) for the systematization and interpretation of data. Based on observations and the active participation of children, the study highlights the importance of a pedagogical practice that values children’s social and cultural contexts, integrating Science, Technology, and Society Education (STS Education) to promote critical and socially relevant teaching. The results show that the application of adapted Thematic Investigation enables a broader understanding of children’s realities, encouraging the development of active and engaged citizenship from an early age. It is concluded that STS Education, articulated with Freirean assumptions, is a potential path for transformative pedagogical practice that respects children’s experiences and promotes critical and humanizing education.
Keywords: science education; early childhood education; STS education; thematic investigation; Paulo Freire.
A educação científica na Educação Infantil desempenha um papel essencial no desenvolvimento de habilidades cognitivas e críticas das crianças desde os primeiros anos. De acordo com Voltarelli e Lopes (2021), essa educação deve ir além do ensino de conteúdos formais, priorizando uma abordagem lúdica e investigativa que promova experimentação e descoberta, contribuindo para o desenvolvimento de um olhar crítico ao reconhecer e incentivar a participação infantil no contexto social e ambiental.
Sob a perspectiva de Corsaro (2011), é fundamental compreender que a participação infantil não ocorre de maneira passiva. As crianças não apenas internalizam os conhecimentos e as normas culturais transmitidas pelos adultos, mas também os reinterpretam, ressignificam e transformam em suas interações cotidianas. Isso é especialmente evidente na Educação Infantil, onde as brincadeiras, os experimentos científicos e as atividades investigativas não são apenas uma reprodução do conhecimento adulto. Como destaca Corsaro (2011), esses momentos são, na verdade, espaços de criação coletiva e inovação dentro das culturas de pares.
Archanjo Júnior et al. (2021) defendem que as atividades científicas na Educação Infantil devem incentivar a interação das crianças com o ambiente natural, integrando aspectos culturais e sociais para conferir um significado conceitual que vá além do ensino de conteúdos formais. Essa visão amplia a importância da Educação CTS, que propõe uma educação científica crítica e contextualizada. Estudos sobre Educação CTS nesse nível de ensino reforçam a relevância de estratégias pedagógicas que estimulem a participação ativa das crianças no processo de ensino-aprendizagem. Ao problematizar temas de relevância social e associar a ludicidade à educação científica, promove-se um ambiente educacional dinâmico, reflexivo e transformador, no qual as crianças desenvolvem sua capacidade de análise e ação sobre o mundo ao seu redor (Costa e Almeida, 2021; Marcelino et al., 2023).
Conforme destacado por Aikenhead (2009), o currículo CTS deve integrar tanto os fundamentos internos da ciência quanto sua relação com a sociedade e a tecnologia, preparando cidadãos aptos a compreender as implicações sociais e éticas da prática científica. Esse enfoque amplia o ensino de Ciências para além da simples transmissão de conhecimento formal, incentivando os alunos a analisar criticamente como os fenômenos científicos impactam suas vidas e seu entorno.
A escolha de temas no contexto da Educação CTS precisa estar alinhada às vivências das crianças para garantir uma educação significativa e crítica. Mais do que a simples transmissão de conteúdos formais, esses temas devem possibilitar a compreensão das implicações sociais, políticas, econômicas e ambientais da realidade dos estudantes, promovendo o desenvolvimento de um senso de cidadania e solidariedade (Santos, 2007).
Nesse sentido, a contextualização se torna um princípio fundamental da Educação CTS, pois não se limita à inclusão de exemplos cotidianos, mas estabelece uma articulação entre o conhecimento científico e as questões sociais, políticas e culturais que permeiam a vida dos alunos. Ao conectar esses elementos, o ensino de Ciências ultrapassa a abordagem tradicional e se torna uma ferramenta para estimular a reflexão crítica e a participação ativa dos estudantes, contribuindo para a construção de um entendimento mais amplo e transformador sobre o mundo e suas dinâmicas sociais (Santos, 2007).
Dentro dessa perspectiva, é fundamental considerar que os desafios ambientais e sociais estão diretamente ligados à realidade das crianças, especialmente daquelas em situação de vulnerabilidade. As desigualdades estruturais afetam diretamente seu acesso à educação, saúde e condições dignas de moradia, o que evidencia a necessidade de um ensino que contemple a relação entre ciência, tecnologia e sociedade. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) aponta que cerca de 33 milhões de crianças vivem em situação de pobreza multidimensional, enfrentando dificuldades em aspectos essenciais, como educação e moradia. Essa vulnerabilidade é exacerbada pela crise climática, que impõe às crianças consequências severas, afetando diretamente seu bem-estar e expondo-as a problemas de saúde relacionados ao meio ambiente (UNICEF, 2024). Pesquisas sobre a infância no Brasil também indicam que as crianças enfrentam desigualdades socioeconômicas, educacionais e de saúde, impactando negativamente seu desenvolvimento cognitivo, motor e socioemocional (Komatsu et al., 2022).
Como professores da infância, deparamo-nos frequentemente com desafios complexos, especialmente quando observamos como o contexto de vida das crianças impacta diretamente sua aprendizagem e desenvolvimento. Defender uma educação que garanta os direitos das crianças exige um olhar atento sobre suas realidades, conhecendo quem são esses sujeitos e as experiências que vivem além do ambiente escolar. Esse entendimento contextual permite que educadores abordem temas significativos que dialoguem com as vivências e necessidades reais dos alunos, conforme sugerem Martins (2020) e Santos (2007), articulando o conhecimento científico às questões sociais e culturais que influenciam suas vidas.
Neste estudo, buscamos aproximações com a Investigação Temática para aprofundar nossa compreensão sobre o contexto de vida das crianças. Esse processo metodológico nos convida a adentrar no universo infantil em sua totalidade – abrangente, por incluir uma diversidade de experiências e influências, e singular, ao reconhecer a individualidade de cada criança. Desde muito cedo, elas enfrentam desafios que chamamos de “situações-limite” (Freire, 2020), como a violência, a fome e a vulnerabilidade socioeconômica.
A partir do referencial freireano, compreendemos situações-limite como barreiras concretas e existenciais que representam contradições sociais profundas vivenciadas pelos indivíduos. Essas situações, ao serem problematizadas, revelam conflitos ocultos, que muitas vezes são mascarados ou reprimidos. São desafios que demandam superação e transformação, pois estão diretamente ligados às relações de opressão, à desigualdade no acesso a recursos e às disputas de poder (Silva, 2004).
Nesse contexto, a Educação CTS articulada ao pensamento de Paulo Freire torna-se essencial para compreender a Educação Infantil como um espaço de libertação e transformação. A Investigação Temática, proposta por Freire (2020), permite que os sujeitos, como seres históricos e sociais, reconheçam as opressões que os cercam e, por meio do diálogo e da reflexão crítica, sejam capazes de propor mudanças em sua realidade. Essa perspectiva, embora elaborada em um contexto histórico específico, mantém-se atual e necessária, sobretudo quando se amplia o olhar para a infância oprimida.
A Investigação Temática freireana (Freire, 2020) se apresenta como uma ferramenta potente para aprofundar o conhecimento sobre o contexto das crianças, revelando, de forma significativa, as condições sociais em que estão inseridas. Essa abordagem, articulada aos pressupostos da Educação CTS, possibilita a criação de um currículo que reflita as realidades sociais e culturais das crianças, conectando a educação científica aos temas presentes em suas vivências cotidianas.
Com isso, temos a questão central de investigação: como a aplicação da Investigação Temática, articulada aos princípios da Educação CTS, contribui para a identificação de temas para o ensino de Ciências que dialoguem com o contexto social e cultural de crianças da Educação Infantil, promovendo uma educação crítica e transformadora?
Para tanto, ao trazer essas questões para o centro do debate educativo e problematizá-las, assumimos o compromisso de promover uma prática pedagógica crítica e emancipadora. Essa visão é enriquecida pela Educação CTS, que permite analisar essas barreiras considerando as inter-relações entre ciência, tecnologia e condições sociais, criando possibilidades para que as crianças reflitam, ainda que de forma inicial, sobre sua realidade e desenvolvam uma compreensão mais crítica do mundo ao seu redor.
2. A Investigação Temática e suas contribuições para a seleção de temas em Educação CTS
Para desenvolver práticas educativas na infância, é essencial reconhecer que a criança é um sujeito de direitos, ativo em seu mundo e dotado de uma voz própria, capaz de influenciar e participar significativamente da sociedade. A integração do pensamento de Paulo Freire nas práticas da Educação Infantil fortalece essa perspectiva, tornando o processo mais dialógico e centrado na criança (De Angelo, 2013). Freire (2020) propõe que o diálogo verdadeiro, fundamentado em amor, humildade, fé, confiança, esperança e pensamento crítico, constitui a base para um processo educativo libertador e humanizador.
Ao compreender que as crianças também enfrentam situações que impactam diretamente sua vivência da infância, torna-se fundamental que tais experiências sejam identificadas e discutidas no contexto educacional. A perspectiva da Educação CTS, aliada ao pensamento freireano, promove um ensino que valoriza o contexto dos sujeitos, reconhecendo-o como um elemento inseparável do processo educativo e fomentando práticas dialógicas e problematizadoras (Auler, 2007; Santos, 2007).
Nesse sentido, Martins (2020) argumenta que a Educação CTS busca integrar temas e conceitos de ciência e tecnologia em contextos reais e sociais, atribuindo-lhes um sentido funcional que transcende a mera transmissão de conteúdos técnicos. Essa perspectiva incentiva o desenvolvimento de competências que capacitem os alunos a enfrentar desafios socioambientais e a participar ativamente da sociedade democrática. Santos e Schnetzler (2010) reforçam essa visão, destacando que a Educação CTS não se limita à educação científica, mas também está intrinsicamente ligada aos direitos do cidadão e à sua participação na sociedade.
Nesta pesquisa, assumimos uma perspectiva Freire-CTS, com a intencionalidade de explorar caminhos para a identificação de temas no ensino de Ciências na Educação Infantil a partir da Investigação Temática. De acordo com os estudos de Maraschin et al. (2023), o termo Freire-CTS pode ser empregado quando a seleção da temática surge do próprio processo da investigação temática ou de adaptações, a partir das quais emergem situações sociais contraditórias que precisam ser problematizadas.
Isso evidencia como a Investigação Temática, em uma perspectiva Freire-CTS, possibilita que a escolha dos temas emerja das contradições sociais observadas no contexto estudado. Essas contradições podem ser problematizadas sob diferentes aspectos, como éticos, morais, econômicos e políticos, com ênfase na dimensão científico-tecnológica. Assim, a abordagem Freire-CTS reforça a importância de integrar a realidade dos educandos ao ensino de Ciências, promovendo uma reflexão crítica sobre a sociedade e a tecnologia. Nesta pesquisa, também assumimos princípios freireanos como dialogicidade, problematização e conscientização, além de valorizar a construção coletiva do conhecimento, com o objetivo de fomentar uma educação crítica e emancipadora desde a Educação Infantil.
A Investigação Temática, proposta por Paulo Freire, é um processo pedagógico que busca a compreensão da totalidade da realidade, evitando perspectivas fragmentadas. Para Freire (2020), a investigação deve partir do “pensar do povo”, um pensamento que emerge das relações entre os indivíduos e sua vivência cotidiana. Essa abordagem permite que o processo educativo seja construído de forma dialógica e participativa, e não imposto unilateralmente pelos educadores.
Conceitos centrais de Freire (2020), como situações-limite, inédito viável, atos-limite e temas geradores, fundamentam a Investigação Temática. As situações-limite representam barreiras ou obstáculos enfrentados pelos indivíduos em sua realidade, que parecem restringir suas possibilidades de ação e transformação. Essas situações são fruto de condições históricas, sociais e econômicas vividas pelos oprimidos, frequentemente percebidas como limitações intransponíveis. No entanto, Freire enfatiza que essas barreiras podem ser superadas quando analisadas criticamente, pois revelam desafios que impulsionam a ação transformadora.
A superação das situações-limite ocorre por meio dos atos-limite, ações que rompem com as condições opressivas e possibilitam a construção de novos caminhos. Nesse contexto, o conceito de inédito viável representa a possibilidade real de transformação: a construção de um futuro diferente e mais justo, mesmo que ainda não tenha sido concretizado (Freire, 2020).
O conceito de tema gerador surge da experiência concreta dos sujeitos, especialmente das populações oprimidas. Esses temas refletem seus anseios, desafios e contradições do cotidiano. Quando legitimados em conjunto com os educandos, tornam-se o ponto de partida para a construção dos conteúdos programáticos, garantindo que o ensino não seja imposto externamente, mas construído em sintonia com as realidades vividas (Freire, 2020).
A Investigação Temática envolve quatro etapas fundamentais: aproximação inicial, codificação, descodificação e estudo interdisciplinar dos achados. Antes dessas fases, delimita-se a área de estudo com base em fontes secundárias, que fornecem uma visão geral sobre o local e as condições socioeconômicas, culturais e políticas dos sujeitos. Esse primeiro contato é indispensável para a compreensão do contexto e das experiências vividas. Como afirma Freire (2020, p. 139), não é possível “(...) elaborar roteiros de pesquisa do universo temático a partir de pontos prefixados pelos investigadores que se julgam a si mesmos os sujeitos exclusivos da investigação”.
Freire (2020) explica que, na fase de Aproximação Inicial, os pesquisadores estabelecem um contato direto com a comunidade, promovendo uma relação de confiança e esclarecendo os objetivos da investigação. Essa aproximação incentiva a participação ativa dos educandos, tornando o processo mais dialógico e participativo.
Na fase de Codificação, as contradições identificadas são transformadas em representações visuais ou situacionais – as codificações. Essas representações provocam reflexão crítica, pois conectam os sujeitos a situações reconhecíveis de sua realidade. Freire (2020) destaca que as codificações devem equilibrar clareza e complexidade para permitir múltiplas interpretações e ampliar a consciência crítica sobre os temas explorados.
Na fase de Descodificação, ocorre o retorno à comunidade para discutir as codificações em círculos de Investigação Temática. Esse momento é crucial para que os participantes revelem suas percepções prévias e avancem para uma nova compreensão da realidade. A descodificação estimula a conscientização crítica ao promover reflexões sobre as contradições identificadas e as relações dialéticas entre os diversos aspectos da vida social. Segundo Freire (2020, p. 14), “a descodificação é a análise e consequente reconstituição da situação vivida”, sendo uma etapa central para a transformação social e o empoderamento dos sujeitos.
A última etapa corresponde ao estudo interdisciplinar dos temas identificados. Gravações e registros das discussões são analisados para organizar esses temas dentro de diferentes áreas do conhecimento, garantindo que a interdisciplinaridade seja preservada (Freire, 2020). Os temas são “reduzidos” para facilitar a aprendizagem e, quando necessário, incluem-se “temas dobradiça”, que interligam os temas geradores com outros aspectos do currículo, promovendo uma abordagem contextualizada e interdisciplinar. Esses temas não apenas ampliam as discussões em sala de aula, mas também incentivam uma leitura crítica da realidade, alinhada aos princípios da educação libertadora freireana (Silva, 2004).
Este estudo segue uma abordagem qualitativa, com uma pesquisa exploratória (Lösch et al., 2023). Conduzimos este estudo ao longo de quatro semanas em uma turma de Jardim II de uma escola pública de Educação Infantil no município de Belém do Pará, na Amazônia brasileira, com 11 crianças de 5 a 6 anos de idade e contamos também com a colaboração da professora titular da turma.
A escola está localizada em uma região marcada por vulnerabilidades socioeconômicas, onde muitas famílias vivem em condições de precariedade habitacional e enfrentam dificuldades de acesso a serviços essenciais, como saneamento básico e saúde. As crianças participantes refletem esse contexto, residindo, em sua maioria, no próprio bairro e compartilhando moradias com múltiplos membros da família extensa. Esse ambiente influencia diretamente suas vivências, hábitos e interações, sendo perceptível na forma como se expressam, brincam e reproduzem elementos do meio em que estão inseridas. A rotina das crianças é atravessada por questões como insegurança alimentar, exposição precoce a temas de violência e gravidez precoce, além do uso frequente de dispositivos eletrônicos no ambiente doméstico, como veremos adiante. Esses aspectos revelam a importância de práticas pedagógicas que levem em consideração a realidade sociocultural dessas crianças.
Nesta pesquisa, seguimos as diretrizes éticas1 para estudos com crianças, obtendo o consentimento informado dos responsáveis e da professora e assentimento das próprias crianças para participarem do estudo. Para preservar suas identidades, utilizamos nomes fictícios que fazem referência ao contexto amazônico, como Iara, Curupira, Matinta e Boto, respeitando o sigilo e valorizando a individualidade de cada sujeito.
Para a realização deste estudo inspiramo-nos nas etapas da Investigação Temática propostas por Paulo Freire (Freire, 2020). Como apontam Sousa et al. (2014, p. 155), essas etapas “não devem ser vistas como orientações rígidas, mas sim como um processo dinâmico, que pode sofrer alterações a depender do contexto e dos sujeitos envolvidos”.
Realizamos todas as etapas da Investigação Temática com a turma, desde a delimitação inicial da área até as fases mais avançadas de codificação e descodificação. No entanto, para atender ao objetivo específico desta pesquisa, iremos focar no processo de delimitação da área e na primeira fase da Investigação Temática freireana, a aproximação inicial.
3.1 Procedimentos da Investigação Temática no contexto da Educação Infantil
As atividades foram planejadas para promover um ambiente acolhedor e instigante, utilizando metodologias lúdicas e dialógicas que facilitassem a participação das crianças, garantindo que elas se sentissem motivadas e engajadas durante o processo investigativo.
O primeiro passo da investigação consistiu em delimitar a área de estudo e compreender o contexto das crianças, para identificar características importantes, como condições de vida, serviços públicos disponíveis, desafios enfrentados pela comunidade e informações educacionais relevantes. Para isso, utilizamos uma abordagem exploratória a partir de duas fontes secundárias: as fichas de diagnose das crianças e um levantamento de notícias de mídia local. As fichas de diagnose, parte da documentação pedagógica utilizada na Educação Infantil, foram fundamentais para fornecer informações sobre contextos familiares e interesses das crianças. Com as notícias de jornais e portais locais pudemos obter uma compreensão das questões socioeconômicas e desafios enfrentados pela comunidade.
Na etapa de Aproximação Inicial, buscamos conhecer melhor as crianças e ser reconhecidos por elas, estabelecendo um vínculo afetivo e de confiança entre nós. Utilizamos conversas informais e atividades lúdicas para criar um ambiente acolhedor e favorável à participação. Durante as visitas ao ambiente escolar, adotamos uma observação crítica, buscando perceber a realidade como uma “codificação ao vivo”, analisando a área em diferentes momentos e aspectos para compreender a totalidade a partir de suas partes interconectadas (Freire, 2020), buscando identificar junto aos sujeitos as situações-limites e contradições enfrentadas.
Utilizamos rodas de conversas para conhecer as preferências e interesses das crianças, incentivando-as a falar sobre o que gostam de fazer e aprender. A todo momento, assumimos uma observação dialógica, realizando observações em diferentes momentos do cotidiano escolar, registrando as vivências das crianças, suas reações a diferentes situações e como interagem com seus colegas e professores.
As atividades de expressão gráfica, os desenhos, foram utilizados nessa fase para que as crianças expressassem aspectos sobre suas vidas e preferências, motivadas por perguntas como: “o que gostam de fazer na escola?”; “o que gostam de fazer em casa?”; e, “com quem você gosta de brincar?”. Após os desenhos, estimulamos as crianças a falarem sobre o que desenharam, perguntando sobre suas escolhas e ouvindo suas histórias.
Utilizamos a brincadeira de “repórter” como estratégia metodológica, permitindo que as crianças entrevistassem umas às outras utilizando um gravador. A orientação inicial dada pela pesquisadora foi que essa entrevista serviria para conhecer melhor o amigo, explorando seus gostos, preferências, brincadeiras favoritas e outros aspectos de sua vivência. Não foi estabelecido um roteiro fixo de perguntas, garantindo que as crianças tivessem liberdade para formular suas próprias questões e conduzir o diálogo de maneira espontânea.
O diálogo com a professora abordou questões relacionadas à aprendizagem, socialização, comportamento e as influências do contexto familiar e comunitário para as crianças. Para conduzir essa conversa, utilizamos um roteiro semiestruturado, que permitiu direcionar a entrevista por meio de perguntas previamente elaboradas, ao mesmo tempo em que possibilitou que a professora trouxesse livremente suas percepções e experiências, ampliando o escopo da investigação. Numa perspectiva dialógica, como propõe Freire (2020), a conversa foi conduzida de forma aberta e colaborativa, valorizando a participação ativa da professora como co-investigadora no processo.
3.2 Análises e interpretação dos dados
Os registros dessa observação foram anotados em um diário de campo durante todas as interações e atividades com as crianças. Além disso, utilizamos registros visuais e narrativos provenientes dos desenhos, assim como gravações de áudio e vídeo das discussões em grupo e das atividades, para captar as falas e expressões espontâneas das crianças.
Inspirados em Torres et al. (2011), utilizamos a Análise Textual Discursiva (ATD) como suporte metodológico tanto para o desenvolvimento da Investigação Temática (IT) quanto para a análise dos dados desta pesquisa. Conforme Torres et al. (2011), a ATD pode estar presente em todas as etapas da Investigação Temática, auxiliando na sistematização e aprofundamento das análises, especialmente no que se refere à categorização das contradições identificadas.
De acordo com Moraes e Galiazzi (2016), a ATD pode ser compreendida como um procedimento auto-organizado e recursivo desenvolvido em três etapas: a unitarização, na qual desconstruímos os textos do corpus (material empírico da pesquisa); a categorização, em que organizamos unidades de sentido por meio de suas relações; e, produção de metatextos, em que comunicamos o emergente da pesquisa por meio de novas compreensões. Seguindo os princípios da ATD, organizamos os dados conforme sua origem e estrutura, nomeando as Unidades de Significados com códigos, seguindo um padrão sistemático, conforme exemplificado abaixo:
Figura 1 - Explicação da codificação
Código (exemplos) |
Explicação |
FD.1, FD.2… |
Fichas de Diagnose, numeradas sequencialmente para cada unidade analisada |
NT1.1, NT.19.1… |
Notícias de Mídia Local, onde o primeiro número indica a notícia analisada e o segundo representa a unidade de significado extraída. |
DC.1 |
Diário de Campo, numerado conforme as unidades de significado identificadas. |
DJ.1 |
Desenhos, seguido da inicial do nome fictício da criança entrevistada (J de Jaci, por exemplo), e o número representa a unidade de significado. |
DPR.8 |
Diálogo com a Professora, sendo a oitava unidade de significado extraída desse corpus. |
EM.2 |
"Entrevista", seguido da inicial do nome fictício da criança entrevistada (M de Matinta, por exemplo), e o número representa a unidade de significado identificada nesse contexto |
Fonte: Elaboração própria.
Realizamos a unitarização de todo o material empírico gerado. Em seguida, realizamos sua categorização, na qual organizamos as unidades de sentido identificadas em categorias (Moraes & Galiazzi, 2016). Essa fase de categorização foi essencial para a identificação das situações-limite – elementos de contradição que emergiram da delimitação da área e das expressões e narrativas das crianças e professora. Para Milli et al., (2018) a categorização das informações em “unidades de sentido” - que se dá nas etapas de unitarização e categorização da ATD, possibilita a identificação das contradições e situações-limite que compõem a realidade vivida pelos educandos e, consequentemente, a criação de conteúdos curriculares mais significativos.
4. Resultados e discussão
Para apresentar os resultados da investigação realizada, estruturamos as informações com base nas categorias identificadas a partir das etapas de ATD e Investigação Temática. O objetivo foi captar, a partir da investigação, as situações-limite que emergem do contexto de vida das crianças da Educação Infantil, permitindo uma visão ampliada das contradições enfrentadas no cotidiano escolar e familiar.
A Tabela 1, apresentada a seguir, sistematiza as categorias finais que resultaram da análise das unidades de sentido, indicando as diferentes contradições relacionadas ao ambiente, saúde e desigualdade social. Essa organização visa proporcionar uma visão clara e integrada das barreiras identificadas, possibilitando uma compreensão mais estruturada dos fatores sociais, econômicos e culturais que compõem o universo das crianças envolvidas neste estudo.
Tabela 1. Sistematização da categorização para identificação de situações-limite
Unidades de Sentido |
Categorias Iniciais |
Categoria final (situações-limite) |
---|---|---|
DPR.11 Ele adora comer salsinha... A alimentação influencia bastante o comportamento dele. |
Ingestão de alimentos processados |
Vulnerabilidade alimentar e questões de saúde relacionadas à alimentação |
EU.11 - Uirapuru: quando eu viajei pra Breves, a gente sempre tomava açaí lá, no jantar era açaí, no almoço era açaí. |
Valor cultural do açaí |
|
FD.7 – mortadela |
Preferência por alimentos ultra processados em casa. |
|
DJ.6 Jaci: Aqui eu tô brincando no balanço aqui da escola, eu gosto. A gente brinca lá embaixo, que é espaçoso. |
Manifestação de interesse da criança pelas brincadeiras fora de sala. |
Inadequação e precariedade da infraestrutura escolar |
DPR.7 Nós estamos no segundo andar então as crianças já têm que subir uma escada que não é aconselhável para a idade delas. |
Estrutura da escola inadequada para a Educação Infantil. |
|
DPR. 18 “A área que seria de lazer [...] vive suja. [...] Pode ter mosquito da dengue, eles podem pegar alguma doença.” |
Problemas estruturais e de manutenção |
|
DC.19 Logo depois, uma das crianças fingiu falar no celular e disse: "Ah, tá bom, te ligo depois!" |
Representação de papeis |
Uso excessivo e indiscriminado de telas pelas crianças |
DPR.22 [...] ele tem um uso indiscriminado de telas. (...) o que ele assiste não é benéfico pra ele, tem muito comportamentos de imitar arminhas. (...) ela tem que reduzir o tempo de tela porque ele não queria ficar na escola porque queria ficar no celular, ele nem queria dormir. |
Preocupação com o uso excessivo de telas |
|
DC.20 Tainá então disse: "Então vou namorar", e as duas começaram a brincar [...] |
A brincadeira de faz de conta refletindo o namoro |
Exposição precoce à sexualidade e à gravidez, refletida nas brincadeiras e interações das crianças |
DPR.4 [...] Até colocar o casaco por dentro do uniforme elas colocam para imitar a barriga. |
Sexualidade e gravidez precoce como um tema recorrente entre as crianças |
|
DPR.5 O contexto da Pratinha é uma presença de gravidez na adolescência [...] e você percebe isso nas brincadeiras das crianças. |
As crianças reproduzem em suas brincadeiras, o contexto em que vivem |
|
DC.21 [...] Uma das filhas disse para a mãe: "Mãe, a Caipora quer levar uma arma pra escola." |
Brincadeiras de faz de conta – reprodução de uso de armas |
Exposição das crianças à violência e à presença de armas em seu contexto social |
DPR.3 Os meninos falam de jogos com tiros. Fazendo a mesma posição da arminha e fazendo barulho de tiro. E a gente percebe que eles têm esse interesse em comum. |
Brincadeiras de imitação de uso de armas |
|
NT1.02 - os agentes apreenderam um revólver e um simulacro de arma de fogo do tipo arma longa [...] |
Cenário de um bairro perigoso e violento |
|
DPR.9 [...] A gente percebia que a roupa das crianças vinha suja, então os pais falavam que estava faltando água na pratinha, que não tinha como ficar lavando roupa. |
A escassez de água afeta diretamente a higiene das crianças |
Falta de saneamento básico e acesso adequado à água na comunidade |
NT3.3 Como não há sistema de drenagem, em alguns pontos a água fica acumulada permanentemente abaixo das casas [...], o que expõe a população às doenças de veiculação hídrica. |
Falta de sistema de drenagem/saneamento |
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NT18.01 - Moradores do bairro da Pratinha II, em Icoaraci, distrito de Belém, fecharam a rodovia Arthur Bernardes nas primeiras horas da manhã de ontem cobrando resolução do problema de falta d'água. |
Protestos da população diante da precariedade do bairro |
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DPR.10 A avó dela é catadora (de lixo) então quando ela ia, levava a Tainá junto então ela era exposta a sol e chuva, a lixo, a tudo... |
Exposição infantil a condições de trabalho e vulnerabilidade social |
Vulnerabilidade socioeconômica e habitacional enfrentada pelas crianças e suas famílias |
FD.02 – vamos normalmente pra praça ou igreja |
acesso limitado a recursos educacionais, como praças e bibliotecas |
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FD.03 – Um salário mais ou menos |
rendas que variam de 1 a 2 salários mínimos |
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FD.04 – Bolsa família |
Algumas famílias dependem de benefícios sociais como o Bolsa família |
|
NT07.02 - Fica difícil morar de aluguel sobrevivendo com R$ 600. Como vai se manter, principalmente com o filho pequeno? |
Dificuldades financeiras e habitacionais |
Fonte: elaboração própia.
Esses achados refletem questões que podem evidenciar de que forma o contato com essas situações-limites contribuem para uma prática pedagógica crítica e socialmente contextualizada, alinhada aos princípios freireanos e aos pressupostos da Educação CTS. Apresentamos a seguir as discussões sobre os resultados, a partir da categoria emergente: Situações-limites: da (in)visibilidade à prática pedagógica crítica.
4.1 Situações-limites: da (in)visibilidade na Educação Infantil à prática pedagógica crítica.
Nesta categoria, a análise revela como o processo de Investigação Temática foi essencial para identificar e dar visibilidade à situações-limite enfrentadas pelas crianças de uma turma de Educação Infantil. Questões como insegurança alimentar, violência, uso excessivo de telas, condições inadequadas de moradia e saneamento precário emergiram como elementos contraditórios e opressivos presentes no cotidiano das crianças e de suas famílias.
Para que essas contradições viessem à tona, adotar uma observação dialógica foi essencial. Para compreender o mundo da criança, é imprescindível reconhecer que esse universo lhe pertence e que sua percepção da realidade é construída a partir de suas vivências e interações. Dessa forma, ao ingressarmos nesse mundo com sua permissão e participação ativa, nossa compreensão é progressivamente moldada pela perspectiva infantil, permitindo-nos acessar e interpretar as nuances de sua realidade de maneira mais sensível e significativa, daí a importância da dialogicidade. Como afirma Freire (2020, p.120) “nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa (...)”.
Essa observação dialógica envolve a valorização das crianças e de suas diversas formas de expressão. Por meio das diferentes linguagens que a criança utiliza — gestual-corporal, plástico-visual, jogo simbólico e oral (Edwards, et al.,1999) — pudemos perceber e interpretar o mundo sob o olhar infantil, compreendendo suas maneiras singulares de interagir e atribuir sentido ao que as rodeia. Além disso, através da expressão dessas linguagens, como a brincadeira, foi possível identificar situações contraditórias presentes em seu contexto. Isso é evidenciado no trecho extraído do Diário de Campo, que relata uma brincadeira entre algumas meninas: “Em outra situação, as mesmas meninas estavam novamente brincando juntas. Uma das filhas disse para a mãe: ‘Mãe, a Caipora quer levar uma arma pra escola’” (DC.21). Esse comentário reflete o impacto da exposição à violência em ambientes comunitários.
Outro exemplo dessa dinâmica é a imitação dos sons de disparos de armas de fogo durante brincadeiras infantis, como relatado pela professora: “Os meninos falam de jogos com tiros, fazendo a mesma posição da arminha e fazendo barulho de tiro” (DPR.3). Para Corsaro (2011), as crianças não apenas internalizam passivamente elementos culturais, mas os reinterpretam e ressignificam ativamente em suas interações. Nesse sentido, essas brincadeiras sugerem que as crianças estão apropriando e transformando símbolos de violência presentes em seu entorno, incorporando-os em suas rotinas lúdicas. Assim, longe de serem meras imitações diretas, essas representações lúdicas refletem um processo coletivo de construção cultural, no qual as crianças negociam e reinterpretam a realidade social à sua volta, conferindo-lhe novos significados dentro de suas culturas de pares, (Corsaro, 2011), que também revelam o contexto de violência em que vivem.
A situação-limite relacionada à vulnerabilidade alimentar e questões de saúde relacionadas à alimentação foi identificada a partir das falas das crianças e observações sobre suas preferências alimentares, que refletem tanto a cultura local quanto os desafios de acesso a uma alimentação equilibrada. A fala de Uirapuru, que relata que, na cidade de Breves, interior do estado do Pará, sua família consome açaí no jantar e no almoço (EU.11) evidencia a importância de alimentos regionais no cotidiano das crianças, reforçando o valor cultural do açaí na alimentação familiar. Outras falas indicam preferências por alimentos processados, como “mortadela” (FD.07), o que aponta para uma dieta que, embora acessível e econômica, pode ser menos nutritiva e trazer implicações para o desenvolvimento infantil.
Esse contexto expõe a necessidade de uma abordagem pedagógica que envolva o conhecimento sobre alimentação saudável, mas também uma reflexão crítica sobre os fatores que influenciam os hábitos alimentares das crianças. A presença de alimentos ultraprocessados e as preferências culturais destacam a relevância de trabalhar a Educação CTS para explorar como as escolhas alimentares são influenciadas por condições sociais e econômicas.
De Marco (2021) enfatiza que abordar alimentos ultraprocessados na Educação CTS é crucial para desenvolver uma consciência crítica sobre seus impactos na saúde e no bem-estar social. Para o autor, a Educação CTS permite explorar a ligação entre o processamento de alimentos e doenças crônicas, como obesidade e diabetes, ampliando a compreensão dos temas alimentares. Além disso, contribui para que se analise as implicações sociais e de saúde pública, incentivando escolhas alimentares mais conscientes que considerem fatores nutricionais, econômicos e sociais.
A situação-limite relacionada à infraestrutura da escola foi identificada a partir das falas das crianças e das observações da docente sobre as condições físicas do prédio, que influenciam diretamente o cotidiano escolar. Algumas crianças expressaram preferências por atividades realizadas fora da sala de aula, como Jaci, que gosta de brincar no balanço e destaca o espaço externo como mais “espaçoso” (DJ.6). Uirapuru reforça essa necessidade de espaço ao explicar que “não pode correr na sala de aula, pode se machucar” e que, por isso, atividades como o pega-pega são realizadas em áreas externas (DU.3). Essas falas evidenciam como a infraestrutura física é limitada e inadequada para atender às necessidades de movimento e brincadeira das crianças, algo essencial no contexto da Educação Infantil.
As condições inadequadas da infraestrutura escolar, como a presença de mofo, falta de limpeza e localização de salas em andares superiores com acesso por escadas (DPR.7; DPR.18), refletem a importância de ambientes organizados para promover o aprendizado seguro e o desenvolvimento infantil. De acordo com Sitta e Mello (2013), a qualidade dos espaços na Educação Infantil é fundamental para a mediação das aprendizagens. Quando bem planejados e adaptados, esses espaços podem estimular a curiosidade, a interação e o bem-estar das crianças. Assim, essa situação-limite expõe a necessidade de uma infraestrutura escolar que ofereça um ambiente seguro e saudável, permitindo às crianças explorar, brincar e aprender de forma adequada e contextualizada.
O uso excessivo de telas foi identificado através de falas das crianças, da professora e da observação dialógica. A professora da turma destaca que muitas crianças, como Uirapuru e Caipora, têm contato frequente com dispositivos eletrônicos, mencionando que Uirapuru “queria ficar jogando no celular, ele queria assistir televisão o tempo todinho” (DPR.1). A observação de que as crianças imitam conversas no celular durante as brincadeiras (DC.19) evidencia como o uso de dispositivos eletrônicos se integra ao repertório social e lúdico delas, refletindo um comportamento frequentemente observado entre adultos.
Esse cenário reflete a necessidade de uma intervenção pedagógica crítica, pois o uso excessivo de telas compromete a interação social e pode afetar negativamente o desenvolvimento cognitivo das crianças. De acordo com os estudos de Nobre et al. (2021), o tempo de tela na primeira infância reforça a importância de mediar e limitar o uso de dispositivos eletrônicos, a presença de um adulto que dialogue sobre o conteúdo e oriente o uso de dispositivos é fundamental para equilibrar o desenvolvimento da linguagem e habilidades motoras, promovendo um uso mais saudável e consciente das mídias digitais na infância.
Compreendemos que trazer esse tema para a sala de aula dentro da Educação CTS e com base nos pressupostos freireanos, é possível promover discussões sobre o uso consciente da tecnologia, abordando seus efeitos sociais, cognitivos e de saúde, além de incentivar as crianças a equilibrar o tempo de tela com atividades interativas e criativas.
Quanto a questão da sexualidade e gravidez precoce foi identificada através das brincadeiras e das interações das crianças, que frequentemente trazem esses temas para o ambiente escolar, refletindo o contexto social e familiar no qual estão inseridas. Em uma das brincadeiras de faz de conta, uma criança mencionou que “a Jaci está namorando”, e outra respondeu: “Então vou namorar” (DC.18; DC.20). Essas representações mostram que, para essas crianças, temas como namoro fazem parte de suas interações cotidianas, revelando uma exposição precoce a questões de sexualidade. Esse fenômeno é reforçado pelas observações da professora, que relatou que algumas meninas imitam a gravidez colocando o casaco por dentro da camisa, refletindo uma compreensão da gravidez que se origina de experiências observadas no círculo familiar e social (DPR.4).
Além disso, o relato da professora sobre o bairro da Pratinha, onde a gravidez na adolescência é comum, destaca a presença desse tema como uma realidade recorrente para as crianças (DPR.5). Essa situação-limite expõe a necessidade de uma prática pedagógica crítica e sensível, que promova o diálogo sobre sexualidade de maneira adequada e respeitosa para a faixa etária, ajudando as crianças a entenderem questões de autocuidado e respeito pelo próprio corpo.
As falas de professores e dos relatos sobre as condições de vida das crianças, apontam também para questões referentes ao saneamento precário. A professora observou que muitas crianças chegavam à escola com roupas sujas e os pais justificavam que “estava faltando água na Pratinha, que não tinha como ficar lavando roupa” (DPR.9).
Outro aspecto crítico identificado a partir da análise de mídias locais, foi o problema da estação de tratamento de esgoto, desativada há quase uma década, que resulta em esgoto a céu aberto, transbordamentos e acúmulo de água parada. Segundo um morador, “qualquer chuvinha o canal transborda e alaga tudo, tanto a rua quanto as casas”, levando à perda de móveis e eletrodomésticos para muitas famílias (NT12.02). A recorrente falta de água também gera protestos por parte da população, que sofre com enchentes e contaminação de ambientes residenciais. Ao trazer essa situação-limite para o contexto educacional, a Educação CTS e os princípios freireanos permitem que as crianças reflitam sobre as implicações do saneamento básico para a saúde e o meio ambiente.
A situação-limite de desigualdade social foi identificada através de observações e relatos das condições de vida das crianças e suas famílias, que refletem diretamente a carência de recursos básicos e as dificuldades socioeconômicas enfrentadas na comunidade. Em um dos relatos, é descrito que Tainá acompanhava a avó catadora de lixo, exposta “a sol e chuva, a lixo, a tudo” (DPR.10), destacando a precariedade na qual essa família vive. A avó, sendo responsável por coletar resíduos para garantir o sustento, expõe a neta a um ambiente insalubre e de alto risco, mostrando como a desigualdade impacta a vida dessas crianças desde muito cedo.
Essa situação é um reflexo das limitações financeiras e do contexto social, onde o acesso a recursos básicos é reduzido. A partir dessa compreensão, a Educação CTS e os princípios freireanos podem ajudar a trazer uma reflexão crítica sobre as causas e os efeitos da desigualdade social no cotidiano das crianças, promovendo uma prática pedagógica que não apenas reconhece esses desafios, mas que também busca conscientizar e transformar, envolvendo as crianças em discussões que valorizam o direito à dignidade e à igualdade desde a infância.
Destacamos assim o processo de transformação pelo qual as realidades vividas pelas crianças podem passar quando trazidas à luz pela Investigação Temática e, posteriormente, inseridas em uma prática pedagógica comprometida com a conscientização. Inspirado nos pressupostos de Paulo Freire, o conceito de “situações-limite” refere-se a barreiras que, muitas vezes, permanecem invisíveis no cotidiano educacional, mas que afetam diretamente a vida e o desenvolvimento dos alunos. Essas situações, embora presentes e impactantes, tendem a ser naturalizadas e, consequentemente, invisibilizadas nas práticas pedagógicas tradicionais.
Acreditamos que ao introduzir elementos da Investigação Temática, essas realidades ganham visibilidade, passando a compor o cenário educacional e provocando uma reflexão crítica que move o educador para além da reprodução de conteúdos. A intenção, portanto, é que o processo de reconhecimento dessas situações-limite, inicialmente ocultas, conduza à construção de uma prática pedagógica crítica que considera e problematiza essas condições, atuando como um agente de transformação. Dessa forma, a passagem da invisibilidade para uma abordagem educacional crítica, busca não apenas compreender, mas também questionar e intervir na realidade social das crianças, alinhando-se aos objetivos de uma Educação CTS e à proposta de uma educação libertadora.
5. Considerações finais
A prática diária de um professor de Educação Infantil é, sem dúvida, repleta de demandas que tornam desafiadora uma investigação mais aprofundada do contexto das crianças. No entanto, nossa pesquisa revela que incorporar elementos da Investigação Temática à prática pedagógica é um caminho viável e enriquecedor. Essa abordagem amplia a visão do educador sobre as crianças e o ambiente em que vivem, facilitando ajustes na rotina pedagógica sem sobrecarregar o professor.
Integrar os princípios da Educação CTS e da Investigação Temática de Paulo Freire mostra como a escola pode se tornar um espaço de reflexão e emancipação, com propósitos que vão além da transmissão de conhecimento. Diante das transformações sociais, políticas e culturais que impactam as novas gerações, somos convocados a renovar nossa prática e buscar respostas adequadas aos desafios atuais, sempre considerando o contexto de vida das crianças.
Nossa pesquisa destaca a importância de reconhecer as “situações-limite” vividas pelas crianças, como a vulnerabilidade socioeconômica, o saneamento precário e a exposição à violência. Esse reconhecimento nos orienta a desenvolver uma postura pedagógica sensível e transformadora, alinhada aos princípios freireanos de diálogo e emancipação, e capaz de conectar a prática educacional às realidades contemporâneas. Assim, a escola fortalece seu papel como mediadora de saberes e promotora de cidadania. Ao incorporar as vivências das crianças e valorizar suas vozes, promovemos uma educação que não apenas informa, mas transforma, contribuindo para a formação cidadã e para uma sociedade mais justa e consciente.
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1 Este estudo faz parte da pesquisa de doutorado da primeira autora, aprovada pelo Comitê de ética em pesquisa, conforme parecer consubstanciado de número 6.831.417
Cómo citar en APA:
Gonçalves Costa, E., Rodrigues-Moura, S., & Pimentel Carneiro de Almeida, A. C. (2025). Investigação Temática e Educação CTS na Educação Infantil:um olhar crítico para situações-limite na infância. Revista Iberoamericana de Educación, 97(1), 101-117. https://doi.org/10.35362/rie9716597