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 ISSN: 1681-5653

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  Experiencias e Innovaciones (E+I)

 Uma abordagem narrativa da experiência moral:
O relato de uma experiência, em contexto de formação inicial de professores
Fernando Canastra
Doutorando em Ciências da Educação, Especialidade Formação Pessoal, Social e Profissional; Assistente em Ciências da Educação, na Escola Superior de Educação de Leiria (Portugal)
7-9-02

Lugar de la Experiencia: Licenciatura de professores de 1º ciclo: Seminário II – Formação Pessoal e Social, Escola Superior de Educação de Leiria (Portugal)

Resumo

A abordagem narrativa da experiência moral procura erigir as bases de um novo enfoque no campo do desenvolvimento ético-moral. Num primeiro momento, enquadramos a problemática do desenvolvimento moral e educação moral no contexto do debate cognição moral versus experiência moral. Num segundo momento, relatamos uma experiência pedagógica, na qual damos «voz» à experiência pessoal de estudantes do ensino superior.

Uma abordagem narrativa da experiência moral

O desenvolvimento ético-moral, sobretudo, a partir da década de 70, tem sido objecto de múltiplos estudos (Pérez-Delgado e Mestre Escrivá, 1999). Uma das abordagens que mais visibilidade tem conseguido na comunidade de investigadores e educadores, tem sido a abordagem cognitivo-estruturalista (ou cognitivo-desenvolvimentista) protagonizada por Lawrence Kohlberg (1981). A sua popularidade deve-se, em parte, pelo facto de não só rejeitar o relativismo ético (clarificação de valores), como se ter insurgido contra a chamada «moral das virtudes» (educação para o carácter). O seu programa centra-se nas seguintes vertentes: (a) uma componente cognitiva da moralidade (raciocínio Moral); (b) níveis de moralidade (pré-convencional, convencional e pós-convencional), sendo os mais elevados mais diferenciados, mais integrados e mais universais (estádios de desenvolvimento moral); (c) princípios morais universais (ética procedimental), sendo a justiça, o critério por excelência de regulação moral. Quanto à educação moral, esta deve ser estimulada a partir da discussão de dilemas morais – hipotéticos ou reais – e da promoção de uma “atmosfera moral”, um “clima moral”, uma “comunidade justa” (Power, Higgins e Kohlberg, 1989).

A abordagem de Kohlberg e de seus seguidores (entre outros, Lourenço, 1992; Puig Rovira, 1996; Díaz-Aguado, 1994; Pérez-Delgado e Mestre Escrivá, 1999; Buxarrais, 2000) tem sido objecto de muitíssimas discussões, críticas e debates. Embora seja incontestável o mérito desta teoria cognitiva do desenvolvimento moral, a verdade é que muitos são os autores que contestam alguns dos seus pontos considerados mais débeis: (a) a universalidade dos estádios morais; (b) a não consideração da influência do meio-ambiente; (c) a importância do afecto, das características da personalidade e das habilidades sociais (Medrano Samaniego, 1999: 69-83).

As críticas apresentadas dão conta das limitações do modelo cognitivo-estruturalista (não põem em causa o modelo), limitações que o novo enfoque biográfico procura superar, sobretudo no «hiato» que se verifica nesse modelo: a falta de «ligação» entre o raciocínio moral e a própria experiência do sujeito, inscrito numa trama relacional e contextual.

Desta forma, a emergência do enfoque narrativo, na sua versão moderada, procura introduzir, não uma perspectiva alternativa (ao modelo cognitivo-estruturalista), mas uma ampliação do domínio moral. Isto é, o enfoque narrativo situa-se num espaço mais amplo que a psicologia moral, bem como o debate Gilligan-Kohlberg (Bolívar, 1999:86). As bases deste novo enfoque tendem a constituir-se a partir de uma concepção hermenêutica do desenvolvimento moral (Ricoeur, 1990; Férry, 1996; Bolívar, 1999), na esteira de uma filosofia moral comunitarista (MacIntyre, 1987; Taylor, 1996), na articulação de uma psicologia, na sua vertente «narrativa» e «culturalista» (Gilligan, 1982; Bruner, 1996) e por influência de novas abordagens na educação moral (Noddings, 1984; Tappan e Brown, 1989; Tappan, 1991; Bouchard, 2000).

O enfoque narrativo ensaia um novo modelo de desenvolvimento ético-moral alicerçado na experiência moral do sujeito. Este conceito (experiência moral) procura dar conta das várias dimensões do desenvolvimento moral: (a) a cognição, (b) a afectividade e (c) a volição. É na conjugação destas três dimensões, articuladas e mediadas simbolicamente (e numa determinada cultura), que se constitui o processo de construção da personalidade moral (Puig Rovira, 1996; Bruner, 2000). O sujeito é entendido como um ser-em-relação, que narra as suas experiências morais para lhe conferir «autoria» (Tappan e Brown, 1989). Em vez da dominância de um «eu epistémico» (abordagem cognitivo-formalista), o novo enfoque evidencia a natureza relacional e comunitária do eu («eu dialógico») (Day e Tappan, 1996). Desta forma, sublinham-se as variáveis contextuais (diferenças de género, afectividade, motivações e «formas» culturais), nas quais se inscreve o processo de construção da personalidade moral.

O desenvolvimento moral percepcionado, a partir do enfoque narrativo, destaca as seguintes dimensões (Bolívar, 1999:97): (a) uma competência narrativa, (b) a assunção de um discurso de autoria das suas acções e (c) a progressão na sensibilidade e preocupação pelo outro.

Um programa de educação moral, na perspectiva narrativa, assenta, basicamente, numa relação dialógica entre professores e alunos, instituindo-se, deste modo, um espaço de interlocução de experiências e de vivências, favorável à assunção de perspectivas morais próprias narradas e «autorizadas» (autoridade de autor) pelos sujeitos, inscritos numa instância simbólico-narrativa (Tappan e Brown, 1989).

Este novo enfoque, não está isento de críticas. Até porque, ainda, não se constituiu uma teoria coerente do desenvolvimento moral. O que temos, são várias aproximações que procuram dar «voz» a um conjunto de «rasgos» no campo do desenvolvimento moral (hermenêutica, filosofia comunitarista e pós-modernistas) (Bolívar, 1999).

Bolívar (1999: 99-100) resume, assim, as principais críticas: (a) certos posicionamentos extremos têm tendência a cair em determinismos linguísticos (Tappan, 1991, 1998); (b) uma assunção de formas relativistas (a preocupação ética pelo outro e a relação dialógica como fundamentos ontológicos) que põem em causa certos princípios universais (princípio da justiça); (c) uma certa tendência para minimizar a dimensão cognitiva do desenvolvimento moral, ressaltando o lado emotivo e afectivo da experiência moral (Gilligan, 1982).

Não obstante estas «debilidades», julgamos pertinente procurar articular os dois modelos num esforço de integração das várias dimensões no processo de construção da personalidade moral (Puig Rovira, 1996).

Em que consiste a «narração da experiência moral»?

Para afirmar a sua perspectiva moral, por forma a estabelecer a sua «autoria autorizada» (authoring) e assumir a responsabilidade da sua própria vida moral, a pessoa deve fazer a narração da sua experiência moral. Mas em que consiste esta expressão narrativa da experiência moral?

Fazer a narração da sua experiência moral consiste em contar, através do diálogo (oral ou escrito), uma experiência moral, expressando o sentido atribuído a essa experiência, e afirmar a sua autoridade de autor (Tappan e Brown, 1989: 192-193): “Quando um indivíduo é convidado e encorajado a contar uma história a propósito de uma experiência moral da sua própria vida, depara-se perante dois acontecimentos . Em primeiro lugar, porque a concepção de um relato implica necessariamente uma moralização, baseada sobre uma perspectiva moral particular; contar uma história moral necessita que o seu autor autorize essa perspectiva – deste facto, a descrição de uma história moral fornece a ocasião de exprimir a sua autoridade de autor. Em segundo lugar, contar uma história moral implica, também, necessariamente uma reflexão sobre a experiência contada, encorajando o seu autor a aprender, ainda mais, sobre a sua experiência – afirmando mais autoridade e assumindo mais responsabilidades perante os seus pensamentos, os seus sentimentos e as suas acções. Por conseguinte, a autoridade de autor é, ao mesmo tempo, expressa e desenvolvida a partir do relato de histórias morais”.

Desta forma, a expressão narrativa da «autoridade moral» processa-se da seguinte forma (Bouchard, 2000: 12-13): (a) o sujeito deve, antes de mais, fazer referência a uma experiência que viveu (ou que está a representar); (d) de seguida, esta experiência deve ser contada (sob a forma de relato), no sentido de afirmar a sua perspectiva moral de autor; (c) finalmente, através da reflexão sobre a experiência narrada, o sujeito deve justificar (argumentar) a sua eventual tomada de decisão (da acção) ou reconstrução da perspectiva inicial (eventualmente uma nova aprendizagem).

O relato de uma experiência pedagógica

É no contexto da expressão narrativa de autoridade moral do sujeito sobre a sua experiência, que implementámos uma estratégia no âmbito de um Seminário que dinamizamos aos estudantes do curso de licenciatura de professores de 1º ciclo. Este seminário (Seminário II – Formação Pessoal e Social) procura disponibilizar um conjunto de estratégias no âmbito do desenvolvimento sociomoral. A dinâmica impressa na mobilização de estratégias assume os seguintes contornos: cada grupo de estudantes é chamado a construir uma estratégia, tendo como palco as situações de aprendizagem, em contexto de prática pedagógica; de seguida, a situação é representada nas sessões do seminário (o modelo adoptado, é o modelo proposto por Bouchard, 2000, vide: anexo); posteriormente, estabelece-se o feedback retroactivo oral e escrito (grupo e diário, respectivamente)

Avaliação da experiência pedagógica implementada

Com base nos testemunhos orais, aquando a apresentação das várias estratégias dinamizadas ao longo do Seminário, e com base nos registos (em Diário) que os estudantes produziram, podemos concluir, com alguma satisfação profissional, que este tipo de estratégias tiveram repercussões muitíssimo positivas. A título de ilustração, aqui registamos alguns fragmentos retirados dos diários dos estudantes.

“De tudo o que foi experienciado, ao longo das sessões, extraio a convicção de que a expressão narrativa através do jogo dramático é uma excelente estratégia educativa para a promoção do desenvolvimento interpessoal e moral, assente na dimensão sensível do Ser Humano “ (Aluna de 3º Ano o Curso de Licenciatura de 1º Ciclo do Ensino Básico).

“Falando agora das estratégias... eu penso (ou melhor) «eu sinto» que resultaram! Se na maior parte das disciplinas o que conta... é argumentarmos com base em teorias, aqui foi o contrário. Tivemos oportunidade de «reflectir» sobre nós mesmas, sobre o que sentimos e vivemos em relação às pessoas e às coisas que nos acontecem (...). O que eu acho mais positivo nestas estratégias é como que incarnar um personagem que nos diga quem somos...” (Aluna de 3º Ano o Curso de Licenciatura de 1º Ciclo do Ensino Básico).

“Feito o balanço, a dinâmica impressa nas sessões com este tipo de estratégias, de expressão narrativa, julgo que foi uma ideia feliz... Mais do que pensar, obrigou-me a distanciar-me de mim própria... pois eu ao dramatizar, tive a oportunidade de construir vários personagens, com os quais tive que me identificar( ...), com isso dei-me conta de reacções que não pensava ter naqueles momentos... Julgo que este tipo de estratégias são muito importantes para reflectir sobre as nossas experiências pessoais e também como futura professora” (Aluna de 3º Ano o Curso de Licenciatura de 1º Ciclo do Ensino Básico).

ANEXO

EXPRESSÃO NARRATIVA ATRAVÉS DO JOGO DRAMÁTICO

Etapas

Processos mobilizados na expressão narrativa

Valoração da expressão narrativa

Percepção

Sensação, emoções experienciadas em contacto com a situação representada

Valorar as sensações e emoções geradas no próprio acto de representar

Exploração

Exploração da linguagem dramática (corpo, voz, espaço, objectos). Passagem da pessoa ao personagem

Valorar a afirmação da «polifonia» de vozes, abrindo-se à experienciação de outros «eus»

Actualização

Sequências dramáticas, reconhecendo a comple-xidade que está em jogo na situação representada

Valorar e integrar as várias sensibilidades experienciadas durante a situação representada

Retroacção

Revisitação e reflexão da experiência vivida na situação representada

Retroacção verbal sobre a situação representada. Retroacção escrita mediante o registo num Diário.

Adaptado de Bouchard (2000: 23)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bolívar, A. (1999). «Enfoque narrativo versus explicativo del desarrollo moral. Un aspecto de la vertiente filosófica del problema», Esteban Pérez-Delgado & Mª. Mestre Escrivá [coord..]. Psicología moral y crecimiento personal. Barcelona: Ariel.

Bouchard, N. (2000). L’éducation morale à l’école. Une approche par le jeu dramatique et l’écriture. Québec : Presses de l’Université du Québec.

Bruner, J. (2000). Cultura da educação. Lisboa: Ed. 70

Buxarrais, M. R. (2000). La formación del profesorado en educación en valores. Bilbao: Desclée.

Day, J. & Tappan, M. (1996). «The narrative approach to moral development: from the epistemic subject to dialogical selves», Human Development, 39, 67-82.

Díaz-Aguado, M.J. (1994). Educación y razonamiento moral. Bilbao: Mensajero.

Férri, J.M. (1996). Une éthique de la reconstruction. Paris: Seuil.

Gilligan, C. (1982). In a different voice. Cambridge: Harvard University Press.

Kohlberg,L. (1981). Essays on moral development. Vol2: The philosophy of moral development. New York: Harper and Row.

Lourenço, O. (1992). Psicologia do desenvolvimento moral. Coimbra: Livraria Medina.

MacIntyre, A. (1987). Tras la virtud. Barcelona: Crítica.

Medrano Samaniego, C. (1999). «Panorámica general de la crítica al modelo estructural de Kohlberg», Esteban Pérez-Delgado & Mª. Mestre Escrivá [coord..]. Psicología moral y crecimiento personal. Barcelona: Ariel.

Noddings, N. (1992). The challenge to care in schools: an alternative approach to education. New York: Teachers College Press.

Pérez-Delgado, E. & Mestre Escrivá, M. [coord..] (1999). Psicología moral y crecimiento personal. Barcelona: Ariel.

Power, F., Higgins, A. & Kohlberg, L. (1989). Lawrence Kohlberg’s approach to moral education. New York: Columbia University Press.

Puig Rovira, J.M. (1996). La construcción de la personalidad moral. Barcelona: Paidós.

Ricoeur, P. (1990). Soi-même comme un autre. Paris : Seuil.

Tappan, M.B. & Brown, L.M. (1989). «Stories told and lessons learned: toward a narrative approach to moral education», Harvard Educational Review, 59, 182-205.

Tappan, M.B. (1991). «Narrative, language and moral experience», Journal of Moral Education, 20 (3), 243-256.

Taylor, C. (1996). Fuentes del yo. La construcción de la identidad moderna. Barcelona: Paidós.

Correo electrónico: canastra@esel.iplei.pt / fcanastra@netvisao.pt

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