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 ISSN: 1681-5653

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  Experiencias e Innovaciones (E+I)

A perspectiva antropológica na formação de alfabetizadores de jovens e adultos
Paula Rouseane da Silva
Universidade Federal do Tocantins. Brasil
10-02-04

 

Neste artigo apresentamos parte da tese de mestrado desenvolvida no contexto do Programa Alfabetização Solidária, no estado do Rio Grande do Norte. Focalizamos a prática alfabetizadora dos professores de jovens e adultos, numa perspectiva antropológica, a partir das suas trajetórias sociais nas respectivas comunidades. Para tanto, investigamos in loco os elementos constituintes do sujeito- alfabetizador a partir da seguinte questão: Quem são os alfabetizadores de jovens e adultos?

O Programa Alfabetização Solidária (PAS) surge no final dos anos 90 como uma iniciativa neoliberal do governo federal vigente, programa compensatório, dentro de uma política pública excludente. Essa não garante a efetiva democratização do ensino para jovens e adultos brasileiros, por não proporcionar condições de acesso, a qualidade e a permanência. O PAS atua especialmente nas regiões norte e nordeste do país, bem como nos grandes centros urbanos, focos de maior índice de analfabetismo. Trabalha em parceria com as IES (instituições de ensino superior). A pesquisa desenvolveu-se no estado do Rio Grande do Norte, no município de Passa e Fica, localizado a 120 km da capital, com um grupo de quinze professores.

O PAS desponta no cenário nacional como iniciativa emergencial para a problemática da educação de jovens e adultos, apesar disso, nesta pesquisa dedicamo-nos a procurar e considerar criticamente os limites e as possibilidades que esse programa proporcionou às comunidades participantes, enquanto atividade de extensão.

Assim pautados teoricamente na Pedagogia Crítica representada e sistematizada pelo educador Paulo Freire nos detivemos a estudar, mais detidamente, a formação do professor alfabetizador. Essa oferecida pelas universidades e institutos de ensino superior contempla dois momentos: a capacitação e o acompanhamento sistemático do coordenador setorial ao grupo iniciado.

Nossa ação metodológica ancora-se na Antropologia Social por trabalharmos com princípios e técnicas que subjazem na prática etnográfica. A opção por uma abordagem qualitativa justifica-se no meu envolvimento com o grupo observado, esse decorrente do meu papel de coordenadora setorial do município de Passa e Fica (RN). A perspectiva antropológica aponta à educação elementos necessários a uma revolução epistemológica pautada na alteridade. Dessa maneira, ecoa na concepção de educação propagada por Paulo Freire, esse propõe uma educação com o outro e não para o outro. Subestimar a sabedoria que resulta necessariamente da experiência sócio-cultural é, ao mesmo tempo, um erro científico e a expressão inequívoca da presença de uma ideologia elitista...não é possível aos educadores desconhecer, subestimar ou negar os saberes da experiência feitos com que os educandos chegam à escola (FREIRE apud MELO).

O exercício da alteridade contribui para a formulação de uma ação educativa coerente com as trocas simbólicas estabelecidas entre os educandos. Este respeito a forma de agir e pensar do outro nos orientou durante a investigação, a princípio destacamos as pré-concepções existentes a respeito das três dimensões do nosso tema de pesquisa: o adulto, o alfabetizador e a extensão universitária. Essas três dimensões são estigmatizadas por serem perpassadas pelo caráter prático.

O adulto que freqüenta a sala de aula do PAS é um sujeito distinto, não é o adulto universitário, aquele que busca a continuidade da sua formação. O adulto, estudante do PAS, é o trabalhador rural, no contexto do Nordeste brasileiro, agricultor, pai ou mãe de família, homens e mulheres repletos de conhecimentos, no entanto, esses gestados no lume do cotidiano. Saberes tácitos que por isso não podem, geralmente, ser transpostos e portanto, tornam-se restritos, singulares.

O professor alfabetizador do PAS é proveniente das próprias comunidades onde funcionam as salas de aula, assim invariavelmente, seus alunos também são seus parentes. Quanto à formação, esses possuem o ensino médio. Alguns, apenas dois do grupo observado por nós, cursaram o ensino médio magistério.

A extensão universitária...

Esta no Ensino Superior é relegada a terceiro plano dentro da formação dos educadores, apesar de ser nas atividades de extensão que os conhecimentos científicos se renovam, porque as teorias estudadas não conseguem enquadrar a dinâmica da prática e é também nessas atividades que o profissional consolida conhecimentos adquiridos na formação inicial. Apesar disso há um preconceito com os universitários e professores que participam dos projetos de extensão, porque são considerados como aqueles que não trabalham com pesquisa. No entanto,o trabalho aqui apresentado é parte da dissertação de Mestrado intitulada Passa, fica e pousa o olhar à reflexão. A prática alfabetizadora no contexto do Programa Alfabetização Solidária.

A abordagem metodológica ancorada em pressupostos antropológicos, como a observação-participante e a etnografia, nos permitiu o uso das impressões registradas pela pesquisadora, ou seja, pela coordenadora setorial anteriormente ao período de pesquisa, além da colaboração dos próprios sujeitos investigados, os alfabetizadores. Assim possibilitando um exercício de auto-objetivação e alteridade durante a investigação. Além do que tal abordagem possui sintonia com o papel intervencionista da ação educativa, portanto, durante a pesquisa, fomos aperfeiçoando a formação do alfabetizador.

Dentre os instrumentos de investigação utilizados trabalhamos com os diários etnográficos, tanto da pesquisadora quanto dos alfabetizadores contemplando o período de capacitação e a docência em sala de aula. Utilizamos ainda as entrevistas semi-estruturadas com ex-alfabetizadores e com o grupo observado.

A análise dos dados fundamentou-se na perspectiva interpretativa sistematizada pelo antropólogo Clifford Geertz em sua obra A interpretação das culturas, como também, nas proposições da pesquisadora Marli André.

Em nossas ações investigativas consideramos a identidade cultural dos alfabetizadores como algo a ser respeitado e conhecido, ou seja, numa atitude relativista, procuramos conhecer e aprender com estes sujeitos históricos e não enquadrá-los em parâmetros prévios ou conceitos estéreis.

Uma análise cultural e contextual como uma pesquisa do tipo etnográfico é intrinsecamente incompleta, afinal é a minha visão sobre um contexto. O objeto de estudo foi delineado pelo olhar de alguém que pouco a pouco foi conhecendo alguns caminhos de Passa e Fica: algumas histórias, alguns rostos, alguns alfabetizadores.

Com a finalidade de alcançarmos uma compreensão coerente escolhemos dos quinze sujeitos que compunham, a princípio, o grupo estudado apenas 7 (sete), por esses terem participado do PAS, durante os dois anos de duração da pesquisa. É importante lembrar que entrevistamos também ex-alfabetizadores e alfabetizadores de outros municípios atendidos pelo PAS durante as capacitações, porque tínhamos claro que buscávamos conhecer a identidade do alfabetizador do PAS e dessa forma, pudemos enriquecer nossa investigação. Sistematizamos de início as impressões coletadas ao longo da minha atuação como coordenadora setorial, das oficinas realizadas, das reuniões, das visitas às salas de aula.

Apesar de termos coletado dados tanto do módulo X quanto do XI, na organização desses para análise privilegiamos os dados do módulo XI, por neste os alfabetizadores já estarem orientados para a pesquisa.

RESULTADOS E CONCLUSÕES.

Por fim, restaram às nossas considerações a concepção do ato de alfabetizar e as aprendizagens dos alfabetizadores advindas desta experiência. Os alfabetizadores bem como os alfabetizandos possuem uma concepção prévia de escola e do processo de alfabetização, muitos ao ingressarem no PAS pensam que alfabetizar significa ensinar a ler, escrever e contar.

Todavia, já na capacitação os alfabetizadores são instigados a pensar sobre a problemática social do analfabetismo: suas causas, conseqüências e formas de superação. Este processo de formação iniciado na capacitação se estende aos municípios por meio das visitas de acompanhamento, formação continuada. Enquanto o saber sistematizado pode ser adquirido em cursos, treinamentos e capacitações, o ser educador vai se constituindo com o saber adquirido na teia das relações historicamente determinadas, que vão construindo as dúvidas, perplexidades, convicções e compromissos. Por isso não há como fugir de uma análise da inserção do professor na sociedade concreta, abordando todas as dimensões do seu papel - atribuído ou conquistado.

Divisamos, com base nos dados da pesquisa, um padrão entre os alfabetizadores, estes se consideram responsáveis pela mediação entre os conhecimentos dos alfabetizandos e os da escola. Todavia, essa noção interacionaista convive com a representação tradicional, pois nos deparamos com momentos nos diários etnográficos e nos relatos das reuniões pedagógicas que predominam as práticas pautadas na transmissão de saberes.

Como alfabetizadora fui capacitada e instruída a trabalhar educando o aluno, mas o aluno traz uma educação de casa que nem sempre é das melhores não são todos os alunos lógico que traz essa má educação mais aqueles que trazem péssimas influências acabam prejudicando os outros alunos. As atividades são difíceis de ser aplicadas, o alfabetizando não se interessam principalmente os jovens, mesmo trabalhando a realidade. Alfabetizar é ensinar a ler, e ler não é só palavras podemos ler tudo que está a nossa volta, ler também é prestar atenção em tudo, os nossos alunos são desplicentes. (Vera)

No entanto, a concepção marcante entre os alfabetizadores é a de que o alfabetizando possui seus conhecimentos e estes merecem ser resignificados, no espaço da sala de aula, à luz dos conhecimentos formais.

Esta semana continuamos falando sobre meios de comunicação, alguns alunos não gostaram por ter começado a semana com a responsabilidade de escrever cartas poucos se preocuparam em fazer e terminar a carta p/ rádio mas os que já me entregaram fizeram uma boa carta o que deu para perceber é que o entregar a carta para o prefeito motivou a maioria, falar sobre o computador foi mais difícil pois nem todos conhecem mas a maioria já precisaram usar principalmente os que tiram dinheiro da aposentadoria. As receitas foi muito boa e o legal e que todos ficaram felizes ao vir seus trabalhos pregados na parede. Maria José Luciano até ficou admirada com o que fizemos e disse: Tanta coisa nova, perdir bastante, vou ver se não perco mas.

Percebemos que o alfabetizador gradativamente constrói sua epistemologia didática, ainda que intuitivamente este sabe o momento de estimular a turma, elaborar novas estratégias de ensino, promover a autonomia e a interação cooperativa em sala de aula, além de estabelecer conexões entre a comunidade e o espaço da sala de aula.

Entretanto, é indispensável ponderar que estes saberes experienciais ainda que fundamentais não são os únicos necessários à complexa ação alfabetizadora. Os professores alfabetizadores precisam ter consciência das suas práticas, não basta saber-fazer, para tanto é preciso que estes possam relacionar o local com o global, sua prática alfabetizadora em Passa e Fica com o contexto sócio-econômico no qual esta está inserida. A prática docente crítica envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer.

Em suas práticas, em seus relatos divisamos a importância que estes dedicam a autonomia e a cooperação em sala de aula, denotam que o respeito é elemento fundamental para a sala de aula por ressoar nas relações interpessoais mantidas. O ambiente de sala de aula então torna-se um espaço para a sistematização, transformação e comunhão de idéias.

Na elaboração, por meio da prática de sala de aula, da sua epistemologia didática o alfabetizador tem chance de se apropriar de um aspecto determinante da ação docente: a importância do referencial sócio-cultural.

Enfatizamos, ao longo de toda a pesquisa, o valor da dimensão cultural no processo de alfabetização, de modo que as aprendizagens identificadas em nossa análise estão vinculadas a confluência existente entre a ação educativa e o referencial cultural.

Na análise sobre a prática alfabetizadora dos sete alfabetizadores contemplados, confirmamos que a simbiose entre a ação alfabetizadora e o referencial cultural decorre numa compreensão social da ação alfabetizadora. E é nesta aprendizagem que reside a grandeza da prática alfabetizadora no contexto do Programa Alfabetização Solidária.

Considerações finais

"A compreensão humana nos chega quando sentimos e concebemos os humanos como sujeitos; ela nos torna abertos a seus sofrimentos e alegrias".(Morin, 2001).

Após percorrermos os caminhos indicados pela própria pesquisa, alcançamos clareiras de compreensão em meio a densidade da experiência objetivada. Caminho, no sentido etimológico da palavra, significa meio, direção, rumo, norma de proceder, tendência, método. Assim, ao longo da pesquisa mantivemos como norte a intenção de compreender, muito mais do que explicar, a prática alfabetizadora e os saberes advindos desta.

Partindo das experiências e aprendizagens dos alfabetizadores nascidas em meio as conjunturas incoerentes do PAS, seja no plano político, seja no plano pedagógico. Tentei exercitar minha curiosidade epistemológica.

Este tipo de pesquisa proporciona aprendizagens únicas ao pesquisador, todavia muitas críticas são tecidas a esta abordagem metodológica afirmando que essa se assemelha ao jornalismo e a descrição, assim sendo destituída de cunho cientifico. Tais críticas corroboram com a postura academicista em permanecer encastelada em suas teorias absolutas e dissociada dos problemas sociais, que exigem posicionamentos políticos e ações sociais efetivas da instituição universitária. Enquanto profissional, me senti enriquecida pelas vidas, situações, significados e saberes encontrados ao longo dos caminhos percorridos.

Faz-se necessário destacar alguns resultados da pesquisa: a ressignificação da alfabetização de jovens e adultos pelos alfabetizadores e a conseqüente ruptura a sociopedagógica do sentido do analfabetismo.

A ressignificação da alfabetização foi percebida entre os alfabetizadores a partir da atitude destes em considerar em sala de aula os conhecimentos e, portanto, histórias de vida dos alfabetizandos. Essa ressignificação da alfabetização acontece na prática quando os alfabetizadores percebem que estão querendo ensinar português a um fluente na língua, ensinar matemática a quem já opera mentalmente com desenvoltura, resolvem então abandonar as comparações com a alfabetização de crianças e concepções de aluno ideal e formular ações voltadas para o seu aluno real. Percebemos ainda que as situações pedagógicas propostas em capacitação colocam em movimento as construções epistemológicas e conflitos cognitivos dos participantes. O pensamento auto-reflexivo e a personalidade social (no sentido piagetiano) parecem ser provocadas pelas problematizações educativas vivenciadas pelos alfabetizadores iniciantes.

Assim, a objetivação do referencial cultural pelos alfabetizadores faz com que estes concebam o alfabetizando e, por conseguinte, o processo de alfabetização de outra forma. O PAS possui uma perspectiva finalista - alfabetizar adultos e capacitar professores - que escamoteia as aprendizagens dos alfabetizadores resultantes das suas práticas. No entanto, ainda que o alfabetizador não tenha alcançado um satisfatório resultado pedagógico após o tempo exíguo de um módulo, há como efeito da participação no PAS a ressocialização cultural de alfabetizandos e alfabetizadores.

Os primeiros passam a ser vistos pela comunidade como estudantes o que origina, muitas vezes, críticas ou admiração, no caso dos alfabetizadores, estes tornam-se referência no município quando o assunto é educação de jovens e adultos, muitos até são contratados pela educação municipal para participar do Programa Recomeço, continuidade do PAS.

No que se refere ao Programa, nosso estudo demonstrou por meio do histórico e da contextualização atual que mesmo em meio as suas limitações este abriga e desencadeia mudanças relevantes no município de Passa e Fica (RN) e mesmo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

O PAS desencadeou mudanças internas na instituição como a reativação dos estudos e pesquisas sobre esta temática, no Departamento de Educação, mais propriamente no curso de licenciatura de Pedagogia com a oferta de disciplinas sobre o assunto e por intermédio da criação do NUPEJA. Suscitando ainda o interesse por pesquisas sobre a temática voltadas para o desenvolvimento de metodologias coerentes de alfabetização e até de pós-alfabetização. Estas são voltadas da mesma forma para a reflexão sobre as dimensões - biológica, antropológica, social, espiritual - que balizam a formação do professor alfabetizador de jovens e adultos.

Houve, ainda, o resgate da extensão universitária como espaço de ensinamentos aos universitários em formação, dentro do contexto das licenciaturas. O envolvimento de professores e estudantes no PAS consolidou um grupo o NUPEJA (os herdeiros de Hefestos) dedicado a superação do analfabetismo adulto no âmbito municipal, na cidade do Natal e no âmbito estadual, do agreste ao sertão do RN.

Um estudo sobre a prática alfabetizadora de jovens e adultos deixa muitas lacunas e coloca novas questões de pesquisa, há certamente caminhos que foram apenas vislumbrados como o conceito de alfabetização que fundamenta o PAS e as práticas de alfabetização contemporâneas; os saberes adquiridos pelos sujeitos alfabetizandos ao participarem do PAS; a cultura política das cidades do interior; a importância da extensão universitária para a reforma dos conhecimentos acadêmicos; a importância da investigação antropológica para a formação do alfabetizador e no próprio processo de alfabetização. O nosso mapa dos caminhos percorridos indica novas sendas a conhecer.

Correo electrónico: cwerner@upf.br, alvaro@upf.br

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