Neste artigo apresentamos parte da tese de mestrado desenvolvida
no contexto do Programa Alfabetização Solidária,
no estado do Rio Grande do Norte. Focalizamos a prática alfabetizadora
dos professores de jovens e adultos, numa perspectiva antropológica,
a partir das suas trajetórias sociais nas respectivas comunidades.
Para tanto, investigamos in loco os elementos constituintes do sujeito-
alfabetizador a partir da seguinte questão: Quem são
os alfabetizadores de jovens e adultos?
O Programa Alfabetização Solidária (PAS) surge
no final dos anos 90 como uma iniciativa neoliberal do governo federal
vigente, programa compensatório, dentro de uma política
pública excludente. Essa não garante a efetiva democratização
do ensino para jovens e adultos brasileiros, por não proporcionar
condições de acesso, a qualidade e a permanência.
O PAS atua especialmente nas regiões norte e nordeste do
país, bem como nos grandes centros urbanos, focos de maior
índice de analfabetismo. Trabalha em parceria com as IES
(instituições de ensino superior). A pesquisa desenvolveu-se
no estado do Rio Grande do Norte, no município de Passa e
Fica, localizado a 120 km da capital, com um grupo de quinze professores.
O PAS desponta no cenário nacional como iniciativa emergencial
para a problemática da educação de jovens e
adultos, apesar disso, nesta pesquisa dedicamo-nos a procurar e
considerar criticamente os limites e as possibilidades que esse
programa proporcionou às comunidades participantes, enquanto
atividade de extensão.
Assim pautados teoricamente na Pedagogia Crítica representada
e sistematizada pelo educador Paulo Freire nos detivemos a estudar,
mais detidamente, a formação do professor alfabetizador.
Essa oferecida pelas universidades e institutos de ensino superior
contempla dois momentos: a capacitação e o acompanhamento
sistemático do coordenador setorial ao grupo iniciado.
Nossa ação metodológica ancora-se na Antropologia
Social por trabalharmos com princípios e técnicas
que subjazem na prática etnográfica. A opção
por uma abordagem qualitativa justifica-se no meu envolvimento com
o grupo observado, esse decorrente do meu papel de coordenadora
setorial do município de Passa e Fica (RN). A perspectiva
antropológica aponta à educação elementos
necessários a uma revolução epistemológica
pautada na alteridade. Dessa maneira, ecoa na concepção
de educação propagada por Paulo Freire, esse propõe
uma educação com o outro e não para o outro.
Subestimar a sabedoria que resulta necessariamente da experiência
sócio-cultural é, ao mesmo tempo, um erro científico
e a expressão inequívoca da presença de uma
ideologia elitista...não é possível aos educadores
desconhecer, subestimar ou negar os saberes da experiência
feitos com que os educandos chegam à escola (FREIRE apud
MELO).
O exercício da alteridade contribui para a formulação
de uma ação educativa coerente com as trocas simbólicas
estabelecidas entre os educandos. Este respeito a forma de agir
e pensar do outro nos orientou durante a investigação,
a princípio destacamos as pré-concepções
existentes a respeito das três dimensões do nosso tema
de pesquisa: o adulto, o alfabetizador e a extensão universitária.
Essas três dimensões são estigmatizadas por
serem perpassadas pelo caráter prático.
O adulto que freqüenta a sala de aula do PAS é um sujeito
distinto, não é o adulto universitário, aquele
que busca a continuidade da sua formação. O adulto,
estudante do PAS, é o trabalhador rural, no contexto do Nordeste
brasileiro, agricultor, pai ou mãe de família, homens
e mulheres repletos de conhecimentos, no entanto, esses gestados
no lume do cotidiano. Saberes tácitos que por isso não
podem, geralmente, ser transpostos e portanto, tornam-se restritos,
singulares.
O professor alfabetizador do PAS é proveniente das próprias
comunidades onde funcionam as salas de aula, assim invariavelmente,
seus alunos também são seus parentes. Quanto à
formação, esses possuem o ensino médio. Alguns,
apenas dois do grupo observado por nós, cursaram o ensino
médio magistério.
A extensão universitária...
Esta no Ensino Superior é relegada a terceiro plano dentro
da formação dos educadores, apesar de ser nas atividades
de extensão que os conhecimentos científicos se renovam,
porque as teorias estudadas não conseguem enquadrar a dinâmica
da prática e é também nessas atividades que
o profissional consolida conhecimentos adquiridos na formação
inicial. Apesar disso há um preconceito com os universitários
e professores que participam dos projetos de extensão, porque
são considerados como aqueles que não trabalham com
pesquisa. No entanto,o trabalho aqui apresentado é parte
da dissertação de Mestrado intitulada Passa, fica
e pousa o olhar à reflexão. A prática alfabetizadora
no contexto do Programa Alfabetização Solidária.
A abordagem metodológica ancorada em pressupostos antropológicos,
como a observação-participante e a etnografia, nos
permitiu o uso das impressões registradas pela pesquisadora,
ou seja, pela coordenadora setorial anteriormente ao período
de pesquisa, além da colaboração dos próprios
sujeitos investigados, os alfabetizadores. Assim possibilitando
um exercício de auto-objetivação e alteridade
durante a investigação. Além do que tal abordagem
possui sintonia com o papel intervencionista da ação
educativa, portanto, durante a pesquisa, fomos aperfeiçoando
a formação do alfabetizador.
Dentre os instrumentos de investigação utilizados
trabalhamos com os diários etnográficos, tanto da
pesquisadora quanto dos alfabetizadores contemplando o período
de capacitação e a docência em sala de aula.
Utilizamos ainda as entrevistas semi-estruturadas com ex-alfabetizadores
e com o grupo observado.
A análise dos dados fundamentou-se na perspectiva interpretativa
sistematizada pelo antropólogo Clifford Geertz em sua obra
A interpretação das culturas, como também,
nas proposições da pesquisadora Marli André.
Em nossas ações investigativas consideramos a identidade
cultural dos alfabetizadores como algo a ser respeitado e conhecido,
ou seja, numa atitude relativista, procuramos conhecer e aprender
com estes sujeitos históricos e não enquadrá-los
em parâmetros prévios ou conceitos estéreis.
Uma análise cultural e contextual como uma pesquisa do tipo
etnográfico é intrinsecamente incompleta, afinal é
a minha visão sobre um contexto. O objeto de estudo foi delineado
pelo olhar de alguém que pouco a pouco foi conhecendo alguns
caminhos de Passa e Fica: algumas histórias, alguns rostos,
alguns alfabetizadores.
Com a finalidade de alcançarmos uma compreensão coerente
escolhemos dos quinze sujeitos que compunham, a princípio,
o grupo estudado apenas 7 (sete), por esses terem participado do
PAS, durante os dois anos de duração da pesquisa.
É importante lembrar que entrevistamos também ex-alfabetizadores
e alfabetizadores de outros municípios atendidos pelo PAS
durante as capacitações, porque tínhamos claro
que buscávamos conhecer a identidade do alfabetizador do
PAS e dessa forma, pudemos enriquecer nossa investigação.
Sistematizamos de início as impressões coletadas ao
longo da minha atuação como coordenadora setorial,
das oficinas realizadas, das reuniões, das visitas às
salas de aula.
Apesar de termos coletado dados tanto do módulo X quanto
do XI, na organização desses para análise privilegiamos
os dados do módulo XI, por neste os alfabetizadores já
estarem orientados para a pesquisa.
RESULTADOS E CONCLUSÕES.
Por fim, restaram às nossas considerações
a concepção do ato de alfabetizar e as aprendizagens
dos alfabetizadores advindas desta experiência. Os alfabetizadores
bem como os alfabetizandos possuem uma concepção prévia
de escola e do processo de alfabetização, muitos ao
ingressarem no PAS pensam que alfabetizar significa ensinar a ler,
escrever e contar.
Todavia, já na capacitação os alfabetizadores
são instigados a pensar sobre a problemática social
do analfabetismo: suas causas, conseqüências e formas
de superação. Este processo de formação
iniciado na capacitação se estende aos municípios
por meio das visitas de acompanhamento, formação continuada.
Enquanto o saber sistematizado pode ser adquirido em cursos, treinamentos
e capacitações, o ser educador vai se constituindo
com o saber adquirido na teia das relações historicamente
determinadas, que vão construindo as dúvidas, perplexidades,
convicções e compromissos. Por isso não há
como fugir de uma análise da inserção do professor
na sociedade concreta, abordando todas as dimensões do seu
papel - atribuído ou conquistado.
Divisamos, com base nos dados da pesquisa, um padrão entre
os alfabetizadores, estes se consideram responsáveis pela
mediação entre os conhecimentos dos alfabetizandos
e os da escola. Todavia, essa noção interacionaista
convive com a representação tradicional, pois nos
deparamos com momentos nos diários etnográficos e
nos relatos das reuniões pedagógicas que predominam
as práticas pautadas na transmissão de saberes.
Como alfabetizadora fui capacitada e instruída a trabalhar
educando o aluno, mas o aluno traz uma educação
de casa que nem sempre é das melhores não são
todos os alunos lógico que traz essa má educação
mais aqueles que trazem péssimas influências acabam
prejudicando os outros alunos. As atividades são difíceis
de ser aplicadas, o alfabetizando não se interessam principalmente
os jovens, mesmo trabalhando a realidade. Alfabetizar é
ensinar a ler, e ler não é só palavras podemos
ler tudo que está a nossa volta, ler também é
prestar atenção em tudo, os nossos alunos são
desplicentes. (Vera)
No entanto, a concepção marcante entre os alfabetizadores
é a de que o alfabetizando possui seus conhecimentos e estes
merecem ser resignificados, no espaço da sala de aula, à
luz dos conhecimentos formais.
Esta semana continuamos falando sobre meios de comunicação,
alguns alunos não gostaram por ter começado a semana
com a responsabilidade de escrever cartas poucos se preocuparam
em fazer e terminar a carta p/ rádio mas os que já
me entregaram fizeram uma boa carta o que deu para perceber é
que o entregar a carta para o prefeito motivou a maioria, falar
sobre o computador foi mais difícil pois nem todos conhecem
mas a maioria já precisaram usar principalmente os que
tiram dinheiro da aposentadoria. As receitas foi muito boa e o
legal e que todos ficaram felizes ao vir seus trabalhos pregados
na parede. Maria José Luciano até ficou admirada
com o que fizemos e disse: Tanta coisa nova, perdir bastante,
vou ver se não perco mas.
Percebemos que o alfabetizador gradativamente constrói sua
epistemologia didática, ainda que intuitivamente este sabe
o momento de estimular a turma, elaborar novas estratégias
de ensino, promover a autonomia e a interação cooperativa
em sala de aula, além de estabelecer conexões entre
a comunidade e o espaço da sala de aula.
Entretanto, é indispensável ponderar que estes saberes
experienciais ainda que fundamentais não são os únicos
necessários à complexa ação alfabetizadora.
Os professores alfabetizadores precisam ter consciência das
suas práticas, não basta saber-fazer, para tanto é
preciso que estes possam relacionar o local com o global, sua prática
alfabetizadora em Passa e Fica com o contexto sócio-econômico
no qual esta está inserida. A prática docente crítica
envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer
e o pensar sobre o fazer.
Em suas práticas, em seus relatos divisamos a importância
que estes dedicam a autonomia e a cooperação em sala
de aula, denotam que o respeito é elemento fundamental para
a sala de aula por ressoar nas relações interpessoais
mantidas. O ambiente de sala de aula então torna-se um espaço
para a sistematização, transformação
e comunhão de idéias.
Na elaboração, por meio da prática de sala
de aula, da sua epistemologia didática o alfabetizador tem
chance de se apropriar de um aspecto determinante da ação
docente: a importância do referencial sócio-cultural.
Enfatizamos, ao longo de toda a pesquisa, o valor da dimensão
cultural no processo de alfabetização, de modo que
as aprendizagens identificadas em nossa análise estão
vinculadas a confluência existente entre a ação
educativa e o referencial cultural.
Na análise sobre a prática alfabetizadora dos sete
alfabetizadores contemplados, confirmamos que a simbiose entre a
ação alfabetizadora e o referencial cultural decorre
numa compreensão social da ação alfabetizadora.
E é nesta aprendizagem que reside a grandeza da prática
alfabetizadora no contexto do Programa Alfabetização
Solidária.
Considerações finais
"A compreensão humana nos chega quando sentimos
e concebemos os humanos como sujeitos; ela nos torna abertos a
seus sofrimentos e alegrias".(Morin, 2001).
Após percorrermos os caminhos indicados pela própria
pesquisa, alcançamos clareiras de compreensão em meio
a densidade da experiência objetivada. Caminho, no sentido
etimológico da palavra, significa meio, direção,
rumo, norma de proceder, tendência, método. Assim,
ao longo da pesquisa mantivemos como norte a intenção
de compreender, muito mais do que explicar, a prática alfabetizadora
e os saberes advindos desta.
Partindo das experiências e aprendizagens dos alfabetizadores
nascidas em meio as conjunturas incoerentes do PAS, seja no plano
político, seja no plano pedagógico. Tentei exercitar
minha curiosidade epistemológica.
Este tipo de pesquisa proporciona aprendizagens únicas ao
pesquisador, todavia muitas críticas são tecidas a
esta abordagem metodológica afirmando que essa se assemelha
ao jornalismo e a descrição, assim sendo destituída
de cunho cientifico. Tais críticas corroboram com a postura
academicista em permanecer encastelada em suas teorias absolutas
e dissociada dos problemas sociais, que exigem posicionamentos políticos
e ações sociais efetivas da instituição
universitária. Enquanto profissional, me senti enriquecida
pelas vidas, situações, significados e saberes encontrados
ao longo dos caminhos percorridos.
Faz-se necessário destacar alguns resultados da pesquisa:
a ressignificação da alfabetização de
jovens e adultos pelos alfabetizadores e a conseqüente ruptura
a sociopedagógica do sentido do analfabetismo.
A ressignificação da alfabetização
foi percebida entre os alfabetizadores a partir da atitude destes
em considerar em sala de aula os conhecimentos e, portanto, histórias
de vida dos alfabetizandos. Essa ressignificação da
alfabetização acontece na prática quando os
alfabetizadores percebem que estão querendo ensinar português
a um fluente na língua, ensinar matemática a quem
já opera mentalmente com desenvoltura, resolvem então
abandonar as comparações com a alfabetização
de crianças e concepções de aluno ideal e formular
ações voltadas para o seu aluno real. Percebemos ainda
que as situações pedagógicas propostas em capacitação
colocam em movimento as construções epistemológicas
e conflitos cognitivos dos participantes. O pensamento auto-reflexivo
e a personalidade social (no sentido piagetiano) parecem ser provocadas
pelas problematizações educativas vivenciadas pelos
alfabetizadores iniciantes.
Assim, a objetivação do referencial cultural pelos
alfabetizadores faz com que estes concebam o alfabetizando e, por
conseguinte, o processo de alfabetização de outra
forma. O PAS possui uma perspectiva finalista - alfabetizar adultos
e capacitar professores - que escamoteia as aprendizagens dos alfabetizadores
resultantes das suas práticas. No entanto, ainda que o alfabetizador
não tenha alcançado um satisfatório resultado
pedagógico após o tempo exíguo de um módulo,
há como efeito da participação no PAS a ressocialização
cultural de alfabetizandos e alfabetizadores.
Os primeiros passam a ser vistos pela comunidade como estudantes
o que origina, muitas vezes, críticas ou admiração,
no caso dos alfabetizadores, estes tornam-se referência no
município quando o assunto é educação
de jovens e adultos, muitos até são contratados pela
educação municipal para participar do Programa Recomeço,
continuidade do PAS.
No que se refere ao Programa, nosso estudo demonstrou por meio
do histórico e da contextualização atual que
mesmo em meio as suas limitações este abriga e desencadeia
mudanças relevantes no município de Passa e Fica (RN)
e mesmo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
O PAS desencadeou mudanças internas na instituição
como a reativação dos estudos e pesquisas sobre esta
temática, no Departamento de Educação, mais
propriamente no curso de licenciatura de Pedagogia com a oferta
de disciplinas sobre o assunto e por intermédio da criação
do NUPEJA. Suscitando ainda o interesse por pesquisas sobre a temática
voltadas para o desenvolvimento de metodologias coerentes de alfabetização
e até de pós-alfabetização. Estas são
voltadas da mesma forma para a reflexão sobre as dimensões
- biológica, antropológica, social, espiritual - que
balizam a formação do professor alfabetizador de jovens
e adultos.
Houve, ainda, o resgate da extensão universitária
como espaço de ensinamentos aos universitários em
formação, dentro do contexto das licenciaturas. O
envolvimento de professores e estudantes no PAS consolidou um grupo
o NUPEJA (os herdeiros de Hefestos) dedicado a superação
do analfabetismo adulto no âmbito municipal, na cidade do
Natal e no âmbito estadual, do agreste ao sertão do
RN.
Um estudo sobre a prática alfabetizadora de jovens e adultos
deixa muitas lacunas e coloca novas questões de pesquisa,
há certamente caminhos que foram apenas vislumbrados como
o conceito de alfabetização que fundamenta o PAS e
as práticas de alfabetização contemporâneas;
os saberes adquiridos pelos sujeitos alfabetizandos ao participarem
do PAS; a cultura política das cidades do interior; a importância
da extensão universitária para a reforma dos conhecimentos
acadêmicos; a importância da investigação
antropológica para a formação do alfabetizador
e no próprio processo de alfabetização. O nosso
mapa dos caminhos percorridos indica novas sendas a conhecer.
|