Arte contemporânea e educação
Celso F. Favaretto *
* Universidade de São Paulo, Brasil.
Síntese: Hoje, é imperativo recolocar o tema da função da arte na educação, tanto nas instituições escolares como em atividades culturais de museus, institutos e fundações, tendo em vista a dificuldade de se manter a ideia de formação, derivada da Bildung, como fundamento de concepções e práticas educativas. Consideramos que o essencial é o acesso à experiência estética a partir do contato com a atitude e o trabalho dos artistas, portanto, como pensar e propor as mediações estratégicas para compatibilizar os dois termos da equação: educação e arte? Tanto se partimos das obras de arte tradicionais e modernas, como da generalização estética contemporânea – inclusive a determinada pela indústria da cultura e garantida pelo sistema e pelo consumo –, as propostas sobre a relação entre arte e educação, consensuais até pouco tempo, vinculadas ao ideal de formação, não satisfazem mais as expectativas de uma educação que enfrenta a heterogeneidade do saber, da sensibilidade e da experiência contemporânea. Desta maneira, os princípios do talento e da criatividade, até agora hegemônicos, que informavam sobre as concepções e práticas da arte na educação, demonstram-se insatisfatórios. Entretanto, ainda não está claro o que pode ser associado a eles para se superar as dificuldades atuais.
Palavras-chave: arte contemporânea; experiência estética; educação como transformação; mito da criatividade.
Arte contemporáneo y educación
Síntesis: Actualmente es necesario replantear la función del arte en la educación, tanto en las instituciones escolares como en actividades culturales de museos, institutos o fundaciones. Pero sin perder de vista la dificultad de mantener la idea de formación, derivada de la Bildung, como una fundamentación de concepciones y prácticas educativas. Consideramos que lo esencial es acceder a la experiencia estética a partir del contacto con la actitud y el trabajo de los artistas. Entonces, ¿cómo pensar y proponer mediaciones estratégicas que compatibilicen los dos términos de la ecuación: educación y arte? Partiendo tanto de obras tradicionales y modernas, como de las generadas por la estética contemporánea –incluso aquella creada en la industria cultural y garantizada por el sistema y el consumo–, las propuestas para que se relacione arte y educación, consensuadas hasta hace poco tiempo y vinculados de un modo u otro a un ideal formativo, no cumplen las expectativas de una educación enfrentada a la heterogeneidad del saber, de la sensibilidad y de la experiencia contemporánea. De este modo se demuestran insatisfactorios los conceptos sobre talento y creatividad que hasta ahora eran hegemónicos y que informaban sobre las concepciones y las prácticas del arte en la educación. Sin embargo, aún no está claro cómo pueden relacionarse esos conceptos con el fin de superar las dificultades actuales.
Palabras-clave: arte contemporáneo; experiencia estética; educación como transformación; mito de la creatividad.
Contemporary art and education
Abstract: Nowadays it is necessary to rethink the role of art in education at schools, museums, art institutes and foundations. However, we must not forget how difficult is to sustain the idea of formation, derived from the idea of Bildung, as the groundwork of educational ideas and practices. We think that the most important thing is to access the aesthetic experience by getting acquainted with the artists, their attitude and their work. So, how can we conceive and propose strategic mediations that can make compatible the two sides of the equation: education and art? Considering both traditional and modern works of art, such as those created by contemporary aesthetics –even those created within the cultural industry and guaranteed by consumption and the system–, the proposals to connect art and education that not long ago were widely accepted and that are in one way or other linked to a formative ideal, do not meet the expectations for developing an educative process that can deal with the heterogeneity of knowledge, sensitivity and contemporary experience. In this way, we will prove wrong the ideas of talent and creativity that, so far, were hegemonic and that informed about the concepts and practices in art education. However, it is still not clear how can these two concepts relate, in order to overcome current issues.
Keywords: contemporary art; aesthetic experience; education as transformation; creativity myth
Com frequência saem à tona interrogantes sobre a função da arte na educação. De modo inicial, só se pode responder de modo insatisfatório, pois se trata de perguntas pragmáticas. Não é possível ir direto ao assunto, pois o que está implícito é a crença no caráter formativo da arte, o que hoje não se tem claro e precisa ser devidamente justificado. De fato, fala-se no papel da arte na educação porque supõe-se a existência de um valor que vem de certa mitologia da arte, afirmada de muitas maneiras: pela ideia, instalada há bastante tempo entre as reflexões sobre educação, de que a arte é componente essencial da formação humana e que isto deve ser garantido desde cedo; porque existe uma instituição, a escola, que garante a legitimidade da arte na educação; também, e de modo pregnante, porque desenvolveu-se uma demanda de mercado que recobre e infla a imagem cultural da arte. Mas, se há uma pergunta continuamente reiterada pelos educadores, é porque existe um problema, uma inquietação e alguma confusão sobre a composição ou intersecção dos dois termos da equação, educação e arte. A resposta a essa pergunta exige, pois, o entendimento daquilo que se determina na atualidade entre as duas práticas: a própria ideia de «formação».
Assim, é preciso fazer outras perguntas antes de se asssumir as ideias consensuais que dizem respeito tanto à consideração – unânime – de que a arte tem uma função na educação, através do papel que desempenha, e de que ela é indispensável à formação integral do educando, quanto à própria maneira de se entender o que quer dizer arte e o que quer dizer formação, para que a suposta contribuição de uma à outra tenha a importância que se lhes atribui.
A suposição que está na base dessas atribuições provém da necessidade educativa de uma cultura estética inerente à concepção de educação como Bildung, como formação espiritual e cultural, gerada no horizonte das proposições da Aufklärung. O Espírito das Luzes funda-se, como se sabe, no desejo de esclarecimento, cujas fontes são a razão e a experiência, na tentativa de realização da razão no indivíduo e na história, tendo como finalidade a emancipação. Autonomia, liberdade e felicidade viriam da aposta na laicidade do conhecimento, na dessacralização dos valores religiosos e da crítica de todo tipo de preconceitos. Este espírito supõe a consideração fundamental da perfectibilidade do espírito, da unidade do gênero humano, da universalidade dos valores e do aprimoramento infinito do homem e do mundo.
Nesta perspectiva moral e política, a cultura estética é componente indispensável para a formação. Como diz Schiller, «é aquilo que deve conduzir a natureza humana à plenitude de seu desenvolvimento, à conjunção de suas forças sensíveis e racionais, enfim, à união de dignidade moral e felicidade»1, pois «é próprio do homem conjugar o mais alto e o mais baixo em sua natureza, e se sua dignidade repousa na severa distinção entre os dois, a felicidade encontra-se na hábil supressão dessa distinção. A cultura, portanto, que deve levar à concordância, dignidade e felicidade, terá de prover a máxima pureza dos princípios em sua mistura mais íntima»2. Também Marx, embora partindo de outra posição filosófica, diz nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, ao propor uma «educação dos cinco sentidos», que a arte é condição de humanização porque «os sentidos capazes de prazeres humanos se transformam [pela arte] em sentidos que se manifestam como forças do ser humano e são ora desenvolvidos, ora produzidos. Porque não se trata apenas dos cinco sentidos, mas também dos sentidos ditos espirituais, dos sentidos práticos (vontade, amor, etc.), numa palavra, do sentido humano, do caráter humano dos sentidos que se formam apenas através da existência de um objeto, através da natureza tornada humana. A formação dos cinco sentidos representa o trabalho de toda a história do mundo até hoje»3.
Percebe-se como nas duas posições, de Schiller e Marx, em princípio tão distantes, porque se trata de perspectivas excludentes na interpretação da realidade, a formação visada pela educação reconhece a moral e a estética como domínios racionais, denunciando os limites da racionalidade científica unificadora e totalizante. Aliás, isto pode ser verificado nas justificativas e nos objetivos da valorização da arte na legislação do ensino básico brasileiro. A ênfase que a concepção de educação da atual Lei de Diretrizes e Bases coloca sobre a tecnociência, como princípio e requisito básico no saber, na sociedade e na cultura, é contrabalançada pelo «conhecimento da arte», compreendido como conhecimento «sensível-cognitivo, voltado para um fazer e apreciar artísticos e estéticos e para uma reflexão sobre a história e contextos na sociedade humana»4. Aquilo que aí se denomina «estética da sensibilidade» tem uma clara intenção de matizar os efeitos, na formação, no indivíduo e na cultura, dos excessos da racionalidade instrumental. A valorização da diversidade vem a par com o que foi carcterizado como «ética da identidade», voltada para a crítica «dos valores abstratos» da racionalidade instrumental moderna. É possível mostrar que tais ideias relevam dos pressupostos modernos, iluministas, de autonomia e emancipação.
Estas considerações põem em relevo a necessidade de se pensar a arte na escola no horizonte das transformações contemporâneas, da crítica das ilusões da modernidade, da reorientação dos seus pressupostos – o que implica pensar o deslocamento do sujeito, a produção de novas subjetividades, as mudanças no saber e no ensino, a descrença dos sistemas de justificação morais, políticos e educacionais, a mutação do conceito de arte e das práticas artísticas e as mudanças dos comportamentos. Trata-se, mais precisamente, de se reconsiderar a ideia de formação derivada da Bildung, e de reexaminar as justificativas e os pressupostos da crença que afirma que a arte é componente obrigatório do processo educativo. Para isto, é preciso esclarecer qual concepção e práticas de arte suportam esta proposição. Trata-se, acima de tudo, de pensar estas questões sob a perspectiva da nossa atualidade, da qual somos contemporâneos, tendo, contudo, como referência, o pensamento da Aufklärung, pois ela ainda determina em grande parte o que somos, pensamos e fazemos hoje, mesmo que insuficiente para dar conta da indeterminação e do insuportável da experiência contemporânea5.
Assim, é preciso problematizar simultaneamente, segundo Foucault, a nossa «relação com o presente, o modo de ser histórico e a constituição de si como sujeito autônomo» – um modo de problematização, contudo, que não procede por efeitos de ultrapassamento, de superação e nem de progresso, mas antes, de reativação da atitude de crítica do permanente da atualidade, própria do ideal das Luzes, de tensionamento dos nexos entre passado e presente. Esta crítica é, diz ele, «genealógica em sua finalidade e arqueológica em seu método»6. Ou seja, ela se afasta da visada da universalidade, do transcendental, que é o horizonte onde se situa a ideia de Bildung. Contingência e imanência, historicidade, é o lugar desse pensamento da atualidade.
Como já foi assinalado anteriormente, é na aspiração à perfectibilidade, traço distintivo da espécie humana, capacidade do homem de se tornar melhor e de melhorar o mundo; é neste antropocentrismo do espírito das Luzes, que sobressai a importância da concepção, tornada dispositivo cultural-pedagógico, do ideal de formação. Como diz Lyotard, «sabemos que em torno da palavra formação, Bildung, e, portanto, em torno da pedagogia e da reforma, joga-se na reflexão filosófica desde Protágoras e Platão, desde Pitágoras, uma partida maior. Partida esta que tem por pressuposto que o espírito dos homens não lhes é dado de maneira adequada e tem que ser re-formado [...]. A infância diz que o espírito não é dado. Mas que é possível sê-lo. Formar quer dizer que um mestre vem ajudar o espírito posssível, à espera, na infância, a se cumprir. Conhece-se o círculo vicioso, entretanto: mas e o próprio mestre como se emancipa de sua monstruosidade infantil? Educar os educadores, reformar os reformadores: eis a aporia de Platão a Kant, e até Marx»7. Estão aí sugeridos o fascínio e as dificuldades desta concepção central da educação.
O que se quer dizer então é que, apesar de todo nosso empenho na educação como transformação, da nossa aposta no devir, o sentido metafísico de formação permanece. É certo que a Bildung, embora teleológica, implica a formação como processo. Formar é formar-se, supõe aprimoramento e engrandecimento do espírito. Nesta elevação espiritual, a formação implica ruptura com o imediato e a passagem do particular ao universal; um sair de si, um lançar-se para além de si. Formação supõe, então, realização de uma forma, um acabamento. É construção de uma forma interior – mental, psíquica, espiritual –, passagem da forma exterior a uma forma interior8. Esta concepção repousa sobre o pressuposto metafísico, de uma unidade da experiência, a unidade do sujeito que deve ser educado em vista de uma finalidade. Mas, apesar do fascínio e da eficácia deste dispositivo, é exatamente isto que é hoje questionado, juntamente com todos os valores de consenso, interrogando assim a própria ideia e a viabilidade desse sentido de formação.
Como se sabe, o debate sobre os limites da razão moderna, sobre as ambiguidades da modernidade artístico-cultural, enfatiza exatamente o esforço de manter, a todo custo, identidades e consenso, na política, no social, na arte e na educação, como uma maneira de se enfrentar a indeterminação e a incidência nos saberes e práticas dos efeitos da perda de unidade da experiência. Tal questionamento tem em vista afirmar uma concepção imanente da educação, em que a ideia de transformação opõe-se à metafísica da formação. Ao contrário, portanto, de a educação significar a condução à forma de um sujeito constituído, trata-se agora da destituição, da deposição desse sujeito, garantia da unidade da experiência. Justamente neste deslocamento estaria a contribuição efetiva da arte.
Etica e estética são componentes inextrincáveis do processo ao qual se visa na formação, entendida mais propriamente, segundo Deleuze, como «processos, que podem ser de unificação, de subjetivação, de racionalização [...] e que operam em “multiplicidades” concretas, sendo a multiplicidade o verdadeiro elemento onde algo se passa»9. Mas os processos não são propriamente funções; «são os devires, e estes não se julgam pelo resultado que os findaria, mas pela qualidade dos seus cursos e pela potência de sua comunicação». Nega-se, assim, a universalidade implícita nos papéis, que derivam de uma concepção homogeinizadora de arte, com a valorização das singularidades, que deriva de uma concepção da arte como lugar de agenciamentos10.
É a admissão dos limites da racionalidade científica, que propõe a necessidade e a importância da moral e da estética como dimensões da razão, que contrabalançam a compulsão de saber, a compulsão de comunicar e de realismo. Sabemos que a arte é fonte de dissimulação, afirma a potência do falso, do artifício. Como diz Nietzsche, os homens inventaram a arte para não morrer de verdade. Mas, adverte Deleuze, para que a arte seja significativa é preciso que surja por «necessidade [...] do contrário não há nada. Um criador não é um ser que trabalha por prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade»11. Estas proposições desligam o contacto com a arte, da criação, do aprendizado e da experiência estética, da pura fruição gratuita, que é a atitude com que ela aparece frequentemente quando sua função na educação é caudatária da Bildung – em que se pensa a arte equivocadamente, como contrabalanço da racionalidade científica. Mas a contribuição, melhor dizendo, a resistência que vem da criação artística é de outra ordem. As artes da modernidade, nos limites da experimentação, provocaram a mutação do conceito, das formas, dos modos e das maneiras de evidenciação da arte, situando-se muito mais no horizonte do que não pode ser dito do que do dizer, afirmando que a arte não tem nada que ver com a comunicação. A arte não é um instrumento de comunicação e nisto está a sua resistência. Para Deleuze, esta reistência da criação deve-se ao fato de que ela é sempre estranha, pois «não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe», que não faz «em função de um povo por vir e que ainda não tem linguagem»12. Eis aí o valor disruptivo da arte na educação, em que o aprendizado surge pelo espírito de investigação, pela interpretação dos signos da experiência13.
Assim pensando, a experiência da arte e a sua possível função na educação não está na compreensão e nem no adestramento artístico, formal, perceptivo, embora possa conter tudo isto. Considerando que a atitude básica da arte da modernidade, ao focar as experimentações na produção do estranhamento e no hermetismo, confundiu as discussões sobre a definição e o sentido da arte, pode-se dizer que o seu trabalho desligou o princípio pedagógico de que a arte na educação tem como função apenas promover o desenvolvimento da sensibilidade, pois é o que aparece valorizado nos discursos educacionais como um substituto da faculdade de conhecer, e que se torna uma espécie de inteligível confuso. A radicalidade moderna, emblematizada nas propostas das vanguardas, afirmou reiteradamente, das maneiras mais diversas, que o seu trabalho configurou-se como uma investigação sobre o sentido da arte, sempre repropondo a pergunta: mas o que é mesmo a arte, já que o termo recobre coisas tão diferentes?
Na arte surgida dessa atitude, patente nas atividades contemporâneas, as obras, os experimentos, as proposições de toda sorte, funcionam como interruptores da percepção, da sensibilidade, do entendimento; funcionam como um descaminho daquilo que é conhecido. Uma espécie de jogo com os acontecimentos, de táticas que exploram ocasiões em que o sentido emerge através de dicções e timbres, nas formas não nos conteúdos; uma viagem pelo conhecimento e pela imaginação: são imagens que procuram captar o tipo de deslocamento da subjetividade promovido pelas obras da arte. E o que pode advir dessa maneira de pensar como matéria de ensino ou de aprendizado senão a concentração na especificidade e singularidade do trabalho dos artistas? Não custa lembrar a propósito, o que diz Lyotard: «Um artista, um escritor pós-moderno está na situação de um filósofo: o texto que escreve, a obra que realiza não são em princípio governadas por regras já estabelecidas, e não podem ser julgadas por regras já determinadas, e não podem ser julgadas mediante um juízo determinante, aplicando a esse texto, a essa obra, categorias conhecidas. Estas regras e estas categorias são aquilo que a obra ou o texto procura. O artista e o escritor trabalham, portanto, sem regras, e para estabelecer as regras daquilo que foi feito»14.
As artes da modernidade mostram que há um pensamento na arte. Mais precisamente, há um pensamento da arte¸ que é o pensamento efetuado pelas obras de arte. As obras de arte e a literatura, diz Rancière, são domínios privilegiados de efetivação de um inconsciente em que se flagra a existência «de certa relação de pensamento e de não-pensamento, de um certo modo, da presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido no insignificante»15. Quer dizer: as produções artístas são efeitos desse inconsciente estético que articulam relações de saber e de não-saber, do real e do fantasmático16, de modo sugestivo. Nesta linha, Lacan entende que «a arte poderia nomear o que não se deixa ver [...] pode aparecer como modo de formalização das irredutibilidades do não-conceitual, como pensamento da opacidade»17.
Nestas condições, como inscrever este entendimento da arte, pragmaticamente, aqui e agora, nas instituições educativas, particularmente em sala de aula? Como fazer com que os acontecimentos de linguagem, sensações, percepções e afetos, que se fazem nas palavras, nas cores, nos sons, nas coisas, nos lugares e eventos sejam articulados como dispositivos, como agenciamentos de sentido irredutíveis ao conceitual, como outro modo de experiência e do saber? São os profissionais da educação com a arte que sabem responder a estas perguntas e falar do papel da arte na educação – o que, aliás, pode ser confirmado examinando-se as concepções e os muitos projetos e programas do ensino de arte à disposição, em livros e propostas elaboradas para redes públicas de ensino ou em outras instituições, como museus, exposições e escolas privadas. Mas, atenção, um requisito indispensável para aquele que ensina é que faça ele próprio o trajeto pela experiência da arte, simultaneamente como praticante, amador ou pensador das artes.
As ideias aqui expostas são tentativas de excitar a desconfiança nos modelos instituídos nas instituições educativas e que há muito tempo estão falhando no atrito das teorias com a experiência contemporânea das artes. Dentre os modelos em questão, o mais legitimado e mitologizado é o da criatividade, considerado o que melhor contemplaria a especificidade artística no ensino. A ênfase na criatividade é patente em todas as teorias pedagógicas modernas. Nos Parâmetros Curriculares brasileiros, por exemplo, pode-se ler: «a estética da sensibilidade, que supera a padronização e estimula a criatividade e o espírito inventivo, está presente no aprender a conhecer e no aprender a fazer, como dois momentos da própria experiência humana, superando-se a falsa divisão entre teoria e prática»18. Combinação das faculdades inatas da percepção e da imaginação, da sensibilidade e da imaginação19, criatividade implica originalidade e inventividade, duas categorias da modernidade artística.
Daí surgiram, como se sabe, as proposições sobre dispositivos que materializam-se no processo de ensino, focado em «competências» e «habilidades», estes verdadeiros postulados subjacentes ao ensino de arte, pois esta concepção viria a substituir a tradicional, ou acadêmica, que focava a possibilidade do ensino de arte no «talento» individual, porque a ideologia da criatividade é democrática, igualitária, é efeito de uma concepção da arte aberta a todos, pois a criatividade seria um potencial universal. Assim sendo, destinada a todos, a arte poderia ser ensinada e a criatividade transformada em habilidade através de projetos e programas. Este mito da criatividade, com a ênfase na invenção, é, portanto, problemático e vem sendo desconstruído. Evidentemente, não se trata de dizer que está sendo substituído por outro; o que está aí é o mesmo paradigma moderno, embora destituido da crença moderna na potencialidade e na eficácia transformadora da criatividade, da invenção, do novo e da ruptura.
Perante estas considerações, longe do niilismo, o que está à nossa frente não é um suposto vazio, senão um vazio de ideal. O que está para ser feito, o que está sendo feito, é uma «paisagem desconhecida que é preciso configurar e decifrar»20. A visão do contemporâneo implica a aderência às virtualidades da obscuridade do presente, às perguntas que interpelam o artista, o crítico, o educador e a vida21.
Bibliografia
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Schiller, F. (1990). A educação estética do homem. Trad. bras. R. Schwarz e M. Suzuki. São Paulo: Iluminuras.
1 M. Suzuki, «O belo como imperativo», in F. Schiller, A educação estética do homem. Trad. bras. R. Schwarz e M. Suzuli. São Paulo: Iluminuras, 1990, p. 19.
2 Schiller, op. cit., p. 125.
3 Marx-Engels, Sobre literatura e arte. Trad. port. Albano Lima. Lisboa: Estampa, 1971, p. 49.
4 Parâmetros Curriculares Nacionais. Ensino Médio. Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Média e tecnológica, 1999, p. 90.
5 Cf. M. Foucault, «O que são as luzes?», in Ditos & escritos III. Trad. bras. Elisa Monteiro, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 335 e J. F. Lyotard, O pós-moderno. Trad. bras. Ricardo C. Barbosa. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1986, p. XVII.
6 Cf. M. Foucault, op. cit., p. 344 e 448.
7 J. F. Lyotard. O pós-moderno explicado às criança. Trad. port. Tereza Coelho, Lisboa: Dom Quixote, 1987, pp. 119-120.
8 Cf. Rosana Suarez, «Notas sobre o conceito de Bildung (formação cultural)», in Kriterion - Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, n.º 112, jul-dez., 2005, p. 192 e ss.
9 G. Deleuze, Conversações. Trad. bras. Peter Paul Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 182.
10 Id. ib., p. 183 e 188.
11 Cf. G. Deleuze. «O ato de criação». Trad. bras. José M. Macedo. Folha de S. Paulo - Mais!, 27/06/1999, pp. 4-5.
12 Id. ib.
13 Cf. a propósito, Gilles Deleuze, Proust e os signos. Trad. bras. A. C. Piquet e R. Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 4.
14 J. F. Lyotard, op. cit. p. 26.
15 Jacques Rancière. L’inconscient esthétique. Paris: Galilée, 2001, p. 11.
16 Id. ib., p. 51.
17 Cf. Vladimir Safatle, in O tempo, o objeto e o avesso- ensaios de filosofia e psicanálise. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, pp. 116-117.
18 PCN - Ciências Humanas e suas Tecnologias, p. 21.
19 Cf. Thierry de Duve, «Quando a forma se transformou em atitude - e além». Arte & Ensino. Programa de Pós Graduação em Artes Visuais/Escola de Belas Artes/ufrj, Brasil, n.º 10, 2003, p. 93 e ss.
20 Eduardo P. Coelho, «Para comer a sopa até o fim», in Jornal do Brasil-Idéias/Ensaios, Rio de Janeiro, 03/03/1991, p. 4.
21 Cf. Giorgio Agamben, «O que é contemporâneo?», in O que é o contemporâneo? e outros ensaios.Trad. bras. V. N. Honesko. Chapecó - SC, Argos, 2009. |