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 ISSN: 1022-6508

Está en: OEI - Revista Iberoamericana de Educación - Número 46

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 Número 46: Enero-Abril / Janeiro-Abril 2008

Perspectivas en torno a la lectura /
Perspectivas acerca da leitura

  Índice número 46 

 

Leitura, práticas escolares e a reforma
 da alfabetização no Brasil

Sandra Maria Sawaya *

Síntese: O artigo discute os baixos resultados na leitura, obtidos por uma grande parcela de alunos brasileiros nas provas do pisa em 2007, a partir de uma revisão da literatura na área da educação, que tem posto em discussão a natureza psíquica dos problemas escolares. Resgata as contribuições de uma história cultural que tem evidenciado as formas de dominação das práticas da leitura e da escrita e a necessidade de uma revisão das concepções que sustentam a sua permanência, a despeito das reformas educacionais propostas.

Palavras chave: problemas escolares; práticas da leitura; pisa; reformas educacionais.

Síntesis: El artículo analiza los bajos resultados obtenidos en lectura, por una gran parte de alumnos brasileños, según el informe pisa en 2007, a partir de una revisión de la literatura en el área de la educación, que debate la naturaleza psíquica de los problemas escolares. Para ello, recupera las contribuciones de una historia cultural que hace evidente las formas de dominación de las prácticas de la lectura y de la escritura y la necesidad de una revisión de las concepciones que sostengan su permanencia, en detrimento de las reformas educacionales propuestas.

Palabras clave: problemas escolares; prácticas de la lectura; informe pisa; reformas educacionales.

Abstract: This article analyzes the poor results achieved, in reading, by a great number of Brazilian students, according to pisa report in 2007. This is based on a revision of the literature in the educational field, which discusses the psychic nature of school issues. With this aim, it recovers the contributions made by a cultural History, which makes evident the forms of domination of reading and writing practices, and the need to revise the conceptions that support their continuance, to the detriment of the proposed educational reforms.

Key words: school issues; reading practices; pisa report; educational reforms.

1.       Introdução

As estatísticas oficiais, depois de várias décadas de reformas e políticas educacionais, continuam a registrar que um dos maiores problemas identificados no desempenho escolar da população em idade escolar em vários países da América Latina se encontra na área da leitura. Dos 57 países que participaram do Programa para a Avaliação Internacional de Alunos (pisa) (1), em 2007, somente 6 países latino-americanos decidiram submeter-se a esse escrutínio internacional e todos eles ficaram em nível significativamente baixo. O primeiro colocado foi o Chile, que se posicionou no quadragésimo lugar, seguido do Uruguai, México, Argentina, Brasil, que ficou em qüinquagésimo segundo e por fim, a Colômbia.

Uma leitura dos documentos oficiais intitulados Parâmetros Curriculares Nacionais, publicado em 1997, e que orientam as ações educacionais em todo o território nacional, no Brasil, tem explicado o fracasso escolar de grande parcela dos alunos brasileiros como um problema do aluno na aprendizagem da leitura e da escrita em decorrência de dois fatores: o ensino oferecido pelas escolas públicas brasileiras pressupõe conhecimentos que, na verdade, os alunos de camadas populares não possuem, uma vez que elas ensinam segundo modelos adequados a um aluno que não é aquele que efetivamente se encontra em sala de aula. E a defasagem na cognição e nos níveis de conceitualização do escrito, decorrentes de as camadas populares estarem privadas de práticas e experiências com a leitura e a escrita faz com que os alunos se encontrem muito aquém do ponto que se instituiu como início da aprendizagem escolar (mec, 1997; São Paulo, 1997).

Inspiradas nas teses construtivistas de alguns teóricos, apoiados nas idéias de Piaget, as concepções que justificam a reforma educacional na área de alfabetização no Brasil explicam os problemas de escolarização de uma grande parcela de alunos, em seus primeiros anos escolares, como problemas de natureza cognitiva e lingüística, decorrentes de uma privação sócio-cultural. Ou seja, as crianças de camadas populares devido a essa privação não teriam alcançado o patamar de desenvol­vimento cognitivo necessário para passarem à aprendizagem da leitura e da escrita. Permanecendo no nível pré-operatório, conforme os estágios de desenvolvimento descritos por Piaget, as crianças pobres, ao chegarem à escola, apresentariam respostas em relação ao escrito, equivalentes aos pré-escolares de classe média, revelando atrasos em seu desenvolvimento.

Todavia, vários estudos, em diferentes áreas de conhecimento, têm posto em discussão, há vários anos, a natureza psíquica dos problemas escolares de uma grande parcela das crianças e adolescentes. Algumas pesquisas, ao se debruçarem sobre as relações entre o desenvolvimento cognitivo dos alunos de camadas populares e a aprendizagem da leitura e da escrita, têm permitido discutir criticamente as afirmações de que são determinados estímulos, aqueles encontrados nos grupos sociais de classe média, os que permitem o desenvolvimento das estruturas mentais necessárias para a aquisição da leitura e da escrita na escola. Assim, uma análise (Sawaya, 2000) das explicações para o fracasso escolar que justificou a reforma educacional no Brasil, à luz de contribuições de psicólogos, lingüistas, antropólogos sociais e de uma linha de pensamento da história e da sociologia da cultura (Certeau, 1990; Chartier, 1987; Bourdieu, 1987) revelou que não há consenso na literatura, na área, em como a experiência cultural se traduz em comportamento cognitivo, mesmo entre pesquisadores partidários das concepções construtivistas do desenvolvimento iniciadas por Piaget. Também procurou mostrar, através das contribuições da história cultural da leitura e da escrita que, a cultura escrita se instala de diferentes maneiras no corpo social, o que permitiu problematizar as afirmações sobre a ausência de leitura e escrita nos meios populares e suas supostas conseqüências cognitivas.

Para alguns piagetianos (Gay e Cole, 1967; Cole, 1977 apud Carraher, Carraher e Schilieman, 1982), a aprendizagem e os estímulos do ambiente não têm papel determinante no desenvolvimento inicial dos processos psicológicos das crianças necessários para as primeiras aprendizagens escolares. Desse modo, apesar de as crianças de diferentes grupos sociais não compartilharem as mesmas experiências culturais das crianças de outros grupos sociais, o que não está comprovado, elas não estão privadas de estimulação e, portanto, não têm comprometida sua capacidade cognitiva para a aprendizagem da leitura e da escrita. Para alguns psicolingüistas (Cagliari, 1997; Houston, 1997), não é possível se estabelecer uma relação determinista entre competência lingüística e desenvolvimento do pensamento. S. Houston questiona a tese de alguns piagetianos que, estabelecendo uma relação determinista entre competência lingüística e desenvolvimento do pensamento, afirmam que a linguagem das crianças não-privilegiadas não oferece uma base adequada para o desenvolvimento do pensamento, ou seja, não permite o desenvolvimento de conceitos. O argumento é que a competência lingüística ou a capacidade internalizada de usar e compreender a linguagem independe da capacidade de falar. Prova disso é o fato de que, apesar de a criança pequena ainda não poder falar, ela é capaz de compreender um número ilimitado de enunciados verbais (Chomsky, 1967; Lenneberg apud Houston, 1997). Conclui-se, portanto, que é um erro deduzir a capacidade cognitiva das crianças, seus níveis de conceitualização, a partir do seu relato verbal como ocorrem nas provas piagetianas de conservação, nas provas e teses verbais.

Também as afirmações de que a capacidade de abstrair depende do desenvolvimento dos esquemas mentais associados à compreensão e operação sobre o escrito, são postas em questão. Estudos lingüísticos revelam que a capacidade de falar, como atividade cognitiva, é mais complexa que a capacidade de escrever. «O falante tem que montá-la, programá-la e realizá-la [...]. A escrita se estrutura em função da linguagem oral. Sem a linguagem oral, a escrita é rabisco sem sentido. [...] a escrita traz consigo a própria linguagem oral embutida» (Cagliari, 1997, p. 199). Ademais, esses estudos argumentam que o uso da própria linguagem por qualquer falante de uma língua é inerente a um sistema de classificação, de ordenamento, isto é, já é uma forma de pensamento abstrato que independe da aquisição da escrita. Desse modo, a precariedade no contato com as práticas e materiais escritos poderia trazer limitações de uso, mas não das capacidades ou das competências cognitivas e lingüísticas para a aprendizagem da língua escrita. Pode-se concluir, portanto, que, se todas as crianças não apresentarem patologias graves ou doenças genéticas, estarão aptas para aprender a ler e a escrever já que estarão dotadas da capacidade cognitiva e lingüística necessárias para essas aprendizagens escolares.

Os resultados dos estudos acima não visam, no entanto, negar a existência de diferenças culturais e das formas de pensamento entre os diferentes grupos humanos. Para o antropólogo inglês Jack Goody, as diferenças não se encontram no grau de evolução do pensamento concreto/oral para o abstrato/escrito, mas devem ser buscadas nos novos modos de interação, comunicação e na existência de instituições sociais, que, servindo-se da escrita, conduziram a mudanças nas formas de pensar e de conhecer, isto é, conduziram a diferentes racionalidades que deram origem ao «pensamento científico moderno». Portanto, não é o domínio das habilidades de leitura e escrita que promove o desenvolvimento cognitivos dos indivíduos. Ele pode vir a ser potencializado pela utilização da escrita e de seus recursos num conjunto de tarefas e procedimentos definidos pela cultura (Goody, 1987).

Além do mais, identificou-se a presença de matérias escritas e práticas de leitura entre crianças de diferentes idades, várias delas em situação de fracasso escolar, entre a população pobre de São Paulo (Sawaya, 2001). O recurso a documentos escritos para atestar, comprovar e mostrar a veracidade do que está sendo dito, como a busca pelas crianças entre os vários guardados da certidão de nascimento, batismo, orações, recortes de jornal do dia que a favela foi incendiada etc. revelam a presença viva de textos escritos na historia traçada da existência delas. Elas interagem com os textos escritos e compartilham de algumas de suas funções sociais, através da circulação e leitura coletiva no grupo de crianças que convivem na rua, de livros de histórias infantis, livros escolares e folhetos de todos os tipos. Inclusive os livretos de propaganda de produtos de beleza, lingerie, candidatos políticos fazem parte do repertório de textos que circulam entre elas. E através deles as crianças buscam compradores potencias para todo tipo de produtos e até mesmo, em troca de balas, doces, e uns trocados (ou da promessa não cumprida deles) distribuem folhetos e fazem propaganda de candidatos a eleições políticas. Corroborando outros estudos sobre a presença da cultura escrita entre as camadas populares (Bosi, 1986), o estudo procurou mostrar que não há marginalidade cultural no sentido de não participação na cultura escrita, pois numa sociedade letrada as praticas de escrita e de leitura se impõem de diferentes maneiras nas formas de exis­-tência social, definindo relações sociais. Desse modo, as relações das crianças e adolescentes de camadas populares com o texto escrito só podem ser compreendidas em toda a sua complexidade, dentro do contexto e da diversidade das formas culturais de sua produção, circulação e apropriação.

Essas e outras contribuições permitiram pôr em questão as explicações para o fracasso escolar como um problema do aluno, decorrente de atrasos ou de distúrbios de natureza psíquica decorrentes da pobreza. O que não significa dizer que o ambiente não tenha papel decisivo na possibilidade de manifestação e uso das capacidades existentes. A pergunta já não é por que os alunos fracassam na leitura, mas quais são os processos intra e extra-escolares produtores de fracasso escolar.

2.       As instituições escolares e o ensino e a aprendizagem
da leitura e da escrita

 

As análises da proposta de reforma educacional implantada nas últimas décadas, como medida de transformação da escola e resolução dos altos índices de fracasso escolar, revelam, ainda, que ela se constituiu, no Brasil, a partir de um vago saber sobre as práticas pedagógicas efetivamente desenvolvidas, seus problemas de ensino e aprendizagem e um desconhecimento das instituições escolares (Azanha, 1995). O eixo norteador da reforma educacional foram concepções de aprendizagem da língua escrita como um processo psicológico que depende da construção de esquemas mentais. Todavia, é preciso recordar que o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita se dão em uma instituição social dotada de uma subcultura própria onde se desenvolvem relações, ações sociais e concepções que definem de determinados modos o trabalho de formação dos alunos que nela tem lugar.

Alguns estudos têm revelado que a cultura escolar é constituída de relações pedagógicas de ensino e aprendizagem que foram historicamente determinadas a partir de interesses sociais, políticos, econômicos, que, ao se servirem da escrita e da leitura como um dispositivo de poder impuseram formas de percepção e de ação social (Lahire, 1993). Também uma produção em antropologia (Rockwell e Ezpeleta, 1989) e em psicologia (Patto, 1990), ao tomar a realidade escolar como o centro das investigações, isto é, como objeto de estudo e analisar os processos e práticas que nela se desenvolvem, tem revelado não só as formas singulares de apropriação a partir das quais a escola se constitui, para além das determinações institucionais, como também as formas através das quais se reeditam as relações de dominação que produzem dificuldades de aprendizagem e ensino que resultam em fracasso escolar e exclusão social.

Partindo do conceito de vida cotidiana, desenvolvido pela filósofa húngara Agnes Heller, e das metodologias de pesquisa etnográfica, inspirada nas pesquisas anglo-saxãs no campo educacional (Erickson, 1977; Hymes, 1980 dentre outros), M.Patto e também E. Rockwell e J. Ezpeleta colocaram no centro das investigações sobre a escola e suas práticas, o resgate do sujeito no fazer miúdo da vida cotidiana nas instituições de ensino. O que possibilitou superar a dicotomia existente entre as abordagens psicológicas e sociais, tradicionalmente separadas em ciências humanas e sociais. Ao propor uma Sociologia da vida cotidiana, Heller (1972) permite analisar o indivíduo nas ações humanas cotidianas, como sujeito social que se coloca por inteiro, com suas experiências, história pessoal, paixões e necessidades.

A partir desses referenciais teóricos tem se analisado os problemas escolares e dentre eles, o problema da leitura, através de uma perspectiva que busca compreender não os indivíduos de forma isolada, mas os processos de produção do fracasso no interior das instituições educacionais e no sistema educacional. Ou seja, ao analisar as causas do fracasso escolar dos alunos, a análise está voltada para o estudo das práticas, das relações e das concepções de que os agentes educacionais são porta-vozes (professores, alunos, equipe escolar, pais) na produção das dificuldades que conduzem a este fracasso escolar. O fracasso escolar, nessa perspectiva, é produzido nas várias instâncias, através das quais vem se dando o processo educativo nas instituições escolares e na relação delas com a sociedade no seu sentido mais amplo.

Essa perspectiva de estudos, entretanto, não se detém na análise dos múltiplos processos produtores de dificuldades escolares para todos (alunos, professores, etc.), mas revela a possibilidade de superação desses processos na medida em que todos aqueles que põem a escola em funcionamento tenham oportunidade de compreender de outra forma a realidade que vivenciam e na qual atuam. Ou seja, ao poderem examinar a relação educativa no âmbito das relações de dominação e em seus movimentos de resistência (que aparecem sobre a forma de conflitos, indisciplina, etc.) outras compreensões e modos de atuação podem ser construídos. Resgata-se assim a possibilidade de uma construção de uma prática escolar transformadora no âmbito das próprias unidades escolares. Desse modo, a matéria prima da transformação escolar e dos problemas por ela enfrentados é a problematização da experiência vivida pelos professores e seus alunos, da sua compreensão e leitura da realidade para modificá-la.

A partir dessas concepções se evidenciou a necessidade de que se fizesse um inventário das práticas de leitura e escrita efetivamente «praticadas» na sala de aula e da sua compreensão pelos sujeitos envolvidos e seus problemas. Inventário esse que tem colocado não só a necessidade de um resgate das origens históricas e dos compromissos sociais, políticos, econômicos que deram origem às práticas escolares institucionalizadas, como a do estudo das suas contradições nas instituições escolares. O que passa a ser ponto de partida para as possibilidades de transformação das práticas de leitura e escrita e das concepções que as sustentam.

3.       As práticas de leitura e escrita escolares

e as relações de poder

É preciso recordar com o sociólogo P. Bourdieu, que, dentre os mecanismos escolares a serviço da imposição de idéias e modos de ação estão as relações de ensino-aprendizagem e dentre elas as próprias formas de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita. Assim, na medida em que a leitura e a escrita se tornaram um dispositivo estratégico na imposição de formas de percepção, sentido e ação social, elas passaram a ter seu ensino quase que exclusivamente de domínio escolar. Desse modo, para esse autor, aquilo que normalmente se define como leitura é, na verdade, o produto das condições (sociais, políticas, culturais, educacionais) através das quais se produziram os leitores. Com o surgimento dos sistemas nacionais de ensino, uma universalização de uma maneira particular de ler, que é a do leitor produzido pela escolarização, acabou por definir a relação com o texto, isto é, determinadas práticas de leitura e escrita, como sendo as únicas relações historicamente possíveis (idem, Bourdieu, 1987). Naturalizadas, as práticas de leitura e escrita inculcadas nos escolarizados passaram a servir de critérios nas avaliações escolares e a definir as competências exigidas nos exames, legitimando o sucesso escolar daqueles que compartilham dos «habitus letrados», os «herdeiros da cultura».

 Inspirados nessas concepções, alguns estudos, ao analisarem as práticas escolares de leitura e de escrita nas escolas francesas, evidenciaram a perpetuidade das formas historicamente constituídas através das quais elas se constituem a serviço da imposição de modos de apropriação e produção textual, e da sua legitimidade, ao conjunto da sociedade, a despeito das reformas pedagógicas da atualidade (idem, Lahire, 1993).

4.       Por uma desnaturalização das práticas escolares

de leitura e escrita

Uma das formas de dominação de que estão revestidas as práticas escolares de leitura e escrita é a difusão da idéia e da forma de leitura a ela correspondente, de que o sentido de um texto se encontra nele mesmo, acessível pela leitura silenciosa na busca interna de seus significados e que faz abstração das suas condições e contexto de produção. «A essa maneira de ler um texto, sem se referir a nada a não ser a ele mesmo, nós estamos tão habituados que o universalizamos inconscientemente». Daí que, tomar consciência disso é a única maneira de escapar do efeito dessas condições (Bourdieu, 1993, p. 270).

Um dos caminhos, portanto, para a superação dessas formas de dominação é a análise dos sentidos e das ações escolares que as sustentam para que se tome consciência delas. É preciso fazer a crítica da universalização dessa maneira particular de ler, que se pode chamar «estrutural» (idem, Bourdieu, 1993), que trata o texto como autosuficiente e faz abstração de tudo o que está ao seu redor. E que fez esquecer não só que a possibilidade de compreensão do texto depende da familiaridade do leitor com o universo simbólico e material que o produziu, como também, que as situações de leitura são historicamente variáveis: a leitura nem sempre foi algo de foro privado, íntimo, que remete à individualidade. Já nos sécs. xvi e xvii outras formas de leitura e de relação com o texto faziam da leitura atividade coletiva, cujos leitores manipulavam o texto, decifrando-o e elaborando-o em conjunto (Chartier, 1982). Atividades essas, portanto, que ultrapassam a capacidade individual de ler, incluindo nelas indivíduos que não sabiam decifrar os códigos escritos, mas que nem por isso estavam excluídos das atividades de leitura.

Outro aspecto a ser considerado no entendimento e na superação dessas formas dominantes de leitura é o da análise dos sentidos e das formas de resistência dos alunos a elas. Para Lahire, (idem, 1993), o fracasso na leitura dos alunos, filhos de emigrantes e de grupos de baixa renda na França, é decorrência da resistência não consciente dos alunos à sua conversão às formas escolares impostas de leitura e relação com a linguagem. Socializados a partir de outra lógica de relação com a linguagem, característica das culturas orais (produção coletiva dos sentidos, significações buscadas no contexto etc.), resistem às formas de imposição escolar. Assim, uma das razões para essa resistência, segundo o autor, está no fato de que as «relações pedagógicas de aprendizagem» se colocam em oposição àquelas que caracterizam as trocas verbais, cujos sentidos são construídos na interlocução. Ao exigirem uma leitura solitária daquela que deve buscar internamente ao texto, seus significados, desconsidera que eles foram fixados por uma cultura escrita, só acessível aos que compartilham do mesmo «capital cultural».

Daí que é preciso considerar que a escola demanda uma relação «artificial» (idem, Lahire, 1993) com a linguagem, que se constituiu em oposição aos seus usos ordinários. Ela exige dos alunos o estabelecimento de uma distância dos significados das palavras para que se centrem nos seus significantes: a gramática, destacando nela regras e princípios, dividindo as lições, os exercícios progressivos do mais simples ao mais complexo e isolando as dificuldades. Sob o efeito da normatização das práticas escolares, a escola transformou a escrita em objeto de certo tipo de conhecimento, isto é, aquele que considera a escrita como um universo autônomo de paradigmas, regras, relações entre elementos, operações escritas como classificar, colocar em um quadro, subtrair etc., que devem ser internalizadas pelos alunos através dos exercícios escolares.

Nessa perspectiva, a escola não ensina somente as habilidades de leitura e escrita que exigem a aquisição de competências específicas para o domínio do código escrito, mas o faz através de estratégias e práticas definidas pelas relações de poder, por uma violência simbólica, que ao se apoderarem da produção lingüística e da produção de sentidos, passaram a impor, através das práticas de leituras escolares, formas de apropriação e produção textual consideradas «legítimas» dos textos escritos e que tendem a se impor à custa de outras menosprezadas (Bourdieu, 1976). Isto é, a leitura do texto escrito passou a exigir uma atitude de compreender por compreender e não de compreender para agir; a exigir o reconhecimento do «status social» de que é revestido o texto escrito, que direciona seu uso, manipula sua recepção, condicionam a sua leitura (o prefácio introdutório da obra, os códigos de leitura como seus dispositivos gráficos: a letra maiúscula, o negrito,) e a quem cabe o título de leitores. Exigindo uma relação com a linguagem que ela tem por função ensinar, a escola passou a excluir aqueles que não tiveram acesso à mesma herança cultural.

Ao desnaturalizarem as relações de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, esses estudos permitiram ainda pôr em questão as tentativas de «desartificializar» as práticas escolares de leitura e de escrita por meio de políticas educativas que propõem mudanças nos métodos de alfabetização. Na medida em que as práticas educativas passaram a constituir não só as práticas ordinárias de leitura e escrita dos indivíduos escolarizados, elas também passaram à condição de «fazeres incorporados» nas ações dos professores em seu oficio de ensino. Como um conjunto de referências necessárias à ação, as práticas escolares ditas «tradicionais» guiam as formas de ensino e de aprendizagem. Assim, propostas que têm como objeto modificar «práticas tradicionais», no fundo desconhecidas da escola e de muitos programas de formação de professores, correm o risco de eliminar a existência de uma série de ações profissionais ordinárias que constituem a base sobre a qual se constituem os estilos pedagógicos ou didáticos específicos, sejam eles tradicionais ou renovados (Chartier, 2000). Ademais, a naturalização e a atribuição de uma universalidade intrínseca às formas de aquisição da linguagem escrita e da leitura pelas crianças no sistema alfabético, tende a fazer esquecer o trabalho escolar de inculcação deliberado que os professores exercem sobre os alunos para que eles passem a incorporar uma forma de usar a linguagem que é aquela que a escola vem tentando há séculos impor ao conjunto da sociedade. Ou seja, já não é possível negar a questão do poder envolvido no ato educativo e, portanto, deixar de admitir que não há neutralidade na educação, como algo a serviço da humanidade e transmissora de conhecimentos universais.

5.       Por uma redefinição do Ato de Ler

É preciso superar também a idéia de que foi a escrita que promoveu o desenvolvimento do pensamento reflexivo, abstrato e a produção do conhecimento e da cultura. Ou seja, é preciso rever as concepções que opõem as relações com a linguagem nas tradições orais dos grupos pouco ou nada escolarizados e aquelas das culturas escritas. Um dos problemas desta visão, além daqueles já apontados, é que ela está apoiada numa «mentalidade definida por um conjunto de certezas [...] de que o discurso pode ser congelado, de que a memória pode ser armazenada e recuperada, e que a experiência pode ser descrita» (Illich, 1995, p.35). Isto é, por trás da oposição oralidade e cultura escrita, está a mentalidade de que a cultura é um produto da escrita, um conjunto de traços deixados por uma civilização, um conjunto de objetos, livros herdados. A cultura, definida desse modo não permite uma interrogação sobre as diferentes produções culturais, representações e apropriações que as civilizações e os diferentes grupos sociais fazem da leitura e da escrita. Isto é, aquilo que cada civilização entendeu e produziu como cultura (idem, Certeau, 1990). Por trás dessa visão está a idéia de que a reunião exaustiva de textos escritos, de saberes sistematizados, de conteúdos de conhecimentos acumulados, representa a cultura, cuja escrita é uma de suas formas de apresentação e transmissão.

Percebida como um todo homogêneo, como um sistema que pode ser apreendido e assimilado, a cultura assim concebida tende a eliminar os processos heterogêneos, contraditórios, conflituosos de criação e expressão de uma formação social, que tem como motor a luta entre os grupos sociais que compõem dada sociedade. Só uma visão ampliada da cultura como expressão dos diversos grupos e, portanto, como manifestação plural dos fenômenos simbólicos e matérias através dos quais os indivíduos na sociedade se exprimem, é possível permitir a compreensão das diferenças e dos antagonismos gerados no seio da própria sociedade (Chauí, 1987). As diferenças de modos de perceber e de pensar, fruto das condições sociais e da posição que ocupam os diversos grupos na sociedade, ao se expressarem na cultura, demandam interrogações dos distintos significados, usos e leituras dos textos escritos, das formas de linguagem, do uso da língua, ou seja, das adesões e recusas, das contradições e conflitos em que se vêem confrontados a experiência do sujeito, sua leitura de mundo e o significado da palavra fixado e normatizado no texto escrito.

 Foi, portanto, uma visão limitada do que é a cultura e a própria natureza da linguagem humana, que difundiu uma mentalidade que opôs a oralidade e a cultura escrita (Olson, 1995). E, portanto, uma visão que separa cultura letrada ou escolar e as formas culturais do povo que, sob o liminar da escrita se mantém supostamente sob as formas de pensamento não reflexivo, não normatizado, desconsidera as contradições sociais e as relações de poder que se fazem presentes no momento em que os objetos culturais se estabelecem como práticas. Assim, o texto escrito que pretendeu eliminar as contradições existentes entre diferentes discursos, «ao subtrair os elementos discordantes e manipular em um mesmo plano, informações que não foram produzidas nem simultaneamente, nem em um mesmo lugar» (Bourdieu, 1993), podem reaparecer nas ações de leitura, quando a compreensão do texto a ser alcançada por uma leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. A leitura, concebida como uma reescrita do texto, antecedida por uma reinscrição do texto no contexto do sujeito que lê e sua análise crítica, para ampliá-lo, pode tomar então outros rumos.

Se já não se quer separar o ensino do código escrito, da compreensão do sentido da palavra escrita é porque tem se tornado possível a percepção de que «a leitura do mundo precede a leitura da palavra» (Freire, 1982). Isto é, que o processo de alfabetização não pode prescindir da continuidade da leitura do mundo do sujeito. Daí que já não se pode ignorar nos processos de aquisição das habilidades de leitura e escrita, a participação na produção cultural das camadas populares. Não como cultura diferente, mas como parte da cultura nas suas diferentes maneiras de usar a linguagem, fazendo-se notar no espaço público sob a forma de resistência como momentos de irreverência (grafites espalhados pela cidade, pichações nas paredes dos banheiros públicos, escritas «proibidas nos cadernos escolares»). Os usos da língua, as formas de leitura, escrita ou reescrita são, então, um terreno fértil que permite explicitar o que fazem os diferentes grupos das formas lingüísticas difundidas pela «alta cultura», produtora da linguagem. Como explicita Certeau (idem, 1990), os conhecimentos e os símbolos impostos são objeto de manipulação pelos praticantes que não são os fabricantes. A produção da literatura de cordel, as crendices populares, as cantigas, os provérbios populares, os discursos e as leituras subvertem pelas «maneiras de usar» a linguagem, a fatalidade da ordem estabelecida. Mas para apreender essas maneiras de fazer, ou as maneiras de usar a linguagem e escrevê-la ou inscrevê-la no sistema lingüístico, é preciso analisar o discurso, os atos da fala, os atos de leitura, não descrevendo-os fora do seu contexto de uso e das operações dos locutores em circunstâncias particulares, mas nas ligações com as circunstâncias, os lugares e o tempo histórico de que é feita a cotidianidade, indissociável da existência e da experiência dos sujeitos – onde são «atores e autores».

Talvez os novos tempos permitam agora e a partir de um conhecimento que já permitiu uma nova compreensão do homem, da educação e da sociedade, uma realfabetização das práticas de alfabetização onde os exercícios de leitura sejam problematizados e resignificados nos «círculos de cultura», os «alunos» sejam transformados em «participantes dos grupos de discussões» e os «professores» passem a ser os analistas, orientadores e produtores críticos dos debates para que se produza conhecimento, como há muito o pensamento de P. Freire auxiliou a esclarecer.

BIBLIOGRAFIA

 

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Notas

1 Fonte: http://pisaweb.hacer.edu/au/oecd - Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económico (OCDE), 2007.

* Professora doutora da Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, Brasil.


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